A MULHER DA GARGANTILHA DE VELUDO E OUTRAS HISTÓRIAS DE
TERROR
1001 FANTASMAS
1. A rua Diane em Fontenay-aux-Roses
2. O beco dos Sargentos
3. O interrogatório
4. A casa de Scarron
5. A bofetada em Charlotte Corday
6. Solange
7. Albert
8. O gato, o meirinho e o esqueleto
9. Os túmulos de Saint-Denis
10. Artifaille
11. O bracelete de fios de cabelo
12. Os montes Cárpatos
13. O castelo dos Brancovan
14. Os dois irmãos
15. O mosteiro de Hango
A MULHER DA GARGANTILHA DE VELUDO
1. A família Hoffmann
2. Um apaixonado e um louco
3. Mestre Gottlieb Murr
4. Antônia
5. O juramento
6. Uma barreira de Paris em 1793
7. Porque os museus e bibliotecas estavam fechados e a praça da Revolução,
aberta
8. O julgamento de Páris
9. Arsène
10. Segunda récita de O julgamento de Páris
11. A birosca
12. O retrato
13. O aliciador
14. O 113
15. O camafeu
16. Um hotel da rua Saint-Honoré
17. Um hotel da rua Saint-Honoré
(continuação)
Anexos
“Sobre a arte da conversa”
O Arsenal
Cronologia: Vida e obra de Alexandre Dumas
APRESENTAÇÃO
Chez Dumas
“Anuncio com muita alegria que, ontem, pela manhã, minha
mulher deu luz a um menino enorme, um bebê de nove quilos.
Se ele continuar a crescer, promete alcançar uma boa altura.”
1
25 DE JULHO DE 1802
RUA LORMELET — PARIS, FRANÇA
O menino foi registrado como Alexandre Dumas. Mais tarde, em 1831, seu
nome seria retificado para Alexandre Dumas Davy de La Pailleterie. Era neto
do marquês Antoine-Alexandre Davy de la Pailleterie e de uma jovem negra da
ilha de São Domingos, Marie Césette Dumas; e filho de Thomas-Alexandre
Dumas, casado com Marie-Louise Élisabeth Labouret Dumas, filha de um
estalajadeiro.
O avô do recém-nascido, ao perder sua querida companheira, em 1772,
voltara à França com o filho, mas faleceria pouco depois, em 1780. O pai, na
juventude, era moreno, alto, dono de uma coragem impressionante e tinha pela
frente uma carreira brilhante no exército. De fato, o general Dumas tornou-se
uma grande figura militar de sua época e, em 1792, casou-se com Élisabeth
Labouret, com quem primeiro teve duas filhas e, finalmente, o pequeno
Alexandre.
O orgulho pelo filho cresceu ainda ao longo de sua infância. O general
Dumas, que antes se ausentava muito, devido às suas atividades militares,
desenvolveu um forte apego pelo menino de olhos azuis, tez morena e cabelos
crespos.2 Esse afeto era retribuído pelo pequeno Alexandre, cuja admiração pelo
pai e seus valores — a força atlética, o código de honra da cavalaria, o heroísmo
— era total. A família vivia luxuosamente, num pequeno castelo perto da cidade
de Haramont.
Em 1805, ciente do declínio de sua saúde, o general foi a Paris consultar um
médico e levou consigo mulher e filho. Ele sentia a proximidade da morte e
queria angariar protetores para ambos. A família instalou-se então na capital,
onde seria mais fácil providenciar os cuidados necessários à saúde frágil do
general.
Em 1806, após uma cavalgada na floresta, o general disse suas últimas
palavras:
— Oh, Deus! Por que um general que aos trinta e cinco anos comandou três
brigadas morre aos quarenta na cama como um covarde? O que fiz eu para ser
condenado, tão jovem, a deixar minha mulher e filho?
Assim partiu o general, nos braços da mulher, à meia-noite em ponto. A cena
não foi testemunhada pelo pequeno Dumas, de três anos, que fora levado à casa
de uma prima pouco antes. O menino dormia quando, à meia-noite, ele e a
prima foram despertados por um golpe forte na porta. Alexandre saltou da cama
e correu na direção do som.
— Aonde você vai, Alexandre? — gritou a prima.
— Preciso abrir a porta para me despedir de papai. Ele quer dizer adeus.
O menino foi tranquilizado e voltou a adormecer. Na manhã seguinte, a
notícia da morte do general alcançou a casa. Assim que ele despertou lhe
disseram:
— Meu querido menino, seu papai, que te amava tanto, faleceu.
— Papai faleceu? O que isso quer dizer?
— Quer dizer que você não o verá mais.
— E por que não?
— Porque o bom Deus o levou consigo.
— E onde mora o bom Deus?
— No céu.
O menino calou-se, mas, assim que voltou para sua casa, correu até o quarto
do pai e pegou seu fuzil. Subiu as escadas e pôs-se na janela. Encontrou a mãe,
que chorava copiosamente.
— Aonde você vai? — ela perguntou.
— Vou para o céu.
— E o que fará no céu, meu menino?
— Vou matar o bom Deus que matou o meu pai.
Ela o abraçou e lhe pediu que jamais dissesse coisas assim. A orfandade foi o
primeiro grande ritual de passagem do jovem Dumas.3
Herdeiro de Sherazade
O desamparo, a inquietude diante da morte, a juventude sem fortuna que é
obrigada a enfrentar a vida em Paris, são temas facilmente localizáveis ao longo
da obra do criador de personagens lendários — por exemplo na história de
Edmond Dantès, o jovem capitão traído pelos companheiros que viria a
transformar-se no temível conde de Monte Cristo, ou na de d’Artagnan, o filho de
um soldado aposentado que chega a Paris sem sequer a carta de recomendação,
que lhe fora roubada no caminho. Ambos, de uma forma ou de outra, veem-se
excluídos da sociedade e lutam para conquistar, ou reconquistar, um lugar ao sol.
