domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 762 : Artifaille

Artifaille

Seja porque se deixara convencer, seja, como é mais provável, porque lhe pareceu difícil refutar um homem como o cavaleiro Lenoir, o médico se calou. Tal silêncio deixava terreno livre para os comentadores. O padre Moulle saltou na arena. — Tudo isso não faz senão confirmar o meu sistema — disse ele. — E o que diz o seu sistema? — indagou o médico, encantado de retomar a polêmica com rivais menos severos que o sr. Ledru e o cavaleiro Lenoir. — Que vivemos entre dois mundos invisíveis,83 povoados um por espíritos infernais, outro por espíritos celestiais; que, na hora do nosso nascimento, dois gênios, um bom, outro mau, vêm instalar-se ao nosso lado e nos acompanham a vida inteira, um nos soprando o bem, o outro, o mal; e que, na hora da morte, um deles triunfa e se apodera de nós. Assim, nosso corpo torna-se ou a vítima de um demônio ou o abrigo de um anjo. No caso da pobre Solange, o gênio bom triunfara, e era ele que lhe dizia adeus, Ledru, pelos lábios mudos da jovem mártir; no caso do bandoleiro condenado pelo juiz escocês, foi o demônio que prevaleceu e era ele que aparecia sucessivamente ao juiz na pele de um gato, ou fardado como um meirinho ou sob a forma de um esqueleto. Por último, no terceiro caso, foi o anjo da monarquia que vingou no sacrílego a terrível profanação dos túmulos, e que, como Cristo manifestando-se aos humildes, apontou a futura restauração da realeza para um pobre vigia dos túmulos, e isso com a mesma pompa que teria a fantástica cerimônia caso tivesse sido testemunhada por todos os futuros nobres da corte de Luís XVIII. — Mas afinal, sr. padre — questionou o médico —, seu sistema todo baseia-se numa convicção. — Sem dúvida. — Ora, para que seja real, essa convicção deve repousar sobre algum fato. — É sobre um fato, justamente, que a minha repousa. — Sobre um fato narrado por alguém de sua absoluta confiança? — Sobre um fato que aconteceu comigo mesmo. — Ah, padre, gostaríamos de ouvi-lo. — Será um prazer. Nasci naquela região herdada dos reis de outrora, hoje departamento do Aisne, antiga Île-de-France. Meu pai e minha mãe moravam numa pequena aldeia situada no meio da floresta de Villers-Cotterêts, cujo nome é Fleury. Antes de eu nascer, meus pais já tinham tido cinco filhos, três meninos e duas meninas, e todos haviam morrido. Daí resultou que minha mãe, ao engravidar de mim, fez a promessa de me vestir de branco até a idade de sete anos, enquanto meu pai jurou efetuar uma peregrinação a Nossa Senhora de Liesse. Essas duas promessas não são raras na província e estavam intimamente interligadas, uma vez que o branco é a cor da Virgem e que Nossa Senhora de Liesse não é ninguém menos que a Virgem Maria. Infelizmente, meu pai morreu durante a gravidez de minha mãe, a qual, não obstante, mulher devota, resolveu cumprir rigorosamente a dupla promessa. Assim que nasci, vestiram-me de branco dos pés à cabeça; e, assim que se viu em condições de andar, minha mãe fez a pé, como prometido, a peregrinação sagrada. Por sorte, Nossa Senhora de Liesse localizava-se a apenas sessenta ou setenta quilômetros da aldeia de Fleury. Em três etapas, minha mãe chegou ao seu destino. Lá, fez suas devoções e recebeu das mãos do pároco uma medalhinha de prata, que prendeu no meu pescoço. Graças a essa dupla promessa, saí ileso de todos os acidentes da juventude e, quando alcancei a idade da razão, fosse pela educação religiosa que eu recebera, fosse por influência da medalha, senti-me impelido para a carreira eclesiástica. Tendo feito meus estudos no seminário de Soissons, em 1780 saí de lá padre e fui nomeado vigário em Étampes. Uma coincidência fez com que me fosse atribuída, das quatro igrejas de Étampes, aquela sob a invocação de Nossa Senhora. Essa igreja é um dos monumentos maravilhosos que a época romana legou à Idade Média. Iniciada por Roberto o Forte,84 foi terminada apenas no século XII. Ainda hoje tem vitrais admiráveis, os quais, por ocasião de sua edificação, deviam se harmonizar primorosamente com a pintura e a douradura que cobriam suas colunas e ornavam seus capitéis. Criança, eu me deslumbrara com aquelas magníficas flores de granito que a fé extraiu da terra, do século X ao XVI, para cobrir o solo da