domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 753 : A MULHER DA GARGANTILHA DE VELUDO E OUTRAS HISTÓRIAS DE TERROR

A MULHER DA GARGANTILHA DE VELUDO E OUTRAS HISTÓRIAS DE TERROR



1001 FANTASMAS 

1. A rua Diane em Fontenay-aux-Roses
 2. O beco dos Sargentos 
3. O interrogatório 
4. A casa de Scarron 
5. A bofetada em Charlotte Corday
 6. Solange 
7. Albert 
8. O gato, o meirinho e o esqueleto
 9. Os túmulos de Saint-Denis 
10. Artifaille 
11. O bracelete de fios de cabelo 
12. Os montes Cárpatos 
13. O castelo dos Brancovan 
14. Os dois irmãos
 15. O mosteiro de Hango 

A MULHER DA GARGANTILHA DE VELUDO

 1. A família Hoffmann 
2. Um apaixonado e um louco
 3. Mestre Gottlieb Murr
 4. Antônia 
5. O juramento
 6. Uma barreira de Paris em 1793
 7. Porque os museus e bibliotecas estavam fechados e a praça da Revolução, aberta
 8. O julgamento de Páris 
9. Arsène 
10. Segunda récita de O julgamento de Páris
 11. A birosca 
12. O retrato 
13. O aliciador 
14. O 113 
15. O camafeu 
16. Um hotel da rua Saint-Honoré 
17. Um hotel da rua Saint-Honoré

 (continuação)

 Anexos “Sobre a arte da conversa” O Arsenal Cronologia: Vida e obra de Alexandre Dumas


APRESENTAÇÃO
 Chez Dumas
 “Anuncio com muita alegria que, ontem, pela manhã, minha mulher deu luz a um menino enorme, um bebê de nove quilos. Se ele continuar a crescer, promete alcançar uma boa altura.” 

1 25 DE JULHO DE 1802 RUA LORMELET — PARIS, FRANÇA O menino foi registrado como Alexandre Dumas. Mais tarde, em 1831, seu nome seria retificado para Alexandre Dumas Davy de La Pailleterie. Era neto do marquês Antoine-Alexandre Davy de la Pailleterie e de uma jovem negra da ilha de São Domingos, Marie Césette Dumas; e filho de Thomas-Alexandre Dumas, casado com Marie-Louise Élisabeth Labouret Dumas, filha de um estalajadeiro. O avô do recém-nascido, ao perder sua querida companheira, em 1772, voltara à França com o filho, mas faleceria pouco depois, em 1780. O pai, na juventude, era moreno, alto, dono de uma coragem impressionante e tinha pela frente uma carreira brilhante no exército. De fato, o general Dumas tornou-se uma grande figura militar de sua época e, em 1792, casou-se com Élisabeth Labouret, com quem primeiro teve duas filhas e, finalmente, o pequeno Alexandre. O orgulho pelo filho cresceu ainda ao longo de sua infância. O general Dumas, que antes se ausentava muito, devido às suas atividades militares, desenvolveu um forte apego pelo menino de olhos azuis, tez morena e cabelos crespos.2 Esse afeto era retribuído pelo pequeno Alexandre, cuja admiração pelo pai e seus valores — a força atlética, o código de honra da cavalaria, o heroísmo — era total. A família vivia luxuosamente, num pequeno castelo perto da cidade de Haramont. Em 1805, ciente do declínio de sua saúde, o general foi a Paris consultar um médico e levou consigo mulher e filho. Ele sentia a proximidade da morte e queria angariar protetores para ambos. A família instalou-se então na capital, onde seria mais fácil providenciar os cuidados necessários à saúde frágil do general. Em 1806, após uma cavalgada na floresta, o general disse suas últimas palavras: — Oh, Deus! Por que um general que aos trinta e cinco anos comandou três brigadas morre aos quarenta na cama como um covarde? O que fiz eu para ser condenado, tão jovem, a deixar minha mulher e filho? Assim partiu o general, nos braços da mulher, à meia-noite em ponto. A cena não foi testemunhada pelo pequeno Dumas, de três anos, que fora levado à casa de uma prima pouco antes. O menino dormia quando, à meia-noite, ele e a prima foram despertados por um golpe forte na porta. Alexandre saltou da cama e correu na direção do som. — Aonde você vai, Alexandre? — gritou a prima. — Preciso abrir a porta para me despedir de papai. Ele quer dizer adeus. O menino foi tranquilizado e voltou a adormecer. Na manhã seguinte, a notícia da morte do general alcançou a casa. Assim que ele despertou lhe disseram: — Meu querido menino, seu papai, que te amava tanto, faleceu. — Papai faleceu? O que isso quer dizer? — Quer dizer que você não o verá mais. — E por que não? — Porque o bom Deus o levou consigo. — E onde mora o bom Deus? — No céu. O menino calou-se, mas, assim que voltou para sua casa, correu até o quarto do pai e pegou seu fuzil. Subiu as escadas e pôs-se na janela. Encontrou a mãe, que chorava copiosamente. — Aonde você vai? — ela perguntou. — Vou para o céu. — E o que fará no céu, meu menino? — Vou matar o bom Deus que matou o meu pai. Ela o abraçou e lhe pediu que jamais dissesse coisas assim. A orfandade foi o primeiro grande ritual de passagem do jovem Dumas.3 Herdeiro de Sherazade O desamparo, a inquietude diante da morte, a juventude sem fortuna que é obrigada a enfrentar a vida em Paris, são temas facilmente localizáveis ao longo da obra do criador de personagens lendários — por exemplo na história de Edmond Dantès, o jovem capitão traído pelos companheiros que viria a transformar-se no temível conde de Monte Cristo, ou na de d’Artagnan, o filho de um soldado aposentado que chega a Paris sem sequer a carta de recomendação, que lhe fora roubada no caminho. Ambos, de uma forma ou de outra, veem-se excluídos da sociedade e lutam para conquistar, ou reconquistar, um lugar ao sol. A morte do general Dumas deixou a família com poucos recursos. Alexandre educou-se como pôde. Ou melhor, como preferiu. Ele lia a Bíblia, os mitos, e apaixonou-se perdidamente pelas Mil e uma noites. O fascínio pela