A morte do general Dumas deixou a família com poucos recursos. Alexandre
educou-se como pôde. Ou melhor, como preferiu. Ele lia a Bíblia, os mitos, e
apaixonou-se perdidamente pelas Mil e uma noites. O fascínio pela figura de
Sherazade, a narradora mítica que vence a morte usando a astúcia de contadora
de histórias, perdura por toda a sua vida. A obra primordial da literatura do
Oriente Médio forneceu a Dumas não apenas inspiração para peripécias e
reviravoltas extraordinárias, como também a técnica necessária para prender a
atenção dos leitores de folhetim: histórias que geram outras, interrompidas no
momento de maior suspense. Sua capacidade de enredar narrativas era tão
extraordinária que, no auge do sucesso de sua produção folhetinesca, Dumas foi
apelidado de Sherazade pelos colegas e leitores.
A novela 1001 fantasmas revela-se a homenagem mais declarada a essa
personagem, tão amada por Dumas. Nela, a jovem princesa das Arábias, que se
preserva da morte pela espada usando o fio da palavra, empresta seu dom ao
narrador francês. Nesse contundente libelo contra a pena de morte há inclusive
referências explícitas ao grande clássico da cultura árabe: “Ela me lembrava
aquela vampira das Mil e uma noites que ia à mesa como os demais, mas usava
apenas um palito para comer arroz.”
Diálogos rápidos e precisos, cuja força é preservada pela tradução certeira
de André Telles e Rodrigo Lacerda, conferem a esse texto de Dumas o tom oral,
o clima confidencial de uma lenda contemporânea, compartilhada entre amigos.
Afinal, os fantasmas que assombram essas narrativas não surgem de tradições
espiritualistas, pelo contrário, apresentam-se como vozes que escapam de
cabeças decapitadas por guilhotinas, ou ainda de personagens vítimas de outras
mortes, cujas descrições chegam a ser minuciosas em seu realismo. Pois
Alexandre Dumas é um escritor que, em geral, narra num tempo e num espaço
geográfico reais, ao contrário de seu companheiro de pena, seu colaborador, o
poeta Gérard de Nerval, grande mestre das histórias surreais, ou Jacques Cazotte,
autor que exerceu forte influência sobre a corrente fantástica francesa, citado
em 1001 fantasmas com fina ironia:
Moulle é meu amigo há quarenta anos e tem sessenta. … Quase foi bispo de
Clermont. Sabe por que não foi? Porque antigamente era amigo de Cazotte, e
porque, como Cazotte, acredita na existência dos espíritos superiores e
inferiores, dos gênios benfazejos e malfazejos. … Encontrará em sua casa
toda a literatura sobre visões e aparições, espectros, larvas, assombrações,
embora raramente aborde tais assuntos, exceto entre amigos, pois estão longe
de ser ortodoxos. …
— Oh! Veja só — interrompi-o —, acho que ele acaba de evocar um
desses espíritos a que o senhor se refere…
O breve trecho acima é representativo da fala ambígua e lúdica de
Alexandre Dumas. A descrição cética do personagem, que tranquiliza o leitor
quanto à existência “real” de espectros sobrenaturais, é em seguida interrompida
pelo prenúncio de um bom susto, uma sequência de alto suspense, deslocando-o
de suas certezas e contexto familiar. Estamos diante de um narrador de seu
tempo, época da reflexão sobre a ciência e suas descobertas, na qual o espaço da
espiritualidade era muitas vezes considerado mera superstição pela nova
mentalidade positivista. Há aqui, ainda, um eco do menino assustado com a perda
precoce do pai e, finalmente, o contador de histórias herdeiro de Sherazade,
futura fonte de inspiração para os melhores roteiristas cinematográficos.
Batismo literário
Aos treze anos de idade, Alexandre Dumas tinha uma bela caligrafia, paixão por
lendas de todo tipo e uma grande curiosidade com relação à história de seu país e
do mundo. Sua mãe o fazia trabalhar como aprendiz em um cartório, mas,
paralelamente, ele escrevia seus primeiros romances e fazia suas primeiras
amizades literárias, entre elas Adolphe Ridding de Leuven, que, também filho de
um herói, era poeta. Foi Adolphe quem introduziu Alexandre na obra dos grandes
poetas de seu tempo. Juntos escreveram um concerto e uma peça de teatro
popular, ou de vaudeville, como se costumava dizer.
Em Paris, em novembro de 1822, aos vinte anos, Alexandre foi com um
colega de trabalho, Pierre Hippolyte Paillet, a uma peça de teatro, estrelada por
Robert Talma. No auge da glória, o ator principal da Comédie Française recebeuos
em seu camarim e, quando estendeu a mão para cumprimentar Dumas, este
lhe pediu, com reverência:
— Toque a minha testa!
Talma, embora surpreso, teria entrado na brincadeira e replicado:
— Alexandre Dumas, eu o batizo poeta, em nome de Shakespeare, Corneille
e Schiller…
Nascia assim um dos maiores escritores de todos os tempos.4
Os primeiros sucessos
No dia 27 de julho de 1824, Dumas tornou-se pai. O bebê recebeu o nome de
Alexandre Dumas, filho. O movimento romântico estava então em seu início.
Dumas se apaixonou pelas obras de Walter Scott, Schiller e Goethe. Frequentou
os salões de pinturas e fez amizade com Delacroix. Em Paris, nos grandes
bulevares, pessoas de todas as idades e categorias sociais passeavam. Dumas
apreciava essas caminhadas e passou também a visitar a casa de Charles Nodier,
o erudito bibliotecário e escritor, por ele homenageado em 1001 fantasmas. De
dia, Dumas trabalhava em seu escritório, à noite, frequentava o teatro, festas e
saraus.
