domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 761 : O gato, o meirinho e o esqueleto

 O gato, o meirinho e o esqueleto

O efeito causado pela história do sr. Ledru foi terrível. Nenhum de nós pensou em reagir contra seu impacto, nem mesmo o médico. O cavaleiro Lenoir, interpelado pelo sr. Ledru, respondia com um simples sinal de anuência. A dama pálida, que por um instante soerguera-se no sofá, voltou a cair em meio a suas almofadas e não deu sinal de vida senão mediante um suspiro. O comissário de polícia, que de nada daquilo extraía algo para dizer, não emitia nenhum som. Eu, de minha parte, gravava mentalmente todos os detalhes da catástrofe, a fim de poder recuperá-los, caso julgasse por bem narrá-los um dia, e, quanto a Alliette e ao padre Moulle, o enredo obedecia demasiadamente a suas crenças para que cogitassem refutá-lo. Ao contrário, o padre Moulle foi o primeiro a romper o silêncio, sintetizando de certa forma a opinião geral: — Acredito piamente no que acaba de nos contar, meu caro Ledru, mas como explica esse facto, como dizemos na terminologia materialista? — Não explico — retrucou o sr. Ledru —, exponho. Nada além disso. — Sim, como explica? — perguntou o médico. — Afinal de contas, prolongamento da vida ou não, o senhor não admite que, duas horas depois, uma cabeça cortada fale, olhe e aja. — Se eu tivesse uma explicação, meu caro doutor — lamentou o sr. Ledru —, não teria caído tão gravemente doente após esse episódio. — Mas e o senhor, doutor — disse o cavaleiro Lenoir —, como explica? Pois decerto não acredita que Ledru tenha voluntariamente forjado a história que acabou de nos contar. Sua doença também é um fato material. — Ora, convenhamos, essa é muito boa! Por uma alucinação, o sr. Ledru julgou ver, o sr. Ledru julgou ouvir. Para ele é exatamente como se tivesse visto e ouvido. Os órgãos que transmitem a percepção ao sensorium, isto é, ao cérebro, podem ser enganados pelas circunstâncias. Nesse caso, eles se enganam e, ao se enganarem, transmitem falsas percepções. Julgamos ouvir, ouvimos; julgamos ver, vemos. O frio, a chuva e o escuro enganaram os órgãos do sr. Ledru, simples assim. O louco também vê e ouve o que julga ver e ouvir. A alucinação é uma loucura momentânea, que permanece gravada em nossa memória quando desaparece. Simples assim. — Mas e quando ela não desaparece? — perguntou o padre Moulle. — Então a doença entra na ordem das doenças incuráveis e morre-se dela. — E o senhor porventura já chegou a tratar esse tipo de doença, doutor? — Não, mas conheci alguns médicos que sim, entre eles um inglês, que acompanhou Walter Scott em sua viagem à França.60 — Que lhe contou…? — Algo parecido com o que acaba de nos contar nosso anfitrião, algo talvez ainda mais extraordinário, até. — E que o senhor explica em termos materialistas? — perguntou o padre Moulle. — Naturalmente. — E é capaz de nos contar a história que o médico inglês lhe contou? — Sem dúvida. — Ah, conte, doutor, conte. — É mesmo necessário? — Ora, sem dúvida! — exclamaram todos. — Vá lá. O médico que acompanhava Walter Scott à França chamava-se dr. Sympson. Era um dos membros mais ilustres da Faculdade de Edimburgo, ligado, por conseguinte, às pessoas mais respeitáveis da cidade. Dentre essas pessoas, havia um juiz do tribunal criminal, cujo nome ele omitiu. Era o único segredo que julgava conveniente manter em todo o episódio. Esse juiz, a quem o médico dispensava cuidados de rotina, embora sem nenhum sintoma de doença, definhava a olhos vistos: uma sombria melancolia o paralisava. Em diferentes ocasiões, sua família interrogara o médico e este, por sua vez, interrogara o amigo, sem lhe arrancar outra coisa senão respostas vagas, que só fizeram acentuar sua preocupação, provando-lhe existir um segredo, o qual o doente negava-se a revelar. Um dia, finalmente, o dr. Sympson tanto insistiu para o amigo admitir a doença que este, tomando-lhe as mãos com um sorriso triste, confessou: — Sim, estou doente, e minha doença, caro doutor, é ainda mais incurável, pois está inteirinha em minha imaginação. — Como, em sua imaginação? — É, estou ficando louco. — Louco? E por quê?, eu lhe pergunto. Está com o olhar lúcido, a voz, serena — pegou-lhe a mão —, o pulso, excelente. — E é justamente o que constitui a gravidade de meu estado, caro doutor, é que vejo a coisa e acredito nela. — Mas afinal, em que consiste sua loucura? — Feche a porta, doutor, para não sermos importunados, e eu lhe direi. O médico fechou a porta e veio sentar-se junto do amigo. — Lembra-se — perguntou o juiz — do último processo criminal cujo veredito fui levado a pronunciar? — Sim, um bandido escocês que você condenou à forca, e assim se cumpriu. — Precisamente. Pois bem! No momento em que eu pronunciava a sentença, uma chama irrompeu de seus olhos e ele me mostrou o punho em sinal de ameaça. Não dei importância… Ameaças desse tipo são comuns por parte dos condenados. No dia seguinte à execução, porém, o carrasco apresentou-se em minha casa, pedindo-me humildemente perdão pela visita, mas declarando julgar-se no dever de me alertar: o bandido morrera pronunciando uma espécie de maldição contra mim, segundo a qual, no dia seguinte, às seis horas, horário em que ele fora executado, eu teria notícias suas. Pensei em algum trote de seus companheiros, em alguma vingança à mão armada, e, perto das seis horas, tranquei-me no meu gabinete com um par de pistoletes sobre a escrivaninha. O relógio sobre a lareira deu o toque das seis horas. Embora a revelação do verdugo me houvesse inquietado o dia inteiro, o último golpe do martelo vibrou no bronze sem que eu ouvisse qualquer outro ruído, à exceção de uma espécie de ronronar, cuja causa eu ignorava. Voltando-me para trás, percebi um gato gordo, preto e com manchas vermelhas cor de fogo. Como entrara? Impossível dizer: as portas e janelas estavam fechadas. Ficara necessariamente preso no quarto durante todo o dia. Não lanchei. Toquei a campainha interna, meu criado veio, mas, como eu me trancara por dentro, não pôde entrar. Fui abrir a porta. Comentei sobre o gato preto e cor de fogo, mas foi em vão que procuramos por ele: havia desaparecido. Não me preocupei mais com aquilo. Entardeceu, anoiteceu, amanheceu, o dia passou, veio o toque das seis horas. Naquele exato momento, ouvi o mesmo barulho atrás de mim e vi o mesmo gato. Dessa vez, ele pulou para o meu colo. Não tenho especial antipatia por gatos, e no entanto aquela intimidade me causou uma sensação desagradável. Expulsei-o do colo, mas, assim que ele tocou no chão, pulou novamente em cima de mim. Repeli-o, mas tão inutilmente quanto da primeira vez. Então me levantei e andei pelo quarto, seguido passo a passo pelo gato. Exasperado com sua insistência, toquei a campainha, como na véspera, e meu criado entrou. Mas o gato refugiou-se embaixo da cama, onde o procuramos em vão. Uma vez debaixo da cama, sumira completamente.

