domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 756 : O INTERROGATÓRIO

3. O interrogatório

Trouxeram para o comissário os dois móveis solicitados. Ele verificou se a mesa estava firme, sentou-se diante dela, pediu a vela, que o médico lhe entregou passando por cima do cadáver, puxou do bolso um tinteiro, canetas de pena, papel, e deu início ao interrogatório. Enquanto ele escrevia o preâmbulo, o médico demonstrou curiosidade pela cabeça sobre o saco de gesso, mas o comissário o deteve. — Não toque em nada — disse. — O regulamento acima de tudo. — Tem razão — concordou o médico. E voltou a seu lugar. Houve alguns minutos de silêncio, durante os quais só se ouvia a pena do comissário de polícia guinchando sobre o papel áspero do governo, enquanto as linhas sucediam-se com a rapidez de uma fórmula já conhecida pelo escriba. Ao fim de algumas linhas, ele ergueu a fronte e olhou em volta. — Quem se dispõe a testemunhar? — perguntou, dirigindo-se ao prefeito. — Ora, esses dois cavalheiros, para começar — disse o sr. Ledru, apontando seus dois amigos de pé, que se juntavam ao comissário de polícia sentado. — Muito bem. Voltou-se para o meu lado. — E depois, o cavalheiro, se não lhe for de todo incômodo ver seu nome num inquérito policial. — Em absoluto — respondi. — Peço então que desça — instruiu-me o comissário. Certa repugnância me impedia de chegar perto do cadáver. De onde eu estava, alguns detalhes, sem me escaparem completamente, pareciam-me menos hediondos, perdidos numa semipenumbra que lançava um véu de poesia sobre o horror. — É mesmo necessário? — perguntei. — O quê? — Que eu desça. — Não. O senhor pode ficar onde está, se preferir. Fiz um sinal com a cabeça que exprimia: “Desejo permanecer onde estou.” O comissário voltou-se para o amigo do sr. Ledru que estava mais próximo. — Nome, sobrenome, idade, ocupação, profissão e domicílio — inquiriu com a velocidade do homem acostumado a fazer esse tipo de pergunta. — Jean-Louis Alliette16 — respondeu a testemunha escolhida —, vulgo Etteilla por anagrama, homem de letras, residente à rua da Comédia Antiga nº20. — Esqueceu de dizer sua idade — observou o comissário. — Devo dizer a idade que tenho ou a idade que me dão? — Sua idade, santo deus! Ninguém pode ter duas idades. — Observo, sr. comissário, que determinadas pessoas, Cagliostro, por exemplo, ou o conde de Saint-Germain, o Judeu Errante…17 — Está insinuando que é Cagliostro, o conde de Saint-Germain ou o Judeu Errante? — indagou o comissário, franzindo a testa ao pensar que debochavam dele. — Não, mas… — Setenta e cinco anos — interveio o sr. Ledru. — Ponha setenta e cinco anos, sr. Cousin. — Está bem — disse o comissário. E pôs setenta e cinco anos. — E o senhor, cavalheiro? — continuou ele, dirigindo-se ao segundo amigo do sr. Ledru. E repetiu as mesmas perguntas que fizera ao primeiro. — Pierre-Joseph Moulle, sessenta e um anos, eclesiástico, vigário da igreja de Saint-Sulpice, residente à rua Servandoni nº11 — respondeu o interrogado, com sua voz mansa. — E o senhor, cavalheiro? — perguntou, dirigindo-se a mim. — Alexandre