figura de Sherazade, a narradora mítica que vence a morte usando a astúcia de contadora de histórias, perdura por toda a sua vida. A obra primordial da literatura do Oriente Médio forneceu a Dumas não apenas inspiração para peripécias e reviravoltas extraordinárias, como também a técnica necessária para prender a atenção dos leitores de folhetim: histórias que geram outras, interrompidas no momento de maior suspense. Sua capacidade de enredar narrativas era tão extraordinária que, no auge do sucesso de sua produção folhetinesca, Dumas foi apelidado de Sherazade pelos colegas e leitores. A novela 1001 fantasmas revela-se a homenagem mais declarada a essa personagem, tão amada por Dumas. Nela, a jovem princesa das Arábias, que se preserva da morte pela espada usando o fio da palavra, empresta seu dom ao narrador francês. Nesse contundente libelo contra a pena de morte há inclusive referências explícitas ao grande clássico da cultura árabe: “Ela me lembrava aquela vampira das Mil e uma noites que ia à mesa como os demais, mas usava apenas um palito para comer arroz.” Diálogos rápidos e precisos, cuja força é preservada pela tradução certeira de André Telles e Rodrigo Lacerda, conferem a esse texto de Dumas o tom oral, o clima confidencial de uma lenda contemporânea, compartilhada entre amigos. Afinal, os fantasmas que assombram essas narrativas não surgem de tradições espiritualistas, pelo contrário, apresentam-se como vozes que escapam de cabeças decapitadas por guilhotinas, ou ainda de personagens vítimas de outras mortes, cujas descrições chegam a ser minuciosas em seu realismo. Pois Alexandre Dumas é um escritor que, em geral, narra num tempo e num espaço geográfico reais, ao contrário de seu companheiro de pena, seu colaborador, o poeta Gérard de Nerval, grande mestre das histórias surreais, ou Jacques Cazotte, autor que exerceu forte influência sobre a corrente fantástica francesa, citado em 1001 fantasmas com fina ironia: Moulle é meu amigo há quarenta anos e tem sessenta. … Quase foi bispo de Clermont. Sabe por que não foi? Porque antigamente era amigo de Cazotte, e porque, como Cazotte, acredita na existência dos espíritos superiores e inferiores, dos gênios benfazejos e malfazejos. … Encontrará em sua casa toda a literatura sobre visões e aparições, espectros, larvas, assombrações, embora raramente aborde tais assuntos, exceto entre amigos, pois estão longe de ser ortodoxos. … — Oh! Veja só — interrompi-o —, acho que ele acaba de evocar um desses espíritos a que o senhor se refere… O breve trecho acima é representativo da fala ambígua e lúdica de Alexandre Dumas. A descrição cética do personagem, que tranquiliza o leitor quanto à existência “real” de espectros sobrenaturais, é em seguida interrompida pelo prenúncio de um bom susto, uma sequência de alto suspense, deslocando-o de suas certezas e contexto familiar. Estamos diante de um narrador de seu tempo, época da reflexão sobre a ciência e suas descobertas, na qual o espaço da espiritualidade era muitas vezes considerado mera superstição pela nova mentalidade positivista. Há aqui, ainda, um eco do menino assustado com a perda precoce do pai e, finalmente, o contador de histórias herdeiro de Sherazade, futura fonte de inspiração para os melhores roteiristas cinematográficos. Batismo literário Aos treze anos de idade, Alexandre Dumas tinha uma bela caligrafia, paixão por lendas de todo tipo e uma grande curiosidade com relação à história de seu país e do mundo. Sua mãe o fazia trabalhar como aprendiz em um cartório, mas, paralelamente, ele escrevia seus primeiros romances e fazia suas primeiras amizades literárias, entre elas Adolphe Ridding de Leuven, que, também filho de um herói, era poeta. Foi Adolphe quem introduziu Alexandre na obra dos grandes poetas de seu tempo. Juntos escreveram um concerto e uma peça de teatro popular, ou de vaudeville, como se costumava dizer. Em Paris, em novembro de 1822, aos vinte anos, Alexandre foi com um colega de trabalho, Pierre Hippolyte Paillet, a uma peça de teatro, estrelada por Robert Talma. No auge da glória, o ator principal da Comédie Française recebeuos em seu camarim e, quando estendeu a mão para cumprimentar Dumas, este lhe pediu, com reverência: — Toque a minha testa! Talma, embora surpreso, teria entrado na brincadeira e replicado: — Alexandre Dumas, eu o batizo poeta, em nome de Shakespeare, Corneille e Schiller… Nascia assim um dos maiores escritores de todos os tempos.4 Os primeiros sucessos No dia 27 de julho de 1824, Dumas tornou-se pai. O bebê recebeu o nome de Alexandre Dumas, filho. O movimento romântico estava então em seu início. Dumas se apaixonou pelas obras de Walter Scott, Schiller e Goethe. Frequentou os salões de pinturas e fez amizade com Delacroix. Em Paris, nos grandes bulevares, pessoas de todas as idades e categorias sociais passeavam. Dumas apreciava essas caminhadas e passou também a visitar a casa de Charles Nodier, o erudito bibliotecário e escritor, por ele homenageado em 1001 fantasmas. De dia, Dumas trabalhava em seu escritório, à noite, frequentava o teatro, festas e saraus. Em 1827, uma trupe de atores foi a Paris encenar peças de Shakespeare. A obra do bardo inglês, hoje incontestavelmente clássica, era pouco conhecida na França de então. O sucesso daquela temporada francesa foi estupendo. Dumas não perdia um espetáculo, e fazia anotações. Esse contato com as tragédias elisabetanas o ajudou a compor a receita de seu estilo: descrições livres das ações, valorização das lutas e escaramuças, explicitação de tudo o que os textos gregos deixavam nos bastidores. Emocionar o público leitor, enfim. Alexandre pesquisou então a vida de Henrique III, rei da França no final do século XVI. A partir desse estudo, escreveu sua primeira peça, Henrique III e sua corte, em dois meses apenas. A peça foi encenada pela companhia teatral da Comédie Française. Ansioso na estreia, foi surpreendido por um sucesso retumbante. Os jovens partidários do movimento romântico, de cabelos longos e ideias ao vento, elegeriam Dumas seu patrono. No dia seguinte, o jornal La Gazette de France diria: “Do terceiro ato até o final da peça não foi um sucesso, e sim um delírio estrondoso, todas as mãos aplaudiam…” A partir deste primeiro triunfo, Dumas passou a escrever ininterruptamente. Em seis semanas, tinha outras duas peças: Christine, que estreou em 1830, e Antony, que estreou em 1831. Aos 29 anos, o jovem que chegara sem recursos a Paris, sem proteção, diplomas ou sequer uma instrução sólida, transformava-se em celebridade. Antes de cada peça ser montada, Dumas cumpria o ritual de ler o texto para os atores da companhia, diante de outros escritores e profissionais envolvidos na encenação propriamente dita. A leitura em voz alta, o compartilhamento e a troca ao longo do processo criativo marcariam também sua produção como romancista de folhetim. Dumas foi duramente criticado por — em pleno romantismo, época em que se glorificava a inspiração, a criação autoral solitária, o escritor angustiado, cuja morte deveria ser precoce — produzir peças e romances em parcerias ou até mesmo dirigindo equipes. Grosso modo, Dumas tinha três modelos de produção: algumas obras escrevia totalmente só, como Antony; outras eram criadas em dupla, nas quais chegava a ficar em segundo plano, como Leo Buckard, em parceria com Gérard de Nerval; e, finalmente, escrevia a partir de roteiros montados por colaboradores, entre os quais se destacou Auguste Maquet. Tratava-se de um procedimento comum em seu tempo, mas sem tanto prestígio quanto a criação absolutamente autoral. Muito embora fosse, sim, um dramaturgo romântico, como fica nítido na trama e no texto de A mulher da gargantilha de veludo, cujo desfecho contundente e imprevisível ironiza as falsas riquezas, os costumes da nobreza. Tanto no teatro quanto nos romances, contudo, sua voz narrativa aliciadora e o ritmo alucinante dos diálogos atestam uma consciência forte da importância da recepção por parte do público, e essa necessidade de seduzir o ouvinte, leitor ou espectador, explicaria o enorme sucesso de suas obras. Contos de Hoffmann “Será que existe um poder oculto capaz de imprimir em nossa alma uma ascendência tão pérfida e malsã que nos paralisa e, depois, nos remete a uma via tão perigosa e nefasta que, sem ele, permanecemos eternamente desconhecidos?” Esta é a indagação do narrador de O homem de areia, de autoria de E.T.A. Hoffmann, cujo poder de apreensão do grande mistério existencial despertou admiração entre inúmeros escritores ao longo dos anos. Esta é, também, a inquietude que habita o espaço criativo de Alexandre Dumas, desconcertado diante das vítimas decapitadas pela impiedosa e voraz guilhotina da Revolução Francesa. Tanto em 1001 fantasmas como em A mulher da gargantilha de veludo, por sinal, há uma indisfarçável condenação da pena de morte. A instigante obra de Hoffmann gerou debates e inspirou novos textos entre os franceses quando foram publicadas no país as primeiras traduções dos contos desse autor alemão, em 1828 e 1840. Não por acaso, Hoffmann é personagem de A mulher da gargantilha de veludo. Embora seu nome seja frequentemente associado a autores como Charles Nodier e Gérard de Nerval, grandes companheiros de Dumas, nem sempre se leva em consideração a enorme influência que seus textos exerceram também sobre o criador de 1001 fantasmas. Talvez isso se deva ao fato de a obra de Alexandre Dumas ser excluída do cânone romântico, ou de cânones de um modo geral. Reverenciado por leitores contemporâneos, Dumas e suas aventuras parecem escapar às classificações de antologias. Admirador tanto de Walter Scott, o autor escocês adversário literário de Hoffmann em sua defesa do romance histórico, quanto do autor alemão, Dumas parece beber de ambas as fontes ao situar o enredo de A mulher da gargantilha de veludo num contexto fortemente marcado por fatos reais, ao mesmo tempo em que desloca os acontecimentos finais para a via paralela do estranhamento sobrenatural. Coube a Hoffmann cunhar um novo termo para designar contos insólitos: o termo “fantástico”, muito popular e amplamente usado por Charles Nodier.5 Seres deformados, autômatos, feiticeiros e vampiros povoam essa nova via narrativa, mas, na obra de Dumas, o grande terror advém da impiedade e da insensatez humanas, com seus carrascos indiferentes e vorazes aparelhos de assassinar, como a guilhotina. Diálogo entre vida e obra O sucesso pessoal, o engajamento político, as mulheres pelas quais se apaixonou sucessivamente, esses eram os ingredientes da vida de Alexandre Dumas. Republicano, desafiava os valores do Antigo Regime e, em 1825, enfrentou em duelo um de seus representantes, seu primeiro duelo na vida real, no qual, para o bem da literatura, saiu-se muito bem. Nos salões de música, ele fez amizade com o compositor Liszt e com George Sand, escritora e musa do compositor Chopin, além de desfrutar a companhia do