“Voltando-me para trás, percebi um gato gordo, preto e com manchas vermelhas cor de fogo.” Saí durante a tarde. Visitei dois ou três amigos e voltei para casa, onde entrei graças a uma chave-mestra. Como eu estava no escuro, subi lentamente a escada, com medo de tropeçar em alguma coisa. No último degrau, ouvi meu criado conversando com a camareira de minha mulher. Ouvindo meu nome pronunciado, passei a prestar atenção no que ele dizia e ouvi-o contar toda a aventura da véspera e daquele dia, salvo que acrescentava: — O patrão deve estar ficando louco, não havia mais gato preto e cor de fogo no quarto do que havia na minha mão. Essas poucas palavras me assustaram: ou a visão era real ou era falsa. Se era real, eu estava sob o jugo de um fato sobrenatural; se era falsa, se eu pensava ver uma coisa que não existia, como dissera meu criado, eu estava enlouquecendo. Pode imaginar, caro amigo, o misto de medo e impaciência com que esperei as seis horas. No dia seguinte, a pretexto de uma arrumação, retive meu criado junto a mim. As seis horas soaram enquanto ele estava comigo. Ao último golpe no timbre, ouvi o mesmo barulho e vi novamente o meu gato. Estava sentado ao meu lado. Permaneci um instante sem dizer nada, rezando para que o meu criado percebesse o animal e fosse o primeiro a falar, mas ele ia e vinha no quarto, aparentemente sem ver nada. Aproveitei uma oportunidade em que, no trajeto que ele devia percorrer para cumprir uma ordem minha, precisasse passar pelo gato. — Coloque a campainha na mesa, John — eu lhe pedi. Ele estava na cabeceira de minha cama, a campainha estava na lareira. Para ir da cabeceira à lareira, era imperioso que tropeçasse no animal. Ele se pôs em movimento, mas, quando seu pé estava prestes a pisoteá-lo, o gato pulou para o meu colo. John não o viu ou, pelo menos, pareceu não vê-lo. Confesso que um suor frio brotou em minha testa e que as palavras “O patrão deve estar ficando louco” apareceram de forma assustadora no meu pensamento. — John — indaguei —, não vê nada no meu colo? John voltou-se para mim. Em seguida, parecendo tomar uma decisão, disse: — Sim, patrão, vejo um gato. Respirei aliviado. Peguei o gato e lhe disse. — Nesse caso, John, tire-o daqui, por favor. Suas mãos vieram até diante das minhas. Pousei o animal em seus braços e, a um sinal meu, ele saiu. Sentia-me razoavelmente tranquilizado. Durante dez minutos, olhei à minha volta com um resquício de ansiedade, porém, sem perceber nenhum ser vivo pertencente a qualquer espécie animal, resolvi verificar o que John fizera do gato. Saí então do quarto com a intenção de interrogá-lo, quando, ao colocar o pé no umbral da porta do salão, ouvi uma ruidosa gargalhada vindo do lavabo de minha mulher. Aproximei-me mansamente na ponta dos pés e ouvi a voz de John. — Minha querida — dizia ele à camareira —, o patrão não está ficando louco. Ele já ficou louco. Sua loucura, não sei se você sabe, é ver um gato preto e cor de fogo. Hoje à noite ele me perguntou se eu não estava vendo o tal gato no seu colo. — E o que você respondeu? — perguntou a camareira.

“Ele pegou o gato imaginário no colo, colocou-o nos meus braços e me ordenou: ‘Tire-o daqui! Tire-o daqui!’” — O que acha? Respondi que sim — disse John. — Pobre e querido homem, não quis contrariá-lo. Adivinhe então o que ele fez? — Como quer que eu adivinhe? — Pois bem! Ele pegou o gato imaginário no colo, colocou-o nos meus braços e me ordenou: “Tire-o daqui! Tire-o daqui!” Corajosamente, tirei-o de lá, e o patrão ficou satisfeito. — Mas se despachou o gato, o gato então existia? — Oh, não, o gato só existia na imaginação dele. Mas o que ele faria se eu dissesse a verdade? Me botaria na rua. Deus me livre, estou bem aqui e aqui fico. Ele me paga vinte e cinco libras por ano… para ver um gato. Eu o vejo. Se me der trinta, verei dois. Não tive coragem de ouvir mais. Dei um suspiro e voltei ao meu quarto. O quarto estava vazio… No dia seguinte, às seis horas, como de hábito, meu companheiro reapareceu ao meu lado e só desapareceu na manhã seguinte. O que posso lhe dizer, meu amigo? — continuou o doente. — Durante um mês a mesma aparição se repetiu todas as noites. Eu começava a me acostumar com sua presença quando, no trigésimo dia após a execução, as seis horas soaram sem que o gato aparecesse. Julguei-me livre dele, não dormi de tanta alegria. No dia seguinte, fiz de tudo para que o tempo voasse, tinha pressa de chegar à hora fatal. Das cinco às seis horas, meus olhos não desgrudaram do relógio. Eu acompanhava a marcha do ponteiro, avançando de minuto em minuto. Finalmente, ele alcançou o número XII, ouviu-se o frêmito do relógio, o martelo desferiu o primeiro golpe, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto e o sexto, por fim! Na sexta martelada, minha porta se abriu e vi entrar uma espécie de meirinho parlamentar, vestido como se estivesse a serviço de um lorde-tenente da Escócia.61 A primeira ideia que me ocorreu foi que o lorde-tenente me enviara alguma mensagem e estendi a mão para o desconhecido. Este, contudo, não pareceu dar nenhuma atenção ao meu gesto e veio se instalar atrás de minha poltrona. Eu não precisava me voltar para vê-lo. Estava em frente a um espelho e, nesse espelho, eu podia vê-lo. Levantei-me e andei a esmo: ele me seguiu mantendo alguns passos de distância. Voltei à minha mesa e toquei a campainha. Meu criado apareceu, mas viu o meirinho tanto quanto vira o gato.