França, essa filha primogênita de Roma, com uma floresta de igrejas, apenas detida quando a fé morreu nos corações, assassinada pelo veneno de Lutero e Calvino.85 Ainda pequeno, eu brincara nas ruínas de São João de Soissons.86 Deleitara meus olhos diante da inventividade de todos aqueles altos-relevos, que também parecem flores petrificadas, de maneira que, quando vi Nossa Senhora de Étampes, fiquei feliz que o acaso, ou melhor, a Providência, me houvesse destinado, andorinha, aquele ninho, martim-pescador, aquele navio. Assim, meus momentos felizes eram os vividos na igreja. Não quero dizer que foi um sentimento puramente religioso que me enraizou ali, não, era uma sensação de bem-estar comparável à do pássaro que tiramos da máquina pneumática, quando nela vigora o vácuo, para devolvê-lo ao espaço e à liberdade.87 Já o meu espaço era aquele que ia do portão à capela-mor; minha liberdade era sonhar de joelhos, por duas horas, sobre um túmulo ou recostado numa coluna. Com que sonhava? Jamais com filigranas teológicas; não, era com a luta eterna entre o bem e o mal, que dilacera o homem desde o dia do pecado; era com os belos anjos de asas brancas e os horríveis demônios de faces vermelhas, que, a cada raio de sol, faiscavam nos vitrais, uns resplandecentes de fogo celeste, os outros flamejantes como as labaredas do inferno. A igreja de Nossa Senhora, enfim, era a minha casa. Ali eu vivia, pensava, orava. A casinha presbiteriana que me haviam cedido não passava de meu teto, para comer e dormir, nada além disso. Sendo assim, muitas vezes eu só me despedia de minha bela Nossa Senhora à meia-noite ou uma da manhã. Isso era sabido. Quando eu não estava no presbitério, estava na igreja. Lá iam me procurar e lá me encontravam. Poucos rumores mundanos chegavam a mim, confinado como eu estava naquele santuário de religião e, sobretudo, de poesia. Dentre esses rumores, contudo, havia um que interessava a todos, pequenos e grandes, clérigos e leigos. As cercanias de Étampes vinham sendo alvo das proezas de um sucessor, ou melhor, de um rival de Cartouche e Poulailler88 que, pelo menos no que se refere a audácia, parecia seguir os passos de seus antecessores. Esse bandoleiro, que atacava tudo, mas em especial as igrejas, recebera a alcunha de Artifaille. Uma das coisas que me fez dar uma atenção mais especial às suas proezas foi o fato de sua mulher, que morava na cidade baixa de Étampes, ser uma das minhas penitentes mais assíduas. Mulher corajosa e digna, para quem os crimes perpetrados pelo marido eram um peso na consciência, ela julgava-se responsável perante Deus como esposa. Passava a vida em meio a preces e confissões, esperando, com suas obras pias, atenuar a impiedade do marido. Quanto a ele, torno a dizer, era um bandido que não temia nem a Deus nem ao diabo. Proclamava que a sociedade era malfeita, que fora enviado à terra a fim de corrigi-la, que, graças a ele, o equilíbrio entre as fortunas seria restabelecido, pois não passava do precursor de uma seita que todos veriam despontar e que pregaria o seu único princípio, ou seja, a partilha dos bens. Por vinte vezes fora preso e levado à prisão, mas, quase sempre, na segunda ou terceira noite, haviam encontrado a prisão vazia. Como ninguém explicava aquelas evasões, diziam que ele descobrira uma erva que cortava ferro. Havia, portanto, certa magia associada àquele homem. Era o que, reconheço, eu pensava quando sua pobre mulher vinha se confessar comigo, admitindo seus terrores e me pedindo conselhos. Embora eu a houvesse aconselhado a usar de toda sua influência sobre o marido para reconduzi-lo ao bom caminho, tal influência era praticamente nula. Restava-lhe então o eterno consolo da graça, que a oração possibilita junto ao Senhor. As festas da Páscoa do ano 1783 se aproximavam. Era a noite de quinta para sexta-feira santa. Ao longo de todo o dia, eu ouvira um grande número de confissões e, por volta das oito da noite, sentia-me tão cansado que cochilei no confessionário. O sacristão bem que me viu dormindo, mas, conhecendo meus hábitos e sabendo que eu estava com uma chave da portinha da igreja, sequer pensou em me acordar. Aquilo já me havia acontecido uma centena de vezes. Então eu estava dormindo quando, no meio do sono, senti ressoar uma espécie de barulho duplo.