compositor Rossini e do violinista virtuose Paganini. Nada disso impediu que se tornasse alvo de ataques por parte de inimigos racistas, dada sua ascendência negra e a pele escura. Certa noite, ao entrar num salão, Dumas ouviu um discurso irônico, pejorativo, depreciando os negros africanos, feito por um intelectual conhecido. Repentinamente, este interpelou-o, provocando-o diretamente: — Caro senhor, na certa sabe de tudo o que acabo de dizer sobre os africanos, com todo esse sangue negro correndo em suas veias. Impassível, Dumas sorriu ironicamente e replicou: — Sim, certamente. Meu pai era um mulato, meu avô era um negro e meu bisavô um macaco. O senhor veja como são as coisas, meu caro: minha família começa onde a sua termina. Segundo André Maurois, seu biógrafo: O jovem tolerava muito bem que o lembrassem de suas origens, porque, na verdade, orgulhava-se delas, principalmente nas conversas com Nodier. Mas, às vezes, outros o feriam. Odiar esses inimigos seria aviltante para Dumas, que considerava tal sentimento uma fraqueza. Sua única necessidade era provar-se a cada instante, provar o seu valor superior ao deles. De onde talvez surgisse uma disposição natural para sua compreensão dos revoltados contra a sociedade, dos proscritos, dos excluídos em geral. O início da parceria com o poeta Gérard de Nerval seguiu-se à morte da mãe de Dumas, em 1838. E o próprio Nerval apresentou-lhe Auguste Maquet, um jovem professor de história que iria se tornar seu mais importante colaborador. Cabiam a Maquet, em geral, a pesquisa histórica e os argumentos dos capítulos, quando então o texto final era feito pelo escritor. Em certos autores, vida e obra estabelecem um diálogo intermitente, distanciado, mas, no caso de Alexandre Dumas, parece haver entre as duas instâncias quase uma simbiose, um intercâmbio contínuo, evidenciando uma dimensão aberta de sua obra, isto é, permeável aos acontecimentos à sua volta. Na verdade, talvez essa simbiose seja bastante típica dos artistas românticos, de todas as épocas. Seu primeiro contato direto com o movimento artístico que conquistara Paris, o romantismo, havia acontecido por puro acaso. Ao assistir a uma encenação da peça O vampiro, ele se viu ao lado de um homem de cabelos brancos, fino, charmoso, com o qual começou a conversar. Tratava-se do já mencionado Charles Nodier, justamente o autor da peça, cuja amizade lhe marcou a vida e as histórias. Outros golpes de sorte ainda contribuíram para que Dumas estabelecesse uma espécie de rede literária, algo fundamental para as trocas artísticas e as grandes realizações. A ele coube o mérito de perceber cada oportunidade e vivê-la corajosamente, unindo a força de sua imaginação prodigiosa a uma imensa capacidade de trabalho. Ele enfrentava as críticas e a maledicência com altivez, embora fizesse questão de respeito ao seu trabalho. Sua generosidade com relação aos colegas do mundo artístico beirava a obsessão. Sempre que conseguia ganhar muito dinheiro, presenteava as amantes, os amigos e suas famílias, além de filhos, colaboradores e admiradores. Ironicamente, isso por vezes contribuía para que tivesse um grande número de seguidores oportunistas. Quando não se sabia onde jantar, dizia-se: “Chez Dumas”, e em sua casa as portas estavam sempre abertas, com a mesa farta. Nessas ocasiões, era comum encontrá-lo ensandecido, trabalhando. Mesmo assim, amava organizar bailes e banquetes. Dumas se gabava de seus dotes culinários. Portador de uma autorização para caçar na floresta das redondezas, partia com os amigos para providenciar a carne a ser servida em seus jantares. Esse clima de confraternização entre amigos é, em certa medida, a principal característica de 1001 fantasmas. Reunidos na casa do prefeito de uma cidade do interior, os personagens, para se entreterem mutuamente, contam cada um uma história de terror. A novela resulta, portanto, num conjunto com subdivisões. E, à medida que essas narrativas se sucedem, sob a superfície fantástica surge uma reflexão profunda sobre a injustiça social e, em contrapartida, os excessos revolucionários, a pena de morte, ou ainda “as coisas do céu e da terra, para além do que sonha nossa vã filosofia” (segundo conceito expresso tão magistralmente por Shakespeare em Hamlet, obra também fundamental para Dumas, que amava heróis capazes de enfrentar sem ajuda um mundo de inimigos ocultos, reais ou sobrenaturais). A parceria entre Dumas e Gérard de Nerval, que rendeu, por exemplo, o drama O alquimista, outra obra de evidente conteúdo místico/sobrenatural, prolongar-se-ia por muitos anos. E os dois textos reunidos neste volume, 1001 fantasmas e A mulher da gargantilha de veludo, talvez sejam os mais reveladores da grande influência que a sensibilidade extrema de Nerval parecia exercer sobre Dumas. Figuras como o temível Cagliostro, ou o lendário conde de SaintGermain, aparecem aqui e ampliam o campo do sobrenatural, expandindo suas possibilidades. A obra insólita de Nerval, bem mais tarde, já no século XX, viria a inspirar também o movimento surrealista, sobretudo ao poeta André Breton, estudioso do ocultismo, que criava uma prosa de encantamento e mistério, envolvendo cartas de tarô, lendas celtas, tradições arcaicas e referências a reinos paralelos, repletos de criaturas invisíveis. Para o século XIX, a loucura equivalia a ter um outro dentro de si. Gérard de Nerval apresentaria mais tarde graves problemas psiquiátricos,6 mas, durante os primeiros anos de sua