domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 754 : 1001 FANTASMAS

1. A rua Diane em Fontenay-aux-Roses No dia 1º de setembro do ano de 1831, fui convidado por um de meus velhos amigos, secretário particular do rei, bem como pelo seu filho, para a abertura da temporada de caça em Fontenay-aux-Roses. Naquela época eu gostava muito de caçar e, para mim, caçador respeitado, a escolha da região onde se daria a abertura anual era um assunto sério. Geralmente hospedávamo-nos em casa de um fazendeiro local, na realidade um amigo do meu cunhado. Havia sido lá que, matando uma lebre, me iniciara nas artes de Nemrod e Elzéar Blaze.1 A fazenda situava-se entre as florestas de Compiègne e de Villers-Cotterêts,2 a um quilômetro da encantadora aldeia de Morienval, e a dois das magníficas ruínas de Pierrefonds. Os dois ou três mil alqueires de terra que formam sua propriedade consistem numa vasta planície, inteiramente cercada por bosques, cortada no meio por um bonito vale, em cujo fundo vê-se, entre os prados verdejantes e as árvores de diferentes tonalidades, uma profusão de casas aparentemente perdidas na folhagem, denunciadas por colunas de fumaça azulada que, de início protegidas pelo abrigo das montanhas à sua volta, sobem verticalmente em direção ao céu, alcançam as camadas superiores da atmosfera e curvam-se, esgarçadas como copas de palmeiras, na direção do vento. É nessa planície, na dupla vertente desse vale, que a fauna digna de caça vai espairecer, como se estivesse em terreno neutro. Daí haver de tudo na planície de Brassoire: cervos e faisões percorrendo os bosques, lebres nos platôs, coelhos nas encostas, perdizes rondando a fazenda. O sr. Mocquet,3 este é o nome de nosso amigo, tinha, portanto, certeza de nossa chegada. Caçávamos o dia inteiro e, no seguinte, voltávamos a Paris, tendo matado, para um total de quatro ou cinco caçadores, cento e cinquenta peças de caça, das quais jamais logramos fazer nosso anfitrião aceitar uma que fosse. Aquele ano, porém, infiel ao sr. Mocquet, eu cedera à obsessão de meu velho colega de escritório, seduzido por um quadro que me fora enviado por seu filho, aluno ilustre da escola de Roma, e que reproduzia uma vista da planície de Fontenay-aux-Roses, com seus campos ceifados cheios de lebres e moitas recheadas de perdizes. Eu nunca havia estado em Fontenay-aux-Roses. Ninguém conhece menos do que eu os arredores de Paris. Quando atravesso a barreira da cidade,4 é quase sempre num raio de vinte ou vinte e cinco quilômetros. Por isso, tudo é motivo de curiosidade para mim quando faço uma viagenzinha qualquer. Às seis horas da tarde, parti para Fontenay; a cabeça para fora da portinhola, como de costume. Atravessei a barreira do Inferno, deixei à minha esquerda a rua de la Tombe-Issoire e peguei a estrada de Orléans. Sabemos que Issoire é o nome de um famoso bandoleiro que, na época de Juliano, extorquia os viajantes a caminho de Lutécia.5 Ele foi gentilmente enforcado, penso eu, e enterrado no lugar que hoje leva seu nome, não longe da entrada das catacumbas.6 A planície que se estende na entrada do Petit Montrouge7 tem um aspecto estranho. Em meio a pastagens artificiais, plantações de cenouras e canteiros de beterrabas, erguem-se uns fortes quadrados, de pedra branca, dominados por uma roda dentada semelhante ao esqueleto de uma girândola apagada. Essa roda é dotada, em sua circunferência, de traves de madeira sobre as quais um homem pressiona alternadamente os pés. Esse trabalho de esquilo, que faz com que o trabalhador pareça mover-se freneticamente sem que na realidade saia do lugar, tem como objetivo enrolar em torno de um dispositivo uma corda que, assim, traz à superfície do solo uma pedra extraída do fundo da pedreira, a qual vem lentamente ver o dia.