Em 1827, uma trupe de atores foi a Paris encenar peças de Shakespeare. A
obra do bardo inglês, hoje incontestavelmente clássica, era pouco conhecida na
França de então. O sucesso daquela temporada francesa foi estupendo. Dumas
não perdia um espetáculo, e fazia anotações. Esse contato com as tragédias
elisabetanas o ajudou a compor a receita de seu estilo: descrições livres das
ações, valorização das lutas e escaramuças, explicitação de tudo o que os textos
gregos deixavam nos bastidores. Emocionar o público leitor, enfim.
Alexandre pesquisou então a vida de Henrique III, rei da França no final do
século XVI. A partir desse estudo, escreveu sua primeira peça, Henrique III e
sua corte, em dois meses apenas. A peça foi encenada pela companhia teatral da
Comédie Française. Ansioso na estreia, foi surpreendido por um sucesso
retumbante. Os jovens partidários do movimento romântico, de cabelos longos e
ideias ao vento, elegeriam Dumas seu patrono. No dia seguinte, o jornal La
Gazette de France diria: “Do terceiro ato até o final da peça não foi um sucesso,
e sim um delírio estrondoso, todas as mãos aplaudiam…”
A partir deste primeiro triunfo, Dumas passou a escrever ininterruptamente.
Em seis semanas, tinha outras duas peças: Christine, que estreou em 1830, e
Antony, que estreou em 1831.
Aos 29 anos, o jovem que chegara sem recursos a Paris, sem proteção,
diplomas ou sequer uma instrução sólida, transformava-se em celebridade. Antes
de cada peça ser montada, Dumas cumpria o ritual de ler o texto para os atores
da companhia, diante de outros escritores e profissionais envolvidos na
encenação propriamente dita. A leitura em voz alta, o compartilhamento e a
troca ao longo do processo criativo marcariam também sua produção como
romancista de folhetim. Dumas foi duramente criticado por — em pleno
romantismo, época em que se glorificava a inspiração, a criação autoral solitária,
o escritor angustiado, cuja morte deveria ser precoce — produzir peças e
romances em parcerias ou até mesmo dirigindo equipes. Grosso modo, Dumas
tinha três modelos de produção: algumas obras escrevia totalmente só, como
Antony; outras eram criadas em dupla, nas quais chegava a ficar em segundo
plano, como Leo Buckard, em parceria com Gérard de Nerval; e, finalmente,
escrevia a partir de roteiros montados por colaboradores, entre os quais se
destacou Auguste Maquet.
Tratava-se de um procedimento comum em seu tempo, mas sem tanto
prestígio quanto a criação absolutamente autoral. Muito embora fosse, sim, um
dramaturgo romântico, como fica nítido na trama e no texto de A mulher da
gargantilha de veludo, cujo desfecho contundente e imprevisível ironiza as falsas
riquezas, os costumes da nobreza. Tanto no teatro quanto nos romances, contudo,
sua voz narrativa aliciadora e o ritmo alucinante dos diálogos atestam uma
consciência forte da importância da recepção por parte do público, e essa
necessidade de seduzir o ouvinte, leitor ou espectador, explicaria o enorme
sucesso de suas obras.
Contos de Hoffmann
“Será que existe um poder oculto capaz de imprimir em nossa alma uma
ascendência tão pérfida e malsã que nos paralisa e, depois, nos remete a uma via
tão perigosa e nefasta que, sem ele, permanecemos eternamente
desconhecidos?” Esta é a indagação do narrador de O homem de areia, de autoria
de E.T.A. Hoffmann, cujo poder de apreensão do grande mistério existencial
despertou admiração entre inúmeros escritores ao longo dos anos. Esta é,
também, a inquietude que habita o espaço criativo de Alexandre Dumas,
desconcertado diante das vítimas decapitadas pela impiedosa e voraz guilhotina
da Revolução Francesa. Tanto em 1001 fantasmas como em A mulher da
gargantilha de veludo, por sinal, há uma indisfarçável condenação da pena de
morte.
A instigante obra de Hoffmann gerou debates e inspirou novos textos entre os
franceses quando foram publicadas no país as primeiras traduções dos contos
desse autor alemão, em 1828 e 1840.
Não por acaso, Hoffmann é personagem de A mulher da gargantilha de
veludo. Embora seu nome seja frequentemente associado a autores como
Charles Nodier e Gérard de Nerval, grandes companheiros de Dumas, nem
sempre se leva em consideração a enorme influência que seus textos exerceram
também sobre o criador de 1001 fantasmas. Talvez isso se deva ao fato de a obra
de Alexandre Dumas ser excluída do cânone romântico, ou de cânones de um
modo geral. Reverenciado por leitores contemporâneos, Dumas e suas aventuras
parecem escapar às classificações de antologias.
Admirador tanto de Walter Scott, o autor escocês adversário literário de
Hoffmann em sua defesa do romance histórico, quanto do autor alemão, Dumas
parece beber de ambas as fontes ao situar o enredo de A mulher da gargantilha
de veludo num contexto fortemente marcado por fatos reais, ao mesmo tempo
em que desloca os acontecimentos finais para a via paralela do estranhamento
sobrenatural.
Coube a Hoffmann cunhar um novo termo para designar contos insólitos: o
termo “fantástico”, muito popular e amplamente usado por Charles Nodier.5
Seres deformados, autômatos, feiticeiros e vampiros povoam essa nova via
narrativa, mas, na obra de Dumas, o grande terror advém da impiedade e da
insensatez humanas, com seus carrascos indiferentes e vorazes aparelhos de
assassinar, como a guilhotina.
Diálogo entre vida e obra
O sucesso pessoal, o engajamento político, as mulheres pelas quais se apaixonou
sucessivamente, esses eram os ingredientes da vida de Alexandre Dumas.
