domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 755 : O BECO DOS SARGENTOS

2. O beco dos Sargentos

 A última badalada do relógio misturou-se ao som da primeira palavra do prefeito. — Jacquemin — disse ele —, espero que dona Antoine esteja variando. Ela me transmitiu seu recado, segundo o qual sua mulher foi morta e foi você quem a matou. — É a pura verdade, sr. prefeito — respondeu Jacquemin. — Devo ser preso e julgado o mais rápido possível. Proferindo tais palavras, ele tentou se levantar, apoiando-se no marco com o cotovelo, mas, após um esforço, caiu de novo, como se os ossos de suas pernas estivessem quebrados. — Que ideia! Você está louco! — exclamou o prefeito. — Olhe as minhas mãos — insistiu Jacquemin. E ergueu as duas mãos ensanguentadas, às quais seus dedos crispados davam a forma de foices. Com efeito, a esquerda estava vermelha até acima do pulso, a direita até o cotovelo. Além disso, na mão direita, um filete de sangue fresco corria ao longo do polegar, proveniente, segundo toda probabilidade, de uma mordida que a vítima, ao se debater, dera em seu assassino. Nesse meio-tempo, os dois policiais haviam se aproximado, feito alto a dez passos do protagonista da cena e, montados em seus cavalos, observavam. O prefeito fez-lhes um sinal e eles apearam, jogando a rédea de suas montarias para um garoto de quepe policial, que parecia ser um cavalariço mirim. Em seguida, aproximaram-se de Jacquemin e o suspenderam pelas axilas. Ele não ofereceu resistência alguma, demonstrando a inércia do homem cujo espírito está absorto num único pensamento. Nesse instante, o comissário de polícia e o médico chegaram. Acabavam de ser avisados do ocorrido. — Ah, venha, sr. Robert! Ah, venha, sr. Cousin! — chamou o prefeito. O sr. Robert era o médico e o sr. Cousin, o comissário de polícia. — Aproximem-se, ia mesmo chamá-los. — Ora, ora! Vejamos, o que houve? — perguntou o médico, com o ar mais jovial do mundo. — Um caso de simples assassinato, pelo que ouvi dizer? Jacquemin não respondeu nada. — Fale então, seu Jacquemin — continuou o médico —, é verdade que foi o senhor quem matou sua mulher? Jacquemin não emitiu um som. — Trata-se no mínimo de uma autoacusação — comentou o prefeito. — No entanto, ainda torço para que seja uma alucinação, e não um crime real, que o fez confessar. — Jacquemin — pediu o comissário de polícia —, responda. É verdade que matou sua mulher? Mesmo silêncio. — Não importa, logo saberemos — opinou o dr. Robert. — Ele não mora no beco dos Sargentos? — Mora — responderam os dois policiais. — Muito bem, sr. Ledru!13 — sugeriu o médico, dirigindo-se ao prefeito. — Vamos ao beco dos Sargentos. — Eu não vou lá! Eu não vou! — gritou Jacquemin, desvencilhando-se dos policiais com um gesto tão violento que, se pretendesse fugir, estaria decerto a cem passos dali antes que alguém cogitasse persegui-lo. — Mas por que se recusa a ir? — perguntou o prefeito. — Que motivos teria eu para ir, se confesso tudo, se estou lhe dizendo que a matei, e que o fiz com aquela grande espada medieval que roubei do Museu de Artilharia ano passado? Recolham-me à prisão, não tenho nada a fazer na minha casa, recolham-me à prisão. O médico e o sr. Ledru entreolharam-se. — Meu amigo — ponderou o comissário de polícia, que, como o sr. Ledru, ainda tinha esperança de que Jacquemin estivesse sob a influência de algum distúrbio mental momentâneo —, a reconstituição é urgente; aliás, o senhor precisa estar presente para guiar a justiça. — Desde quando a justiça precisa ser guiada? — reclamou Jacquemin. — O senhor achará o corpo na adega e, perto do corpo, apoiada num saco de gesso, a cabeça. Quanto a mim, levem-me para a prisão. — Sua presença é imperiosa — ordenou o comissário de polícia.

