1. A rua Diane em Fontenay-aux-Roses
No dia 1º de setembro do ano de 1831, fui convidado por um de meus velhos
amigos, secretário particular do rei, bem como pelo seu filho, para a abertura da
temporada de caça em Fontenay-aux-Roses.
Naquela época eu gostava muito de caçar e, para mim, caçador respeitado, a
escolha da região onde se daria a abertura anual era um assunto sério.
Geralmente hospedávamo-nos em casa de um fazendeiro local, na realidade
um amigo do meu cunhado. Havia sido lá que, matando uma lebre, me iniciara
nas artes de Nemrod e Elzéar Blaze.1 A fazenda situava-se entre as florestas de
Compiègne e de Villers-Cotterêts,2 a um quilômetro da encantadora aldeia de
Morienval, e a dois das magníficas ruínas de Pierrefonds.
Os dois ou três mil alqueires de terra que formam sua propriedade consistem
numa vasta planície, inteiramente cercada por bosques, cortada no meio por um
bonito vale, em cujo fundo vê-se, entre os prados verdejantes e as árvores de
diferentes tonalidades, uma profusão de casas aparentemente perdidas na
folhagem, denunciadas por colunas de fumaça azulada que, de início protegidas
pelo abrigo das montanhas à sua volta, sobem verticalmente em direção ao céu,
alcançam as camadas superiores da atmosfera e curvam-se, esgarçadas como
copas de palmeiras, na direção do vento.
É nessa planície, na dupla vertente desse vale, que a fauna digna de caça vai
espairecer, como se estivesse em terreno neutro.
Daí haver de tudo na planície de Brassoire: cervos e faisões percorrendo os
bosques, lebres nos platôs, coelhos nas encostas, perdizes rondando a fazenda. O
sr. Mocquet,3 este é o nome de nosso amigo, tinha, portanto, certeza de nossa
chegada. Caçávamos o dia inteiro e, no seguinte, voltávamos a Paris, tendo
matado, para um total de quatro ou cinco caçadores, cento e cinquenta peças de
caça, das quais jamais logramos fazer nosso anfitrião aceitar uma que fosse.
Aquele ano, porém, infiel ao sr. Mocquet, eu cedera à obsessão de meu velho
colega de escritório, seduzido por um quadro que me fora enviado por seu filho,
aluno ilustre da escola de Roma, e que reproduzia uma vista da planície de
Fontenay-aux-Roses, com seus campos ceifados cheios de lebres e moitas
recheadas de perdizes.
Eu nunca havia estado em Fontenay-aux-Roses. Ninguém conhece menos do
que eu os arredores de Paris. Quando atravesso a barreira da cidade,4 é quase
sempre num raio de vinte ou vinte e cinco quilômetros. Por isso, tudo é motivo de
curiosidade para mim quando faço uma viagenzinha qualquer.
Às seis horas da tarde, parti para Fontenay; a cabeça para fora da portinhola,
como de costume. Atravessei a barreira do Inferno, deixei à minha esquerda a
rua de la Tombe-Issoire e peguei a estrada de Orléans.
Sabemos que Issoire é o nome de um famoso bandoleiro que, na época de
Juliano, extorquia os viajantes a caminho de Lutécia.5 Ele foi gentilmente
enforcado, penso eu, e enterrado no lugar que hoje leva seu nome, não longe da
entrada das catacumbas.6
A planície que se estende na entrada do Petit Montrouge7 tem um aspecto
estranho. Em meio a pastagens artificiais, plantações de cenouras e canteiros de
beterrabas, erguem-se uns fortes quadrados, de pedra branca, dominados por
uma roda dentada semelhante ao esqueleto de uma girândola apagada. Essa roda
é dotada, em sua circunferência, de traves de madeira sobre as quais um homem
pressiona alternadamente os pés. Esse trabalho de esquilo, que faz com que o
trabalhador pareça mover-se freneticamente sem que na realidade saia do lugar,
tem como objetivo enrolar em torno de um dispositivo uma corda que, assim,
traz à superfície do solo uma pedra extraída do fundo da pedreira, a qual vem
lentamente ver o dia.
Essa pedra é puxada por um gancho até a boca do buraco, onde cilindros a
esperam para transportá-la ao local que lhe é destinado. Em seguida, a corda
volta a descer às profundezas, aonde vai buscar outro fardo, dando uma trégua ao
moderno Ixion,8 a quem dali a pouco um grito anuncia que outra pedra espera a
labuta que a fará deixar a pedreira natal, e o mesmo esforço recomeça, para
recomeçar de novo, e de novo, infinitamente.
Ao anoitecer, o homem percorreu quarenta quilômetros sem sair do lugar. Na
realidade, se subisse verticalmente um degrau cada vez que seu pé pressiona as
traves, no fim de vinte e três anos alcançaria a Lua.