Republicano, desafiava os valores do Antigo Regime e, em 1825, enfrentou em
duelo um de seus representantes, seu primeiro duelo na vida real, no qual, para o
bem da literatura, saiu-se muito bem. Nos salões de música, ele fez amizade com
o compositor Liszt e com George Sand, escritora e musa do compositor Chopin,
além de desfrutar a companhia do compositor Rossini e do violinista virtuose
Paganini. Nada disso impediu que se tornasse alvo de ataques por parte de
inimigos racistas, dada sua ascendência negra e a pele escura.
Certa noite, ao entrar num salão, Dumas ouviu um discurso irônico,
pejorativo, depreciando os negros africanos, feito por um intelectual conhecido.
Repentinamente, este interpelou-o, provocando-o diretamente:
— Caro senhor, na certa sabe de tudo o que acabo de dizer sobre os africanos,
com todo esse sangue negro correndo em suas veias.
Impassível, Dumas sorriu ironicamente e replicou:
— Sim, certamente. Meu pai era um mulato, meu avô era um negro e meu
bisavô um macaco. O senhor veja como são as coisas, meu caro: minha família
começa onde a sua termina.
Segundo André Maurois, seu biógrafo:
O jovem tolerava muito bem que o lembrassem de suas origens, porque, na
verdade, orgulhava-se delas, principalmente nas conversas com Nodier. Mas,
às vezes, outros o feriam. Odiar esses inimigos seria aviltante para Dumas,
que considerava tal sentimento uma fraqueza. Sua única necessidade era
provar-se a cada instante, provar o seu valor superior ao deles. De onde talvez
surgisse uma disposição natural para sua compreensão dos revoltados contra
a sociedade, dos proscritos, dos excluídos em geral.
O início da parceria com o poeta Gérard de Nerval seguiu-se à morte da mãe
de Dumas, em 1838. E o próprio Nerval apresentou-lhe Auguste Maquet, um
jovem professor de história que iria se tornar seu mais importante colaborador.
Cabiam a Maquet, em geral, a pesquisa histórica e os argumentos dos capítulos,
quando então o texto final era feito pelo escritor.
Em certos autores, vida e obra estabelecem um diálogo intermitente,
distanciado, mas, no caso de Alexandre Dumas, parece haver entre as duas
instâncias quase uma simbiose, um intercâmbio contínuo, evidenciando uma
dimensão aberta de sua obra, isto é, permeável aos acontecimentos à sua volta.
Na verdade, talvez essa simbiose seja bastante típica dos artistas românticos, de
todas as épocas.
Seu primeiro contato direto com o movimento artístico que conquistara Paris,
o romantismo, havia acontecido por puro acaso. Ao assistir a uma encenação da
peça O vampiro, ele se viu ao lado de um homem de cabelos brancos, fino,
charmoso, com o qual começou a conversar. Tratava-se do já mencionado
Charles Nodier, justamente o autor da peça, cuja amizade lhe marcou a vida e as
histórias. Outros golpes de sorte ainda contribuíram para que Dumas
estabelecesse uma espécie de rede literária, algo fundamental para as trocas
artísticas e as grandes realizações. A ele coube o mérito de perceber cada
oportunidade e vivê-la corajosamente, unindo a força de sua imaginação
prodigiosa a uma imensa capacidade de trabalho.
Ele enfrentava as críticas e a maledicência com altivez, embora fizesse
questão de respeito ao seu trabalho. Sua generosidade com relação aos colegas
do mundo artístico beirava a obsessão. Sempre que conseguia ganhar muito
dinheiro, presenteava as amantes, os amigos e suas famílias, além de filhos,
colaboradores e admiradores. Ironicamente, isso por vezes contribuía para que
tivesse um grande número de seguidores oportunistas. Quando não se sabia onde
jantar, dizia-se: “Chez Dumas”, e em sua casa as portas estavam sempre abertas,
com a mesa farta.
Nessas ocasiões, era comum encontrá-lo ensandecido, trabalhando. Mesmo
assim, amava organizar bailes e banquetes. Dumas se gabava de seus dotes
culinários. Portador de uma autorização para caçar na floresta das redondezas,
partia com os amigos para providenciar a carne a ser servida em seus jantares.
Esse clima de confraternização entre amigos é, em certa medida, a principal
característica de 1001 fantasmas. Reunidos na casa do prefeito de uma cidade do
interior, os personagens, para se entreterem mutuamente, contam cada um uma
história de terror. A novela resulta, portanto, num conjunto com subdivisões. E, à
medida que essas narrativas se sucedem, sob a superfície fantástica surge uma
reflexão profunda sobre a injustiça social e, em contrapartida, os excessos
revolucionários, a pena de morte, ou ainda “as coisas do céu e da terra, para
além do que sonha nossa vã filosofia” (segundo conceito expresso tão
magistralmente por Shakespeare em Hamlet, obra também fundamental para
Dumas, que amava heróis capazes de enfrentar sem ajuda um mundo de
inimigos ocultos, reais ou sobrenaturais).
A parceria entre Dumas e Gérard de Nerval, que rendeu, por exemplo, o
drama O alquimista, outra obra de evidente conteúdo místico/sobrenatural,
prolongar-se-ia por muitos anos. E os dois textos reunidos neste volume, 1001
fantasmas e A mulher da gargantilha de veludo, talvez sejam os mais reveladores
da grande influência que a sensibilidade extrema de Nerval parecia exercer
sobre Dumas. Figuras como o temível Cagliostro, ou o lendário conde de SaintGermain,
aparecem aqui e ampliam o campo do sobrenatural, expandindo suas
possibilidades. A obra insólita de Nerval, bem mais tarde, já no século XX, viria a
inspirar também o movimento surrealista, sobretudo ao poeta André Breton,
estudioso do ocultismo, que criava uma prosa de encantamento e mistério,
envolvendo cartas de tarô, lendas celtas, tradições arcaicas e referências a reinos
paralelos, repletos de criaturas invisíveis.