— Oh, meu Deus, meu Deus! — tremeu Jacquemin, às voltas com o mais terrível pavor. — Oh, meu Deus, meu Deus! Se eu soubesse… — Sim! O que teria feito? — perguntou o comissário. — Ora, teria me matado. O sr. Ledru balançou a cabeça e, expressando-se com os olhos para o comissário de polícia, pareceu dizer-lhe: “Aí tem coisa.” — Vejamos — continuou ele, dirigindo-se ao assassino —, somos amigos, explique-me tudo, a mim. — Sim, ao senhor, tudo que quiser, sr. Ledru. Pergunte, interrogue. — Como é possível, depois de ter a coragem para assassinar alguém, que não tenha a de se confrontar com sua vítima? Por acaso aconteceu alguma coisa que deixou de nos contar? — Oh, sim, uma coisa terrível! — Ora! Queremos saber, conte. — Oh, não. Os senhores diriam que não é verdade, diriam que estou louco. — Não importa! O que aconteceu? Conte. — Está bem, eu conto, mas só para o senhor. Aproximou-se do sr. Ledru. Os dois policiais quiseram impedi-lo, mas o prefeito fez um sinal e eles deixaram o prisioneiro livre. Até porque, se quisesse fugir agora, teria sido impossível fazê-lo: metade da população de Fontenay-aux-Roses ocupava a rua Diane e a Grande-Rue. Jacquemin, como eu disse, acercou-se do ouvido do sr. Ledru. — Acredita, sr. Ledru — perguntou Jacquemin a meia-voz —, acredita que, depois de separada do corpo, uma cabeça possa falar? O sr. Ledru soltou uma exclamação parecida com um grito e empalideceu a olhos vistos. — Acredita nisso? Fale — repetiu Jacquemin. O sr. Ledru fez um esforço. — Sim — disse —, acredito. — Pois bem! Pois bem! Ela falou. — Quem? — A cabeça… a cabeça de Jeanne. — Você está dizendo…? — Estou dizendo que ela estava com os olhos abertos, estou dizendo que ela mexeu os lábios, que ela me encarou, estou dizendo que, ao me fitar, ela me xingou: “Miserável!” Ao pronunciar tais palavras, que tinha a intenção de dizer apenas ao sr. Ledru, e no entanto eram ouvidas por todos, Jacquemin ganhou um ar assustador. — Que piada! — exclamou o médico, rindo. — Ela falou… uma cabeça cortada falou. Boa, muito boa, boa mesmo! Jacquemin voltou-se. — Pois estou lhe dizendo… — retrucou. — Chega! — interrompeu o comissário de polícia. — Mais uma razão para nos encaminharmos ao local onde se deu o crime. Guardas, escoltem o prisioneiro. Jacquemin deu um grito, se contorcendo. — Não, não — implorou —, podem até me esquartejar, mas não irei. — Venha, meu amigo — insistiu o sr. Ledru. — Se é verdade que cometeu o crime terrível de que se acusa, voltar à cena do crime já será um castigo. Aliás — acrescentou, falando baixinho —, é inútil resistir. Se você não for por bem, eles o levarão à força. — Muito bem, então! — disse Jacquemin. — Aceito, mas prometa-me uma coisa, sr. Ledru. — O quê? — Enquanto estivermos na adega, o senhor não sairá de perto de mim. — Não sairei. — Permitirá que eu segure sua mão? — Sim. — Então está bem — ele cedeu —, podemos ir. E, puxando do bolso um lenço xadrez, enxugou a testa banhada de suor. Dirigiram-se todos ao beco dos Sargentos. O comissário de polícia e o médico caminhavam na frente, seguidos por Jacquemin e os dois guardas. Atrás deles, vinham o sr. Ledru e os dois homens que haviam aparecido à sua porta ao mesmo tempo que ele. Na retaguarda, como uma torrente encrespada e ruidosa, encachoeirava-se toda a população, à qual eu vinha misturado. Após um minuto de caminhada, chegamos ao beco dos Sargentos. Era uma ruazinha situada à esquerda da Grande-Rue, descendo até um portão de madeira carcomida, que se abria tanto por duas grandes portas quanto por uma portinhola recortada numa dessas portas. A portinhola estava presa por uma única dobradiça. À primeira vista, tudo parecia calmo na casa. Uma roseira floria na entrada e, ao lado da roseira, num banco de pedra, um gato gordo e ruivo se aquecia beatificamente ao sol. Percebendo toda aquela gente, ouvindo todo aquele barulho, ele se amedrontou, fugiu e desapareceu pelo respiradouro de um porão. Ao chegar à entrada que descrevemos, Jacquemin se deteve. Os policiais quiseram fazê-lo passar à força. — Sr. Ledru — disse ele, voltando-se —, sr. Ledru, o senhor prometeu não sair de perto… — Pois não! Aqui estou — assegurou o prefeito. — Sua mão, sua mão! E cambaleava como se estivesse prestes a cair. O sr. Ledru aproximou-se, fez sinal para os dois policiais soltarem o prisioneiro e deu-lhe a mão, dizendo. — Responsabilizo-me por ele. Era evidente que, a partir dali, o sr. Ledru não era mais o prefeito de uma comuna desejando a punição de um crime, e sim um filósofo explorando domínios desconhecidos. Com a ressalva de