parceria com Dumas, nada indicava isso. Um erudito, de temperamento delicado, cabelos claros, rosto de feições atraentes, Nerval dava provas de uma imaginação fantástica e sonhadora. Somente a partir de 1841 começaria a ter alucinações, que ele viria a registrar literariamente em uma de suas obras-primas, Aurélia, cuja escritura coincidiu com sua internação numa casa de saúde. Talvez hoje em dia ele viesse a ser diagnosticado como esquizofrênico, ou bipolar, mas, naqueles tempos, vários e curiosos foram os males a ele atribuídos: meningite, insolação, mal da orelha, fratura do crânio etc. O próprio Nerval se interessou por desvendar a causa de seus sofrimentos, passando a escrever sobre as fronteiras entre loucura e sanidade. Contudo, onde a medicina de seu tempo apontava uma fissura, ele via o entrelaçamento de dois mundos, o sonho funcionando como o elemento condutor de mensagens entre um estado e outro. O poeta, Orfeu, seria o único capaz de ir ao mundo dos mortos e dele retornar, utilizando o som poético de sua lira. Dumas, perplexo com as mudanças no amigo querido e colaborador, nem sempre era capaz de captar as nuances. Seguia publicando os sugestivos e intrincados poemas de Nerval em seu jornal diário, Le Mousquetier. Em 1853, aterrado pela piora do estado do amigo, Dumas escreveu um artigo fazendo referências à sua loucura, desastradamente magoando a sensibilidade de Nerval. Eram os primeiros sinais de estresse em seu relacionamento criativo. Ainda assim, ao publicar Aurélia, sequência de belíssimos contos sobre estados alterados de percepção, Nerval dedicou o livro a Dumas, como uma espécie de tentativa de fazê-lo compreender a densidade de sua percepção inusitada. Enquanto isso, na clínica de alienados do famoso médico dr. Blanche, seguiu escrevendo sonetos, os quais afirmava ter criado num estado supranaturalista. Ironizando a si mesmo, escreveu certa vez: “A última loucura que me resta, provavelmente, é a de me considerar um poeta.”7 Em 1001 fantasmas, diz o narrador de Dumas: “Pobres loucos, não compreendem que às vezes os homens podem mudar o futuro… jamais o passado!” Espectros, duplos, vampiros e cabeças decapitadas falantes expressam sua reflexão sobre o temor à loucura e à morte, os dois maiores medos universais. Em meio a sofrimentos atrozes, a genialidade de Nerval continuava a criar textos esplêndidos. “O bizarro na loucura de Gérard”, escreveu Dumas, “era a duplicidade: nele, coabitavam o homem lúcido e o louco. O lúcido estudava a própria loucura com a precisão de um médico e a apreciação de um filósofo.” O sonhador e o pensador, o homem que delirava e o narrador consequente, dois indivíduos unidos e cindidos ao mesmo tempo. Ainda nesse período, Dumas publicou em seu jornal outra obra de ficção criada pelo amigo, Pandora, garantindo a sobrevivência do texto, mas não, infelizmente, a de seu autor. No dia 30 de janeiro, as páginas de Le Mousquetier anunciavam o trágico suicídio de Gérard de Nerval, que foi encontrado enforcado, pendurado num poste, com os bolsos cheios de pedra, barbantes, folhas mortas e fragmentos de manuscritos. Se para Michel Foucault a loucura consiste na “ausência de obra”, então nesse sentido Nerval foi vitorioso em sua derradeira travessia do Aqueronte, o rio das dores incuráveis, pois a obra que nos legou é de uma impressionante força literária. O papel do narrador em As mil e uma noites — Sömmering afirma: “Vários médicos, confrades meus, asseveraram ter visto uma cabeça separada do corpo ranger os dentes de dor, e estou convencido de que se o ar continuasse-lhes a circular pelos órgãos da voz as cabeças falariam.” Pois bem, doutor — continuou o sr. Ledru, empalidecendo —, estou mais avançado que Sömmering. Uma cabeça falou comigo. Impossível abandonar a leitura da narrativa de Dumas após o trecho acima. A história da cabeça decapitada e falante desafiaria a credulidade do leitor, não fosse ela contada numa conversa com um médico, cujos comentários lhe conferem credibilidade, embora aquele que a conta ainda pergunte: “Também dirá que sou louco?” Não por acaso, voltando ao conto que serve de moldura às histórias em Mil e uma noites, relido por Dumas em seus 1001 fantasmas, vemos que ele também aborda a loucura, a morte e a voz literária como forma de estabelecer um diálogo com a antiga narrativa oriental. No clássico da literatura árabe, Sherazade, uma jovem de grande cultura, sensibilidade e astúcia, pede ao pai, o vizir, que a autorize a casar-se com um sultão enlouquecido, mesmo ciente de que correria o risco de ser decapitada, devido a uma vingança pessoal do jovem monarca, Shariar. A decapitação de Sherazade será adiada e, posteriormente, evitada, graças ao conhecido estratagema: ela pede a presença da irmã, Doniazade, e conta-lhe histórias, as quais o príncipe escuta com atenção, até o amanhecer. Esse ritual se repete por mil e uma noites, até que, sob o efeito das narrativas, a mente e o coração do príncipe se acalmam e ele passa a reinar como o mais sábio de todos os soberanos. Logo se vê a astúcia de Sherazade, tanto no sentido de criar uma rede narrativa na qual histórias se entrelaçam — sempre interrompidas no momento de maior suspense, para serem continuadas na noite seguinte —, quanto no de convidar a irmã para ouvi-las, criando uma situação na qual o príncipe possa vir a interessar-se espontaneamente pelas narrativas. É dito, no início do relato, que Sherazade era muito instruída, conhecendo histórias de