Artifaille. Um era a vibração do martelo de bronze, dando meia-noite. O outro era o rumor de passos no lajeado. Abri os olhos, prestes a deixar o confessionário, quando, à luz do luar que atravessava o vitral de uma das janelas, julguei ter visto um homem passar. Como esse homem caminhava com precaução, observando à sua volta a cada passo que dava, supus que não era um dos coroinhas, ou o bedel, ou o chantre, nem tampouco qualquer dos frequentadores da igreja, mas algum intruso com más intenções. O visitante noturno foi até o coro, onde se deteve. No fim de um instante, ouvi o estampido do ferro sobre a pederneira, vi cintilar uma faísca, o pavio se inflamou e um fósforo foi fixar sua luz erradia na extremidade de uma vela pousada no altar. À luz dessa vela, pude então ver um homem de estatura mediana, carregando no cinto dois pistoletes e um punhal, cujo semblante era sarcástico mais que terrível. Lançando um olhar inquiridor por toda a extensão da circunferência iluminada pela vela, ele pareceu completamente satisfeito com o que viu. Consequentemente, tirou do bolso não um molho de chaves, mas um molho desses instrumentos destinados a substituí-las, apelidados “rouxinóis”, sem dúvida a partir do famoso Rossignol, que se gabava de ter a chave de todos os códigos.89 Pondo-o a seu serviço, abriu o tabernáculo, dele retirou primeiro o santo cibório, magnífica taça de prata antiga, cinzelada no reinado de Henrique II, depois um ostensório maciço, doado à cidade pela rainha Maria Antonieta, e, por fim, duas galhetas de estanho. Como isso era tudo que havia no tabernáculo, fechou-o com cuidado e se pôs de joelhos para abrir a parte inferior do altar, que servia como relicário. A parte inferior do altar guardava uma Nossa Senhora de cera consagrada por uma coroa de ouro e diamantes, trajando uma túnica bordada com pedras preciosas. Cinco minutos depois, o relicário, cujas paredes de vidro o ladrão quebrara, encontrava-se aberto como o tabernáculo, com a ajuda de uma gazua, e ele se preparava para juntar a túnica e a coroa ao ostensório, às galhetas e ao santo cibório, quando, não tolerando mais aquele roubo, saí do confessionário e avancei em direção ao altar. O barulho que produzi ao abrir a porta fez com que o ladrão se voltasse e inclinasse para o meu lado, tentando perscrutar as sombras na igreja, mas o confessionário estava fora do alcance de sua luz, de modo que ele só me viu realmente quando entrei no círculo iluminado pela chama tremeluzente da vela. Ao perceber um homem, o ladrão se apoiou no altar, puxou um pistolete do cinto e o apontou em minha direção. Minha batina preta, contudo, mostrou-lhe imediatamente que eu não passava de um simples e inofensivo padre, tendo como salvaguarda apenas a fé e, como arma, apenas a palavra. Apesar da ameaça do pistolete apontado para mim, avancei até os degraus do altar. Eu pressentia que, se ele atirasse em mim, ou o pistolete falharia, ou a bala desviaria. Tinha na mão a minha medalha de prata e me sentia impregnado do amor sagrado de Nossa Senhora. Aquela serenidade do pobre vigário pareceu balançar o bandido. — O que deseja? — ele perguntou, com uma voz que se esforçava para demonstrar segurança. — O senhor é o tal Artifaille? — rebati. — O senhor ainda tem dúvidas?! — ele respondeu. — Quem mais se atreveria a entrar sozinho numa igreja como faço? — Pobre pecador insensibilizado, que sente orgulho de seu crime — eu lhe disse —, não compreende que neste seu jogo não perde somente o seu corpo, mas a alma também? — Bah! — desdenhou ele. — Meu corpo, já o salvei tantas vezes que estou certo de voltar a salvá-lo, e quanto a minha alma… — Muito bem! E quanto a sua alma? — Isso é da competência da minha mulher: ela é santa por nós dois e salvará minha alma junto com a dela. — Tem razão, sua mulher é uma santa, meu amigo, e certamente morreria de desgosto se soubesse que consumou o crime que está em vias de executar. — Oh, oh! Acha que minha pobre mulher morrerá de desgosto? — Tenho certeza disso. — Muito bem! Então ficarei viúvo — continuou o ladrão, caindo na risada e estendendo as mãos para os vasos sagrados. Mas eu subi os três degraus do altar e segurei-lhe o braço. — Não — eu lhe disse —, pois não cometerá esse sacrilégio. — E quem irá me impedir? — Eu. — Pela força? — Não, pela persuasão. Deus não enviou seus ministros à terra para que usassem da força, uma coisa humana, mas da persuasão, que é uma virtude celestial. Meu amigo, não é pela igreja, que pode arranjar outros vasos, mas pelo senhor, que não poderá redimir-se do pecado. Amigo, o senhor não cometerá tal sacrilégio! — E essa agora! Por acaso acha que é o primeiro, bom homem? — Não, sei que é o décimo, o vigésimo, talvez o trigésimo, mas o que importa? Até aqui seus olhos estavam fechados, eles se abrirão esta noite, não tenho dúvida. Não ouviu