A bofetada em Charlotte Corday
37
A mesa do sr. Ledru tinha personalidade própria, como tudo em sua casa.
Consistia em uma grande ferradura encostada nas janelas do jardim,
deixando três quartos da imensa sala livres para o serviço. A mesa tinha
capacidade para vinte pessoas, sem ninguém ficar desconfortável. Comia-se
sempre ali, tivesse o sr. Ledru um, dois, quatro, dez ou vinte convidados, ou
estivesse ele mesmo comendo sozinho. Éramos então apenas seis, e mal
ocupávamos um terço dela.
O cardápio era igual todas as quintas-feiras. O sr. Ledru achava que no resto
da semana os convidados podiam variá-lo em suas casas ou nas casas de outros
anfitriões. Portanto, tinha-se certeza de, nas quintas-feiras, encontrar na casa do
sr. Ledru sopa, carne, frango ao estragão, pernil assado, feijão e salada.
O número de frangos era duplicado ou triplicado segundo o apetite dos
comensais.
Houvesse pouca, nenhuma ou muita gente, o sr. Ledru ocupava sempre uma
das pontas da mesa, de costas para o jardim, com o rosto voltado para o pátio.
Sentava-se numa grande poltrona havia dez anos incrustada no mesmo lugar.
Nela recebia, das mãos de seu jardineiro Antoine, convertido em mordomo sob o
título de mestre Jacques, além do vinho de mesa, algumas garrafas de um velho
Borgonha, que lhe eram passadas com respeito religioso e as quais ele abria e
servia pessoalmente aos convidados, com o mesmo respeito e a mesma
religiosidade.
Dezoito anos atrás ainda se acreditava em alguma coisa; dentro de dez anos,
não se acreditará mais em nada, sequer no vinho envelhecido.
Depois do jantar, todos passavam ao salão para o café.
O nosso jantar transcorreu como transcorre um jantar, em meio a elogios
para o cozinheiro e bravatas sobre o vinho. A jovem mulher foi a única a comer
apenas algumas migalhas de pão, a beber apenas um copo d’água, a não
pronunciar uma única palavra.
Ela me lembrava aquela vampira das Mil e uma noites38 que ia à mesa como
os demais, mas usava apenas um palito para comer arroz.
Depois do jantar, como de costume, tornamos ao salão.
Coube a mim, naturalmente, estender o braço à nossa silenciosa convidada,
que, para enlaçá-lo, fez em minha direção a outra metade do trajeto. Tinha a
mesma languidez nos movimentos, a mesma graça no andar, eu diria quase a
mesma imaterialidade nos membros.
Conduzi-a até um divã, no qual ela se estendeu.
Enquanto jantávamos, duas pessoas haviam sido introduzidas no salão.
Eram o médico e o comissário de polícia.
O comissário vinha nos fazer assinar o depoimento, já assinado por
Jacquemin na prisão.
No papel, uma tênue mancha de sangue chamava a atenção.
Assinei quando chegou minha vez e, enquanto o fazia, perguntei:
— Que mancha é essa? E o sangue, vem da mulher ou do marido?
— Vem — respondeu o comissário — do ferimento na mão do assassino,
cujo sangramento ainda não pudemos estancar.
— Acredita, sr. Ledru — explicou o médico —, que aquele bronco continua
afirmando ter a cabeça da mulher lhe dirigido a palavra?
— E acha tal coisa impossível, não é, doutor?
— Por Deus, sim!
— Acha impossível até que os olhos tenham se aberto?
— Impossível.
— Não acredita que o fluxo sanguíneo, contido pela base de gesso que vedou
imediatamente todas as artérias e vasos, possa ter restituído um momento de vida
e sensibilidade à cabeça?
— Não acredito.
— Muito bem! — desafiou o sr. Ledru. — Pois eu acredito.
— Eu também — disse Alliette.
— Eu também — disse o padre Moulle.
— Eu também — disse o cavaleiro Lenoir.
— Eu também — disse eu.
O comissário de polícia e a dama pálida não se pronunciaram. Um, sem
dúvida, porque o assunto não lhe interessava muito; a outra, talvez, porque lhe
interessava demais.
— Ah, se todos estão contra mim, estão todos com a razão. Entretanto, se um
dos senhores fosse médico…
— Mas, doutor — rebateu o sr. Ledru —, o senhor sabe que sou quase isso.
— Neste caso — insistiu o médico —, deve saber que não existe mais dor
onde não existe mais a capacidade de sentir, e esta acaba completamente após o
seccionamento da coluna vertebral.
— E quem lhe disse isso? — perguntou o sr. Ledru.
— A razão, ora essa!
