A casa de Scarron
Uma hora depois, eu estava na casa do sr. Ledru.
Encontrei-o no pátio por acaso.
— Ah — disse ele ao me ver —, é o senhor? Tanto melhor, não me aborrece
conversarmos um pouco antes de apresentá-lo a nossos convidados, pois janta
conosco, não é mesmo?
— O senhor terá de me desculpar.
— Não aceito desculpas. O senhor apareceu numa quinta-feira, azar o seu.
Quinta-feira é o meu dia, tudo que entra em minha casa às quintas-feiras me
pertence por inteiro. Depois do jantar, estará livre para ficar ou ir embora. Não
fosse o recente episódio, teria me encontrado à mesa, considerando que almoço
invariavelmente às duas da tarde. Hoje, excepcionalmente, almoçaremos às três
e meia ou quatro. Pirro,19 que o senhor vê ali… — e o sr. Ledru me apontou um
mastim magnífico —, aproveitou-se do susto da sra. Antoine para abocanhar o
pernil, estava em seu direito, de maneira que fomos obrigados a mandar buscar
outro no açougueiro. Mas eu dizia que isso me daria tempo não apenas de
apresentá-lo aos meus convidados, como de lhe dar algumas informações sobre
eles.
— Informações?
— Sim, são personagens que, como os do Barbeiro de Sevilha e do Fígaro,20
exigem certa explicação prévia a respeito de seus costumes e caráter. Mas
comecemos pela casa.
— Creio tê-lo ouvido dizer que pertenceu a Scarron?
— Sim, aqui a futura esposa do rei Luís XIV, imaginando divertir o homem
“indivertível”, cuidava de seu pobre perneta, o primeiro marido. O senhor verá o
quarto.
— O da sra. de Maintenon?
— Não, o da sra. Scarron. Não confunda: o quarto da sra. de Maintenon fica
em Versalhes ou em Saint-Cyr.21 Venha.
Subindo uma grande escada, vimo-nos em uma galeria que dava para o pátio.
— Veja — disse-me o sr. Ledru —, eis algo que lhe diz respeito, sr. poeta.
Usava-se um código rebuscado em 1650.
— Ah, o mapa da Ternura?22
— Ida e volta, desenhado por Scarron e anotado pela mão da mulher. Nada
menos que isso.
Com efeito, dois mapas ocupavam o intervalo entre as janelas.
Haviam sido desenhados a pena sobre uma grande folha de papel colada
numa cartolina.
— Observe — continuou o sr. Ledru —, essa grande serpente azul é o rio da
Ternura; esses pequenos pombais são as aldeias dos Mimos, dos Bilhetinhos e do
Mistério. Eis o albergue do Desejo, o vale das Doçuras, a ponte dos Suspiros, a
floresta do Ciúme, povoada por monstros como Armida.23 Por fim, no meio do
lago onde nasce o rio, o palácio do Perfeito Contentamento: é o fim da viagem, o
objetivo do circuito.
— Diabos! Que vejo ali? Um vulcão?
— Exatamente, ele às vezes sacode o país. É o vulcão das Paixões.
Essa grande serpente azul é o rio da Ternura; esses pequenos pombais são as
aldeias dos Mimos, dos Bilhetinhos e do Mistério.”
— Ele não está no mapa da srta. de Scudéry?
— Não. É uma invenção da sra. Paul Scarron. Uma das duas!
— E a outra?
— A outra é o Regresso. Como pode perceber, o rio transborda, engrossado
pelas lágrimas dos que percorrem suas margens. Aqui estão as aldeias do Tédio,
o albergue dos Remorsos e a ilha do Arrependimento. Não existe nada mais
engenhoso.
— Me daria autorização para copiar?
— Ah, o quanto quiser. Agora quer conhecer o quarto da sra. Scarron?
— Com certeza, sim!
— Ei-lo.
O sr. Ledru abriu uma porta e deixou que eu entrasse primeiro.
— Atualmente eu durmo nele, mas, afora os livros, dos quais está abarrotado,
afirmo-lhe que se encontra como na época da ilustre proprietária. É a mesma
alcova, a mesma cama, a mesma mobília. Esses gabinetes de toalete eram dela.
— E o quarto de Scarron?