lugares diferentes, até mesmo de mundos já desaparecidos. Portanto, quando ela se oferece para salvar as jovens do reino, já tem uma estratégia cuidadosamente planejada. Afirma a psicanalista brasileira Purificacion Barcia Gomes: Segundo as regras vigentes no mundo mágico do Oriente, o soberano teria a prerrogativa de cometer qualquer atrocidade que lhe apetecesse. Por isso, a tarefa de Sherazade não parece ser, à primeira vista, a de corrigir um comportamento desviante ou aberrante do sultão Shariar; ela não é uma educadora, nem uma reformadora social. Sua atividade se nos afigura como propriamente terapêutica: o sultão sofre e, em seus encontros com Sherazade, esta lhe diz coisas que aliviam o seu sofrimento.8 Na linha da premissa acima, que sugere uma das funções do narrador no mundo islâmico, e das próprias narrativas, Barcia Gomes aponta que, na Pérsia, o entretenimento noturno do jovem rei Alexandre Magno era ouvir fábulas da boca de homens especializados em contar histórias, os confabulatores nocturni. E acrescenta: Mais recentemente, falando dos primeiros séculos da fundação do Islã, o arabista Irwin lembra que se atribuem duas origens prováveis à tradição oral no Oriente: uma religiosa e outra secular. A religiosa decorria da ação dos pregadores e comentadores do Corão, chamados khatib. A secular, da ação dos quassas, contadores de histórias religiosas, sim, mas nem sempre ortodoxas. Justamente por essa heterodoxia narrativa, os quassas acabaram sendo expulsos das mesquitas e criaram os textos islâmicos apócrifos (constituídos de fábulas sobre profetas pré-islâmicos). Por fim, instalaram-se nas ruas, bazares e cemitérios, como contadores populares de ditos anedóticos, supostamente religiosos, em troca de moedas.9 Após essas considerações de caráter histórico, Barcia Gomes continua, dizendo sobre os colegas anônimos de Sherazade: No começo do século XVI, os contadores de histórias, assim como os demais artífices e trabalhadores, são obrigados a fazer parte de guildas, e passam a trabalhar em cafés, uma nova instituição social que surge nessa época, bastante malvista pela sociedade “honesta e trabalhadora”. Alguns desses homens conseguem capturar de tal forma a atenção da audiência que chegam a ser objetos de cronistas do Ocidente, admirados com seu poder de sedução … . A técnica utilizada pelos narradores árabes se assemelha à de Sherazade: interromper sua narrativa a cada noite, ou seja, aguçar a curiosidade do ouvinte através da intensificação do suspense. É importante observar que a técnica da interrupção da narrativa num momento crucial é um dos pilares do estilo de Alexandre Dumas. Ajudando a moldar o formato clássico do folhetim, no início do império jornalístico, o escritor instaurou o suspense na maneira de narrar as peripécias, por exemplo, de seus Três mosqueteiros. Eventualmente, com o advento do cinema, essa mesma técnica seria utilizada para prender a atenção do espectador. A interrupção da narrativa num momento culminante seria, em jargão cinematográfico, “o ponto de virada”. A televisão também utiliza o mesmo recurso, tanto nas novelas brasileiras como nos seriados norte-americanos, prolongando, por muitas noites, o pacto entre espectador e a história que ele acompanha. Poucos estudos teóricos, porém, contemplam essa herança ou tentam rastrear as técnicas narrativas que viajam através dos tempos e lugares. O esquecimento cultural, fruto de uma espécie de culto ao contemporâneo naquilo que ele apresenta de mais superficial e imediato, priva a memória coletiva dessas recuperações mais distantes, escamoteando vínculos e legados de grande importância. Barcia Gomes ainda acrescenta que a narrativa dos antigos contadores árabes, sempre interrompida e retomada, teria o poder de, artificialmente, criar a necessidade de mais narrativas, que estabeleceriam um diálogo com outras, pessoais, de histórias de vida, no ouvinte. “Guardiões da palavra-emoção”, esta é a bela definição poética que ela confere aos contadores de histórias do mundo antigo: “Esses guardiões da palavra-emoção, da palavra-memória, eram inicialmente, no mundo árabe, homens e profissionais. Com o passar do tempo, essa atividade vai sendo assumida por amadores e por mulheres, que contam histórias às outras mulheres e às crianças.”10 Afirmava Walter Benjamin que narrar corresponde a aconselhar, no sentido de introduzir palavras poéticas de sabedoria. A narrativa seria então uma forma de enraizamento na própria comunidade, comunhão com a natureza, inserção numa linhagem de gerações passadas e futuras. Nesse mesmo sentido argumenta Barcia Gomes: [O narrador é aquele que] sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.11 Talvez resida justamente aí a capacidade reparadora da literatura de um modo geral: o despertar primordial para a aceitação da passagem do tempo, da impermanência, da incerteza, mas também do humor, da aventura e do encantamento. O meio literário e o método de trabalho Diante das indagações colocadas pelos artistas do movimento romântico, Dumas respondia com uma ironia típica, que o aproxima muito dos artistas contemporâneos, e afirmava com muita simplicidade: “Sabem o que é a história? Um cabide onde penduro meus romances.” Estas são palavras de Alexandre Dumas, que, segundo seu biógrafo André Maurois, não se pretendia erudito nem, muito menos, pesquisador. Quando começou a escrever Os três mosqueteiros, Dumas já publicara impressões de viagens, peças de teatro, romances