“Vi entrar uma espécie de meirinho parlamentar, vestido como se estivesse a serviço de um lorde-tenente da Escócia.” Despachei-o e permaneci com aquele estranho personagem, que tive tempo de examinar a meu bel-prazer. Usava trajes de corte, os cabelos presos por uma rede, espada na cintura, um casaco bordado a mão e chapéu debaixo do braço. Às dez horas, fui me deitar. Então, como se quisesse passar a noite o mais comodamente possível, ele sentou numa poltrona diante de minha cama. Virei para o lado da parede mas, como não conseguia dormir por nada desse mundo, por duas ou três vezes me voltei e por duas ou três vezes, à luz da lamparina, vi-o na mesma poltrona. Ele também não dormia. Finalmente, percebi os primeiros raios do dia escorregarem para dentro do quarto, através dos interstícios das gelosias. Voltei-me uma última vez para o meu homem: desaparecera, a poltrona estava vazia. Passei o dia seguinte livre de minha visão. À noite, havia recepção na casa do grão-comissário da Igreja. A pretexto de que preparasse meu traje a rigor, chamei o criado às cinco para as seis e ordenei-lhe que passasse o ferrolho na porta. Ele obedeceu. No último toque das seis horas, fixei os olhos na porta: ela se abriu e o meirinho entrou. Fui imediatamente até a porta. Estava trancada, o ferrolho parecia não ter saído do engaste. Ao me voltar, o meirinho estava atrás da minha poltrona. Completamente alheio ao fato, John ia e vinha pelo quarto. Era evidente que via o homem tanto quanto vira o animal. Vesti-me. Aconteceu então uma coisa singular: cheio de atenções para comigo, meu novo convidado ajudava John em tudo que ele fazia, sem que John percebesse estar sendo ajudado. Se John segurava meu paletó pela gola, o fantasma o escorava pelas abas; se John me apresentava minha calça pela cintura, o fantasma a segurava pelas pernas. Eu nunca tivera criado mais prestativo. Era hora de sair. Então, em vez de me seguir, o meirinho me precedeu, esgueirou-se pela porta do meu quarto, mantendo o chapéu sob o braço, desceu a escada atrás de John, que abria a portinhola do coche, e, quando John a fechou e ocupou seu lugar no banquinho de trás, ele subiu para o assento do cocheiro, que chegou para a direita e lhe abriu espaço. À porta do grão-comissário da Igreja, o coche parou. John abriu a portinhola, mas o fantasma já estava a postos atrás dele. Mal eu pusera o pé no chão, ele se lançou à minha frente, passando pelos criados que se aglomeravam na porta de entrada e verificando se eu o seguia. Tive então a ideia de repetir com o cocheiro o teste que eu fizera com John. — Patrick, afinal — perguntei —, quem era o homem ao seu lado? — Que homem, patrão? — indagou o cocheiro. — O homem que estava no seu banco. Patrick arregalou dois olhos perplexos, procurando ao redor. — Pensando bem — eu lhe disse —, me enganei. E entrei. O meirinho me aguardava na escada, parado. Assim que me viu avançar, fez o mesmo e tomou a minha frente, como se para me anunciar na sala de recepção. Quando entrei, ele retornou à antecâmara para ocupar o lugar que lhe cabia. Novamente, como acontecera com John e Patrick, o fantasma havia passado invisível aos olhos de todos. Foi então que meu medo se transformou em terror e compreendi que estava efetivamente louco. A partir dessa noite, a mudança em mim operada tornou-se evidente. Todos passaram a me indagar o que me agastava, inclusive o senhor. Reencontrei meu fantasma na antecâmara. Como na chegada, ele correu à minha frente quando saí, subiu novamente no banco, voltou comigo para casa, entrou atrás de mim no quarto e sentou na poltrona da véspera. Querendo me certificar de que havia alguma coisa de real e, sobretudo, de palpável naquela aparição, fiz um esforço violento sobre mim mesmo e, recuando, fui me sentar na poltrona. Não senti nada, mas vi-o de pé atrás de mim, no espelho. Como na véspera, fui para a cama, porém somente à uma da madrugada. Assim que me deitei, revi-o na poltrona. No dia seguinte, à luz do sol, ele desapareceu. A visão durou um mês. No fim de um mês, ela saiu da rotina e falhou um dia. Dessa vez, não acreditei mais, como na primeira, num desaparecimento definitivo, mas em alguma modificação terrível. Assim, em vez de desfrutar da solidão, esperei o dia seguinte com pavor. No dia seguinte, ao último toque das seis horas, ouvi um leve roçar no cortinado de minha cama e, no ponto de interseção que ele formava no espaço contra a parede, percebi um esqueleto. Dessa vez, meu amigo, veja bem, era, se assim posso me exprimir, a imagem viva da morte. O esqueleto estava lá, imóvel, olhando para mim com seus olhos vazios. Levantei-me, fiquei a dar voltas no quarto. A caveira me acompanhava em todas essas evoluções. Seus olhos não me abandonavam um instante, o corpo permanecia imóvel. Aquela noite, não tive coragem de me deitar. Dormi, ou melhor, permaneci de olhos fechados na poltrona normalmente ocupada pelo fantasma, de cuja presença cheguei a sentir falta. De dia, o esqueleto sumiu. Ordenei a John que mudasse a cama de lugar e cruzasse as cortinas. Ao último toque das seis horas, ouvi o mesmo roçar, vi as cortinas se agitarem e percebi as extremidades de duas mãos ossudas abrindo o cortinado da cama. Aberto o cortinado, o esqueleto ocupou o lugar que ocupara na véspera. Dessa vez, tomei coragem e me deitei. A cabeça, que, como na véspera, me acompanhara em todos os movimentos, inclinou-se então para mim. Os olhos, que, como na véspera, não me haviam perdido um instante de vista, fixaram-se em mim. Imagine a noite que passei! Pois então, meu caro doutor, já são vinte noites iguais, que passo da mesma forma. Agora, sabendo qual é a minha doença, ainda espera me curar? — Pelo menos posso tentar — respondeu o médico. — De que jeito? Gostaria de saber. — Estou convencido de que o fantasma que o senhor vê só existe em sua imaginação. — O que me importa se ele existe ou não, se o vejo? — Quer que eu tente vê-lo também? — Não peço outra coisa. — Quando pode ser? — O mais cedo possível. Amanhã. — Tudo bem, amanhã… Até lá, boa sorte! O doente sorriu com tristeza. No dia seguinte, às sete da manhã, o médico entrou no quarto do amigo. — E então — perguntou —, e o tal esqueleto? — Acaba de desaparecer — respondeu ele com uma voz sumida. — Muito bem! Vamos providenciar para que não volte esta noite. — Vá em frente. — Recapitulando: você disse que ele entra no último toque das seis horas? — Infalivelmente. — Comecemos por parar o relógio. E imobilizou o pêndulo. — O que pretende? — Tirar de você a faculdade de calcular o tempo. — Excelente. — Agora, vamos fechar as persianas e cruzar as cortinas das janelas. — Para quê? — Sempre com o mesmo objetivo, a fim de que você perca a noção do tempo. — Está bem. As persianas foram fechadas, as cortinas, puxadas, as velas, acesas. — Tenha um almoço e um jantar prontos, John — instruiu o médico. — Não queremos ser servidos em horários fixos, somente quando eu chamar. — Ouviu, John? — disse o doente. — Sim, patrão. — Depois, traga-nos cartas, dados e dominós, e deixe-nos sozinhos. Os itens solicitados foram trazidos por John, que se retirou. O médico começou por distrair o doente como pôde, ora conversando, ora jogando com ele. Mais tarde, quando sentiu fome, tocou. John, que sabia o motivo do toque, trouxe o almoço. Depois de comermos, a partida recomeçou, sendo interrompida por um novo toque de campainha por parte do médico. John serviu o jantar. Comeram, beberam, tomaram café e voltaram ao jogo. O dia, passado assim a dois, parecia alongar-se. O médico julgou ter marcado o tempo e que a hora fatal passara. — Muito bem! — alegrou-se ele, erguendo-se. — Vitória! — Como, vitória? — perguntou o doente. — Sem dúvida. Devem ser pelo menos oito ou nove horas e o esqueleto não veio. — Consulte o seu relógio, doutor, é o único que funciona na casa, e, se a hora realmente passou, caramba, gritarei vitória como o senhor. O médico consultou seu relógio, mas não disse nada. — Enganou-se, não foi, doutor? — decepcionou-se o doente. — São seis horas em ponto. — Sim, e daí? — E daí! Olhe o esqueleto entrando… E o doente desabou para trás, com um profundo suspiro. O médico olhou para todos os lados. — Onde você está vendo? — perguntou. — Em seu lugar habitual, no espaço entre a parede e a cama, em meio às cortinas. O médico se levantou, puxou a cama e foi ocupar entre as cortinas o lugar supostamente ocupado pelo esqueleto. — E agora — interrogou —, continua a vê-lo? — À exceção da parte inferior do corpo, considerando que o seu o esconde, mas vejo a caveira. — Onde? — Acima do seu ombro direito. É como se você tivesse duas cabeças, uma viva e outra morta. O médico, por mais incrédulo que fosse, sentiu um arrepio incontrolável. Voltou-se, mas nada viu. — Meu amigo — disse tristemente, voltando ao doente —, se tem disposições testamentárias a fazer, faça-as. E saiu. Nove dias depois, entrando no quarto do patrão, John encontrou-o morto na cama. “Fazia três meses, noventa dias exatos, que o bandido fora executado.”