— Oh, o quarto de Scarron ficava do outro lado da galeria. Mas, quanto a ele,
sinto decepcioná-lo. Ninguém entra lá, é o quarto secreto, o gabinete do BarbaAzul.
— O quê?!
— Assim é a vida. Também tenho meus mistérios, por mais prefeito que eu
seja. Contudo, venha, vou lhe mostrar outra coisa.
O sr. Ledru adiantou-se. Descemos a escada e entramos no salão principal.
Como todo o resto da casa, o salão tinha um caráter próprio. Seu revestimento
consistia num papel cuja cor primitiva teria sido difícil determinar. Ao longo de
toda a parede, reinava uma dupla fileira de poltronas, como que bordada a um
renque de cadeiras, pois eram todas estofadas com o mesmo velho forro. Aqui e
ali, mesas de jogo e mesinhas de apoio. No centro de tudo isso, como o Leviatã
em meio aos peixes do oceano, estendia-se uma gigantesca escrivaninha, da
parede, onde uma de suas extremidades ficava encostada, até um terço do salão.
Estava coberta de livros, folhetos e jornais, entre os quais se destacava, como um
rei, Le Constitutionnel,24 leitura favorita do sr. Ledru.
O salão encontrava-se vazio, os convidados passeavam no jardim, o qual,
através das janelas, descortinávamos em toda a sua extensão.
O sr. Ledru foi direto à escrivaninha e abriu uma imensa gaveta contendo
certa profusão de saquinhos, semelhantes a saquinhos de sementes. Guardados na
gaveta, eles ainda haviam sido postos dentro de envelopes etiquetados.
— Veja — ele me disse —, outra novidade para o senhor, o homem histórico,
mais interessante até que o mapa da Ternura. Trata-se de uma coleção de
relíquias, não de santos, mas de reis.
Com efeito, cada envelope continha um osso, cabelos ou fios de barba. Havia
uma rótula de Carlos IX, um polegar de Francisco I, um fragmento do crânio de
Luís XIV, uma costela de Henrique II, uma vértebra de Luís XV, fios da barba de
Henrique IV e dos cabelos de Luís XIII. Cada rei fornecera sua amostra e todos
aqueles ossos poderiam compor quase um esqueleto completo, que teria
representado fielmente o da monarquia francesa, no qual há muito tempo faltam
os ossos principais.
Como se não bastasse, havia um dente de Abelardo e outro de Heloísa,25 dois
incisivos muito brancos, que, na época em que eram recobertos por lábios
frementes, talvez tivessem se encontrado num beijo.
De onde vinha tal ossuário?
O sr. Ledru presidira a exumação dos reis em Saint-Denis e pinçara, dentro
de cada túmulo, o que bem entendeu.
O sr. Ledru concedeu-me uns instantes para que eu saciasse a curiosidade.
Em seguida, vendo que eu examinara praticamente todas as suas etiquetas, me
interrompeu:
— Vamos, chega de cuidar dos mortos, dediquemo-nos um pouco aos vivos.
E conduziu-me a uma das janelas pelas quais, como eu disse, a vista
mergulhava no jardim.
— Possui um jardim encantador — cumprimentei-o.
— Jardim de padre, com seu quadrilátero de tílias, sua coleção de dálias e
roseiras, seus dosséis de vinha e seus pomares de pêssegos e abricós. Verá tudo
isso, mas, por ora, ocupemo-nos não do jardim, mas dos que nele passeiam.
— Ah, conte-me antes quem é esse sr. Alliette, vulgo Etteilla por anagrama,
que perguntou se queríamos saber sua idade verdadeira ou apenas a que lhe
costumam dar. Creio que ele aparenta perfeitamente os setenta e cinco anos que
o senhor lhe conferiu.
— Justamente — respondeu-me o sr. Ledru. — Eu pretendia começar por
ele. O senhor leu Hoffmann?26
— Sim, por quê?