Dumas. Dramaturgo, vinte e sete anos,18 residente em Paris, à rua da Universidade nº21. O sr. Ledru virou-se para mim e fez uma graciosa saudação, à qual respondi no mesmo tom, o melhor que pude. — Ótimo! — disse o comissário de polícia. — Vejam se é de fato isto, cavalheiros, e se têm alguma observação a fazer. E naquele tom anasalado e monótono, peculiar aos funcionários públicos, leu: “No dia de hoje, primeiro de setembro de 1831, às duas horas da tarde, alertados pelo rumor público de que um crime de assassinato acabava de ser cometido na comuna de Fontenay-aux-Roses contra a pessoa de Marie-Jeanne Ducoudray, por Pierre Jacquemin, seu marido, e que o assassino dirigiu-se ao domicílio do sr. Jean-Pierre Ledru, prefeito da supracitada comuna de Fontenay - aux-Roses, com o fito de se declarar, de livre e espontânea vontade, autor desse crime, acorremos, pessoalmente, ao domicílio do supracitado Jean-Pierre Ledru, rua Diane nº2, aonde chegamos em companhia do ilustre Sébastien Robert, doutor em medicina, residente à supracitada comuna de Fontenay-aux-Roses. Lá encontramos, já nas mãos da polícia, o supracitado Pierre Jacquemin, o qual repetiu perante nós ser o autor do assassinato de sua mulher. Diante disso, intimamo-lo a nos acompanhar à casa onde o assassinato fora cometido, ao que ele se recusou a princípio. Pouco depois, tendo ele cedido às instâncias do sr. prefeito, encaminhamo-nos ao beco dos Sargentos, onde situa-se a casa habitada pelo sr. Pierre Jacquemin. Ao nela chegarmos, e tendo fechado a porta para impedir a população de invadi-la, penetramos o primeiro cômodo, onde nada indicava que um crime fora cometido; em seguida, a convite do mesmo supracitado Jacquemin, do primeiro cômodo passamos ao segundo, onde, num dos cantos, um alçapão aberto dava acesso a uma escada. Essa escada nos tendo sido indicada como conduzindo à adega, onde deveríamos encontrar o corpo da vítima, pusemo-nos a descer a dita escada, em cujos primeiros degraus o doutor encontrou uma espada com o punho em cruz, lâmina larga e cortante, que o dito Jacquemin nos confessou ter sido tomada por ele do Museu de Artilharia durante a Revolução de Julho, e usada na perpetração do crime. E no chão da adega encontramos o corpo da sra. Jacquemin, caído de costas e boiando numa poça de sangue, com a cabeça separada do tronco, cabeça que fora colocada ereta sobre um saco de gesso encostado na parede, e tendo o supracitado Jacquemin re conhecido o cadáver e aquela cabeça como sendo de fato os de sua mulher, na presença do sr. Jean-Pierre Ledru, prefeito da comuna de Fontenay-aux-Roses, do sr. Sébastien Robert, doutor em medicina, residente na supracitada Fontenayaux-Roses, do sr. Jean-Louis Alliette, vulgo Etteilla, homem de letras, setenta e cinco anos, residente em Paris à rua da Comédia Antiga nº20, do sr. PierreJoseph Moulle, sessenta e um anos, eclesiástico, vigário de Saint-Sulpice, residente em Paris à rua Servandoni nº11, e do sr. Alexandre Dumas, dramaturgo, vinte e sete anos, residente em Paris à rua da universidade nº21, procedemos destarte ao interrogatório do acusado, como se segue.”