“Nove dias depois, entrando no quarto do patrão, John encontrou-o morto na cama.” 9. Os túmulos de Saint-Denis — E o que isso prova, doutor? — perguntou o sr. Ledru. — Prova que os órgãos encarregados de transmitir ao cérebro as percepções podem, em determinadas circunstâncias, ser perturbados a ponto de oferecer ao espírito um espelho infiel em que, nesses casos, o indivíduo vê objetos e ouve sons inexistentes. Isso é tudo. — De toda forma — argumentou o cavaleiro Lenoir, com a timidez de um cientista de boa-fé —, há coisas que deixam rastros, profecias que se concretizam. Como explica, doutor, golpes desferidos por espectros engendrando manchas roxas no corpo daquele que os recebeu? Como explica uma visão capaz de, com dez, vinte, trinta anos de antecedência, prever o futuro? O que não é pode matar o que é, ou anunciar o que virá a ser? — Ah! — exclamou o doutor. — Refere-se à visão do rei da Suécia?62 — Não, refiro-me ao que eu mesmo vi. — O senhor? — Eu. — Onde? — Em Saint-Denis.63 — Quando? — Em 1794, por ocasião da profanação dos túmulos.64 — Ah, sim, escute isso, doutor — disse o sr. Ledru. — O quê? O que viu? Conte. — Aí vai: em 1793, eu fora nomeado diretor do museu dos Monumentos Franceses e, nesse posto, vi-me às voltas com a exumação dos cadáveres da abadia de Saint-Denis, cujo nome os patriotas esclarecidos haviam mudado para Francíada. Quarenta anos depois, sinto-me em condições de relatar as coisas estranhas que cercaram essa profanação. O ódio a Luís XVI, infundido no povo, e que o cadafalso de 21 de janeiro não fora capaz de saciar, remontara aos reis de sua linhagem. Quiseram perseguir a monarquia até a fonte, os monarcas até o túmulo, espalhando ao vento as cinzas de sessenta reis. Sem falar na curiosidade de verificar se os grandes tesouros supostamente encerrados em alguns desses túmulos permaneciam tão intactos quando se acreditava. O povo, então, acorreu a Saint-Denis. E, de 6 a 8 de agosto, destruiu cinquenta e um túmulos, a história de doze séculos. O governo então decidiu organizar aquela desordem, escavando por conta própria os túmulos e tornando-se herdeiro da monarquia que acabava de golpear na pessoa de Luís XVI, seu último representante. Tratava-se, em seguida, de aniquilar até o nome, até a lembrança, até as ossadas dos reis; tratava-se de riscar da história catorze séculos de monarquia. Pobres loucos, não compreendem que às vezes os homens podem mudar o futuro… jamais o passado! Haviam escavado no cemitério um grande fosso comum, inspirado na vala dos indigentes. Era nesse fosso e sobre uma camada de cal que deveriam ser lançadas, como num depósito de lixo, as ossadas daqueles que haviam feito da França a primeira das nações, desde Dagoberto até Luís XVI. Dessa forma, dava-se satisfação ao povo, mas sobretudo regozijo aos legisladores e advogados, aos jornalistas invejosos, abutres das revoluções, cujo olho sente-se ferido por qualquer esplendor, como o olho de seus irmãos, as aves noturnas, por toda luz. O orgulho daqueles que não podem construir é destruir. Fui nomeado inspetor das escavações. Era um jeito de salvar um bocado de itens valiosos. Aceitei. No sábado, 12 de outubro, enquanto instruíam o processo da rainha, mandei abrir a tumba dos Bourbon, junto às capelas subterrâneas, e comecei retirando de lá o caixão de Henrique IV,65 assassinado em 14 de maio de 1610, aos cinquenta e sete anos de idade. Quanto à estátua da Pont-Neuf, obra-prima de João de Bolonha66 e seu aluno, fora derretida para cunhar moedas. O corpo de Henrique IV estava magnificamente conservado. As feições do rosto, perfeitamente reconhecíveis, eram de fato as que o amor do povo e o pincel de Rubens67 consagraram. Quando se percebeu que era ele o primeiro a sair do túmulo e vir à luz em seu sudário, tão bem-conservado quanto seus despojos, a emoção foi grande e por pouco o grito “Viva Henrique IV!”, tão popular na França, não ressoou instintivamente sob as abóbadas da igreja. Constatando aquelas atitudes de respeito, eu diria até mesmo de amor, ordenei que colocassem o corpo de pé, apoiado numa das colunas do coro, e ali todos puderam contemplá-lo. Vestia, como em vida, seu gibão de veludo preto, sobre o qual se destacavam os rufos e punhos brancos; usava seus calções bufantes de veludo igual ao gibão, meias de seda da mesma cor, sapatos de veludo. Seus belos cabelos grisalhos continuavam a formar uma auréola em torno da cabeça, sua bela barba branca ainda caía sobre o peito. Deu-se então início a uma imensa procissão, como se a um santuário: mulheres vinham tocar as mãos do bondoso rei, outras beijavam a ponta de seu manto, outras ainda faziam os filhos se ajoelharem, murmurando baixinho: — Ah, se ele estivesse vivo o pobre do povo não estaria tão infeliz. E poderiam ter acrescentado: “nem tão feroz”, pois o que gera a ferocidade de um povo é a infelicidade. Tal procissão durou todo o dia de sábado, 12 de outubro, de domingo, 13, e