— Porque ele é um homem de Hoffmann. A vida inteira, tentou adivinhar o
futuro por intermédio das cartas e dos números. Tudo o que possui, ele joga na
loteria, na qual começou por ganhar o terno e na qual nada mais ganhou desde
então. Conheceu Cagliostro e o conde de Saint-Germain. Declara ser da mesma
estirpe que os dois e, como eles, deter o segredo do elixir da longa vida. Sua idade
real, se lhe perguntar, é duzentos e setenta e cinco anos. A princípio viveu cem
anos sem enfermidades, do reinado de Henrique II ao de Luís XV.27 Depois,
graças a seu segredo, embora morrendo aos olhos do vulgo, concluiu três outras
voltas de cinquenta anos cada. Neste momento, está começando a quarta; tem,
portanto, apenas vinte e cinco anos. Os primeiros duzentos e cinquenta anos só
contam agora como memória. Viverá assim, e o proclama alto e bom som, até o
Juízo Final. No século XV, teriam queimado Alliette e estariam errados; hoje,
limitam-se a ter pena dele, e estão igualmente errados. Alliette é o homem mais
feliz da Terra. Seu único assunto são os tarôs, baralhos, sortilégios, ciências
egípcias de Thot, mistérios isíacos.28 Sobre todos esses temas, publica livretos
que ninguém lê e que, não obstante, um livreiro, louco igual a ele, edita sob o
pseudônimo, ou melhor, o anagrama Etteilla. Seu chapéu vive repleto de
brochuras. Repare bem nele: abraçado ao próprio chapéu, por medo de que
roubem seus valiosos livretos. Observe o homem, a fisionomia, os trajes, e veja
como a natureza é sempre harmoniosa, e como, precisamente, o chapéu se
amolda à cabeça, o homem ao hábito e o gibão ao molde, como vocês,
românticos, dizem.
Com efeito, nada mais verdadeiro. Examinei Alliette. Vestia uma roupa
encardida, empoeirada, rota, manchada. Seu chapéu, com abas reluzentes como
couro envernizado, era exageradamente largo em cima. Usava uma calça de lã
preta, meias pretas, ou melhor, ruças, e sapatos arredondados como os daqueles
monarcas em cujos reinados afirmava ter “recebido o nascimento”.
Fisicamente, era um homenzinho roliço, atarracado, com cara de esfinge,
roufenho, boca ampla e desdentada, marcada por um ríctus profundo, com
cabelos ralos, compridos e amarelos, esvoaçando como uma auréola ao redor de
sua cabeça.
— Está conversando com o padre Moulle — eu disse ao sr. Ledru —, aquele
que estava a seu lado em nossa aventura de horas atrás, aventura da qual
voltaremos a falar, não é mesmo?
— E por que voltaríamos a falar dela? — perguntou o sr. Ledru, observandome
com curiosidade.
— Porque o senhor, se me permite dizê-lo, pareceu acreditar na possibilidade
de a cabeça ter falado.
— O senhor é um bom fisionomista. Vá lá, é verdade, eu acredito. Sim,
voltaremos a falar deste assunto e, se tem curiosidade por histórias do gênero,
aqui encontrará interlocutores. Mas passemos ao padre Moulle.
— Deve ser — interrompi — um conversador envolvente. Impressionou-me
a doçura de sua voz quando respondeu ao interrogatório do comissário.
— Parabéns! Mais uma vez o senhor adivinhou certo. Moulle é meu amigo há
quarenta anos e tem sessenta. Observe, é tão decente e orgulhoso de sua
elegância quanto Alliette é roto, sujo e desleixado. É um homem público típico,
com bastante influência na sociedade do faubourg Saint-Germain. É ele quem
casa os filhos e filhas dos pares de França. Esses casamentos lhe servem de
ocasião para pronunciar pequenos discursos que as partes contratantes mandam
imprimir e guardam ciosamente na família. Quase foi bispo de Clermont. Sabe
por que não foi? Porque antigamente era amigo de Cazotte,29 e porque, como
Cazotte, acredita na existência dos espíritos superiores e inferiores, dos gênios
benfazejos e malfazejos. Como Alliette, coleciona livros. Encontrará em sua
casa toda a literatura sobre visões e aparições, espectros, larvas,30
assombrações, embora raramente aborde tais assuntos, exceto entre amigos, pois
estão longe de ser ortodoxos. Em suma, é um homem convicto, mas discreto, que
atribui tudo o que acontece de extraordinário neste mundo à potência do inferno
ou à intervenção das inteligências celestes. Observe, está ouvindo em silêncio o
que Alliette lhe diz; parece olhar para algum objeto que seu interlocutor não vê e
ao qual responde de tempos em tempos com um movimento dos lábios ou um
sinal da cabeça. Às vezes, quando está aqui conosco, cai subitamente num
devaneio sombrio, sente calafrios, treme, olha para os lados e vai e vem pelo
salão. O melhor, nessas horas, é não interferir. Talvez fosse perigoso despertá-lo.