falar de um homem chamado Saulo, que segurava o manto dos que apedrejavam santo Estêvão? Pois bem! Esse homem tinha os olhos cobertos por escamas, como ele mesmo conta. Um dia, as escamas caíram de seus olhos, ele enxergou e era são Paulo. Sim, são Paulo. O grande, o ilustre são Paulo.90 — Mas, padre, são Paulo não foi enforcado? — Foi.91 — Pois então! Para que lhe serviu enxergar? — Para convencê-lo de que às vezes a salvação está no suplício. Hoje são Paulo goza de um nome venerado na terra e da beatitude eterna no céu. — Com que idade são Paulo enxergou? — Trinta e cinco anos. — Passei da idade. Tenho quarenta. — Nunca é tarde para se arrepender. Na cruz, Jesus dizia ao mau ladrão: “Uma oração, e salvo-te.”92 — Percebo! Pelo que vejo, tem grande apreço pela sua prataria… — disse o bandido, me fitando. — Não, tenho apreço pela sua alma, que desejo salvar. — Minha alma! Você quer que eu acredite nisso? Essa é boa! — Quer que eu lhe prove que é sua alma que eu prezo? — perguntei. — Sim, dê-me essa prova, quero ver. — Em quanto estima o roubo que está para cometer? — He, he! — disse o ladrão, observando com deleite as galhetas, o cálice, o ostensório e a túnica da Virgem. — Em mil escudos. — Mil escudos? — Sei muito bem que vale o triplo. Mas a gente sempre perde uns dois terços. Esses diabos de judeus são uns ladrões! — Venha à minha casa. — À sua casa? — Sim, à minha casa, ao presbitério. Tenho mil francos em dinheiro, dou-lhe em forma de adiantamento. — E os outros dois mil? — Os outros dois mil? Está certo, eu prometo, palavra de padre, que irei à minha terra de origem, onde minha mãe tem algum patrimônio, venderei três ou quatro terrenos para chegar aos outros dois mil, que darei a você. — Sei… para marcar um encontro comigo e me fazer cair em alguma armadilha? — Você não acredita realmente que eu faria isso — eu lhe disse, estendendo a mão para ele. — Muito bem, é verdade, não acredito — ele admitiu, com uma expressão sombria. — Quer dizer que sua mãe é rica? — Minha mãe é pobre. — Ficará arruinada, então? — Quando eu lhe contar que, ao preço de sua ruína, eu talvez tenha salvado uma alma, ela me abençoará. Aliás, se perder tudo, virá morar comigo: sempre terei para dois. — Aceito — ele aquiesceu. — Vamos à sua casa. — De acordo, mas espere. — O quê? — Guarde no tabernáculo os objetos que pegou, feche-o a chave, isso lhe trará felicidade. O cenho do bandido franziu-se como o de um homem que, à sua revelia, está sendo invadido pela fé. Recolocou os vasos sagrados no tabernáculo e fechou-o. — Vamos — disse ele. — Antes, faça o sinal da cruz — exigi. Ele tentou uma risada de menosprezo, mas a risada extinguiu-se por si só. Então ele fez o sinal da cruz. — Agora, siga-me — eu ordenei. Saímos pela portinha. Em menos de cinco minutos estávamos em minha casa. No trajeto, por mais curto que fosse, o bandido parecera bastante inquieto, olhando em volta e temendo que eu o estivesse arrastando para alguma emboscada. Ao chegarmos, ele se manteve próximo à porta. — E então! Esses mil francos? — ele perguntou. — Espere — respondi. Acendi uma vela com a que havia trazido da igreja, prestes a se apagar. Abri um armário, peguei um saco. — Aqui estão — eu lhe disse. E entreguei-lhe o saco. — E quanto aos outros dois mil, quando os terei? — Peço-lhe seis semanas. — Está bem, dou-lhe seis semanas. — A quem os entregarei? O bandido refletiu um instante. — À minha mulher — disse. — Está bem! — Mas ela não pode saber de onde vem o dinheiro, nem como o ganhei! — Não saberá, nem ela nem ninguém. Em contrapartida, você nunca mais tentará nada contra Nossa Senhora de Étampes, ou contra qualquer outra igreja sob invocação da Virgem! — Nunca mais! — Jura?

“E então! Esses mil francos?” — Palavra de Artifaille. — Vá, irmão, e não peque mais. Saudei-o, fazendo-lhe sinal com a mão de que estava livre para se retirar. Ele pareceu hesitar um momento. Depois, abrindo a porta com precaução, desapareceu. Ajoelhei-me… e rezei por aquele homem. Eu não havia terminado minha prece quando ouvi baterem na porta. — Entre — eu disse, sem me voltar. Com efeito, alguém, vendo-me a rezar, parou na entrada e se manteve de pé atrás de mim. Quanto terminei, voltei-me e vi Artifaille imóvel e hirto junto à porta, sobraçando o saco. — Tome — disse ele —, estou lhe trazendo de volta seus mil francos. — Meus mil francos? — Sim, e o considero quite no que se refere aos outros dois mil. — E ainda assim mantém sua promessa? — Mas está claro! — Então se arrepende? — Não sei se me arrependo, mas não quero seu dinheiro, ponto final. E colocou o saco na beirada da cômoda. Em seguida, livre do saco, parou como se para pedir alguma coisa, mas era visível sua dificuldade em fazê-lo. — O que deseja? — perguntei. — Fale, meu amigo. O senhor acaba de fazer uma boa ação. Não tenha vergonha de fazer melhor. — É