de segunda-feira, 14. Finalmente, as escavações recomeçaram após o almoço dos operários, isto é, em torno das três horas da tarde. O primeiro cadáver a ver o dia após o de Henrique IV foi o de seu filho, Luís XIII.68 Apesar das feições esmaecidas, estava bem-conservado e ainda era possível reconhecê-lo pelo bigode. Depois veio o de Luís XIV,69 reconhecível pelos traços fortes que fizeram de seu rosto a máscara típica dos Bourbon, salvo que estava negra como tinta. Então, sucessivamente, os de Maria de Médicis, segunda mulher de Henrique IV, Ana da Áustria, mulher de Luís XIII, Maria Teresa, infanta da Espanha e mulher de Luís XVI, e o do grão-delfim.70 Todos esses corpos estavam putrefatos. Apenas o do grão-delfim estava em putrefação líquida. Na terça-feira, 15 de outubro, as exumações prosseguiram. O cadáver de Henrique IV continuava de pé, apoiado na coluna, assistindo impassível àquele sacrilégio imenso, promovido ao mesmo tempo contra seus antecessores e sua descendência. Na quarta-feira, 16, no exato momento em que a rainha Maria Antonieta tinha a cabeça decepada na praça da Revolução, isto é, às onze horas da manhã, retirava-se do sepulcro dos Bourbon o caixão do rei Luís XV.71 Obedecendo à antiga tradição cerimonial da França, este se achava deitado na entrada do sepulcro, onde esperava seu sucessor, que deveria faltar ao encontro.72 Recolhido e transportado, seu caixão foi aberto apenas dentro do cemitério e na beirada do fosso. A princípio, o corpo retirado da estrutura de chumbo e enfaixado em linho e tiras de pano, parecia íntegro e bem-conservado. Contudo, uma vez desembrulhado, oferecia apenas a imagem da mais hedionda putrefação, exalando um cheiro tão nauseabundo que todos fugiram, além de exigir a queima de várias libras de pólvora para purificar o ar. O que restava do herói do Parc-aux-Cerfs, do amante das sras. de Châteauroux, de Pompadour e du Barry 73 foi atirado às pressas na vala e, caindo sobre uma camada de cal viva, com ela recobriram-se as imundas relíquias. Eu ficara por último, a fim de queimar as substâncias inflamáveis e lançar a cal, quando ouvi um grande alvoroço dentro da igreja. Corri para lá e, ao entrar, percebi um operário debatendo-se em meio a seus colegas, enquanto as mulheres apontavam-lhe o indicador e o ameaçavam. O miserável abandonara sua triste tarefa para ir assistir a um espetáculo ainda mais triste: a execução de Maria Antonieta. Em seguida, inebriado pela gritaria e o sangue que vira correr, voltara a Saint-Denis e, aproximando-se de Henrique IV, de pé contra seu pilar e ainda cercado por curiosos, eu quase diria de devotos, interpelara-o: — Com que direito permaneceis de pé enquanto cabeças de reis são decapitadas na praça da Revolução? E, ato contínuo, agarrando-lhe a barba com a mão esquerda, arrancara-a, enquanto, com a direita, desferia uma bofetada no cadáver real. O cadáver fora ao chão, produzindo um barulho seco, igual ao de um saco de ossos que deixássemos cair. Um clamor ergueu-se de todos os lados. Ele poderia ter cometido semelhante ultraje contra qualquer outro rei, mas, contra Henrique IV, o rei do povo, aquilo era quase um ultraje. O operário sacrílego via-se portanto em perigo quando acorri em seu auxílio. Tão logo percebeu que podia contar com meu apoio, colocou-se sob minha proteção. Mas, embora protegendo-o, minha vontade era abandoná-lo sob o fardo da ação infame que cometera. — Rapazes — eu disse aos operários —, soltem esse miserável. Aquele a quem insultou está em excelente posição lá em cima para obter o castigo de Deus. Depois, recuperando a barba que ele arrancara do cadáver e conservava na mão esquerda, expulsei-o da igreja comunicando-lhe que ele não fazia mais parte de minha equipe de operários. As vaias e ameaças dos colegas perseguiram-no até a rua. Temendo novos ultrajes a Henrique IV, ordenei que ele fosse transportado para a vala comum. No trajeto, contudo, o cadáver foi objeto de novas manifestações de respeito. Em vez de ser lançado, como os demais, no ossuário real, foi descido, depositado suavemente e deitado com cuidado num dos cantos. Em seguida, uma camada de terra, e não de cal, foi piedosamente estendida sobre ele. Terminado o dia, os operários se retiraram, ficando apenas o vigia. Era um homem firme, que eu colocara ali com medo de que, à noite, penetrassem na igreja, fosse para efetuar novas mutilações, fosse para promover novos roubos. Esse vigia dormia de dia e ficava acordado das sete da noite às sete da manhã. Passava a madrugada em alerta e, para se aquecer, ou passeava ou sentavase junto a um fogo aceso, sob uma das colunas mais próximas da porta. Tudo na basílica refletia a imagem da morte, e a devastação tornava tal imagem ainda mais terrível. Os túmulos estavam abertos e as lápides, apoiadas nas paredes. Estátuas quebradas atulhavam o piso da igreja. Aqui e ali, caixões violados haviam restituído os mortos, dos quais julgavam ter de prestar