domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 784 : Um hotel da rua Saint-Honoré (continuação)

Um hotel da rua Saint-Honoré (continuação)

A exclamação de Hoffmann nada tinha de exagerado. O tênue biombo, que em todo poeta, no exercício exacerbado de suas faculdades mentais, separa a imaginação da loucura, de vez em quando ameaça se romper, mas na sua cabeça agora estalava como uma parede rachando. Nessa época, contudo, ninguém corria muito tempo pelas ruas de Paris sem explicar por que estava correndo. Os parisienses deram para ser muito curiosos no ano da graça de 1793. Todas as vezes que um homem passava correndo, era detido para se averiguar por que estava correndo ou quem estava correndo atrás dele. Hoffmann, portanto, foi detido quando passava em frente à igreja da Assunção, transformada em corpo de guarda, e conduzido perante o chefe do posto. Lá, compreendeu o real perigo que corria. Uns o tomavam por aristocrata, correndo a fim de alcançar a fronteira o mais depressa possível, outros gritavam: “Agarrem o agente de Pitt e Cobourg!”, e outros: “Ao poste! Ao poste!”,137 o que não era engraçado, e outros ainda: “Ao tribunal revolucionário!”, o que era menos engraçado ainda. Do poste, às vezes, voltava-se, como demonstra o abade Maury;138 do tribunal revolucionário, jamais. Hoffmann tentou explicar o que acontecera desde a noite da véspera. Contou o jogo, os ganhos. Como, com os bolsos cheios de ouro, correra à rua de Hânover; como a mulher que ele procurava não estava mais lá; como, sob a influência da paixão que o queimava, correra pelas ruas de Paris; como, ao passar pela praça da Revolução, encontrara aquela mulher sentada ao pé da guilhotina; como ela o conduzira ao hotel da rua Saint-Honoré; e como, após uma noite na qual sucederam-se todas as delícias da embriaguez, ele encontrara a mulher não apenas morta em seus braços, como também decapitada. Tudo aquilo era bastante implausível. Logo, o relato de Hoffmann obteve pouca credibilidade. Os mais fanáticos pela verdade gritaram mentira, os mais moderados, loucura. Nesse ínterim, um dos presentes teve uma ideia luminosa: — Passou a noite num hotel da rua Saint-Honoré, como afirma? — Sim. — Esvaziou seus bolsos cheios de ouro sobre uma mesa? — Sim. — Dormiu e ceou com a mulher cuja cabeça, rolando a seus pés, despertoulhe o grande pavor que exibia quando o detivemos? — Sim. — Pois bem, procuremos o hotel e, se não encontrarmos o ouro, pode ser que encontremos a mulher. — Sim — gritaram todos —, procuremos, procuremos. Hoffmann bem que não queria procurar, mas viu-se forçado a aceitar a imensa vontade sintetizada na palavra procuremos. Saiu então da igreja e pôs-se a caminho, percorrendo a rua Saint-Honoré e procurando. Não era grande a distância entre a igreja da Assunção e a rua Roy ale. Mesmo assim, foi em vão que Hoffmann procurou. Displicentemente a princípio, depois mais atentamente, depois, por fim, com real vontade, ele não encontrou nada parecido com o hotel em que entrara na véspera, passara a noite e do qual acabava de sair. Como os palácios feéricos que evaporam quando o cenógrafo não precisa mais deles, o hotel da rua Saint-Honoré dissolveu-se após a cena infernal que tentamos descrever. Sua história não comovia os desocupados que haviam escoltado Hoffmann, os quais exigiam uma solução qualquer para aquele contrassenso. Ora, tal solução não podia ser senão a descoberta do cadáver de Arsène ou a prisão de Hoffmann como suspeito. No entanto, como o cadáver de Arsène não aparecia, a prisão de Hoffmann era mais provável. Foi quando subitamente ele avistou na rua o homenzinho sinistro e pediu ajuda, invocando seu testemunho quanto à verdade do relato que acabava de fazer. A voz dos médicos sempre exerceu autoridade sobre a massa. Este declinou sua profissão e recebeu autorização para se aproximar de Hoffmann. — Ah, pobre rapaz — disse ele, pegando sua mão a pretexto de lhe tomar o pulso, mas na realidade a fim de o aconselhar, mediante uma pressão especial, a não desmenti-lo —, pobre rapaz, ele então fugiu! — Fugiu de onde? Fugiu do quê? — exclamaram vinte vozes ao mesmo tempo. — Sim, fugiu de onde? — perguntou Hoffmann, que não queria aceitar o caminho de salvação que o médico lhe oferecia e que ele julgava humilhante. — Ora essa! — disse o médico. — Fugiu do hospício. — Do hospício! — exclamaram as mesmas vozes. — E de que hospício? — Do hospício de loucos. — Ah, doutor, doutor — reagiu Hoffmann. — Sem gracejos. — Pobre-diabo! — lamentou o médico, que parecia não escutar Hoffmann. — Deve ter perdido no cadafalso alguma mulher amada. — Oh, sim, sim — disse Hoffmann. — Eu a amava muito, mas, mesmo assim, não como amava Antônia. — Pobre menino — disseram várias mulheres que se achavam presentes e que começavam a sentir pena de Hoffmann. — Sim, desde então — continuou o médico — ele anda às voltas com uma alucinação terrível. Acha que está jogando… que está ganhando… Quando joga e ganha, acredita poder possuir a bem-amada. Então corre as ruas com seu ouro e encontra uma mulher ao pé da guilhotina. Leva-a até algum magnífico palácio, em cuja suntuosa hospitalidade passa a noite bebendo, cantando, fazendo música com ela. Depois disso