Digo despertá-lo, pois julgo-o em estado de sonambulismo. A propósito, ele
desperta por si só nesses casos e, como verá, o faz graciosamente.
— Oh! Veja só — interrompi o sr. Ledru —, acho que ele acaba de evocar
um desses espíritos a que o senhor se refere…
E apontei com o dedo um verdadeiro espectro ambulante, que se juntava aos
dois palestrantes e pousava com precaução o pé entre as flores, sobre as quais
parecia poder caminhar sem causar danos.
— Aquele — disse-me o prefeito — é outro amigo meu, o cavaleiro
Lenoir…31
— O criador do museu dos Capuchinhos?
— Ele mesmo. Ele sofre amargamente com o fim de seu museu, em cuja
defesa, em 1793 e 1794, quase foi morto dez vezes. A Restauração, com sua
inteligência medíocre, mandou fechá-lo, ordenando a devolução das obras de
arte às suas residências de origem e às famílias com direito a reivindicá-las.
Infelizmente, a maioria dessas obras foi destruída, a maioria das famílias
extinguiu-se, de maneira que as peças mais interessantes de nossa escultura
antiga, e por conseguinte de nossa história, se dispersaram e perderam. É assim
que tudo da nossa velha França vai embora. Restaram apenas esses fragmentos e
deles em breve nada restará. Quem os destrói? Justamente os que seriam os
maiores interessados em sua conservação.
E o sr. Ledru, por mais liberal que fosse, como se dizia na época, deu um
suspiro.
— Estes são todos os seus convidados? — perguntei.
— Talvez tenhamos o dr. Robert. Sobre este, nada lhe falo, presumo que tenha
feito seu julgamento. É um homem que fez experimentos com a máquina
humana a vida inteira, como teria feito com um boneco, sem desconfiar que essa
máquina possuía uma alma para compreender as dores e nervos para senti-las. É
um bon-vivant, responsável por um grande número de mortes. Para o bem dele
próprio, não acredita em assombrações. É um espírito medíocre, que se julga
elevado porque é barulhento, filósofo porque é ateu. É um desses homens que
recebemos não para recebê-los, mas porque eles vêm à nossa casa. Procurá-los
onde estão nunca nos passa pela cabeça.
— Oh, senhor, como conheço essa espécie!
— Deveríamos ter ainda outro amigo meu, que, embora mais jovem que
Alliette, o padre Moulle e o cavaleiro Lenoir, discute ao mesmo tempo com
Alliette sobre cartomancia, com Moulle sobre demonologia e com o cavaleiro
Lenoir sobre antiguidades; uma biblioteca viva, um catálogo encadernado em
pele de cristão. O senhor deve conhecê-lo.
— O bibliófilo Jacob?32
— Ele mesmo.
— E ele não virá?
— Pelo menos não veio e, como sabe que almoçamos impreterivelmente às
duas horas, e sendo já quase quatro, não há mais chance de vir. Estará à procura
de algum alfarrábio impresso em Amsterdã, em 1570, edição princeps,33 com
três erros de tipografia, um na primeira folha, um na sétima e um na última.
Nesse momento, a porta do salão se abriu e a sra. Antoine apareceu.
— O almoço está servido — convidou.
— Vamos, senhores — chamou o sr. Ledru, abrindo por sua vez a porta do
jardim. — À mesa, à mesa!
E voltando-se para mim:
— A propósito, em algum lugar do jardim, além dos convidados que o senhor
vê e cuja história lhe contei, encontra-se um convidado que o senhor não viu e a
quem omiti. Este é desligado demais das coisas deste mundo para ouvir o convite
grosseiro que acabo de fazer e ao qual, como vê, curvam-se os nossos amigos.
