domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 763 : O bracelete de fios de cabelo

O bracelete de fios de cabelo

— Caro padre — disse Alliette —, tenho grande estima pelo senhor e veneração por Cazotte.96 Admito sem dificuldade a influência de seus gênios, o bom e o mau, mas há uma coisa que o senhor esquece e de que eu mesmo sou um exemplo: a morte não mata a vida; a morte não passa de um modo de transformação do corpo humano; a morte mata a memória, só isso. Se a memória não morresse, cada homem lembraria todas as peregrinações de sua alma, desde o começo do mundo até hoje. A pedra filosofal97 não é outra coisa senão esse segredo. É este o segredo que Pitágoras descobriu e que redescobriram o conde de Saint-Germain e Cagliostro.98 É o segredo que detenho e que faz com que meu corpo morra, como tenho consciência de que já lhe aconteceu quatro ou cinco vezes, e, ainda assim, quando digo que meu corpo morrerá, estou errado, há determinados corpos que não morrem, e sou um deles. — Sr. Alliette — disse o médico —, em primeiro lugar eu gostaria de lhe pedir uma autorização. — Para quê? — Para abrir seu túmulo um mês após sua morte. — Um mês, dois meses, um ano, dez anos, quando quiser, doutor. Mas tome suas precauções… pois o mal que fará a meu cadáver poderia molestar o outro corpo no qual minha alma tivesse entrado. — Então acredita nessa loucura? — Sou pago para acreditar nela: eu vi. — O que viu? Um desses mortos-vivos? — Exatamente. — Vejamos, sr. Alliette, uma vez que todos contaram uma história, conte a sua também. Seria curioso se fosse a mais verossímil do grupo. — Verossímil ou não, doutor, ei-la em toda a sua verdade. Ia eu de Estrasburgo para as águas de Loèche.99 Conhece a estrada, doutor? — Não, mas não importa, continue. — Pois ia eu de Estrasburgo para águas de Loèche e, naturalmente, passava pela Basileia, onde devia deixar o coche público e alugar uma caleche. Ao chegar ao hotel da Coroa, que me haviam recomendado, informei-me sobre o aluguel de um coche ou de uma caleche, pedindo ao hoteleiro que pesquisasse se alguém na cidade não planejava fazer o mesmo trajeto que eu. Ficou então encarregado de propor a essa pessoa uma associação que a princípio deveria tornar a viagem mais agradável e mais barata. À noite, ele voltou, tendo encontrado o que eu lhe pedia. A mulher de um negociante da Basileia, que acabava de perder o filho de três meses de idade, ao qual amamentava pessoalmente, desenvolvera, em consequência dessa perda, uma doença para a qual lhe recomendavam as águas de Loèche. Era o primeiro filho daqueles jovens, casados há um ano. Segundo o hoteleiro, fora muito difícil convencer a mulher a se separar do marido. Inflexível, ela queria ou ficar na Basileia ou que ele a acompanhasse a Loèche, mas, por outro lado, como seu estado de saúde exigia aquelas águas, ao passo que a loja exigia a presença dele na Basileia, ela se decidira e partiria comigo na manhã seguinte. Sua aia iria acompanhá-la. Um padre católico, que servia à igreja de um pequeno povoado dos arredores, acompanharia-nos e ocuparia o quarto lugar no coche. No dia seguinte, por volta das oito da manhã o coche veio nos buscar no hotel. O padre já estava lá. Embarquei por minha vez e fomos pegar a dama e sua aia. Do interior do coche, assistimos às despedidas dos dois esposos, que, iniciadas na intimidade de sua residência, continuaram na loja e só terminaram na rua. Sem dúvida a mulher tinha algum pressentimento, pois era incapaz de se consolar. Dir-se-ia que em vez de partir para uma viagem de duzentos quilômetros, partia para dar a volta ao mundo. O marido parecia mais calmo que ela, porém estava mais calado do que seria razoável numa separação como aquela. Por fim partimos. O padre e eu, naturalmente, havíamos cedido os dois melhores lugares à viajante e sua aia. Estávamos na frente, portanto, e elas no fundo. Tomamos a estrada de Soleure, e no primeiro dia pernoitamos em Mundischwyll. Nossa companheira mostrara-se atormentada e inquieta o dia inteiro. À