Essa pedra é puxada por um gancho até a boca do buraco, onde cilindros a esperam para transportá-la ao local que lhe é destinado. Em seguida, a corda volta a descer às profundezas, aonde vai buscar outro fardo, dando uma trégua ao moderno Ixion,8 a quem dali a pouco um grito anuncia que outra pedra espera a labuta que a fará deixar a pedreira natal, e o mesmo esforço recomeça, para recomeçar de novo, e de novo, infinitamente. Ao anoitecer, o homem percorreu quarenta quilômetros sem sair do lugar. Na realidade, se subisse verticalmente um degrau cada vez que seu pé pressiona as traves, no fim de vinte e três anos alcançaria a Lua. Sobretudo à noite, isto é, na hora em que eu atravessava a planície que separa o Petit Montrouge do Grand Montrouge, a paisagem, graças a esse número infinito de rodas moventes que se destacam vigorosamente contra o poente inflamado, ganha um aspecto fantástico. Qual uma daquelas gravuras em pastel de Goy a,9 diríamos nós, em que arrancadores de dentes, no luscofusco, revistam os corpos dos enforcados. Por volta das sete horas, as rodas se imobilizam. O dia terminou. Esses blocos, que formam grandes quadrados de quinze a dezoito metros de comprimento por dois ou dois e meio de altura, são a futura Paris extirpada da terra. As pedreiras de onde saem essas pedras expandem-se diariamente. São uma continuação das catacumbas de onde saiu a velha Paris. São os subúrbios da cidade subterrânea que não cessam de ganhar terreno, estendendo seu raio. Quando caminhamos pela planície de Montrouge, estamos caminhando sobre abismos. De tempos em tempos encontramos uma depressão no terreno, um vale em miniatura, uma cicatriz do solo. É uma pedreira sem sustentação embaixo, cujo teto de gipsita rachou. Surgiu uma fissura pela qual a água penetrou na caverna; a água carreou a terra, gerando deslocamento: chama-se a isso uma aluvião. Se não soubermos tudo isso, se ignorarmos que a bela e convidativa camada verdejante repousa sobre nada, corremos o risco de, pisando numa dessas gretas, desaparecer, como desaparecemos no Montenvers10 entre dois paredões de gelo. A população que habita essas galerias subterrâneas, além de sua existência, apresenta um caráter e uma fisionomia também peculiares. Vivendo na escuridão, possui algo dos instintos dos animais noturnos, ou seja, é silenciosa e feroz. Volta e meia ouve-se falar de um acidente; uma viga desabou, uma corda se rompeu, um homem foi esmagado. Na superfície da terra, julga-se que é um trágico acidente; dez metros abaixo, sabe-se que é um crime. O aspecto dos operários é geralmente sinistro. De dia, seus olhos piscam; ao ar livre, suas vozes são roucas. Seus cabelos são lisos e emplastrados, inclusive as sobrancelhas; a barba, só aos domingos pela manhã trava relações com a navalha; o colete revela mangas em grosso brim cinzento; o avental é de couro embranquecido pelo contato com a pedra; e a calça, de lona azul. Num de seus ombros fica o casaco dobrado em dois e, sobre esse casaco, o cabo da picareta ou do enxó, que, seis dias por semana, arranca pedaços de pedra. Quando há algum motim, é raro os homens que acabamos de tentar descrever não estarem envolvidos. Quando se diz na barreira do Inferno: “Lá vão os pedreiros de Montrouge descendo”, os moradores das ruas vizinhas balançam a cabeça e fecham as portas. Eis o que observei, o que vi, durante aquela hora do crepúsculo, no mês de setembro, entre o dia e a noite. Mais tarde, quando anoiteceu, joguei-me dentro do coche, de onde certamente nenhum de meus companheiros vira o que eu acabara de ver. Acontece assim com todas as coisas: muitos olham, pouquíssimos veem. Chegamos a Fontenay por volta das oito e meia. Um excelente jantar nos esperava e, depois do jantar, um passeio pelo jardim. Sorrento 11 é uma floresta de laranjeiras; Fontenay é um buquê de rosas. Toda casa tem sua roseira subindo ao longo do muro, protegida no pé por um cercadinho de tábuas. Ao atingir certa altura, a roseira desabrocha em gigantesco leque. A brisa que passa é perfumada e, quando venta mais forte, chovem pétalas de rosas, como chovia na festa de Corpus Christi, na época em que Cristo contava com uma festa. Da extremidade do jardim, se fosse dia, tínhamos uma vista imensa. Apenas as luzes semeadas no espaço indicavam as aldeias de Sceaux, Bagneux, Châtillon e Montrouge. Ao fundo, estendia-se uma grande linha avermelhada, que emitia um rumor semelhante ao bafejo do Leviatã:12 era a respiração de Paris. Tivemos de ser empurrados à força para a cama, como se fôssemos crianças. Sob aquele belo céu todo bordado de estrelas, em contato com aquela brisa perfumada, de bom grado esperaríamos o raiar do dia. Saímos para caçar às cinco horas da manhã, guiados pelo filho de nosso anfitrião, que nos prometera mundos e fundos e que, devo dizer, continuou a se gabar da fartura de caça em sua propriedade, com uma insistência digna de melhor sorte. Ao meio-dia, víramos um coelho e quatro