etc. Em todas essas incursões por diferentes gêneros literários, sempre se notava o instinto da ação. Tal característica se faria ainda mais presente quando ressuscitava a história da França em forma romanesca. Auguste Maquet, seu parceiro na empreitada, além de professor de história e filho de um abastado industrial, tinha a intenção de escrever para o teatro. Quando Gérard de Nerval o apresentou a Dumas, surgiu a ideia de realizarem um projeto de equipe em estreita colaboração. Um por todos, todos por um. Naquela época, havia na França dois grandes jornais que disputavam a atenção do público: La Presse e Le Siècle. O proprietário deste último decidiu que a melhor forma de conquistar mais leitores seria publicando um emocionante romance em forma de folhetim. O antigo truque de “interromper a história para depois continuá-la” voltaria a ser aplicado num novo meio. Para os jornais, o melhor romancista era aquele que garantia a fidelidade do maior número de leitores. Excelentes escritores poderiam revelar-se péssimos folhetinistas. O nome de Balzac foi considerado em primeiro lugar, mas suas longas descrições afugentavam a parcela mais impaciente do público. O jornal La Presse, em um golpe astucioso, comprou tudo o que fosse criado e assinado por Alexandre Dumas durante um período de doze anos. No caso do folhetim, a importância de conquistar o leitor desde a primeira linha era fundamental. Dumas desenvolveu então a técnica de delinear rapidamente o personagem para, em seguida, colocá-lo em ação. Não se tratava, portanto, de fornecer uma descrição superficial, mas sim de escolher a palavra mais precisa, a mais eloquente de um determinado traço de caráter, com o máximo de economia e o mínimo de espaço. Uma vez fisgado o leitor, a ação avançava até o suspense atingir um pico, quando então a narrativa era interrompida. Para avaliar a eficácia da “fórmula”, os jornais contavam com leitores profissionais. Rodas de ouvintes eram pagas para, diariamente, ler em praça pública as peripécias criadas por Dumas. Isso explica, em parte, a força de sua voz narrativa, cúmplice do leitor e que guarda uma oralidade evidente em todas as obras do período. O sucesso de Dumas foi retumbante. Para desencadear o próprio processo criativo, Dumas necessitava de pessoas a quem chamava de “despertadores de ideias”. Seu método de trabalho com os colaboradores, como já foi dito, era variável. Mas, em geral, ele pedia a descrição do cenário histórico para os acontecimentos importantes do enredo e reescrevia os textos de seus colaboradores diversas vezes, modificando os finais dos capítulos, introduzindo ganchos, diálogos velozes e naturais etc. Inaugurava-se assim uma nova corrente narrativa, especializada em histórias de aventuras, que a princípio prescindiam de efeitos mágicos, magos ou seres sobrenaturais. Descortinavam, sobretudo, o resgate de um certo heroísmo, em tempos cronológicos e espaços demarcados pela história, isto é, pelo real. Dos contos de fadas, Dumas extraiu os objetos simbólicos, espadas, brasões, gargantilhas, cartas, bolsas e moedas, os “sinais misteriosos do destino”. Ou ainda a importância dos pactos verbais: lemas, promessas, mentiras e declarações. Tal qual um roteirista norte-americano de filmes de ação, Dumas criava o suspense usando o tempo marcado, por vezes em contagem regressiva. Personagens chegam à meia-noite, contam os minutos, ou fazem referências ao tempo expandido do temor, como expresso em seus trabalhos de cunho mais “gótico”, como se diria no jargão atual. O processo industrial de fabricação de histórias, por meio do novo suporte midiático, o jornal, exigia o trabalho de equipe. Longe de explorar seus colaboradores, Dumas os valorizava. Sua metodologia coletiva já antecipava as futuras reuniões de roteiro e brainstorming, a troca intensa de ideias, tão comum no cotidiano das produtoras cinematográficas atualmente. E, além da equipe oficial de trabalho, nota-se ao longo de toda sua obra, porém mais especificamente em 1001 fantasmas e A mulher da gargantilha de veludo, o espaço privilegiado das conversas confidenciais: os jantares, os casos trocados à luz de velas, a esplêndida escuta da vida em curso, as mil e uma noites, o narrador primordial professando seu pacto secreto com cada leitor. O lugar do artista Por tudo o que foi dito, pode-se aventar a hipótese de que o artista ocuparia, para Dumas, o lugar de guardião de uma sensibilidade ancestral, da ficção primordial, impregnada pelo elemento onírico. Ele seria a testemunha do acaso e do imponderável, das brechas imprevisíveis, das verdades que escapam ao controle da cultura oficial através dos tempos e lugares. A partir de uma outra concepção de história da literatura, livre dos grilhões impostos por cânones, estaríamos abrindo espaço para a dinâmica recriadora, conforme definição de Jerusa Pires Ferreira,12 que, citando o pioneiro estruturalista Yuri Lotman, ressalta que a cultura não se contrapõe ao caos, mas a um sistema de signos opostos. Ou seja, num texto irão trabalhar dois mecanismos: um deles servirá para manter na consciência do receptor ou do auditório a memória de certa organização tradicional do texto, fornecendo-lhe com isso alguma estrutura esperada; o outro irá destruir essa estrutura, dessemantizando a percepção e constituindo o individual. Escolhas artísticas inusitadas, preservação daquilo que foi eleito, coletivamente, para ser relegado ao esquecimento geral, diálogos frutíferos