noite, tendo visto passar um coche na direção contrária, quis regressar à Basileia. Mas sua aia interveio, conseguindo convencê-la a seguir viagem. No dia seguinte, pegamos a estrada por volta das nove horas da manhã. A jornada era curta. Não pretendíamos ir além de Soleure. Ao cair da noite, quando já avistávamos a cidade, a doente estremeceu. — Por favor — pediu ela —, pare, estão nos perseguindo. Projetei a cabeça para fora da portinhola. — Está enganada, senhora — respondi —, a estrada encontra-se completamente vazia. — Estranho — insistiu ela. — Ouço o galope de um cavalo. Julguei não ter olhado direito. Saí um pouco para fora do coche. — Ninguém, senhora — concluí. Ela verificou pessoalmente e, como eu, viu a estrada deserta. — Então me enganei — admitiu, jogando-se no fundo do coche. E fechou os olhos como uma mulher que deseja concentrar em si mesma os pensamentos. No dia seguinte, partimos às cinco horas da manhã. A jornada seria longa. Nosso condutor só voltaria a dormir em Berna. Na mesma hora da véspera, isto é, por volta das cinco horas, nossa companheira saiu de uma espécie de sono em que estava mergulhada e, estendendo o braço para o cocheiro, disse-lhe: — Condutor, pare. Dessa vez, tenho certeza, estão nos seguindo. — A senhora está enganada — respondeu o cocheiro. — Só vejo três camponeses, pelos quais acabamos de passar e que seguem tranquilamente seu caminho. — Oh, mas ouço o galope do cavalo! Essas palavras eram emitidas com tamanha convicção que não resisti e olhei para trás. Como na véspera, a estrada estava absolutamente deserta. — Impossível, senhora — respondi —, não vejo cavaleiro algum. — Como pode não ver o cavaleiro, se vejo a sombra de um homem e de um cavalo? Olhei na direção para a qual sua mão apontava e, com efeito, vi a sombra de um cavalo e de um cavaleiro. Mas procurei inutilmente os corpos aos quais as sombras pertenciam. Chamei a atenção do padre para esse estranho fenômeno e ele fez o sinal da cruz. Pouco a pouco, aquela sombra se iluminou, ficando cada vez menos visível e, por fim, desapareceu completamente. Entramos em Berna. Todos aqueles presságios pareciam fatais à pobre mulher, que falava o tempo todo em voltar e, não obstante, seguia adiante. Em virtude de seu estado de tensão, ou do progresso natural da doença, ao chegar a Thun a enferma sofria tanto que teve de prosseguir a viagem de liteira. Foi assim que atravessou o vale do Kandertal e o desfiladeiro do Gemmi. Ao chegar a Loèche, uma erisipela se declarou e, durante mais de um mês, ela permaneceu surda e cega. Em todo caso, seus pressentimentos não a haviam enganado: tão logo percorrera oitenta quilômetros, seu marido contraiu uma febre cerebral. A doença fizera progressos tão rápidos que, no mesmo dia, percebendo a gravidade de seu estado, ele enviara um homem a cavalo para avisar a mulher e convidá-la a dar meia-volta. Mas entre Laufren e Breinteibach o cavalo levara um tombo e, na queda, o cavaleiro bateu com a cabeça numa pedra e recolheuse numa estalagem, sem poder fazer nada por aquele que o enviara, a não ser avisá-lo do acidente que sofrera. Outro emissário foi então enviado, mas sem dúvida pairava uma fatalidade sobre eles: na ponta do Kandertal, o homem abandonara seu cavalo e contratara um guia para subir o platô do Schwalbach, que separa o Oberland do Valais, quando, na metade do caminho, uma avalanche no monte Attles lançara-o no abismo. Por um milagre, o guia se salvou. Enquanto isso, a doença do marido fazia progressos terríveis. Fora preciso raspar-lhe o cabelo a fim de proceder a aplicações de gelo em seu crânio. A partir daí, o moribundo perdeu todas as esperanças, e num momento de calma escreveu à mulher: QUERIDA BERTHA, Estou morrendo, mas não quero me separar de você completamente. Faça um bracelete com os fios de cabelo que acabam de me raspar e que mandei guardar. Use-o sempre, creio que assim permaneceremos unidos. SEU FREDERIK Ele entregou essa carta a um terceiro mensageiro, a quem ordenou que partisse imediatamente após sua morte.