grande sua devoção por Nossa Senhora? — ele me perguntou. — Grande. — A ponto de, mediante sua intercessão, um homem, por mais culpado que seja, ser salvo na hora da morte? Pois bem! Em troca dos seus três mil francos, os quais eu considero pagos, dê-me alguma relíquia, algum rosário, algum relicário que eu possa beijar na hora da minha morte. Soltei a medalha e a corrente de ouro que minha mãe me colocara no pescoço no dia de meu nascimento e, embora nunca me houvessem deixado desde então, entreguei-as ao ladrão. Ele pousou os lábios na medalha e fugiu. Um ano se passou sem que eu ouvisse falar de Artifaille. Sem dúvida, deixara Étampes para agir em outras plagas. Nesse ínterim, recebi uma carta de meu confrade, o vigário de Fleury. Minha bondosa mãe estava muito doente e me chamava junto a si. Obtive uma licença e fui. Seis ou oito semanas de cuidados e preces devolveram-lhe a saúde. Despedimo-nos, eu, alegre, ela restabelecida, e retornei a Étampes. Cheguei numa sexta-feira à noite. A cidade estava em polvorosa. O famoso ladrão Artifaille fora preso na região de Orléans e julgado no tribunal dessa cidade. Após ser condenado, fora transferido para ser enforcado em Étampes, pois aqui havia sido o principal teatro de seus crimes. A execução acontecera naquela manhã mesmo. Isso foi o que eu soube na rua, mas, ao entrar no presbitério, soube de outra coisa: que uma mulher da cidade baixa viera na manhã da véspera (isto é, no momento em que Artifaille chegara a Étampes para lá sofrer seu suplício) indagar mais de dez vezes se eu estava de volta. Tal insistência não era despropositada. Eu escrevera comunicando minha chegada próxima e era esperado de uma hora para outra. Na cidade baixa, eu não conhecia senão a pobre e recente viúva. Resolvi ir à sua casa antes mesmo de bater a poeira dos pés. Do presbitério à cidade baixa era um pulo. Soavam as dez horas da noite, é verdade, mas, uma vez que seu desejo de me ver era tão ardente, a pobre mulher não se sentiria incomodada com a minha visita. Dirigi-me então ao subúrbio e perguntei pela sua casa. Como todos a consideravam uma santa, ninguém a incriminava pelo crime do marido, ninguém a envergonhava por sua vergonha. Cheguei à porta. O postigo estava aberto e, pela vidraça, pude ver a pobre mulher ao pé da cama, ajoelhada e rezando. Pelo movimento de seus ombros, presumia-se que soluçava ao rezar. Bati na porta. Ela se levantou e veio abrir apressadamente. — Ah, sr. padre! — ela exclamou. — Eu já estava adivinhando. Quando bateram, sabia que era o senhor. Ai de mim! Ai de mim! Agora é tarde demais. Meu marido morreu sem confissão. — Ele então morreu em pecado? — Não. Muito pelo contrário, tenho certeza de que era cristão no fundo da alma, mas declarou não querer outro padre além do senhor. Não se confessaria senão com o senhor e, se não confessasse com o senhor, não se confessaria com ninguém a não ser Nossa Senhora. — Ele disse isso? — Sim, e, enquanto dizia, beijava uma medalhinha da Virgem pendurada no pescoço com uma corrente de ouro, recomendando acima de tudo que não lhe confiscassem aquela medalha e afirmando que se fosse enterrado com ela os maus espíritos não teriam nenhum poder sobre seu corpo. — Foi tudo que ele disse? — Não. Ao se despedir de mim, antes de caminhar para o cadafalso, ele disse também que o senhor chegaria esta noite e viria me visitar assim que chegasse. Eis por que eu estava à sua espera. — Ele lhe disse isso? — perguntei, impressionado. — Sim, e também me encarregou de uma última súplica. — Amim? — Ao senhor. Ele me ordenou que, independentemente da hora que o senhor chegasse, eu lhe pedisse… Meu Deus, não vou me atrever a pedir uma coisa dessas. — Peça, boa mulher, peça. — Pois bem, devo pedir-lhe que vá à Justiça,93 e lá, aos pés do cadafalso, que reze, em prol de sua alma, cinco Pais-nossos e cinco Ave-Marias. Ele afirmou que o senhor não recusaria, padre. — E estava com a razão, pois lá irei. — Oh, como é generoso! Segurou-me as mãos e quis beijá-las. Desvencilhei-me. — Vamos, boa mulher — eu lhe disse —, coragem! — Entrego-me a Deus, sr. padre, não me queixo. — Seu marido não lhe pediu mais nada? — Não. — Muito bem! Se ver tal desejo realizado é a condição para o repouso de sua alma, sua alma então repousará. Saí. Eram aproximadamente dez e meia. Estávamos nos últimos dias de abril e um vento frio ainda soprava. O céu, contudo, estava bonito, especialmente propício para um pintor, pois a lua rolava num mar de ondas escuras que imprimiam um caráter intenso ao horizonte. Passei pelas velhas muralhas da cidade e cheguei à porta de Paris. Depois das onze horas, era a única porta de Étampes que permanecia aberta. O objetivo de minha incursão era um mirante do qual, hoje como na época, avistava-se toda a cidade. Atualmente, porém, não restam da forca, que então reinava nesse