Para o século XIX, a loucura equivalia a ter um outro dentro de si. Gérard de
Nerval apresentaria mais tarde graves problemas psiquiátricos,6 mas, durante os
primeiros anos de sua parceria com Dumas, nada indicava isso. Um erudito, de
temperamento delicado, cabelos claros, rosto de feições atraentes, Nerval dava
provas de uma imaginação fantástica e sonhadora. Somente a partir de 1841
começaria a ter alucinações, que ele viria a registrar literariamente em uma de
suas obras-primas, Aurélia, cuja escritura coincidiu com sua internação numa
casa de saúde. Talvez hoje em dia ele viesse a ser diagnosticado como
esquizofrênico, ou bipolar, mas, naqueles tempos, vários e curiosos foram os
males a ele atribuídos: meningite, insolação, mal da orelha, fratura do crânio etc.
O próprio Nerval se interessou por desvendar a causa de seus sofrimentos,
passando a escrever sobre as fronteiras entre loucura e sanidade. Contudo, onde a
medicina de seu tempo apontava uma fissura, ele via o entrelaçamento de dois
mundos, o sonho funcionando como o elemento condutor de mensagens entre um
estado e outro. O poeta, Orfeu, seria o único capaz de ir ao mundo dos mortos e
dele retornar, utilizando o som poético de sua lira.
Dumas, perplexo com as mudanças no amigo querido e colaborador, nem
sempre era capaz de captar as nuances. Seguia publicando os sugestivos e
intrincados poemas de Nerval em seu jornal diário, Le Mousquetier. Em 1853,
aterrado pela piora do estado do amigo, Dumas escreveu um artigo fazendo
referências à sua loucura, desastradamente magoando a sensibilidade de Nerval.
Eram os primeiros sinais de estresse em seu relacionamento criativo. Ainda
assim, ao publicar Aurélia, sequência de belíssimos contos sobre estados alterados
de percepção, Nerval dedicou o livro a Dumas, como uma espécie de tentativa
de fazê-lo compreender a densidade de sua percepção inusitada. Enquanto isso,
na clínica de alienados do famoso médico dr. Blanche, seguiu escrevendo
sonetos, os quais afirmava ter criado num estado supranaturalista. Ironizando a si
mesmo, escreveu certa vez: “A última loucura que me resta, provavelmente, é a
de me considerar um poeta.”7
Em 1001 fantasmas, diz o narrador de Dumas: “Pobres loucos, não
compreendem que às vezes os homens podem mudar o futuro… jamais o
passado!” Espectros, duplos, vampiros e cabeças decapitadas falantes expressam
sua reflexão sobre o temor à loucura e à morte, os dois maiores medos
universais.
Em meio a sofrimentos atrozes, a genialidade de Nerval continuava a criar
textos esplêndidos. “O bizarro na loucura de Gérard”, escreveu Dumas, “era a
duplicidade: nele, coabitavam o homem lúcido e o louco. O lúcido estudava a
própria loucura com a precisão de um médico e a apreciação de um filósofo.” O
sonhador e o pensador, o homem que delirava e o narrador consequente, dois
indivíduos unidos e cindidos ao mesmo tempo.
Ainda nesse período, Dumas publicou em seu jornal outra obra de ficção
criada pelo amigo, Pandora, garantindo a sobrevivência do texto, mas não,
infelizmente, a de seu autor. No dia 30 de janeiro, as páginas de Le Mousquetier
anunciavam o trágico suicídio de Gérard de Nerval, que foi encontrado
enforcado, pendurado num poste, com os bolsos cheios de pedra, barbantes,
folhas mortas e fragmentos de manuscritos. Se para Michel Foucault a loucura
consiste na “ausência de obra”, então nesse sentido Nerval foi vitorioso em sua
derradeira travessia do Aqueronte, o rio das dores incuráveis, pois a obra que nos
legou é de uma impressionante força literária.
O papel do narrador em As mil e uma noites
— Sömmering afirma: “Vários médicos, confrades meus, asseveraram ter
visto uma cabeça separada do corpo ranger os dentes de dor, e estou
convencido de que se o ar continuasse-lhes a circular pelos órgãos da voz as
cabeças falariam.” Pois bem, doutor — continuou o sr. Ledru, empalidecendo
—, estou mais avançado que Sömmering. Uma cabeça falou comigo.
Impossível abandonar a leitura da narrativa de Dumas após o trecho acima. A
história da cabeça decapitada e falante desafiaria a credulidade do leitor, não
fosse ela contada numa conversa com um médico, cujos comentários lhe
conferem credibilidade, embora aquele que a conta ainda pergunte: “Também
dirá que sou louco?”
Não por acaso, voltando ao conto que serve de moldura às histórias em Mil e
uma noites, relido por Dumas em seus 1001 fantasmas, vemos que ele também
aborda a loucura, a morte e a voz literária como forma de estabelecer um
diálogo com a antiga narrativa oriental. No clássico da literatura árabe,
Sherazade, uma jovem de grande cultura, sensibilidade e astúcia, pede ao pai, o
vizir, que a autorize a casar-se com um sultão enlouquecido, mesmo ciente de
que correria o risco de ser decapitada, devido a uma vingança pessoal do jovem
monarca, Shariar.
A decapitação de Sherazade será adiada e, posteriormente, evitada, graças ao
conhecido estratagema: ela pede a presença da irmã, Doniazade, e conta-lhe
histórias, as quais o príncipe escuta com atenção, até o amanhecer. Esse ritual se
repete por mil e uma noites, até que, sob o efeito das narrativas, a mente e o
coração do príncipe se acalmam e ele passa a reinar como o mais sábio de todos
os soberanos. Logo se vê a astúcia de Sherazade, tanto no sentido de criar uma
rede narrativa na qual histórias se entrelaçam — sempre interrompidas no
momento de maior suspense, para serem continuadas na noite seguinte —,
quanto no de convidar a irmã para ouvi-las, criando uma situação na qual o
príncipe possa vir a interessar-se espontaneamente pelas narrativas.