contas apenas no dia do Juízo Final. Tudo enfim arrastava o espírito do homem, se elevado, à meditação, se fraco, ao terror. Felizmente o vigia não era um espírito, mas simples matéria organizada. Olhava todos aqueles despojos com o mesmo olho com que teria olhado uma floresta abatida ou um campo ceifado, e só estava preocupado em contar as horas da noite, voz monótona do relógio, única coisa viva que restara no santuário desolado. Quando soou a meia-noite, e o último golpe do martelo ainda vibrava nas profundezas escuras da igreja, ele ouviu gritos vindos do lado do cemitério. Eram gritos de socorro, ais profundos, lamentações dolorosas. Após um primeiro momento de surpresa, armou-se com uma picareta e avançou para a porta que fazia comunicação entre a igreja e o cemitério. Aberta essa porta, no entanto, o vigia percebeu claramente que os gritos vinham do fosso dos reis. Não ousou ir adiante. Fechou-a novamente e correu para me acordar no hotel onde eu me hospedava. A princípio recusei-me a acreditar na existência daqueles clamores saindo do fosso real, mas, como eu me hospedava justamente defronte à igreja, o vigia abriu minha janela e, em meio ao silêncio, perturbado apenas pelo sussurrar da brisa invernal, julguei efetivamente ouvir lamentações prolongadas que me pareceram não ser apenas queixas do vento. Levantei-me e acompanhei o vigia até a igreja. Ao chegarmos lá, e com o portão fechado atrás de nós, ouvimos ainda mais distintamente as lamentações de que ele falara. Como a porta do cemitério, mal fechada pelo vigia, se reabrira, tornara-se ainda mais fácil discernir de onde vinham os gritos. De fato, vinham do cemitério. Acendemos duas tochas e nos encaminhamos para a porta, mas elas se apagaram, por três vezes, ao tentarmos nos aproximar, devido à corrente de ar que se criara de fora para dentro. Compreendi estarmos diante de uma daquelas passagens estreitas, difíceis de transpor, mas que, uma vez dentro do cemitério, não teríamos mais dificuldade em defender nossas tochas. Além delas, ordenei que ele acendesse uma lamparina. Nossas tochas se apagaram, mas a lamparina resistiu. Atravessamos o funil de ar e, uma vez dentro do cemitério, acendemos novamente as tochas, que o vento respeitou. Enquanto isso, à medida que nos aproximávamos, os clamores iam morrendo. No momento em que chegamos à beira do fosso, haviam praticamente se extinguido. Agitamos nossas tochas acima da vasta abertura. Em meio às ossadas, sobre a camada de cal e terra toda esburacada por elas, vimos alguma coisa amorfa se debatendo. Essa coisa parecia ser um homem. — O que há com você? O que deseja? — perguntei àquela espécie de sombra. — Ai de mim! — a coisa murmurou. — Sou o operário miserável que deu a bofetada em Henrique IV. — E como foi parar aí dentro? — Primeiro tire-me daqui, sr. Lenoir, estou morrendo, depois saberá de tudo! Tão logo o vigia dos mortos se convenceu de que estava lidando com um vivo, o terror que antes se apoderara dele evaporou, e o homem já erguia uma escada, que se encontrava no capim do cemitério, pondo-a de pé e aguardando minhas ordens. Ordenei-lhe que descesse a escada dentro do fosso e convidei o operário a subir. Ele se arrastou, com efeito, até o pé da escada, mas, ao chegar ali, quando foi preciso pôr-se de pé e subir os degraus, constatou que estava com uma perna e um braço quebrados. Jogamos-lhe uma corda com um nó corrediço. Ele passou a corda sob os ombros. Conservei a outra ponta da corda nas mãos. O vigia desceu alguns degraus e, graças a esse duplo apoio, conseguimos tirar o vivo da companhia dos mortos. Assim que se viu fora da vala, ele desmaiou. Nós o transportamos para perto do fogo e o deitamos sobre uma cama de palha. Em seguida, ordenei que o vigia fosse buscar um cirurgião. O vigia voltou com um médico antes que o ferido recuperasse a consciência, e foi apenas durante a operação que reabriu os olhos. Postas as talas, agradeci ao cirurgião e, querendo saber que estranha circunstância levara o profanador a aparecer no túmulo real, despachei também o vigia. Este não pedia outra coisa senão ir deitar-se após as emoções de uma noite como aquela, e deixou-me a sós com o operário. Sentei numa pedra junto à palha onde ele estava deitado e em frente à fogueira, cuja labareda tremeluzente iluminava a parte da igreja onde estávamos, deixando todas as profundezas numa escuridão ainda mais densa, em contraste com a luminosidade que nos cercava. Interroguei então o ferido. Eis o que me contou. Sua demissão pouco o preocupara. Tinha dinheiro no bolso e, àquela altura da vida, já percebera que, com dinheiro no bolso, nada faltava. Havia, portanto, ido instalar-se num cabaré. Lá, começou a emborcar uma garrafa, mas, no terceiro copo, viu o gerente entrar. — Não acha que é hora de parar? — este perguntou. — E por que seria? — respondera o operário. — Ora, porque ouvi dizer que você é o sujeito que deu a bofetada em Henrique IV. 