mirante, senão três fragmentos da cantaria de sustentação a três postes, ligados entre si por duas vigas, e que formavam o patíbulo. Para chegar a essa esplanada, à esquerda da estrada de Étampes a Paris e à direita da de quem vem de Paris a Étampes, era preciso passar ao pé da torre de Guinette, posto avançado que parece uma sentinela, postada solitariamente na planície para proteger a cidade.94 Dessa torre, que o senhor deve conhecer, cavaleiro Lenoir, e que Luís XI tentou em vão explodir outrora, resta apenas um esqueleto. Ele parece observar o patíbulo, do qual vê apenas a extremidade, com a órbita escura de um grande olho sem pupila. De dia, serve de morada aos corvos; à noite, é o palácio das corujas e alucos. Tomei, em meio a seus pios e cantos, o caminho da esplanada, caminho estreito, difícil, acidentado, escavado na pedra, desbravado através das touceiras. Não digo que sentisse medo. O homem que crê em Deus, que se entrega a ele, nada deve temer. Mas admito que estava abalado. Não se ouvia no mundo senão o tique-taque monótono do moinho da cidade baixa, o pio das corujas e o silvo do vento nos arbustos. A lua penetrava numa nuvem escura, cujas extremidades ela bordava com uma franja esbranquiçada. Meu coração batia forte. Eu intuía que encontraria não o que viera buscar, mas alguma coisa inesperada. Continuei a subir. Chegando a um certo ponto da subida, comecei a distinguir a extremidade superior do patíbulo, composto de seus três pilares e daquela dupla trave de carvalho que mencionei. É nessas traves de carvalho que são penduradas as cruzes de ferro nas quais os supliciados são presos. Eu percebia, como uma sombra móvel, o corpo do infeliz Artifaille, que o vento balançava no espaço. Estaquei de repente. Agora, de sua extremidade superior à base, eu descortinava o patíbulo. Percebi uma massa amorfa, que lembrava um animal de quatro patas se agitando. Parei e agachei-me atrás de uma pedra. Aquele animal era maior que um cão, mais encorpado que um lobo. De repente ele se levantou sobre as patas traseiras e percebi que o tal animal não passava daquele que Platão chamava de um bípede implume, isto é, um homem.95 O que um homem poderia estar fazendo àquela hora sob um patíbulo? Das duas, uma: ou era um coração religioso vindo para rezar, ou um coração irreligioso que viera cometer algum sacrilégio. Em todo caso, resolvi ficar calado e esperar. Naquele momento, a lua saiu da nuvem que a escondera por alguns instantes e o luar bateu em cheio no patíbulo. Então pude ver nitidamente o homem, inclusive todos os movimentos que fazia. Ele recolheu uma escada deitada no chão e apoiou-a num dos pilares, o mais próximo possível do cadáver do enforcado. Em seguida, subiu na escada, passando a formar, junto com o enforcado, um todo estranho, no qual o vivo e o morto pareciam confundir-se num abraço. De repente, um grito terrível ecoou. Vi os dois corpos se agitarem. Ouvi um pedido de ajuda, uma voz estrangulada que logo perdeu nitidez. Quase instantaneamente, um dos dois corpos se soltou do patíbulo, enquanto o outro permanecia pendurado na corda, agitando braços e pernas. Era-me impossível adivinhar o que se passava sob a máquina infame, mas enfim, obra do homem ou do demônio, acabava de acontecer ali alguma coisa de extraordinário. Alguma coisa que pedia ajuda, que exigia e clamava por socorro.

Tinha os olhos saltados das órbitas, a face azulada, o maxilar quase retorcido e uma respiração que mais parecia um estertor saído do peito. Avancei num impulso. Ao me ver, o enforcado pareceu ainda mais agitado, enquanto, embaixo dele, imóvel e estirado, jazia o corpo que se soltara do patíbulo. Corri primeiro para o vivo. Subi rapidamente a escada e, com minha faca, cortei a corda. O enforcado caiu no chão, eu pulei dos degraus que subira. O enforcado debatia-se em horríveis convulsões, o outro cadáver permanecia imóvel. Compreendi que a corda continuava a esganar o pobre-diabo. Deitei-me sobre ele para imobilizá-lo e, com grande dificuldade, afrouxei o laço que o estrangulava. Durante essa operação, obrigado a encarar o homem, espantei-me ao reconhecer o carrasco. Tinha os olhos saltados das órbitas, a face azulada, o maxilar quase retorcido e uma respiração que mais parecia um estertor saído do peito. Enquanto isso, o ar voltava pouco a pouco a seus pulmões e, com ele, a vida. Eu o havia recostado numa grande pedra. No fim de um instante, ele pareceu recuperar os sentidos, tossiu, girou o pescoço ao tossir e terminou por me olhar de frente. Seu espanto não foi menor do que o meu. — Oh, oh, sr. padre — exclamou ele —, é o senhor? — Sim, sou eu. — O que está fazendo aqui? — ele me perguntou. — E o senhor? Ele pareceu recobrar o raciocínio. Olhou mais uma vez à sua volta, mas dessa vez seus olhos detiveram-se no cadáver. — Ah — disse ele, tentando se erguer —, vamos embora, padre. Em nome dos céus, vamos embora! — Vá embora se quiser, amigo, eu tenho um dever a cumprir. — Aqui? — Aqui. — Qual seria? — Esse infeliz, hoje enforcado pelo senhor, desejou que eu viesse ao pé do patíbulo rezar cinco Pais-nossos e cinco Ave-Marias para a salvação de sua alma. — Para a salvação de sua alma? Oh, padre, não vai ser fácil, esse sujeito era Satanás em pessoa. — Como assim, Satanás em pessoa? — Sem dúvida, não acaba de ver o que ele me fez? — Como! O que ele lhe fez… E o que o senhor lhe fez? — Ele me enforcou, caramba! — Ele o enforcou? Pois eu achava, ao contrário, que havia sido o senhor a lhe prestar esse triste favor. — Antes fosse! Julgava tê-lo efetivamente enforcado de uma vez por todas. Devo ter me enganado. Mas por que ele não se aproveitou do momento em que tomei seu lugar na forca para fugir? Fui até o cadáver, virei-o. Estava rígido e frio. — Ora, porque está morto — afirmei. — Morto! — repetiu o carrasco. — Morto! Ah, diabos! É bem pior do que eu pensava. Fujamos, padre, fujamos. E levantou-se. — Ora, que tolice! — reconsiderou. — Melhor ficar, ele iria se levantar e correr atrás de mim. O senhor pelo menos, que é um santo homem, me defenderá. — Meu amigo — eu disse ao verdugo, olhando-o fixamente —, há algum mistério por trás de tudo isso. Ainda agora o senhor me perguntava o que eu vinha fazer aqui a esta hora. Pois eu lhe perguntaria: “O que veio o senhor fazer aqui?” — Ah, acredite, padre, o que trago no peito lhe deveria ser contado apenas em confissão, e não de outra forma. Mas, raios! Contarei de outra forma. Agora, preste atenção… Fez um movimento para trás. — O que houve? — Ele não está se mexendo? — Não, fique tranquilo, o coitado está completamente sem vida. — Oh, sem vida… sem vida… não importa! Seja como for, vou lhe dizer por que vim, e, se eu mentir, ele me desmentirá, paciência. — Fale. — Precisa saber que esse incréu não quis ouvir falar de confissão. Perguntava apenas, de tempos em tempos: “O padre Moulle chegou?” Respondiam-lhe: “Não, ainda não.” Ele soltava um suspiro. Ofereciam-lhe outro padre, ele reagia: “Não! O padre Moulle… ou ninguém!” — Sim, sei disso. — Ao pé da torre de Guinette, ele parou: “Verifique para mim”, me pediu, “se não vê o padre Moulle chegando.” “Não”, respondi. E retomamos caminho. Ao pé da escada, ele parou mais uma vez. “O padre Moulle não vem?” insistiu. “Oh, chega, eu já lhe disse que não.” Não existe nada mais irritante do que um homem que repete sempre a mesma coisa. “Vamos!” resignou-se ele. Passei-lhe a corda no pescoço. Pus seus pés na escada e intimei-o: “Suba.” Ele subiu sem resistir, mas, ao atingir o terço final da escada, disse: “Espere, permita que eu me certifique de que o padre Moulle não vem.” “Perfeitamente, olhar não é proibido.” Ele então olhou uma última vez para a multidão, e, não o vendo, deu um suspiro. Julguei que estava pronto e que só me restava executar a sentença, porém ele percebeu minha intenção. “Espere”, disse. “O que é agora?” “Eu gostaria de beijar a medalhinha de Nossa Senhora que eu trago no pescoço.” “Ah, quanto a isso, é justíssimo, beije”, autorizei-o. E apliquei-lhe a medalha nos lábios. “E agora, o que há?” perguntei. “Quero ser enterrado com essa medalha.” “Aí eu não sei… Parece-me que todos os despojos do enforcado pertencem ao carrasco.” “Mesmo assim, quero ser enterrado com a minha medalha.” “Isso é hora para querer alguma coisa!” “Quero, e tenho dito!” Perdi a paciência. Ele estava preparado, tinha a corda no pescoço, na outra ponta da corda estava o gancho. “Vá para o inferno!” praguejei. E o lancei no espaço. “Nossa Senhora, tenha pied…” Acredite, foi tudo o que ele pôde dizer. A corda estrangulou o homem e a frase ao mesmo tempo. Nesse instante, o senhor sabe como isso se dá, agarrei a corda, pulei sobre seus ombros e han! han! Estava acabado. Ele não teve motivos para se queixar de mim, garanto que não sofreu. — Mas não me disse por que veio aqui esta noite. — Oh, é o mais difícil de dizer. — Então digo eu: você veio para roubar a medalha. — Pois bem, sim. O diabo me tentou. Pensei comigo: “Ora essa! Quem liga para o que ele quer ou deixa de querer? Quando a noite cair, deixe estar, acertaremos nossas contas.” Então, quando anoiteceu, saí de casa. Eu havia deixado minha escada nos arredores, sabia onde encontrá-la. Fui dar um passeio. Voltei pelo caminho mais longo e, depois, quando não vi mais ninguém na esplanada, quando não ouvi mais nenhum barulho, me aproximei do patíbulo, ergui minha escada, subi, puxei o enforcado, arranquei sua corrente e… — E o quê? — Juro por tudo que é sagrado, acredite se quiser: no momento em que a medalha deixou seu pescoço, o enforcado me agarrou, retirou a cabeça do laço, enfiou minha cabeça no lugar da sua e, juro, me empurrou como eu o havia empurrado. Foi como a coisa se