É dito, no início do relato, que Sherazade era muito instruída, conhecendo
histórias de lugares diferentes, até mesmo de mundos já desaparecidos. Portanto,
quando ela se oferece para salvar as jovens do reino, já tem uma estratégia
cuidadosamente planejada.
Afirma a psicanalista brasileira Purificacion Barcia Gomes:
Segundo as regras vigentes no mundo mágico do Oriente, o soberano teria a
prerrogativa de cometer qualquer atrocidade que lhe apetecesse. Por isso, a
tarefa de Sherazade não parece ser, à primeira vista, a de corrigir um
comportamento desviante ou aberrante do sultão Shariar; ela não é uma
educadora, nem uma reformadora social. Sua atividade se nos afigura como
propriamente terapêutica: o sultão sofre e, em seus encontros com Sherazade,
esta lhe diz coisas que aliviam o seu sofrimento.8
Na linha da premissa acima, que sugere uma das funções do narrador no
mundo islâmico, e das próprias narrativas, Barcia Gomes aponta que, na Pérsia,
o entretenimento noturno do jovem rei Alexandre Magno era ouvir fábulas da
boca de homens especializados em contar histórias, os confabulatores nocturni. E
acrescenta:
Mais recentemente, falando dos primeiros séculos da fundação do Islã, o
arabista Irwin lembra que se atribuem duas origens prováveis à tradição oral
no Oriente: uma religiosa e outra secular. A religiosa decorria da ação dos
pregadores e comentadores do Corão, chamados khatib. A secular, da ação
dos quassas, contadores de histórias religiosas, sim, mas nem sempre
ortodoxas. Justamente por essa heterodoxia narrativa, os quassas acabaram
sendo expulsos das mesquitas e criaram os textos islâmicos apócrifos
(constituídos de fábulas sobre profetas pré-islâmicos). Por fim, instalaram-se
nas ruas, bazares e cemitérios, como contadores populares de ditos
anedóticos, supostamente religiosos, em troca de moedas.9
Após essas considerações de caráter histórico, Barcia Gomes continua,
dizendo sobre os colegas anônimos de Sherazade:
No começo do século XVI, os contadores de histórias, assim como os demais
artífices e trabalhadores, são obrigados a fazer parte de guildas, e passam a
trabalhar em cafés, uma nova instituição social que surge nessa época,
bastante malvista pela sociedade “honesta e trabalhadora”. Alguns desses
homens conseguem capturar de tal forma a atenção da audiência que
chegam a ser objetos de cronistas do Ocidente, admirados com seu poder de
sedução … . A técnica utilizada pelos narradores árabes se assemelha à de
Sherazade: interromper sua narrativa a cada noite, ou seja, aguçar a
curiosidade do ouvinte através da intensificação do suspense.
É importante observar que a técnica da interrupção da narrativa num
momento crucial é um dos pilares do estilo de Alexandre Dumas. Ajudando a
moldar o formato clássico do folhetim, no início do império jornalístico, o
escritor instaurou o suspense na maneira de narrar as peripécias, por exemplo, de
seus Três mosqueteiros. Eventualmente, com o advento do cinema, essa mesma
técnica seria utilizada para prender a atenção do espectador. A interrupção da
narrativa num momento culminante seria, em jargão cinematográfico, “o ponto
de virada”. A televisão também utiliza o mesmo recurso, tanto nas novelas
brasileiras como nos seriados norte-americanos, prolongando, por muitas noites,
o pacto entre espectador e a história que ele acompanha.
Poucos estudos teóricos, porém, contemplam essa herança ou tentam rastrear
as técnicas narrativas que viajam através dos tempos e lugares. O esquecimento
cultural, fruto de uma espécie de culto ao contemporâneo naquilo que ele
apresenta de mais superficial e imediato, priva a memória coletiva dessas
recuperações mais distantes, escamoteando vínculos e legados de grande
importância.
Barcia Gomes ainda acrescenta que a narrativa dos antigos contadores
árabes, sempre interrompida e retomada, teria o poder de, artificialmente, criar
a necessidade de mais narrativas, que estabeleceriam um diálogo com outras,
pessoais, de histórias de vida, no ouvinte.
“Guardiões da palavra-emoção”, esta é a bela definição poética que ela
confere aos contadores de histórias do mundo antigo: “Esses guardiões da
palavra-emoção, da palavra-memória, eram inicialmente, no mundo árabe,
homens e profissionais. Com o passar do tempo, essa atividade vai sendo
assumida por amadores e por mulheres, que contam histórias às outras mulheres
e às crianças.”10
Afirmava Walter Benjamin que narrar corresponde a aconselhar, no sentido
de introduzir palavras poéticas de sabedoria. A narrativa seria então uma forma
de enraizamento na própria comunidade, comunhão com a natureza, inserção
numa linhagem de gerações passadas e futuras. Nesse mesmo sentido argumenta
Barcia Gomes:
[O narrador é aquele que] sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o
provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao
acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria
experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila
à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é
poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o
homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida.11
Talvez resida justamente aí a capacidade reparadora da literatura de um
modo geral: o despertar primordial para a aceitação da passagem do tempo, da
impermanência, da incerteza, mas também do humor, da aventura e do
encantamento.
O meio literário e o método de trabalho
Diante das indagações colocadas pelos artistas do movimento romântico, Dumas
respondia com uma ironia típica, que o aproxima muito dos artistas
contemporâneos, e afirmava com muita simplicidade: “Sabem o que é a história?
Um cabide onde penduro meus romances.”