— Oh, o velho lugar-comum! Mas não era também a razão dizendo aos
algozes de Galileu que o sol girava, enquanto a terra permanecia imóvel? A razão
é uma tola, meu caro doutor. Chegou a fazer pessoalmente experimentos com
cabeças cortadas?
— Não, nunca.
— Leu as dissertações de Sömmering? Leu os depoimentos do dr. Sue?39 Leu
as declarações de Œlcher?
— Não.
— Devo então supor que, acompanhando o sr. Guillotin,40 considera sua
máquina o meio mais seguro, mais rápido e menos doloroso de extinguir a vida.
— Exatamente.
— Pois bem! Está enganado, caro amigo, e tenho dito.
— Que despautério!
— Escute, doutor, uma vez que recorreu à ciência, vou lhe falar
cientificamente, e, creia-me, nenhum de nós é alheio o bastante a esse estilo de
conversa que não possa participar.
O médico fez um gesto de dúvida.
— Não importa, pelo menos o senhor entenderá.
Havíamos nos aproximado do sr. Ledru, e eu escutava avidamente. A melhor
maneira de aplicar a pena de morte, seja pela corda, pelo ferro ou pelo veneno,
sempre me pareceu especialmente preocupante, por se tratar de uma questão de
humanidade.
Eu mesmo realizara pesquisas sobre as diferentes dores que precedem,
acompanham e sucedem os diferentes tipos de morte.
— Vamos, fale — provocou o médico, num tom incrédulo.
— É fácil demonstrar, a qualquer um que possua a mais ligeira noção da
construção e das forças vitais de nosso corpo — começou o sr. Ledru —, que a
capacidade de sentir não é inteiramente destruída pelo suplício, e o que afirmo,
doutor, baseia-se não em hipóteses, mas em fatos.
— Vejamos esses fatos.
— Ei-los: concorda que a capacidade de sentir está localizada no cérebro?
— É provável.
— Que as operações dessa consciência da sensação podem se dar mesmo
que a circulação do sangue pelo cérebro seja suspensa, enfraquecida ou
particularmente destruída?
— É possível.
— Logo, se a sede da faculdade de sentir está no cérebro, enquanto o cérebro
conservar sua força vital o supliciado terá a sensação de sua existência.
— Provas?
— Ei-las. Haller,41 em seus Elementos de física, tomo IV, página 35, diz:
“Uma cabeça reabriu os olhos e me olhou de esguelha quando, com a ponta do
dedo, toquei em sua medula espinhal.”
— Haller, muito bem, mas Haller pode ter se enganado.
— Enganou-se, com certeza. Passemos a outro. Weycard, Artes filosóficas,
página 221, diz: “Vi moverem-se os lábios de um homem cuja cabeça fora
decepada.”
— Vá lá, mas entre se moverem e chegarem a falar…
— Espere, já estou terminando. Sömmering: tenho suas obras aqui, pode
verificar. Sömmering afirma: “Vários médicos, confrades meus, asseveraram
ter visto uma cabeça separada do corpo ranger os dentes de dor, e estou
convencido de que, se o ar continuasse-lhes a circular pelos órgãos da voz, as
cabeças falariam.” Pois bem, doutor — continuou o sr. Ledru, empalidecendo —,
estou mais avançado que Sömmering. Uma cabeça falou comigo.
Todos estremecemos. A dama pálida soergueu-se no divã.
— Com o senhor?
— Sim, comigo. Ou dirá que sou louco também?
— Quem sou eu! — exclamou o médico. — Se me diz que assim foi…
Estou mais avançado que Sömmering. Uma cabeça falou comigo.”
— Sim, digo-lhe que também comigo a coisa aconteceu. O doutor é bemeducado
demais, não é mesmo?, para declarar em voz alta que sou louco, mas
dirá baixinho, o que dá absolutamente no mesmo.
— Pois bem, vejamos, conte-nos sua história — pediu o médico.
— Não pense que é fácil. Sabe que jamais contei o que me pede para contar,
desde que aconteceu, trinta e sete anos atrás? Sabe que corro o risco de desmaiar
ao contá-lo, como desmaiei quando aquela cabeça falou comigo, quando aqueles
olhos agonizantes fitaram os meus?
O diálogo tornava-se cada vez mais interessante; a situação, cada vez mais
dramática.
— Calma, Ledru, coragem — incentivou-o Alliette —, conte-nos como foi.
— Conte-nos como foi, meu amigo — pediu o padre Moulle.
— Conte — disse o cavaleiro Lenoir.
— Cavalheiro… — murmurou a mulher pálida.
Eu não disse nada, mas a curiosidade brilhava em meus olhos.
— É estranho — balbuciou o sr. Ledru, sem nos responder e aparentemente
falando consigo mesmo — como os acontecimentos se influenciam
reciprocamente! Sabem quem eu sou? — perguntou o sr. Ledru, voltando-se para
mim.
— Até onde sei, cavalheiro — respondi —, é um homem muito culto, muito
inteligente, que oferece excelentes almoços e é prefeito de Fontenay-aux-Roses.
O sr. Ledru sorriu, agradecendo-me com a cabeça.
— Quero dizer a minha origem, a de minha família — esclareceu.
— Ignoro sua origem, senhor, e não conheço sua família.
— Pois bem, ouçam, vou lhes contar tudo e talvez a história que desejam
conhecer, e que não ouso contar, venha junto. Se vier, pois bem, agarrem-na; se
não vier, não me peçam novamente. É que não terei tido forças para contá-la.
Sentaram-se todos, cada um instalando-se o mais confortavelmente possível
para escutar.
No mais, o salão era um verdadeiro ambiente típico de lendas e narrativas,
amplo e sombrio, graças às cortinas grossas e ao dia que ia morrendo. Embora
seus recantos já se encontrassem na penumbra mais completa, as linhas que
correspondiam às portas e janelas conservavam um resto de luz.
Num desses recantos estava a dama pálida. Seu vestido preto diluíra-se
completamente na noite, deixando visível apenas sua cabeça, branca, imóvel e
caída sobre a almofada do sofá.
O sr. Ledru começou.
— Sou — disse ele — filho do famoso Comus,42 médico do rei e da rainha.
Meu pai, cuja alcunha burlesca fez com que fosse classificado entre os
prestidigitadores e charlatães, era um ilustre cientista da escola de Volta, Galvani
e Mesmer.43 Foi o primeiro na França a estudar fantasmagoria e eletricidade,
promovendo sessões de matemática e física na corte.
A pobre Maria Antonieta, que vi vinte vezes e que mais de uma vez me pegou
pelas mãos e as beijou, por ocasião de sua chegada à França, isto é, quando eu
era um menino, era louca por ele. Em sua passagem por aqui em 1777, José II44
declarou nunca ter visto nada mais curioso que Comus.
Em meio a tudo isso, meu pai cuidava da educação de meu irmão e da
minha, iniciando-nos no que sabia de ciências ocultas e numa massa de
conhecimentos, galvânicos, físicos, magnéticos, que hoje são de domínio público,
mas que na época eram secretos e privilégio de uns poucos. O título de médico
do rei fez com que meu pai fosse preso em 1793, mas, graças a algumas
amizades que eu tinha com a Montanha,45 consegui que o soltassem.
Meu pai então se retirou para esta mesma casa onde moro e nela morreu em
1807, aos setenta e seis anos de idade.
Voltemos a mim.
Falei de minhas amizades com a Montanha, e, de fato, eu era ligado a Danton
e Camille Desmoulins.46 Conheci Marat,47 mais como médico do que como
amigo. Mas conheci. Resultou dessa relação com ele, mesmo tendo sido curta,
que, no dia em que a srta. Corday foi levada ao cadafalso, resolvi assistir ao seu
suplício.
— Eu ia justamente — intrometi-me — ajudá-lo em seu debate com o dr.
Robert sobre o prolongamento da vida e relatar o fato que a história registrou
envolvendo a srta. Charlotte Corday.
— Chegaremos lá — interrompeu o sr. Ledru —, deixe-me falar. Fui
testemunha, podem portanto acreditar no que irei dizer.
A partir das duas da tarde, posicionei-me junto à estátua da Liberdade. Era
uma manhã quente de julho, o tempo estava pesado, o céu, coberto, prometendo
temporal.
Às quatro horas, o temporal caiu. Dizem que foi justamente nesse momento
que Charlotte subiu na carroça.
Quando foram apanhá-la na prisão, um jovem pintor fazia seu retrato. A
morte, possessiva, parecia querer que nada sobrevivesse da moça, sequer sua
imagem.
A cabeça foi esboçada na tela e, coisa estranha!, no momento em que o
carrasco entrou, o pintor trabalhava a região do pescoço, que o ferro da
guilhotina iria ceifar.
Os relâmpagos brilhavam, a chuva caía, a trovoada roncava, mas nada fora
capaz de dispersar a população curiosa. Cais, pontes e praças estavam apinhados.
Os rumores da terra quase encobriam os do céu. Perseguiam-me com maldições
as mulheres conhecidas pelo apelido irônico de “viúvas da guilhotina”. Aqueles
rugidos chegavam a mim como os de uma catarata. Muito antes que se pudesse
perceber qualquer coisa, a massa se agitou. Finalmente, como um navio fatal, a
carroça apareceu sulcando as ondas e pude distinguir a condenada, que eu não
conhecia, a quem nunca vira.