“Interroguei então o ferido.” — Pois sou eu mesmo — admitiu, insolente, o operário. — E daí? — E daí? Não quero servir bebida para um cafajeste da sua laia, isso trará má sorte para a casa. — Sua casa é a casa de todos e, desde que paguemos, estamos em nossa casa. — É, mas você não vai pagar. — E por que não? — Porque me recuso a receber seu dinheiro. Assim, como não vai pagar, não estará em sua casa, mas na minha, e como eu que mando nela, terei o direito de botá-lo porta afora. — Isto se for o mais forte. — Se não for, chamarei os garçons. — Muito bem! Tente chamar, quero ver. O dono do bar chamou. Três garçons, que estavam de sobreaviso, entraram ao ouvir sua voz, cada um com um porrete na mão, e o operário se viu forçado, embora sua vontade de resistir fosse grande, a se retirar com o rabo entre as pernas. Ao sair, perambulou algum tempo pela cidade e, na hora do almoço, entrou na cantina onde os operários costumavam fazer as refeições. Acabava de tomar sua sopa quando os operários, que haviam encerrado o expediente, entraram. Ao identificarem-no, pararam na porta e, chamando o dono, declararam que se aquele homem continuasse a fazer suas refeições no estabelecimento, eles desertariam; todos eles. O dono da cantina perguntou o que o sujeito fizera para ser alvo do opróbrio geral. Contaram-lhe que era o homem que dera uma bofetada em Henrique IV. — Rua! — esbravejou o dono, avançando contra ele. — Espero que a comida lhe tenha servido de veneno! Havia menos possibilidade ainda de resistir na cantina do que no bar do cabaré. O operário maldito levantou-se e ameaçou. Abriram-lhe caminho não por causa das ameaças que proferira, mas pela profanação que cometera. Ele saiu dali furioso e passou parte da noite vagando pelas ruas de SaintDenis, praguejando e blasfemando. Mais tarde, por volta das dez horas, voltou à sua pensão. Contrariando a rotina da casa, as portas estavam fechadas. Bateu. O proprietário do imóvel apareceu na janela. Como a noite estava escura, não reconheceu quem batia. — Quem é o senhor? — perguntou. O operário se identificou. — Ah! — disse o proprietário. — O que deu a bofetada em Henrique IV. Espere. — O quê? O que devo esperar? — reclamou o operário, com impaciência. Nesse ínterim, um embrulho caiu aos seus pés. — O que é isso? — perguntou o operário. — Todos os seus pertences. — Como assim, “todos os meus pertences”? — É isso mesmo. Você pode ir atrás de um lugar para dormir. Não quero esta casa desabando na minha cabeça. O operário, furioso, pegou um paralelepípedo e jogou na porta. — Espere! — disse o proprietário. — Vou acordar seus colegas e veremos. O operário compreendeu que ficar ali não lhe traria nenhuma vantagem. Retirou-se e, tendo encontrado uma porta aberta a cem passos dali, entrou e se deitou sob um galpão. Nesse galpão, havia palha; ele se deitou sobre a palha e dormiu. Às quinze para a meia-noite, pareceu-lhe que alguma coisa tocava seu ombro. Despertou e viu à sua frente uma luz branca, em forma de mulher, fazendolhe sinal para que a seguisse. Ele julgou ser uma das infelizes que sempre têm um quartinho e prazer para aqueles que podem pagar por essas coisas. Como tinha dinheiro, como preferia passar a noite agasalhado e deitado numa cama do que num galpão e deitado na palha, levantou-se e foi atrás da mulher. A mulher seguiu por um instante as casas do lado esquerdo da Grande-Rue, atravessou-a e, continuando a sinalizar para o operário, entrou num beco à direita. O operário, acostumado àquele carrossel noturno e conhecendo de cor os becos onde costumavam se alojar as mulheres do tipo daquela a quem seguia, não se fez de difícil e entrou na ruela. O beco dava acesso ao campo. Julgando que a mulher morava numa casa isolada, continuou a segui-la. Cem passos adiante, passaram pela brecha de uma cerca, porém, tendo erguido subitamente os olhos, ele percebeu à sua frente a velha abadia de SaintDenis, com seu campanário gigantesco e suas janelas ligeiramente tingidas pelo fogo interior, junto ao qual postava-se o vigia. Ele procurou a mulher com os olhos. Ela desaparecera. Ele estava no cemitério. Quis sair pela mesma passagem estreita. Porém, naquele funil escuro e ameaçador, teve a impressão de ver o espectro de Henrique IV com o braço estendido para ele. O espectro deu um passo à frente; o operário, um passo atrás. No quarto ou quinto passo, a terra falseou sob seus pés e ele caiu de costas dentro do fosso. Julgou então ver levantando à sua volta todos aqueles reis, antecessores e descendentes de Henrique IV. Uns pareciam exibir-lhe os seus cetros; outros as suas mãos de justiça, gritando: “Amaldiçoado seja o sacrílego!” Ao contato daquelas mãos de justiça74 e daqueles cetros, pesados como o chumbo e quentes como o fogo, teve a sensação de que seus membros iam quebrando-se um a um. Havia sido naquele instante que a meia-noite soara e o vigia ouvira as lamentações. Fiz o que pude para consolar o infeliz, mas ele perdera o juízo e, após um delírio de três dias, morreu gritando: “Misericórdia!” * * * — Perdão — interrompeu o