que seu guia na insólita exploração era um assassino. O médico e o comissário foram os primeiros a entrar, seguidos pelo sr. Ledru e Jacquemin. Depois entraram os guardas e alguns privilegiados, eu entre eles, graças ao contato que fizera com os srs. policiais, para quem eu não era mais um estranho, tendo tido a honra de conhecê-los diante do portão do prefeito e de mostrar-lhes meu porte de arma. A porta foi fechada para o restante da população, que ficou a resmungar do lado de fora. Avançamos até a porta da casinha. Nada sugeria o acontecimento terrível que ali se dera. Tudo estava em seu lugar: a cama forrada de gabardine verde em sua alcova, tendo à cabeceira o crucifixo de madeira preta, coroado desde a última Páscoa por um galho de buxo seco. Sobre a lareira, um Menino Jesus de cera, deitado em meio a flores entre dois castiçais Luís XVI, cujo banho de prata se gastara com o tempo. Na parede, quatro gravuras coloridas, emolduradas em madeira escura e representando as quatro partes do mundo. Sobre uma mesa, talheres para uma pessoa; na pedra do fogão, um refogado fervendo; e, próximo a um cuco que dava a meia-hora, um armário de comida aberto. — E então! — disse o médico, no seu tom jovial. — Até agora não vejo nada. — Entre pela porta da direita — murmurou Jacquemin, com uma voz rouca. A indicação do prisioneiro foi seguida e vimo-nos numa espécie de despensa onde, num dos cantos, abria-se um alçapão, e em cujo vão tremeluzia uma luz, vinda de baixo. — Ali, ali — murmurou Jacquemin, agarrando-se ao braço do sr. Ledru com uma das mãos e com a outra apontando para a adega. — É agora! — sussurrou o médico ao comissário de polícia, com aquele sorriso terrível das pessoas a quem nada impressiona porque não acreditam em nada. — Parece que a sra. Jacquemin obedeceu ao preceito de mestre Adão.14 E cantarolou: Se eu morrer, que me enterrem Na adega onde está… — Silêncio! — interrompeu Jacquemin, rosto lívido, cabelos eriçados, suor na testa. — Não cante aqui. Assustado com a expressividade de sua voz, o médico se calou. Quase imediatamente, porém, ao descer os primeiros degraus da escada, perguntou: — O que é isso? E, abaixando-se, recolheu uma espada de lâmina larga. Era a espada medieval que Jacquemin, como ele próprio dissera, roubara do Museu de Artilharia, em 29 de julho de 1830.15 A lâmina estava suja de sangue. O comissário tomou-a das mãos do médico. — Reconhece essa espada? — perguntou ao prisioneiro. — Sim — respondeu Jacquemin. — Depressa! Depressa! Vamos acabar com isto. Havíamos encontrado o primeiro indício do assassinato. Adentramos a adega, na ordem já mencionada: o médico e o comissário de polícia à frente, depois o sr. Ledru e Jacquemin, depois as duas pessoas que se achavam na casa do sr. Ledru, depois os guardas, depois os privilegiados, entre eles eu. Após descer o sétimo degrau, meu olho mergulhou na adega e abarcou o terrível quadro que tentarei descrever. O primeiro elemento que chamava a atenção era um cadáver sem cabeça, deitado junto a um barril, de cujo botoque, malfechado, continuava a escapar um filete de vinho. Este, ao escorrer, formava um canal que ia se perder sob o cavalete de apoio. O cadáver estava contorcido no meio, como se o tronco, virado para cima, houvesse começado um movimento de agonia que as pernas não puderam acompanhar. O vestido, de um lado, arregaçava-se até a canela. Via-se que a vítima fora golpeada no momento em que, de joelhos diante do barril, começava a encher uma garrafa, que lhe escapara das mãos e jazia a seu lado. Toda a parte superior do corpo boiava numa poça de sangue. Sobre um saco de gesso encostado na parede, como um busto sobre o pedestal, percebia-se, ou melhor, adivinhava-se uma cabeça afogada numa cabeleira. Uma faixa de sangue avermelhava o saco, do topo até a metade. O médico e o comissário já haviam inspecionado o cadáver e se posicionado de frente para a escada. Quase no centro da adega estavam os dois amigos do sr. Ledru e alguns curiosos que se espremeram para chegar até ali. Ao pé da escada, quedava-se Jacquemin, pois ninguém conseguira fazê-lo descer o último degrau. Atrás de Jacquemin, os dois guardas. Atrás dos guardas, cinco ou seis pessoas, entre as quais eu mesmo, aglomeravam-se no alto da escada. Todo esse interior lúgubre era iluminado pelo fulgor trêmulo da vela, pousada justamente sobre o barril de onde escorria o vinho e diante do qual jazia o cadáver da sra. Jacquemin. — Uma mesa e uma cadeira — ordenou o comissário —, precisamos conversar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário