domingo, 3 de dezembro de 2017

T2N° 758 : A bofetada em Charlotte Corday 37

A bofetada em Charlotte Corday 37

A mesa do sr. Ledru tinha personalidade própria, como tudo em sua casa. Consistia em uma grande ferradura encostada nas janelas do jardim, deixando três quartos da imensa sala livres para o serviço. A mesa tinha capacidade para vinte pessoas, sem ninguém ficar desconfortável. Comia-se sempre ali, tivesse o sr. Ledru um, dois, quatro, dez ou vinte convidados, ou estivesse ele mesmo comendo sozinho. Éramos então apenas seis, e mal ocupávamos um terço dela. O cardápio era igual todas as quintas-feiras. O sr. Ledru achava que no resto da semana os convidados podiam variá-lo em suas casas ou nas casas de outros anfitriões. Portanto, tinha-se certeza de, nas quintas-feiras, encontrar na casa do sr. Ledru sopa, carne, frango ao estragão, pernil assado, feijão e salada. O número de frangos era duplicado ou triplicado segundo o apetite dos comensais. Houvesse pouca, nenhuma ou muita gente, o sr. Ledru ocupava sempre uma das pontas da mesa, de costas para o jardim, com o rosto voltado para o pátio. Sentava-se numa grande poltrona havia dez anos incrustada no mesmo lugar. Nela recebia, das mãos de seu jardineiro Antoine, convertido em mordomo sob o título de mestre Jacques, além do vinho de mesa, algumas garrafas de um velho Borgonha, que lhe eram passadas com respeito religioso e as quais ele abria e servia pessoalmente aos convidados, com o mesmo respeito e a mesma religiosidade. Dezoito anos atrás ainda se acreditava em alguma coisa; dentro de dez anos, não se acreditará mais em nada, sequer no vinho envelhecido. Depois do jantar, todos passavam ao salão para o café. O nosso jantar transcorreu como transcorre um jantar, em meio a elogios para o cozinheiro e bravatas sobre o vinho. A jovem mulher foi a única a comer apenas algumas migalhas de pão, a beber apenas um copo d’água, a não pronunciar uma única palavra. Ela me lembrava aquela vampira das Mil e uma noites38 que ia à mesa como os demais, mas usava apenas um palito para comer arroz. Depois do jantar, como de costume, tornamos ao salão. Coube a mim, naturalmente, estender o braço à nossa silenciosa convidada, que, para enlaçá-lo, fez em minha direção a outra metade do trajeto. Tinha a mesma languidez nos movimentos, a mesma graça no andar, eu diria quase a mesma imaterialidade nos membros. Conduzi-a até um divã, no qual ela se estendeu. Enquanto jantávamos, duas pessoas haviam sido introduzidas no salão. Eram o médico e o comissário de polícia. O comissário vinha nos fazer assinar o depoimento, já assinado por Jacquemin na prisão. No papel, uma tênue mancha de sangue chamava a atenção. Assinei quando chegou minha vez e, enquanto o fazia, perguntei: — Que mancha é essa? E o sangue, vem da mulher ou do marido? — Vem — respondeu o comissário — do ferimento na mão do assassino, cujo sangramento ainda não pudemos estancar. — Acredita, sr. Ledru — explicou o médico —, que aquele bronco continua afirmando ter a cabeça da mulher lhe dirigido a palavra? — E acha tal coisa impossível, não é, doutor? — Por Deus, sim! — Acha impossível até que os olhos tenham se aberto? — Impossível. — Não acredita que o fluxo sanguíneo, contido pela base de gesso que vedou imediatamente todas as artérias e vasos, possa ter restituído um momento de vida e sensibilidade à cabeça? — Não acredito. — Muito bem! — desafiou o sr. Ledru. — Pois eu acredito. — Eu também — disse Alliette. — Eu também — disse o padre Moulle. — Eu também — disse o cavaleiro Lenoir. — Eu também — disse eu. O comissário de polícia e a dama pálida não se pronunciaram. Um, sem dúvida, porque o assunto não lhe interessava muito; a outra, talvez, porque lhe interessava demais. — Ah, se todos estão contra mim, estão todos com a razão. Entretanto, se um dos senhores fosse médico… — Mas, doutor — rebateu o sr. Ledru —, o senhor sabe que sou quase isso. — Neste caso — insistiu o médico —, deve saber que não existe mais dor onde não existe mais a capacidade de sentir, e esta acaba completamente após o seccionamento da coluna vertebral. — E quem lhe disse isso? — perguntou o sr. Ledru. — A razão, ora essa! — Oh, o velho lugar-comum! Mas não era também a razão dizendo aos algozes de Galileu que o sol girava, enquanto a terra permanecia imóvel? A razão é uma tola, meu caro doutor. Chegou a fazer pessoalmente experimentos com cabeças cortadas? — Não, nunca. — Leu as dissertações de Sömmering? Leu os depoimentos do dr. Sue?39 Leu as declarações de Œlcher? — Não. — Devo então supor que, acompanhando o sr. Guillotin,40 considera sua máquina o meio mais seguro, mais rápido e menos doloroso de extinguir a vida. — Exatamente. — Pois bem! Está enganado, caro amigo, e tenho dito. — Que despautério! — Escute, doutor, uma vez que recorreu à ciência, vou lhe falar cientificamente, e, creia-me, nenhum de nós é alheio o bastante a esse estilo de conversa que não possa participar. O médico fez um gesto de dúvida. — Não importa, pelo menos o senhor entenderá. Havíamos nos aproximado do sr. Ledru, e eu escutava avidamente. A melhor maneira de aplicar a pena de morte, seja pela corda, pelo ferro ou pelo veneno, sempre me pareceu especialmente preocupante, por se tratar de uma questão de humanidade. Eu mesmo realizara pesquisas sobre as diferentes dores que precedem, acompanham e sucedem os diferentes tipos de morte. — Vamos, fale — provocou o médico, num tom incrédulo. — É fácil demonstrar, a qualquer um que possua a mais ligeira noção da construção e das forças vitais de nosso corpo — começou o sr. Ledru —, que a capacidade de sentir não é inteiramente destruída pelo suplício, e o que afirmo, doutor, baseia-se não em hipóteses, mas em fatos. — Vejamos esses fatos. — Ei-los: concorda que a capacidade de sentir está localizada no cérebro? — É provável. — Que as operações dessa consciência da sensação podem se dar mesmo que a circulação do sangue pelo cérebro seja suspensa, enfraquecida ou particularmente destruída? — É possível. — Logo, se a sede da faculdade de sentir está no cérebro, enquanto o cérebro conservar sua força vital o supliciado terá a sensação de sua existência. — Provas? — Ei-las. Haller,41 em seus Elementos de física, tomo IV, página 35, diz: “Uma cabeça reabriu os olhos e me olhou de esguelha quando, com a ponta do dedo, toquei em sua medula espinhal.” — Haller, muito bem, mas Haller pode ter se enganado. — Enganou-se, com certeza. Passemos a outro. Weycard, Artes filosóficas, página 221, diz: “Vi moverem-se os lábios de um homem cuja cabeça fora decepada.” — Vá lá, mas entre se moverem e chegarem a falar… — Espere, já estou terminando. Sömmering: tenho suas obras aqui, pode verificar. Sömmering afirma: “Vários médicos, confrades meus, asseveraram ter visto uma cabeça separada do corpo ranger os dentes de dor, e estou convencido de que, se o ar continuasse-lhes a circular pelos órgãos da voz, as cabeças falariam.” Pois bem, doutor — continuou o sr. Ledru, empalidecendo —, estou mais avançado que Sömmering. Uma cabeça falou comigo. Todos estremecemos. A dama pálida soergueu-se no divã. — Com o senhor? — Sim, comigo. Ou dirá que sou louco também? — Quem sou eu! — exclamou o médico. — Se me diz que assim foi…

Estou mais avançado que Sömmering. Uma cabeça falou comigo.” — Sim, digo-lhe que também comigo a coisa aconteceu. O doutor é bemeducado demais, não é mesmo?, para declarar em voz alta que sou louco, mas dirá baixinho, o que dá absolutamente no mesmo. — Pois bem, vejamos, conte-nos sua história — pediu o médico. — Não pense que é fácil. Sabe que jamais contei o que me pede para contar, desde que aconteceu, trinta e sete anos atrás? Sabe que corro o risco de desmaiar ao contá-lo, como desmaiei quando aquela cabeça falou comigo, quando aqueles olhos agonizantes fitaram os meus? O diálogo tornava-se cada vez mais interessante; a situação, cada vez mais dramática. — Calma, Ledru, coragem — incentivou-o Alliette —, conte-nos como foi. — Conte-nos como foi, meu amigo — pediu o padre Moulle. — Conte — disse o cavaleiro Lenoir. — Cavalheiro… — murmurou a mulher pálida. Eu não disse nada, mas a curiosidade brilhava em meus olhos. — É estranho — balbuciou o sr. Ledru, sem nos responder e aparentemente falando consigo mesmo — como os acontecimentos se influenciam reciprocamente! Sabem quem eu sou? — perguntou o sr. Ledru, voltando-se para mim. — Até onde sei, cavalheiro — respondi —, é um homem muito culto, muito inteligente, que oferece excelentes almoços e é prefeito de Fontenay-aux-Roses. O sr. Ledru sorriu, agradecendo-me com a cabeça. — Quero dizer a minha origem, a de minha família — esclareceu. — Ignoro sua origem, senhor, e não conheço sua família. — Pois bem, ouçam, vou lhes contar tudo e talvez a história que desejam conhecer, e que não ouso contar, venha junto. Se vier, pois bem, agarrem-na; se não vier, não me peçam novamente. É que não terei tido forças para contá-la. Sentaram-se todos, cada um instalando-se o mais confortavelmente possível para escutar. No mais, o salão era um verdadeiro ambiente típico de lendas e narrativas, amplo e sombrio, graças às cortinas grossas e ao dia que ia morrendo. Embora seus recantos já se encontrassem na penumbra mais completa, as linhas que correspondiam às portas e janelas conservavam um resto de luz. Num desses recantos estava a dama pálida. Seu vestido preto diluíra-se completamente na noite, deixando visível apenas sua cabeça, branca, imóvel e caída sobre a almofada do sofá. O sr. Ledru começou. — Sou — disse ele — filho do famoso Comus,42 médico do rei e da rainha. Meu pai, cuja alcunha burlesca fez com que fosse classificado entre os prestidigitadores e charlatães, era um ilustre cientista da escola de Volta, Galvani e Mesmer.43 Foi o primeiro na França a estudar fantasmagoria e eletricidade, promovendo sessões de matemática e física na corte. A pobre Maria Antonieta, que vi vinte vezes e que mais de uma vez me pegou pelas mãos e as beijou, por ocasião de sua chegada à França, isto é, quando eu era um menino, era louca por ele. Em sua passagem por aqui em 1777, José II44 declarou nunca ter visto nada mais curioso que Comus. Em meio a tudo isso, meu pai cuidava da educação de meu irmão e da minha, iniciando-nos no que sabia de ciências ocultas e numa massa de conhecimentos, galvânicos, físicos, magnéticos, que hoje são de domínio público, mas que na época eram secretos e privilégio de uns poucos. O título de médico do rei fez com que meu pai fosse preso em 1793, mas, graças a algumas amizades que eu tinha com a Montanha,45 consegui que o soltassem. Meu pai então se retirou para esta mesma casa onde moro e nela morreu em 1807, aos setenta e seis anos de idade. Voltemos a mim. Falei de minhas amizades com a Montanha, e, de fato, eu era ligado a Danton e Camille Desmoulins.46 Conheci Marat,47 mais como médico do que como amigo. Mas conheci. Resultou dessa relação com ele, mesmo tendo sido curta, que, no dia em que a srta. Corday foi levada ao cadafalso, resolvi assistir ao seu suplício. — Eu ia justamente — intrometi-me — ajudá-lo em seu debate com o dr. Robert sobre o prolongamento da vida e relatar o fato que a história registrou envolvendo a srta. Charlotte Corday. — Chegaremos lá — interrompeu o sr. Ledru —, deixe-me falar. Fui testemunha, podem portanto acreditar no que irei dizer. A partir das duas da tarde, posicionei-me junto à estátua da Liberdade. Era uma manhã quente de julho, o tempo estava pesado, o céu, coberto, prometendo temporal. Às quatro horas, o temporal caiu. Dizem que foi justamente nesse momento que Charlotte subiu na carroça. Quando foram apanhá-la na prisão, um jovem pintor fazia seu retrato. A morte, possessiva, parecia querer que nada sobrevivesse da moça, sequer sua imagem. A cabeça foi esboçada na tela e, coisa estranha!, no momento em que o carrasco entrou, o pintor trabalhava a região do pescoço, que o ferro da guilhotina iria ceifar. Os relâmpagos brilhavam, a chuva caía, a trovoada roncava, mas nada fora capaz de dispersar a população curiosa. Cais, pontes e praças estavam apinhados. Os rumores da terra quase encobriam os do céu. Perseguiam-me com maldições as mulheres conhecidas pelo apelido irônico de “viúvas da guilhotina”. Aqueles rugidos chegavam a mim como os de uma catarata. Muito antes que se pudesse perceber qualquer coisa, a massa se agitou. Finalmente, como um navio fatal, a carroça apareceu sulcando as ondas e pude distinguir a condenada, que eu não conhecia, a quem nunca vira. Era uma moça bonita, de vinte e sete anos, olhos magníficos, um nariz desenhado à perfeição e lábios de suprema regularidade. Mantinha-se de pé, a cabeça erguida, não tanto para dominar a multidão, mas porque suas mãos amarradas nas costas compeliam-na àquela postura. A chuva cessara, mas, depois de haver enfrentado o temporal na maior parte do trajeto, a água que escorrera sobre ela desenhava os contornos de seu corpo encantador sobre a lã úmida. Parecia saída do banho. A túnica vermelha que o carrasco lhe vestira dava um aspecto estranho, um esplendor sinistro àquela cabeça tão orgulhosa e enérgica. No momento em que chegava à praça, a chuva parou de todo e um raio de sol, esgueirando-se entre duas nuvens, veio roçar seus cabelos, irradiando-os como uma auréola. Na verdade, juro, embora houvesse um assassinato por trás daquela moça, ação terrível mesmo quando vinga a humanidade, embora eu abominasse aquele assassinato, ainda assim não saberia dizer se o que via era uma apoteose ou um suplício. Ao perceber o cadafalso, ela empalideceu, o que ficou ainda mais evidente graças à túnica vermelha que subia até seu pescoço. Quase instantaneamente, porém, ela fez um esforço e terminou de se voltar para o cadafalso, que encarou sorrindo. A carroça parou. Recusando ajuda, Charlotte apeou e subiu os degraus do cadafalso, escorregadios devido à chuva que acabava de cair, tão rapidamente quanto lhe permitiam o arrastar da cauda de sua túnica e o estorvo de ter as mãos amarradas. Sentindo a mão do executor pousar em seu ombro para arrancar o lenço que cobria seu pescoço, ela voltou a empalidecer, mas, imediatamente, um último sorriso veio desmentir a palidez. Voluntariamente, sem que precisassem amarrá-la à infame báscula, num impulso sublime e quase alegre, ela introduziu a cabeça na hedionda abertura. O cutelo deslizou, a cabeça separada do tronco caiu sobre a plataforma e rolou. Foi então, ouça bem, doutor, ouça bem, poeta, foi então que um dos auxiliares do carrasco, chamado Legros, agarrou aquela cabeça pelos cabelos e, por vil adulação à massa, desferiu-lhe uma bofetada. Pois bem! Afirmo que a cabeça ficou vermelha com essa bofetada. Eu vi! A cabeça, não a face, estão prestando atenção? Não a face golpeada, mas as duas faces, e tudo numa vermelhidão uniforme, pois a sensibilidade vivia naquela cabeça, que se indignava por ter passado por uma vergonha que não estava prevista na lei.

“E porventura acredita que eles morreram porque foram guilhotinados?” O povo percebeu também aquela vermelhidão e tomou o partido da morta contra o vivo, da supliciada contra o carrasco. Sumariamente, exigiu vingança por aquela indignidade e, sumariamente, o miserável foi entregue aos policiais e levado à prisão. Esperem — disse o sr. Ledru, percebendo que o médico queria falar —, esperem, não terminou. Eu quis saber que rompante levara aquele homem a cometer semelhante infâmia. Descobri o lugar onde estava, pedi autorização para visitá-lo na Abadia,48 pois lá o haviam encarcerado, e, obtendo-a, fui até ele. Um decreto do tribunal revolucionário acabava de condená-lo a três meses de prisão. Ele não compreendia que o houvessem condenado por uma coisa tão natural, como a que fizera. Perguntei-lhe o que o movera. — Ora, ora — disse ele —, a pergunta de sempre! Porque sou maratista. Depois de puni-la em nome da lei, quis puni-la em meu nome. — Mas — retruquei — o senhor então não compreende que é quase um crime violar o respeito devido à morte? — E porventura — replicou Legros, fitando-me nos olhos — acredita que eles morreram porque foram guilhotinados? — Sem dúvida. — Pois bem! Vê-se que o senhor não olha no cesto quando estão ali todos juntos, nem os vê revirando os olhos e rangendo os dentes ainda por cinco minutos após a execução. Somos obrigados a mudar de cesto a cada três meses, de tal forma eles rasgam o fundo com os dentes. É um monte de cabeças de aristocratas, note bem, que não querem se decidir a morrer, e não me admiraria que um dia alguma delas se pusesse a gritar: “Viva o rei!” Eu já sabia tudo que pretendia saber. Saí, obcecado por uma ideia: aquelas cabeças ainda viviam. E resolvi tirar isso a limpo.




Nenhum comentário:

Postar um comentário