E naquele tom anasalado e monótono, peculiar aos funcionários públicos, leu. — Confere, cavalheiros? — perguntou o comissário, voltando-se para nós com evidente satisfação. — Perfeitamente, senhor — respondemos todos em coro. — Excelente! Interroguemos o réu. Dirigiu-se então ao prisioneiro, que durante toda a leitura respirara ruidosamente, como um homem aflito: — Acusado, declare nome, sobrenome, idade, domicílio e profissão. — Ainda vai demorar muito tudo isso? — perguntou o prisioneiro, como um homem no fim de suas forças. — Responda: nome e sobrenome? — Pierre Jacquemin. — Idade? — Quarenta e um anos. — Domicílio? — O senhor o conhece bem, uma vez que se encontra nele. — Não importa, a lei exige que o senhor responda à pergunta. — Beco dos Sargentos. — Profissão? — Operário de pedreira. — Confessa ser o autor do crime? — Sim. — Diga-nos o motivo que o fez cometê-lo e as circunstâncias em que foi cometido. — “O motivo que o fez cometê-lo…” é inútil querer sabê-lo — respondeu Jacquemin. — Este segredo morrerá comigo e com aquela que está ali. — Não há, porém, efeito sem causa. — Afirmo-lhe que não saberá a causa. Quanto às “circunstâncias”, como o senhor disse, deseja conhecê-las? — Sim. — Pois bem! Vou contar como foi. Quando se trabalha debaixo da terra feito nós, assim, na escuridão, e calha de termos um motivo de aflição, a gente se corrói por dentro, o senhor entende, e tem ideias ruins. — Oh, oh! — interrompeu o comissário de polícia. — Admite então a premeditação? — Ora, já não é o bastante dizer que confesso tudo? — De forma alguma, continue. — Pois bem, a ideia ruim que me ocorreu foi matar Jeanne. Isso me atormentou durante mais de um mês. O coração impedia a cabeça. No fim, um colega me disse… me decidiu. — Ele disse… — Oh, isso é uma coisa que não lhe diz respeito. Pela manhã, comuniquei a Jeanne: “Hoje não vou trabalhar. Quero me divertir como se fosse feriado. Vou jogar bola com os colegas. Cuide para que o almoço fique pronto à uma hora.” “Mas…” “‘Mas’coisa nenhuma, você me ouviu. Almoço à uma hora, entendeu?” “Está bem!” E ela saiu para fazer o refogado. Durante esse tempo, em vez de ir jogar bola, peguei a espada que está com o senhor agora. Eu mesmo a afiara numa pedra. Desci à adega e me escondi atrás dos barris, pensando: “Ela vai ter que descer à adega para tirar vinho. Então, veremos.” Quanto tempo fiquei acocorado ali, atrás dos barris… não faço ideia. Eu estava com febre, meu coração batia forte e eu via tudo vermelho naquela noite. Além disso, uma voz repetia dentro e em volta de mim a palavra que o colega me dissera ontem. — Mas afinal que palavra é essa? — insistiu o comissário. — É inútil perguntar. Repito que nunca saberá. Voltando: ouvi um frufru de vestido, passos se aproximando. Vi uma luz tremular, a parte inferior de seu corpo descendo, depois o tronco, depois a cabeça… Dava para ver bem, sua cabeça… Ela segurava uma vela. “Ah”, eu disse, “perfeito…!” E repeti, baixinho, a palavra que o colega dissera. Enquanto isso, ela se aproximava. Palavra de honra, parecia desconfiar que as coisas não estavam boas para o seu lado! Amedrontada, ia examinando todos os cantos. Mas eu estava bem escondido e não me mexi. Então ela se pôs de joelhos diante do barril, aproximou a garrafa e abriu a torneirinha. Levantei-me. Veja bem, ela estava de joelhos. O barulho do vinho caindo na garrafa a impedia de ouvir qualquer barulho que eu pudesse fazer, o que aliás não aconteceu. Ela estava de joelhos como uma culpada, uma condenada. Ergui a espada e… zás! Nem sei se ela gritou. A cabeça rolou. Naquele instante, eu não queria morrer, queria fugir. Pretendia cavar um buraco na adega e enterrá-la. Pulei sobre a cabeça que rolava enquanto seu corpo caía para o outro lado. Eu tinha um saco de gesso prontinho para esconder o sangue. Agarrei então a