perdizes. O coelho fora perdido pelo meu companheiro da direita, uma perdiz pelo da esquerda, e, das outras três perdizes, eu abatera duas. Em Brassoire, ao meio-dia eu já teria despachado para a fazenda três ou quatro lebres e quinze ou vinte perdizes. Gosto de caçar, mas detesto o passeio, sobretudo o passeio pelo mato. Assim, a pretexto de ir explorar um campo de alfafa à minha extrema esquerda, no qual tinha certeza absoluta de nada encontrar, rompi a linha de caçadores e me afastei. Mas o que havia naquele campo, o que eu almejara no desejo de solidão que se apoderara de mim por mais de duas horas, era uma trilha vazia que, longe dos olhares dos outros caçadores, devia me levar, pela estrada de Sceaux, direto a Fontenay -aux-Roses. Não me enganei. À uma da tarde, ao tocar do sino da paróquia, alcancei as primeiras casas da aldeia. Eu andava junto a um muro, que me parecia cercar uma belíssima propriedade, quando, ao atingir o cruzamento da rua Diane com a Grande-Rue, percebi vindo em minha direção, do lado da igreja, um homem com um aspecto tão estranho que parei, por simples instinto de sobrevivência, e por simples impulso armei os dois tiros do meu fuzil. No entanto, pálido, com os cabelos eriçados, os olhos saltando das órbitas, as roupas em desalinho e as mãos ensanguentadas, o homem passou rente a mim sem me ver. Seu olhar era fixo e vago ao mesmo tempo. Seu andar revelava a exaltação invencível de um corpo que descesse uma montanha no embalo, porém sua respiração cavernosa indicava mais pavor do que cansaço. No cruzamento das duas vias, ele deixou a Grande-Rue e dobrou na rua Diane, onde ficava a entrada da propriedade cujos muros eu vinha seguindo por sete ou oito minutos. O portão, no qual meus olhos se detiveram instantaneamente, era pintado de verde e encimado pelo número 2. A mão do homem adiantou-se para a campainha muito antes de poder tocá-la. Alcançando-a, sacudiu-a violentamente e, quase no mesmo instante, girando no próprio eixo, viu-se sentado num dos marcos que antecediam esse portão. Uma vez ali, permaneceu imóvel, os braços arriados e a cabeça caída no peito. Pressentindo que aquele homem era o protagonista de algum drama desconhecido e terrível, dei meia-volta. Atrás dele, e de ambos os lados da rua, algumas pessoas, nas quais ele possivelmente produzira o mesmo efeito que em mim, haviam saído de suas casas e olhavam-no com espanto igual ao meu. Ao toque estridente da campainha, uma portinhola, embutida no portão, se abriu e uma mulher de quarenta a quarenta e cinco anos apareceu. — Ah, é você, Jacquemin? — ela disse. — O que faz aí parado? — O sr. prefeito está em casa? — perguntou com uma voz rouca o homem a quem ela se dirigia. — Está. — Ótimo, dona Antoine. Pois diga a ele que matei minha mulher e que vim me entregar.

A sra. Antoine deu um grito, ao qual responderam duas ou três exclamações aterrorizadas das pessoas que se achavam perto o bastante para ouvir a terrível confissão. Eu mesmo dei um passo atrás, esbarrando no tronco de uma tília, no qual me apoiei. Seja como for, todos os que se achavam ao alcance da voz haviam se imobilizado. Quanto ao assassino, escorregara do marco para o chão, como se, após pronunciar aquelas palavras fatais, suas forças o tivessem abandonado. Enquanto isso, a sra. Antoine desaparecera, deixando a portinhola aberta. Evidentemente, fora cumprir junto ao patrão a tarefa de que Jacquemin a incumbira. No fim de cinco minutos, aquele a quem foram chamar apareceu na soleira da porta. Outros dois homens o seguiam. Ainda posso ver a cena. Jacquemin escorregara para o chão, como eu disse. O prefeito de Fontenayaux-Roses, que a sra. Antoine acabava de convocar, postou-se de pé ao seu lado, dominando-o com sua alta estatura. No vão da porta espremiam-se as outras duas pessoas, das quais logo falaremos mais detidamente quando for a hora. Mesmo estando recostado no tronco de uma tília plantada na Grande-Rue, meu olhar projetava-se até a rua Diane. À minha esquerda, achava-se certo grupo composto de um homem, uma mulher e uma criança, que aos prantos pedia para sua mãe pegá-la no colo. Atrás desse grupo, a cabeça de um padeiro enfiou-se por uma janela do primeiro andar, conversando com seu filho ainda menino, embaixo na calçada, e perguntando-lhe se não era Jacquemin, o operário, que acabava de passar correndo. Por fim, um ferreiro apareceu na porta de sua casa, preto na frente, mas tendo as costas iluminadas pela luz de sua forja, cujo fole um aprendiz continuava a operar. Isso era tudo na Grande-Rue. Quanto à rua Diane, afora o grupo principal já descrito, estava completamente vazia. Apenas em sua ponta viam-se surgir dois policiais, que, cavalgando lentamente, vinham fazer a ronda no quarteirão, exigindo portes de todas as armas, e sem desconfiar da missão que os esperava, aproximavam-se de nós tranquilamente. O sino tocou uma e quinze da tarde.

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