O cavalo levara um tombo e, na queda, o cavaleiro bateu com a cabeça numa pedra e recolheu-se numa estalagem, sem poder fazer nada por aquele que o enviara. Morreu aquela noite mesmo. Uma hora mais tarde, o emissário partiu e, com mais sorte que seus dois predecessores, chegou a Loèche no fim do quinto dia. Mas encontrou a mulher cega e surda. Somente no fim de um mês, com a eficácia dos banhos terapêuticos, a dupla enfermidade começou a recuar. E só um mês depois ousaram dar à mulher a notícia fatal, para a qual, em todo caso, as diferentes visões que tivera a haviam preparado. Mais um mês foi necessário até ela se recuperar completamente e, por fim, após três meses de ausência, retornou à Basileia. De minha parte, eu terminara meu tratamento e a enfermidade para a qual eu ingerira as águas, um reumatismo, melhorara sensivelmente. Assim, pedi-lhe permissão para partir com ela, o que a jovem aceitou com gratidão, tendo encontrado um ouvinte para falar do marido, que eu apenas entrevira no momento da partida, mas, enfim, vira. Deixamos Loèche e, na noite do quinto dia, estávamos de volta à Basileia. Nada mais triste e doloroso do que o retorno da pobre viúva à sua casa. Como os dois jovens esposos eram sozinhos no mundo, com a morte do marido a loja havia sido fechada, o comércio havia sido cessado como o movimento de um pêndulo que trava. Mandaram chamar o médico que cuidara do doente, bem como as diferentes pessoas que o haviam assistido em seus últimos momentos. Por meio deles, a agonia foi ressuscitada de certa forma, e a morte, já quase esquecida naqueles corações indiferentes, reconstituída. Ela requereu ao menos os fios de cabelo que o marido separara. O médico de fato recordou-se de haver ordenado que fossem cortados. O barbeiro lembrou-se efetivamente de haver tonsurado o doente, mas só. Os cabelos haviam sido lançados ao vento, dispersados, perdidos. A mulher caiu em desespero. Aquele único e solitário desejo do moribundo, que ela usasse um bracelete com os fios de seus cabelos, era então impossível de se realizar. Várias noites escoaram, noites profundamente tristes, durante as quais a própria viúva, vagando pela casa, parecia muito mais uma sombra do que um ser vivo. Assim que se deitava, ou melhor, que dormia, sentia o braço direito dormente e só despertava no momento em que a dormência parecia alcançar-lhe o coração. Começava no pulso, isto é, no lugar onde deveria estar o bracelete de fios de cabelo e onde ela sentia uma pressão igual à de um bracelete de ferro excessivamente apertado. E, do pulso, como dissemos, alcançava o coração. Era evidente que o morto manifestava contrariedade por suas vontades haverem sido tão mal executadas. A viúva percebeu que tais contrariedades vinham do além-túmulo. Resolveu abrir a sepultura para, no caso de a cabeça do marido não ter sido inteiramente raspada, nela colher fios de cabelo suficientes para realizar seu último desejo. Com esse intuito, sem falar de seus planos com ninguém, mandou chamar o coveiro. Mas o coveiro que enterrara seu marido estava morto. O novo, que assumira suas funções fazia apenas quinze dias, não conhecia o local do túmulo. Então, esperando uma revelação, ela, que diante da dupla aparição do cavalo e do cavaleiro, ela, que devido à pressão do bracelete tinha o direito de acreditar em prodígios, foi sozinha ao