com a memória cultural, rebeldia com relação a cânones: todas essas são características do gesto criador do artista. Como já foi visto, Barcia Gomes estabelece uma comparação entre as relações ouvinte e contador de histórias/paciente e analista, no sentido de que ambas necessitam de um pacto. Caso o analista, ao escutar o relato de seu paciente, lide de forma inadequada com uma ferida emocional, ocorrerá entre eles um afastamento, da mesma maneira como um contador de histórias não pode permitir uma má escolha narrativa, cuja forma ou conteúdo, de algum modo, provoque o distanciamento do ouvinte. Em ambos os casos, o equívoco resulta na quebra do pacto e no esfacelamento da relação. O mesmo acontece na relação escritor/leitor. O escritor precisa evitar que o leitor perca o interesse, que ele feche o livro e o abandone. Tal desfecho, no espaço da literatura, significaria o rompimento do pacto. Barcia Gomes menciona ainda a necessidade que o ser humano tem de ouvir histórias: Uma vez que estamos falando de uma necessidade de ouvir histórias, de uma necessidade de contar histórias, de uma necessidade de completar histórias, enfim, da arte de narrar e finalizar a narrativa como expressão de um desejo humano, convém … explicar a tendência humana a repetir (que se encontraria maximizada tanto no fenômeno transferencial quanto na compulsão à repetição). … para dar conta do fenômeno não seria preciso recorrer ao inatismo: basta pensar que a repetição se instala quando alguma experiência não foi suficientemente satisfatória para o indivíduo, isto é, quando alguma necessidade dele não pôde ser devidamente atendida. Ocorreria antes a repetição da necessidade, e não a necessidade de repetição.13 Sobre a importância da memorização como fonte de inspiração, ela diz ainda: É curioso notar que, diferentemente da Torá [o livro sagrado da religião judaica], revelada de uma única vez, o Corão [o livro sagrado da religião muçulmana] foi revelado ao Profeta [Maomé] pouco a pouco, em doses homeopáticas, linha por linha, verso por verso, em um período de vinte e três anos, para que ele tivesse tempo de digerir e elaborar o sentido revelado. … Apenas para resumir o que dissemos acima, As mil e uma noites, com seu ritmo peculiar de interrupções e retomadas, parece fazer parte de um modo árabe de revelação da verdade e de transferência de conhecimento, que transcende em muito o mero recurso estilístico.14 Aprofundando a reflexão sobre o método narrativo de Sherazade, Barcia Gomes cita o trabalho de Adélia Bezerra de Menezes, intitulado Sherazade ou Do poder da palavra, segundo o qual o poder de cura da tecelã das noites residiria em sua habilidade para lidar com “a necessidade primordial de ficção que habita o coração de cada homem”.15 Em seguida, viriam as qualidades narrativas de suas histórias, que abarcariam, na maneira de contá-las, a arte do poeta, do xamã, do psicanalista: Três especialistas, cada um em seu campo, em seu tempo, forneceriam ao doente uma linguagem, ou seja, a capacidade de propiciar uma transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da realidade, segundo a conhecida leitura feita por Lévi-Strauss da atividade xamanística como acesso ao discurso simbólico. … Poderíamos pensar a literatura oral ou escrita como a arte de fazer sonhar, a cujo prazer os homens se entregariam sem peias. Ocorre, porém, que o sultão acorda sozinho, repentinamente curado. Sherazade não o interrompe nos sonhos, apenas esgota sua necessidade de sonhar.16 As narrativas de Alexandre Dumas permanecem mais vivas do que nunca, antecipando as lendas urbanas, as aventuras sequenciais dos roteiros cinematográficos. Elas escapam aos cânones e têm sucesso permanente. A voz desse narrador irreverente e generoso, que tece textos móveis, arrebatadores, convida cada leitor a também narrar — mesmo que em segredo, apenas para si. HELOISA PRIETO17 1. Maurois, Andre, Promethée ou la vie de Balzac; Olympio ou la vie de Victor Hugo; Les Trois Dumas. Paris, Robert Laffont, 1993. 2. Biet, Christian, Jean-Luc Rispail e Jean-Paul Brighelli, Alexandre Dumas ou Les aventures d’un romancier. Paris, Découvertes Gallimard, 1986. 3. Maurois, Andre, op.cit. 4. Idem. 5. Batalha, Maria Cristina, “A importância de E.T.A. Hoffmann na cena romântica francesa”, Alea: Estudos Neolatinos, vol.5, n.2, jul/dez 2003. 6. Didier, Beatrice, Prefácio a Les filles du feu, Paris, Folio Gallimard, 1972. 7. Murat, Laure, La maison du docteur Blanche, Paris, Hachette, 2001. 8. Gomes, Purificacion Barcia, O método terapêutico de Scheerazade: Mil e uma histórias de loucura, de desejo e cura, São Paulo, Iluminuras, 2000, p.14. 9. Ibid., p.16. 10. Ibid., p.23. 11. Ibid., p.24. 12. Ferreira, Jerusa Pires, Armadilhas da memória, São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p.81. 13. Barcia Gomes, op.cit., p.20. 14. Ibid., p.21. 15. Ibid., p.29. 16. Idem. 17. Heloisa Prieto é doutora em literatura francesa (USP) e dedicou a tese de mestrado (PUC-SP) ao estudo de Os três mosqueteiros, de Dumas. Autora de mais de cinquenta livros para crianças e jovens, recebeu diversos prêmios, sendo o mais recente o de Melhor Livro de Reconto (FNLIJ — 2012), por O livro dos pássaros mágicos (FTD). Teve várias obras adaptadas para cinema, teatro e televisão, também premiadas, como é o caso de 1001 fantasmas (Companhia das Letrinhas), sua homenagem a este que é um de seus autores mais queridos.

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