Era uma moça bonita, de vinte e sete anos, olhos magníficos, um nariz
desenhado à perfeição e lábios de suprema regularidade. Mantinha-se de pé, a
cabeça erguida, não tanto para dominar a multidão, mas porque suas mãos
amarradas nas costas compeliam-na àquela postura. A chuva cessara, mas,
depois de haver enfrentado o temporal na maior parte do trajeto, a água que
escorrera sobre ela desenhava os contornos de seu corpo encantador sobre a lã
úmida. Parecia saída do banho. A túnica vermelha que o carrasco lhe vestira
dava um aspecto estranho, um esplendor sinistro àquela cabeça tão orgulhosa e
enérgica. No momento em que chegava à praça, a chuva parou de todo e um
raio de sol, esgueirando-se entre duas nuvens, veio roçar seus cabelos,
irradiando-os como uma auréola. Na verdade, juro, embora houvesse um
assassinato por trás daquela moça, ação terrível mesmo quando vinga a
humanidade, embora eu abominasse aquele assassinato, ainda assim não saberia
dizer se o que via era uma apoteose ou um suplício. Ao perceber o cadafalso, ela
empalideceu, o que ficou ainda mais evidente graças à túnica vermelha que
subia até seu pescoço. Quase instantaneamente, porém, ela fez um esforço e
terminou de se voltar para o cadafalso, que encarou sorrindo.
A carroça parou. Recusando ajuda, Charlotte apeou e subiu os degraus do
cadafalso, escorregadios devido à chuva que acabava de cair, tão rapidamente
quanto lhe permitiam o arrastar da cauda de sua túnica e o estorvo de ter as mãos
amarradas. Sentindo a mão do executor pousar em seu ombro para arrancar o
lenço que cobria seu pescoço, ela voltou a empalidecer, mas, imediatamente, um
último sorriso veio desmentir a palidez. Voluntariamente, sem que precisassem
amarrá-la à infame báscula, num impulso sublime e quase alegre, ela introduziu
a cabeça na hedionda abertura. O cutelo deslizou, a cabeça separada do tronco
caiu sobre a plataforma e rolou. Foi então, ouça bem, doutor, ouça bem, poeta,
foi então que um dos auxiliares do carrasco, chamado Legros, agarrou aquela
cabeça pelos cabelos e, por vil adulação à massa, desferiu-lhe uma bofetada.
Pois bem! Afirmo que a cabeça ficou vermelha com essa bofetada. Eu vi! A
cabeça, não a face, estão prestando atenção? Não a face golpeada, mas as duas
faces, e tudo numa vermelhidão uniforme, pois a sensibilidade vivia naquela
cabeça, que se indignava por ter passado por uma vergonha que não estava
prevista na lei.
“E porventura acredita que eles morreram porque foram guilhotinados?”
O povo percebeu também aquela vermelhidão e tomou o partido da morta
contra o vivo, da supliciada contra o carrasco. Sumariamente, exigiu vingança
por aquela indignidade e, sumariamente, o miserável foi entregue aos policiais e
levado à prisão.
Esperem — disse o sr. Ledru, percebendo que o médico queria falar —,
esperem, não terminou. Eu quis saber que rompante levara aquele homem a
cometer semelhante infâmia. Descobri o lugar onde estava, pedi autorização
para visitá-lo na Abadia,48 pois lá o haviam encarcerado, e, obtendo-a, fui até
ele.
Um decreto do tribunal revolucionário acabava de condená-lo a três meses
de prisão. Ele não compreendia que o houvessem condenado por uma coisa tão
natural, como a que fizera.
Perguntei-lhe o que o movera.
— Ora, ora — disse ele —, a pergunta de sempre! Porque sou maratista.
Depois de puni-la em nome da lei, quis puni-la em meu nome.
— Mas — retruquei — o senhor então não compreende que é quase um
crime violar o respeito devido à morte?
— E porventura — replicou Legros, fitando-me nos olhos — acredita que eles
morreram porque foram guilhotinados?
— Sem dúvida.
— Pois bem! Vê-se que o senhor não olha no cesto quando estão ali todos
juntos, nem os vê revirando os olhos e rangendo os dentes ainda por cinco
minutos após a execução. Somos obrigados a mudar de cesto a cada três meses,
de tal forma eles rasgam o fundo com os dentes. É um monte de cabeças de
aristocratas, note bem, que não querem se decidir a morrer, e não me admiraria
que um dia alguma delas se pusesse a gritar: “Viva o rei!”
Eu já sabia tudo que pretendia saber. Saí, obcecado por uma ideia: aquelas
cabeças ainda viviam. E resolvi tirar isso a limpo.
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