deu. — Impossível, está enganado. — O senhor me encontrou enforcado, sim ou não? — Sim. — Muito bem! Juro que não enforquei a mim mesmo. Eis tudo que posso dizer-lhe. Refleti por um instante. — E a medalha — perguntei —, onde está? — Sei lá, procure por aí, não deve estar longe. Quando me senti esganado, soltei-a. Levantei-me e perscrutei. Um raio de luar incidiu sobre ela como se para me guiar. Recolhi-a. Fui até o cadáver do pobre Artifaille e lhe prendi novamente a medalha no pescoço. No momento em que ela tocou seu peito, uma espécie de frêmito percorreu todo o seu corpo e um grito agudo e quase doloroso saiu de seu peito. O carrasco deu um pulo para trás. Aquele grito irradiou em meu espírito a luz divina. Eu havia lembrado o que as Sagradas Escrituras diziam a respeito dos exorcismos e do grito emitido pelos demônios ao saírem do corpo dos possuídos. O carrasco tremia como vara verde. — Venha cá, meu amigo — eu lhe disse —, e nada tema. Ele se aproximou, hesitante. — O que deseja de mim? — Aqui está um cadáver que deve retornar ao seu lugar. — Jamais! Essa é boa! Para ele me enforcar de novo! — Pois faz mal, meu amigo, responsabilizo-me por tudo. — Mas sr. padre, sr. padre! — Venha cá, repito. Ele deu mais um passo e murmurou: — Hum! Não confio nisso. — E está errado, meu amigo. Enquanto o corpo estiver com a medalha, nada tem a temer. — E por quê? — Porque o demônio não terá nenhum poder sobre ele. Essa medalha o protegia, o senhor a retirou. No mesmo instante, o gênio mau que o impelira ao crime, e que fora repelido por seu anjo bom, voltou para o cadáver. O senhor viu do que é capaz esse gênio mau. — E esse grito que acabamos de ouvir? — Partiu do gênio mau, quando sentiu que sua presa lhe escapava. — Puxa — disse o carrasco —, realmente, pode ter sido isso. — Foi isso. — Então vou recolocá-lo no gancho. — Faça-o. A justiça deve seguir seu curso. A condenação deve se consumar. O pobre-diabo ainda hesitava. — Nada tema — repeti —, responsabilizo-me por tudo. — Mesmo assim — pediu o carrasco —, não me perca de vista e, ao menor grito, venha em meu socorro. — Fique tranquilo, não precisará de mim. Aproximou-se do cadáver, soergueu-o lentamente pelos ombros e puxou-o para a escada enquanto conversava com ele. — Não tenha medo, Artifaille, não é para roubar sua medalha… Continua prestando atenção em mim, não é, padre? — Continuo, amigo, não se preocupe. — Não é para roubar sua medalha — continuou o verdugo, no tom mais conciliador. — Não tenha raiva de mim. Sua vontade será cumprida, será enterrado com ela. É verdade, padre, ele não se mexe. — Está vendo? — Será enterrado com ela. Antes, vou recolocá-lo no seu lugar, por desejo do sr. padre, porque, para mim, você sabe! — Sim, sim — incentivei-o, sem poder me abster de sorrir —, mas acabe logo com isso. — Ufa, consegui — disse ele, soltando o corpo que acabava de prender novamente no gancho e, ao mesmo tempo, saltando para o chão. Imóvel e inanimado, o corpo balançou no espaço. Ajoelhei-me, começando as orações que Artifaille me pedira. — Sr. padre — tornou o carrasco, pondo-se de joelhos ao meu lado —, faria a gentileza de dizer as preces bem alto e devagar para que eu possa repeti-las? — Como, infeliz! Então esqueceu? — Acho que nunca soube. Rezei os cinco Pais-nossos e as cinco Ave-Marias, que o carrasco repetiu conscienciosamente depois de mim. Terminada a oração, levantei-me. — Artifaille — eu disse bem alto ao supliciado —, fiz o que pude pela salvação de sua alma, cabe à bem-aventurada Nossa Senhora fazer o resto. — Amém! — emendou o meu companheiro. Nesse momento, um raio de luar iluminou o cadáver como uma cascata de prata. Ameia-noite soou na igreja de Nossa Senhora. — Vamos — eu disse ao verdugo —, nada nos resta a fazer aqui. — Sr. padre — balbuciou o pobre-diabo —, seria suficientemente generoso para me conceder uma última graça? — E qual seria? — É me acompanhar até em casa. Enquanto eu não sentir minha porta bem fechada entre mim e esse indivíduo, não ficarei tranquilo. — Venha, meu amigo. Deixamos o mirante, não sem que meu companheiro, de dez em dez passos, olhasse por trás dos ombros para verificar se o enforcado continuava no lugar. Nada se mexeu. Voltamos à cidade. Conduzi meu homem até a sua casa e esperei que ele a iluminasse. Em seguida, ele fechou a porta, me disse adeus e agradeceu através da porta. Voltei para casa, sereno de corpo e alma. Quando acordei no dia seguinte, fiquei sabendo que a mulher do ladrão me esperava no refeitório. Tinha o semblante calmo e quase alegre. — Sr. padre — ela me disse —, venho agradecer-lhe: meu marido me apareceu ontem quando dava meia-noite em Nossa Senhora e me disse: “Amanhã de manhã, você irá encontrar o padre Moulle e lhe dirá que, graças a ele e a Nossa Senhora, estou salvo.”

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