cabeça, ou melhor, a cabeça me agarrou. Veja. E mostrou a mão direita com o polegar mutilado por uma grande mordida. — Como?! A cabeça o agarrou? — indignou-se o médico. — Que diabos está dizendo? — Estou dizendo que ela mordeu com vontade, como vê. E mais: ela não queria me soltar. Coloquei-a sobre o saco de gesso, recostei-a na parede com a mão esquerda e tentei libertar a direita, porém, no fim de um instante, os dentes se descerraram por si mesmos e retirei a mão. Então, veja, talvez tenha sido loucura, mas a cabeça me pareceu viva, com os olhos arregalados. Eu os via bem, pois a vela estava sobre o barril, e depois, os lábios… os lábios se mexeram, e, ao se mexerem, me disseram: “Miserável! Eu era inocente!” Ignoro o efeito que esse depoimento causava nos outros, mas eu, de minha parte, estava suando frio. — Ah, isso é passar dos limites! — exclamou o médico. — Os olhos o encararam? Os lábios lhe falaram? — Escute, sr. doutor, sendo médico, é natural que não acredite em nada. Mas eu lhe digo que a cabeça que vê ali — ali, entendeu? —, eu lhe digo que a cabeça me mordeu, e repito, aquela cabeça ali me disse: “Miserável! Eu era inocente!” E a prova de que ela me disse isso, lógico, é que eu queria fugir após ter matado Jeanne, não é?, e que, em vez de fugir, fui direto à casa do sr. prefeito para me denunciar. Não é verdade, sr. prefeito, não é verdade? Responda. — Sim, Jacquemin — confirmou o sr. Ledru, num tom condescendente. — Sim, é verdade. — Examine a cabeça, doutor — pediu o comissário. — Não comigo aqui dentro, sr. Robert! Antes eu quero sair — desesperou-se Jacquemin. — Por acaso está com medo de que ela ainda fale com você, imbecil? — irritou-se o médico, pegando a luz e se aproximando do saco de gesso. — Sr. Ledru, em nome de Deus — implorou Jacquemin —, diga-lhes que me deixem ir embora, por favor, eu lhe suplico! — Cavalheiros — disse o prefeito, fazendo um gesto que deteve o médico —, os senhores não têm mais nada o que arrancar desse infeliz. Permitam que eu o mande para a prisão. Quando a lei ordena a reconstituição, ela pressupõe que o acusado tenha forças para suportá-la. — Mas e o interrogatório? — reagiu o comissário. — Está praticamente encerrado. — É preciso que o acusado assine. — Ele assinará na prisão. — Sim! Sim! — exclamou Jacquemin. — Na prisão assino tudo que quiserem. — Está bem! — resignou-se o comissário de polícia. — Guardas, levem este homem — comandou o sr. Ledru. — Ah, obrigado, sr. Ledru, obrigado — balbuciou Jacquemin com uma expressão de profundo reconhecimento. Agarrando ele mesmo os dois guardas pelo braço, arrastou-os para o alto da escada com uma força sobre-humana. Quando aquele homem se foi, o drama foi junto com ele. Na adega, restavam expostas somente duas coisas medonhas: um corpo sem cabeça e uma cabeça sem corpo. Eu, de minha parte, inclinei-me até o sr. Ledru. — Senhor — eu lhe disse —, colocando-me à sua disposição para a assinatura do depoimento, estou autorizado a me retirar? — Sim, senhor, mas com uma condição. — Qual? — Que venha assiná-lo em minha residência. — Será um prazer. Mas quando? — Dentro de uma hora, aproximadamente. Eu lhe mostrarei minha casa. Ela pertenceu a Scarron; a história irá interessá-lo. — Dentro de uma hora, senhor, estarei lá. Cumprimentei-o e tomei a iniciativa de subir. Chegando aos degraus superiores, dei uma última espiada na adega. O dr. Robert, empunhando a vela, afastava os cabelos da cabeça. Era de uma mulher ainda bonita, pelo que dava para ver, já que os olhos estavam fechados e os lábios, contraídos e lívidos. — Esse imbecil do Jacquemin — resmungou ele —, sustentar que uma cabeça cortada pode falar! A menos que tenha inventado a coisa para o julgarmos louco. Não seria má jogada. Criaria uma circunstância atenuante…


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