médico —, mas não percebo muito bem aonde o senhor deseja chegar com sua história. O incidente com o seu operário mostra que: atormentado pelo acontecido durante o dia, seja em estado de vigília, seja de sonambulismo, ele se pôs a vagar pela noite; que, vagando, entrou no cemitério; e que, enquanto olhava as nuvens em vez de olhar o caminho, caiu na vala, quebrando, naturalmente, em decorrência da queda, um braço e uma perna. Ora, o senhor havia falado de uma profecia que se realizou e não vejo sinal de profecia em nada disso. — Espere, doutor — explicou o cavalheiro —, minha história, a qual, com razão, o senhor diz não passar de um incidente, leva direto à tal profecia que irei expor e que é um mistério. Eis a profecia: Em torno de 20 de janeiro de 1794, após a depredação do túmulo de Francisco I, foi aberto o sepulcro da condessa de Flandres, filha de Filipe o Caolho.75 Esses dois túmulos eram os últimos que restavam a explorar. Todos os mausoléus haviam desmoronado, todos os sepulcros estavam vazios, todas as ossadas achavam-se no ossuário. Uma última sepultura não foi encontrada, a do cardeal de Retz, que diziam haver sido enterrado em Saint-Denis.76 Todos os sepulcros haviam sido lacrados ou quase todos, como o dos Valois e o dos Carlos.77 Restava apenas o sepulcro dos Bourbon,78 que seria lacrado no dia seguinte. O vigia passava sua última noite naquela igreja onde não havia mais nada a vigiar. Recebera portanto autorização para dormir, e usufruía da autorização. À meia-noite, foi acordado pelo som do órgão e de cânticos religiosos. Acordou, esfregou os olhos e voltou a cabeça para o coro, isto é, para o lado do coro de onde vinham os cânticos. Viu então, com espanto, as estalas79 do coro ocupadas pelos religiosos de Saint-Denis; viu um arcebispo oficiando no altar; viu a capela-ardente iluminada e, sob ela, a grande mortalha de ouro, em geral reservada apenas ao corpo dos reis. No momento em que despertava, a missa terminara e o cerimonial do enterro começava. O cetro, a coroa e a mão de justiça, pousados sobre uma almofada de veludo vermelho, foram entregues aos arautos, que os apresentaram a três príncipes, que os receberam. Em seguida, mais deslizando do que andando, e sem que o barulho de seus passos gerasse qualquer eco na sala, avançaram os fidalgos-camareiros, que se apoderaram do cadáver e o transportaram para o mausoléu dos Bourbon, o único que permanecera aberto, enquanto os demais estavam lacrados. O porta-voz real então desceu ao sepulcro e, lá dentro, gritou para os outros arautos, intimando-os a executar sua tarefa. O porta-voz real e os arautos eram em número de cinco. Do fundo do mausoléu, o porta-voz real chamou o primeiro arauto, que desceu carregando as esporas. Depois o segundo, que desceu carregando as manoplas.80 Depois o terceiro, que desceu carregando o escudo. Depois o quarto, que desceu carregando o elmo gravado. Depois o quinto, que desceu carregando a cota de armas.81 Em seguida, chamou o porta-estandarte, que trouxe a bandeira; Os capitães dos suíços,82 dos arqueiros da guarda e dos duzentos fidalgos da casa; O grão-escudeiro, que trouxe a espada real; O camareiro-mor, que trouxe uma segunda bandeira da França; 
Viu então, com espanto, as estalas do coro ocupadas pelos religiosos de SaintDenis. O chefe do cerimonial, diante do qual passaram todos os servos da corte, lançando batutas brancas no mausoléu e saudando os três príncipes portadores da coroa, do cetro e da mão de justiça, à medida que eles desfilavam. Os três príncipes, portadores do cetro, da mão de justiça e da coroa. Então o porta-voz real proclamou três vezes: — O rei está morto; viva o rei! Um arauto, que permanecera no coro, repetiu o anúncio tríplice. Por fim, o chefe do cerimonial quebrou sua batuta, simbolizando que a casa real estava rompida e que os oficiais do rei podiam se locupletar. Imediatamente as trombetas soaram e o órgão despertou. Enquanto o toque das trombetas ia perdendo força e o órgão gemia cada vez mais baixo, as luzes dos círios empalideceram, os corpos dos presentes se apagaram e, ao último gemido do órgão, ao último som da trombeta, tudo desapareceu. No dia seguinte, o vigia, chorando copiosamente, relatou o enterro real a que assistira e o qual, pobre homem, fora o único a presenciar, e anunciou a futura restauração daqueles túmulos mutilados e, a despeito dos decretos da Convenção e do furor da guilhotina, a volta de uma nova monarquia na França e de novos reis a Saint-Denis. Tal profecia significou a prisão e quase o cadafalso para o pobre-diabo, que, trinta anos mais tarde, isto é, em 20 de setembro de 1824, por trás da mesma coluna onde tivera sua visão, me dizia, puxando a manga do meu paletó: — E então, sr. Lenoir, quando eu lhe dizia que nossos pobres reis voltariam um dia a Saint-Denis, por acaso eu estava enganado? Com efeito, naquele dia Luís XVIII era enterrado segundo o mesmo cerimonial que o guardião dos túmulos vira desenrolar-se trinta anos antes. Explique esta, doutor. 

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