Estas são palavras de Alexandre Dumas, que, segundo seu biógrafo André
Maurois, não se pretendia erudito nem, muito menos, pesquisador. Quando
começou a escrever Os três mosqueteiros, Dumas já publicara impressões de
viagens, peças de teatro, romances etc. Em todas essas incursões por diferentes
gêneros literários, sempre se notava o instinto da ação. Tal característica se faria
ainda mais presente quando ressuscitava a história da França em forma
romanesca. Auguste Maquet, seu parceiro na empreitada, além de professor de
história e filho de um abastado industrial, tinha a intenção de escrever para o
teatro. Quando Gérard de Nerval o apresentou a Dumas, surgiu a ideia de
realizarem um projeto de equipe em estreita colaboração. Um por todos, todos
por um.
Naquela época, havia na França dois grandes jornais que disputavam a
atenção do público: La Presse e Le Siècle. O proprietário deste último decidiu que
a melhor forma de conquistar mais leitores seria publicando um emocionante
romance em forma de folhetim. O antigo truque de “interromper a história para
depois continuá-la” voltaria a ser aplicado num novo meio.
Para os jornais, o melhor romancista era aquele que garantia a fidelidade do
maior número de leitores. Excelentes escritores poderiam revelar-se péssimos
folhetinistas. O nome de Balzac foi considerado em primeiro lugar, mas suas
longas descrições afugentavam a parcela mais impaciente do público. O jornal
La Presse, em um golpe astucioso, comprou tudo o que fosse criado e assinado
por Alexandre Dumas durante um período de doze anos.
No caso do folhetim, a importância de conquistar o leitor desde a primeira
linha era fundamental. Dumas desenvolveu então a técnica de delinear
rapidamente o personagem para, em seguida, colocá-lo em ação. Não se tratava,
portanto, de fornecer uma descrição superficial, mas sim de escolher a palavra
mais precisa, a mais eloquente de um determinado traço de caráter, com o
máximo de economia e o mínimo de espaço. Uma vez fisgado o leitor, a ação
avançava até o suspense atingir um pico, quando então a narrativa era
interrompida. Para avaliar a eficácia da “fórmula”, os jornais contavam com
leitores profissionais. Rodas de ouvintes eram pagas para, diariamente, ler em
praça pública as peripécias criadas por Dumas. Isso explica, em parte, a força de
sua voz narrativa, cúmplice do leitor e que guarda uma oralidade evidente em
todas as obras do período. O sucesso de Dumas foi retumbante.
Para desencadear o próprio processo criativo, Dumas necessitava de pessoas
a quem chamava de “despertadores de ideias”. Seu método de trabalho com os
colaboradores, como já foi dito, era variável. Mas, em geral, ele pedia a
descrição do cenário histórico para os acontecimentos importantes do enredo e
reescrevia os textos de seus colaboradores diversas vezes, modificando os finais
dos capítulos, introduzindo ganchos, diálogos velozes e naturais etc.
Inaugurava-se assim uma nova corrente narrativa, especializada em histórias
de aventuras, que a princípio prescindiam de efeitos mágicos, magos ou seres
sobrenaturais. Descortinavam, sobretudo, o resgate de um certo heroísmo, em
tempos cronológicos e espaços demarcados pela história, isto é, pelo real.
Dos contos de fadas, Dumas extraiu os objetos simbólicos, espadas, brasões,
gargantilhas, cartas, bolsas e moedas, os “sinais misteriosos do destino”. Ou ainda
a importância dos pactos verbais: lemas, promessas, mentiras e declarações. Tal
qual um roteirista norte-americano de filmes de ação, Dumas criava o suspense
usando o tempo marcado, por vezes em contagem regressiva. Personagens
chegam à meia-noite, contam os minutos, ou fazem referências ao tempo
expandido do temor, como expresso em seus trabalhos de cunho mais “gótico”,
como se diria no jargão atual.
O processo industrial de fabricação de histórias, por meio do novo suporte
midiático, o jornal, exigia o trabalho de equipe. Longe de explorar seus
colaboradores, Dumas os valorizava. Sua metodologia coletiva já antecipava as
futuras reuniões de roteiro e brainstorming, a troca intensa de ideias, tão comum
no cotidiano das produtoras cinematográficas atualmente.
E, além da equipe oficial de trabalho, nota-se ao longo de toda sua obra,
porém mais especificamente em 1001 fantasmas e A mulher da gargantilha de
veludo, o espaço privilegiado das conversas confidenciais: os jantares, os casos
trocados à luz de velas, a esplêndida escuta da vida em curso, as mil e uma
noites, o narrador primordial professando seu pacto secreto com cada leitor.
O lugar do artista
Por tudo o que foi dito, pode-se aventar a hipótese de que o artista ocuparia, para
Dumas, o lugar de guardião de uma sensibilidade ancestral, da ficção primordial,
impregnada pelo elemento onírico. Ele seria a testemunha do acaso e do
imponderável, das brechas imprevisíveis, das verdades que escapam ao controle
da cultura oficial através dos tempos e lugares. A partir de uma outra concepção
de história da literatura, livre dos grilhões impostos por cânones, estaríamos
abrindo espaço para a dinâmica recriadora, conforme definição de Jerusa Pires
Ferreira,12 que, citando o pioneiro estruturalista Yuri Lotman, ressalta que
a cultura não se contrapõe ao caos, mas a um sistema de signos opostos. Ou
seja, num texto irão trabalhar dois mecanismos: um deles servirá para
manter na consciência do receptor ou do auditório a memória de certa
organização tradicional do texto, fornecendo-lhe com isso alguma estrutura
esperada; o outro irá destruir essa estrutura, dessemantizando a percepção e
constituindo o individual.
Escolhas artísticas inusitadas, preservação daquilo que foi eleito,
coletivamente, para ser relegado ao esquecimento geral, diálogos frutíferos com
a memória cultural, rebeldia com relação a cânones: todas essas são
características do gesto criador do artista.