Procure-o, é do seu interesse. Quando descobrir sua imaterialidade, sua
transparência, eine Erscheinung,34 como dizem os alemães, apresente-se e tente
persuadi-lo de que é razoável comer de vez em quando, nem que seja para
continuar vivo. Ofereça-lhe o braço e traga-o consigo. Vá.
Obedeci ao sr. Ledru, pressentindo que o indivíduo encantador que eu acabara
de apreciar me preparava, para dali a instantes, alguma surpresa agradável.
Penetrei no jardim olhando em volta.
Não precisei procurar muito, logo avistei o que procurava.
Era uma mulher, sentada à sombra de uma fronde de tílias, e da qual eu não
via nem o rosto nem o desenho do corpo: o rosto porque estava virado para o lado
do campo; o desenho do corpo porque um grande xale a envolvia.
Ela usava preto dos pés à cabeça.
Aproximei-me sem que ela esboçasse qualquer movimento. O rumor de
meus passos não parecia chegar aos seus ouvidos. Poderia ser confundida com
uma estátua.
No mais, tudo que vislumbrei de sua pessoa era gracioso e distinto.
De longe, percebi que era loura. O raio de sol que atravessava a folhagem
das tílias brincava em seus cabelos, transformando-os numa auréola dourada.
Chegando mais perto, reparei na delicadeza de seus cabelos, capazes de rivalizar
com os fios de seda que as primeiras brisas do outono arrancam do manto da
Virgem. Seu pescoço — um pouco longo talvez, exagero encantador que não raro
constitui um charme, quando não uma beleza —, curvava-se para ajudar a
cabeça a apoiar-se em sua mão direita, enquanto o cotovelo estava apoiado no
encosto da cadeira e o braço esquerdo pendia ao seu lado, segurando uma rosa
branca na ponta de dedos esguios. Pescoço sinuoso como o de um cisne, mãos
lânguidas, braços pendentes, tudo exibia a mesma alvura fosca. Feito um
mármore de Paros,35 sem veias na superfície, sem pulsação no interior. A rosa,
que começava a murchar, era mais colorida e viva que a mão que a segurava.
Observei-a por um instante e, quanto mais a observava, mais me parecia não
se tratar de um ser vivo o que eu tinha diante dos olhos.
Cheguei a desconfiar que, mesmo interpelada, ela não se mexeria. Por duas
ou três vezes minha boca se abriu e tornou a fechar sem uma palavra.
No mais, tudo que vislumbrei de sua pessoa era gracioso e distinto.
Por fim, decidi-me:
— Senhora — chamei.
Ela estremeceu, voltou-se e me fitou surpresa, como alguém que sai de um
sonho e reagrupa seus pensamentos.
Os grandes olhos negros fixados em mim — a despeito dos cabelos louros que
descrevi, as sobrancelhas e olhos eram negros — tinham uma expressão
estranha.
Permanecemos alguns segundos sem nos falar, ela me fitando, eu
examinando-a.
Era uma mulher de trinta e dois, trinta e três anos, que devia ter sido de uma
beleza deslumbrante antes que suas faces se cavassem e sua tez empalidecesse.
Ainda assim, achei-a perfeitamente bela, com seu rosto de madrepérola e no
mesmo tom de sua mão, sem nenhuma nuance de encarnado, fazendo com que
os olhos parecessem de azeviche e os lábios, de coral.
— Madame — repeti —, o sr. Ledru afirma que se eu lhe anunciar que sou o
autor de Henrique III, de Christine e de Antony,36 a senhora terá a gentileza de
me considerar apresentado e permitirá que eu a conduza até a sala de jantar.
— Perdão, cavalheiro — disse ela —, já se encontrava aqui faz um instante,
não é? Percebi sua chegada, porém não consegui me virar. Isso às vezes me
acontece quando me concentro em determinadas coisas. Sua voz quebrou o
encanto. Dê-me o braço então, e vamos.
Levantou-se e enfiou o braço sob o meu. Contudo, embora não parecesse em
absoluto acanhada, mal senti a pressão daquele braço. Caminhava ao meu lado
feito uma sombra.
Chegamos à sala de jantar sem trocar uma palavra a mais.
Dois lugares estavam reservados na mesa: um, à direita do sr. Ledru, para
minha acompanhante; o outro, defronte dela, para mim.
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