Sobretudo à noite, isto é, na hora em que eu atravessava a planície que separa
o Petit Montrouge do Grand Montrouge, a paisagem, graças a esse número
infinito de rodas moventes que se destacam vigorosamente contra o poente
inflamado, ganha um aspecto fantástico. Qual uma daquelas gravuras em pastel
de Goy a,9 diríamos nós, em que arrancadores de dentes, no luscofusco, revistam
os corpos dos enforcados.
Por volta das sete horas, as rodas se imobilizam. O dia terminou.
Esses blocos, que formam grandes quadrados de quinze a dezoito metros de
comprimento por dois ou dois e meio de altura, são a futura Paris extirpada da
terra. As pedreiras de onde saem essas pedras expandem-se diariamente. São
uma continuação das catacumbas de onde saiu a velha Paris. São os subúrbios da
cidade subterrânea que não cessam de ganhar terreno, estendendo seu raio.
Quando caminhamos pela planície de Montrouge, estamos caminhando sobre
abismos. De tempos em tempos encontramos uma depressão no terreno, um vale
em miniatura, uma cicatriz do solo. É uma pedreira sem sustentação embaixo,
cujo teto de gipsita rachou. Surgiu uma fissura pela qual a água penetrou na
caverna; a água carreou a terra, gerando deslocamento: chama-se a isso uma
aluvião.
Se não soubermos tudo isso, se ignorarmos que a bela e convidativa camada
verdejante repousa sobre nada, corremos o risco de, pisando numa dessas gretas,
desaparecer, como desaparecemos no Montenvers10 entre dois paredões de
gelo.
A população que habita essas galerias subterrâneas, além de sua existência,
apresenta um caráter e uma fisionomia também peculiares. Vivendo na
escuridão, possui algo dos instintos dos animais noturnos, ou seja, é silenciosa e
feroz. Volta e meia ouve-se falar de um acidente; uma viga desabou, uma corda
se rompeu, um homem foi esmagado. Na superfície da terra, julga-se que é um
trágico acidente; dez metros abaixo, sabe-se que é um crime.
O aspecto dos operários é geralmente sinistro. De dia, seus olhos piscam; ao
ar livre, suas vozes são roucas. Seus cabelos são lisos e emplastrados, inclusive as
sobrancelhas; a barba, só aos domingos pela manhã trava relações com a
navalha; o colete revela mangas em grosso brim cinzento; o avental é de couro
embranquecido pelo contato com a pedra; e a calça, de lona azul. Num de seus
ombros fica o casaco dobrado em dois e, sobre esse casaco, o cabo da picareta
ou do enxó, que, seis dias por semana, arranca pedaços de pedra.
Quando há algum motim, é raro os homens que acabamos de tentar
descrever não estarem envolvidos. Quando se diz na barreira do Inferno: “Lá vão
os pedreiros de Montrouge descendo”, os moradores das ruas vizinhas balançam
a cabeça e fecham as portas.
Eis o que observei, o que vi, durante aquela hora do crepúsculo, no mês de
setembro, entre o dia e a noite. Mais tarde, quando anoiteceu, joguei-me dentro
do coche, de onde certamente nenhum de meus companheiros vira o que eu
acabara de ver. Acontece assim com todas as coisas: muitos olham, pouquíssimos
veem.
Chegamos a Fontenay por volta das oito e meia. Um excelente jantar nos
esperava e, depois do jantar, um passeio pelo jardim.
Sorrento
11 é uma floresta de laranjeiras; Fontenay é um buquê de rosas.
Toda casa tem sua roseira subindo ao longo do muro, protegida no pé por um
cercadinho de tábuas. Ao atingir certa altura, a roseira desabrocha em gigantesco
leque. A brisa que passa é perfumada e, quando venta mais forte, chovem pétalas
de rosas, como chovia na festa de Corpus Christi, na época em que Cristo contava
com uma festa.
Da extremidade do jardim, se fosse dia, tínhamos uma vista imensa. Apenas
as luzes semeadas no espaço indicavam as aldeias de Sceaux, Bagneux, Châtillon
e Montrouge. Ao fundo, estendia-se uma grande linha avermelhada, que emitia
um rumor semelhante ao bafejo do Leviatã:12 era a respiração de Paris.
Tivemos de ser empurrados à força para a cama, como se fôssemos
crianças. Sob aquele belo céu todo bordado de estrelas, em contato com aquela
brisa perfumada, de bom grado esperaríamos o raiar do dia.
Saímos para caçar às cinco horas da manhã, guiados pelo filho de nosso
anfitrião, que nos prometera mundos e fundos e que, devo dizer, continuou a se
gabar da fartura de caça em sua propriedade, com uma insistência digna de
melhor sorte.
Ao meio-dia, víramos um coelho e quatro perdizes. O coelho fora perdido
pelo meu companheiro da direita, uma perdiz pelo da esquerda, e, das outras três
perdizes, eu abatera duas. Em Brassoire, ao meio-dia eu já teria despachado para
a fazenda três ou quatro lebres e quinze ou vinte perdizes.
Gosto de caçar, mas detesto o passeio, sobretudo o passeio pelo mato. Assim,
a pretexto de ir explorar um campo de alfafa à minha extrema esquerda, no qual
tinha certeza absoluta de nada encontrar, rompi a linha de caçadores e me
afastei.
Mas o que havia naquele campo, o que eu almejara no desejo de solidão que
se apoderara de mim por mais de duas horas, era uma trilha vazia que, longe dos
olhares dos outros caçadores, devia me levar, pela estrada de Sceaux, direto a
Fontenay -aux-Roses.
Não me enganei. À uma da tarde, ao tocar do sino da paróquia, alcancei as
primeiras casas da aldeia.
Eu andava junto a um muro, que me parecia cercar uma belíssima
propriedade, quando, ao atingir o cruzamento da rua Diane com a Grande-Rue,
percebi vindo em minha direção, do lado da igreja, um homem com um aspecto
tão estranho que parei, por simples instinto de sobrevivência, e por simples
impulso armei os dois tiros do meu fuzil.
No entanto, pálido, com os cabelos eriçados, os olhos saltando das órbitas, as
roupas em desalinho e as mãos ensanguentadas, o homem passou rente a mim
sem me ver. Seu olhar era fixo e vago ao mesmo tempo. Seu andar revelava a
exaltação invencível de um corpo que descesse uma montanha no embalo,
porém sua respiração cavernosa indicava mais pavor do que cansaço.
No cruzamento das duas vias, ele deixou a Grande-Rue e dobrou na rua
Diane, onde ficava a entrada da propriedade cujos muros eu vinha seguindo por
sete ou oito minutos. O portão, no qual meus olhos se detiveram
instantaneamente, era pintado de verde e encimado pelo número 2. A mão do
homem adiantou-se para a campainha muito antes de poder tocá-la.
Alcançando-a, sacudiu-a violentamente e, quase no mesmo instante, girando no
próprio eixo, viu-se sentado num dos marcos que antecediam esse portão. Uma
vez ali, permaneceu imóvel, os braços arriados e a cabeça caída no peito.
Pressentindo que aquele homem era o protagonista de algum drama
desconhecido e terrível, dei meia-volta.
Atrás dele, e de ambos os lados da rua, algumas pessoas, nas quais ele
possivelmente produzira o mesmo efeito que em mim, haviam saído de suas
casas e olhavam-no com espanto igual ao meu.
Ao toque estridente da campainha, uma portinhola, embutida no portão, se
abriu e uma mulher de quarenta a quarenta e cinco anos apareceu.
— Ah, é você, Jacquemin? — ela disse. — O que faz aí parado?
— O sr. prefeito está em casa? — perguntou com uma voz rouca o homem a
quem ela se dirigia.
— Está.
— Ótimo, dona Antoine. Pois diga a ele que matei minha mulher e que vim
me entregar.
A sra. Antoine deu um grito, ao qual responderam duas ou três exclamações
aterrorizadas das pessoas que se achavam perto o bastante para ouvir a terrível
confissão.
Eu mesmo dei um passo atrás, esbarrando no tronco de uma tília, no qual me
apoiei.
Seja como for, todos os que se achavam ao alcance da voz haviam se
imobilizado.
Quanto ao assassino, escorregara do marco para o chão, como se, após
pronunciar aquelas palavras fatais, suas forças o tivessem abandonado.
Enquanto isso, a sra. Antoine desaparecera, deixando a portinhola aberta.
Evidentemente, fora cumprir junto ao patrão a tarefa de que Jacquemin a
incumbira.
No fim de cinco minutos, aquele a quem foram chamar apareceu na soleira
da porta.
Outros dois homens o seguiam.
Ainda posso ver a cena.
Jacquemin escorregara para o chão, como eu disse. O prefeito de Fontenayaux-Roses,
que a sra. Antoine acabava de convocar, postou-se de pé ao seu lado,
dominando-o com sua alta estatura. No vão da porta espremiam-se as outras
duas pessoas, das quais logo falaremos mais detidamente quando for a hora.
Mesmo estando recostado no tronco de uma tília plantada na Grande-Rue, meu
olhar projetava-se até a rua Diane. À minha esquerda, achava-se certo grupo
composto de um homem, uma mulher e uma criança, que aos prantos pedia para
sua mãe pegá-la no colo. Atrás desse grupo, a cabeça de um padeiro enfiou-se
por uma janela do primeiro andar, conversando com seu filho ainda menino,
embaixo na calçada, e perguntando-lhe se não era Jacquemin, o operário, que
acabava de passar correndo. Por fim, um ferreiro apareceu na porta de sua casa,
preto na frente, mas tendo as costas iluminadas pela luz de sua forja, cujo fole
um aprendiz continuava a operar. Isso era tudo na Grande-Rue.
Quanto à rua Diane, afora o grupo principal já descrito, estava
completamente vazia. Apenas em sua ponta viam-se surgir dois policiais, que,
cavalgando lentamente, vinham fazer a ronda no quarteirão, exigindo portes de
todas as armas, e sem desconfiar da missão que os esperava, aproximavam-se
de nós tranquilamente.
O sino tocou uma e quinze da tarde.
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