Como já foi visto, Barcia Gomes estabelece uma comparação entre as
relações ouvinte e contador de histórias/paciente e analista, no sentido de que
ambas necessitam de um pacto. Caso o analista, ao escutar o relato de seu
paciente, lide de forma inadequada com uma ferida emocional, ocorrerá entre
eles um afastamento, da mesma maneira como um contador de histórias não
pode permitir uma má escolha narrativa, cuja forma ou conteúdo, de algum
modo, provoque o distanciamento do ouvinte. Em ambos os casos, o equívoco
resulta na quebra do pacto e no esfacelamento da relação. O mesmo acontece na
relação escritor/leitor. O escritor precisa evitar que o leitor perca o interesse, que
ele feche o livro e o abandone. Tal desfecho, no espaço da literatura, significaria
o rompimento do pacto.
Barcia Gomes menciona ainda a necessidade que o ser humano tem de ouvir
histórias:
Uma vez que estamos falando de uma necessidade de ouvir histórias, de uma
necessidade de contar histórias, de uma necessidade de completar histórias,
enfim, da arte de narrar e finalizar a narrativa como expressão de um desejo
humano, convém … explicar a tendência humana a repetir (que se
encontraria maximizada tanto no fenômeno transferencial quanto na
compulsão à repetição). … para dar conta do fenômeno não seria preciso
recorrer ao inatismo: basta pensar que a repetição se instala quando alguma
experiência não foi suficientemente satisfatória para o indivíduo, isto é,
quando alguma necessidade dele não pôde ser devidamente atendida.
Ocorreria antes a repetição da necessidade, e não a necessidade de
repetição.13
Sobre a importância da memorização como fonte de inspiração, ela diz ainda:
É curioso notar que, diferentemente da Torá [o livro sagrado da religião
judaica], revelada de uma única vez, o Corão [o livro sagrado da religião
muçulmana] foi revelado ao Profeta [Maomé] pouco a pouco, em doses
homeopáticas, linha por linha, verso por verso, em um período de vinte e três
anos, para que ele tivesse tempo de digerir e elaborar o sentido revelado. …
Apenas para resumir o que dissemos acima, As mil e uma noites, com seu
ritmo peculiar de interrupções e retomadas, parece fazer parte de um modo
árabe de revelação da verdade e de transferência de conhecimento, que
transcende em muito o mero recurso estilístico.14
Aprofundando a reflexão sobre o método narrativo de Sherazade, Barcia
Gomes cita o trabalho de Adélia Bezerra de Menezes, intitulado Sherazade ou Do
poder da palavra, segundo o qual o poder de cura da tecelã das noites residiria
em sua habilidade para lidar com “a necessidade primordial de ficção que habita
o coração de cada homem”.15
Em seguida, viriam as qualidades narrativas de suas histórias, que
abarcariam, na maneira de contá-las, a arte do poeta, do xamã, do psicanalista:
Três especialistas, cada um em seu campo, em seu tempo, forneceriam ao
doente uma linguagem, ou seja, a capacidade de propiciar uma
transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da
realidade, segundo a conhecida leitura feita por Lévi-Strauss da atividade
xamanística como acesso ao discurso simbólico. … Poderíamos pensar a
literatura oral ou escrita como a arte de fazer sonhar, a cujo prazer os
homens se entregariam sem peias. Ocorre, porém, que o sultão acorda
sozinho, repentinamente curado. Sherazade não o interrompe nos sonhos,
apenas esgota sua necessidade de sonhar.16
As narrativas de Alexandre Dumas permanecem mais vivas do que nunca,
antecipando as lendas urbanas, as aventuras sequenciais dos roteiros
cinematográficos. Elas escapam aos cânones e têm sucesso permanente. A voz
desse narrador irreverente e generoso, que tece textos móveis, arrebatadores,
convida cada leitor a também narrar — mesmo que em segredo, apenas para si.
HELOISA PRIETO17
1. Maurois, Andre, Promethée ou la vie de Balzac; Olympio ou la vie de Victor
Hugo; Les Trois Dumas. Paris, Robert Laffont, 1993.
2. Biet, Christian, Jean-Luc Rispail e Jean-Paul Brighelli, Alexandre Dumas ou Les
aventures d’un romancier. Paris, Découvertes Gallimard, 1986.
3. Maurois, Andre, op.cit.
4. Idem.
5. Batalha, Maria Cristina, “A importância de E.T.A. Hoffmann na cena
romântica francesa”, Alea: Estudos Neolatinos, vol.5, n.2, jul/dez 2003.
6. Didier, Beatrice, Prefácio a Les filles du feu, Paris, Folio Gallimard, 1972.
7. Murat, Laure, La maison du docteur Blanche, Paris, Hachette, 2001.
8. Gomes, Purificacion Barcia, O método terapêutico de Scheerazade: Mil e uma
histórias de loucura, de desejo e cura, São Paulo, Iluminuras, 2000, p.14.
9. Ibid., p.16.
10. Ibid., p.23.
11. Ibid., p.24.
12. Ferreira, Jerusa Pires, Armadilhas da memória, São Paulo, Ateliê Editorial,
2004, p.81.
13. Barcia Gomes, op.cit., p.20.
14. Ibid., p.21.
15. Ibid., p.29.
16. Idem.
17. Heloisa Prieto é doutora em literatura francesa (USP) e dedicou a tese de
mestrado (PUC-SP) ao estudo de Os três mosqueteiros, de Dumas. Autora de
mais de cinquenta livros para crianças e jovens, recebeu diversos prêmios, sendo
o mais recente o de Melhor Livro de Reconto (FNLIJ — 2012), por O livro dos
pássaros mágicos (FTD). Teve várias obras adaptadas para cinema, teatro e
televisão, também premiadas, como é o caso de 1001 fantasmas (Companhia das
Letrinhas), sua homenagem a este que é um de seus autores mais queridos.
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