cemitério, sentou-se sobre uma terra coberta de relva verde e viçosa, como costuma crescer próximo aos túmulos, e ali invocou algum novo sinal em que pudesse confiar para suas buscas. Uma dança macabra estava pintada no muro do cemitério. Seus olhos detiveram-se na Morte e fixaram longamente aquela fisionomia sarcástica e terrível ao mesmo tempo. Pareceu-lhe então que a Morte levantava seu braço descarnado e, com a ponta de seu dedo ossudo, apontava um túmulo entre os mais recentes. A viúva dirigiu-se prontamente àquele túmulo. Lá chegando, pareceu-lhe ver com nitidez a Morte deixando seu braço recair na posição de origem. Ela fez uma marca no túmulo, foi chamar o coveiro, levou-o ao lugar designado e disse-lhe: — Cave, é aqui! Assisti à operação. Queria acompanhar a infausta aventura até o fim. O coveiro cavou. Ao atingir o caixão, levantou a tampa. Primeiro hesitara, mas a viúva lhe dissera com uma voz firme: — Abra, é o caixão do meu marido. Ele obedeceu, de tal forma a mulher sabia inspirar nos outros a confiança que ela depositava em sua visão macabra. Quase no mesmo instante, fui testemunha de um milagre. Não apenas o cadáver era o cadáver de seu marido, não apenas o cadáver, exceto pela palidez, estava como em vida, mas também, depois de terem sido raspados, isto é, desde o dia de sua morte, seus cabelos haviam crescido de tal maneira que saíam como raízes por todas as frestas do caixão. Então a pobre mulher se debruçou sobre o cadáver, que parecia apenas adormecido. Beijou-o na testa, cortou uma mecha de seus longos cabelos, tão magicamente crescidos na cabeça de um morto, e com eles fez um bracelete. A partir desse dia, a dormência noturna cessou. Sempre que estava prestes a correr um grande perigo, uma suave pressão, um amistoso aperto do bracelete, a alertava. Muito bem! Acreditam que esse defunto estivesse realmente morto, que esse cadáver fosse de fato um cadáver? Eu não acredito. — E o senhor — perguntou a dama pálida, com um timbre tão singular que nos fez estremecer a todos nós, lançados na noite pela ausência de luz —, o senhor nunca soube se esse cadáver foi retirado do túmulo ou se alguém foi compelido a sofrer sua visão e ter contato com ele? — Não — disse Alliette. — Deixei o país. — Ah — disse o médico —, fez mal, sr. Alliette, em contar uma história tão previsível. Eis a sra. Gregoriska, prontinha para transformar seu bondoso lojista da Basileia, na Suíça, num vampiro polonês, valáquio ou húngaro.100

Então a pobre mulher se debruçou sobre o cadáver, que parecia apenas adormecido. Teria por acaso visto vampiros — continuou, rindo, o médico — durante sua viagem aos montes Cárpatos?101 — Com licença — atalhou a dama pálida, com estranha solenidade —, já que todos aqui contaram sua história, quero contar a minha. Doutor, o senhor não terá como chamá-la de falsa. É a minha… o senhor saberá o que a ciência não pôde lhe dizer até agora, doutor. Saberá por que sou pálida. Nesse momento, um raio de luar esgueirou-se pela janela através das cortinas e, vindo instalar-se no sofá onde ela estava deitada, envolveu-a com uma luz azulada, transformando-a como que numa estátua de mármore negro deitada num túmulo. Nenhuma voz acolheu a proposta, mas o silêncio profundo que reinou no salão anunciou estarem todos aceitando-a ansiosamente.


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