tudo, encontra-a morta. Não foi o que ele disse a vocês? — Sim, sim — gritou a multidão —, sem tirar nem pôr. — Está bem, está bem! — exasperou-se Hoffmann, com o olhar faiscante. — Então negará, doutor, que abriu o fecho de diamantes que prendia a gargantilha de veludo? Oh, eu deveria ter desconfiado de alguma coisa quando vi o champanhe escorrer sob a gargantilha, quando vi o tição incandescente rolar até seu pé descalço e seu pé descalço, seu pé de defunta, em vez de ser queimado pelo tição, apagá-lo. — Estão vendo, estão vendo? — encenou o médico, com os olhos cheios de compaixão e uma voz lastimosa. — A loucura voltou. — A loucura! — indignou-se Hoffmann. — Como ousa negar a verdade! Como ousa negar que passei a noite com Arsène e que ela foi guilhotinada ontem! Como ousa negar que sua gargantilha de veludo era a única coisa que mantinha sua cabeça sobre os ombros! Como ousa negar que, quando destravou o fecho e tirou o colar, a cabeça rolou no tapete! Ora, vamos, doutor, sabe que falo a verdade. — E então, amigos, convenceram-se agora? — Sim, sim — gritaram as cem vozes da massa. Quando não gritavam, os curiosos balançavam melancolicamente a cabeça, em sinal de adesão. — Pois então muito bem! — disse o médico. — Chamem um fiacre a fim de que eu o leve de volta. — Para onde? — gritou Hoffmann. — Para onde pretende me levar? — E para onde poderia ser? — disse o médico. — Para a casa dos loucos da qual o senhor fugiu, meu bom amigo. Em seguida, sussurrou-lhe: — Entre no jogo, por Deus! Ou não respondo por sua segurança. Essas pessoas pensarão que é um farsante e o farão em pedaços. Hoffmann suspirou e deixou cair os braços. — Pronto, vejam — disse o médico —, ei-lo manso como um cordeiro. A crise passou… Aqui, meu amigo, aqui… E o médico pareceu acalmar Hoffmann com a mão, como se acalma um cavalo esquentado ou um cão raivoso. Nesse ínterim, um fiacre havia sido chamado e levado até ele. — Entre depressa — disse o médico a Hoffmann. Hoffmann, exaurido com a luta, obedeceu. — Para Bicêtre!139 — ordenou o médico em voz alta, entrando atrás de Hoffmann. Depois, baixinho, ao rapaz: — Onde quer descer? — perguntou. — No Palais Égalité — articulou Hoffmann com dificuldade. — Em frente, cocheiro — gritou o médico. Em seguida, saudou a massa de gente. — Viva o doutor! — devolveu a multidão. Sempre que a multidão se acha sob a influência de uma emoção, grita viva alguém ou morra alguém. No Palais Égalité, o médico mandou o fiacre parar. — Adeus, rapaz — disse ele a Hoffmann —, e ouça o que lhe digo: volte para a Alemanha o mais rápido possível, a França não é um bom lugar para homens com uma imaginação como a sua. E para fora do coche ele empurrou Hoffmann, que, ainda atarantado diante do que lhe acabava de acontecer, teria terminado debaixo de uma carroça vindo na direção inversa do fiacre, se um rapaz que passava não houvesse acorrido e o agarrado no momento em que o carroceiro, por sua vez, fazia um esforço para frear os cavalos. O fiacre seguiu adiante. Os dois rapazes, o que escapara de ser atropelado e o que o salvara, soltaram juntos um único e mesmo grito: — Hoffmann! — Werner! Vendo o estado de atonia em que o amigo se achava, Werner arrastou-o até o jardim do Palais Roy al. Então tudo o que aconteceu voltou mais vivo à lembrança de Hoffmann, inclusive o camafeu de Antônia penhorado no cambista alemão. Um grito súbito escapou-lhe do peito, ao pensar que esvaziara todos os bolsos na mesa de mármore do hotel, mas, ao mesmo tempo, lembrou-se que havia separado, para tirar o camafeu do prego, três luíses no bolso do relógio. O bolso guardara fielmente seu depósito. Os três luíses continuavam lá. Hoffmann desvencilhou-se dos braços de Werner, gritando: “Espere por mim!”, e disparou na direção da loja do cambista. A cada passo que dava, tinha a impressão de estar saindo de um vapor denso e avançando, através de uma nuvem cada vez mais clara, para uma atmosfera pura e resplandecente. À porta do cambista, parou para respirar. A antiga visão, a visão daquela noite, quase desaparecera. Recobrou o fôlego por um instante e entrou. O cambista estava em seu lugar, as bacias de cobre idem. O barulho fez o cambista erguer a cabeça. — Ah, ah, é o senhor, jovem compatriota! Confesso que não esperava mais revê-lo. — Torço para que não esteja dizendo isso porque dispôs do camafeu — exclamou Hoffmann. — Não, prometi guardá-lo para o senhor, e nem que me houvessem oferecido vinte e cinco luíses em vez de três, como o senhor me deve, o camafeu teria saído de minha loja. — Aqui estão os três luíses — disse timidamente Hoffmann —, mas confesso que não tenho nada para lhe dar a título de juros. — Juros de uma noite — disse o cambista —, ora, não me faça rir. Juros de três luíses por uma noite, e para um compatriota! Jamais! E estendeu-lhe o camafeu. — Obrigado, senhor — agradeceu Hoffmann. — E agora — continuou, com um suspiro —, preciso conseguir dinheiro para retornar a Mannheim. — Mannheim? — perguntou o cambista. — Ora, é de Mannheim? — Não, senhor, não sou de Mannheim, apenas moro lá. Minha noiva está à minha espera e volto para me casar com ela. — Ah! — fez o cambista. Quando Hoffmann já estava com a mão na maçaneta da porta, o cambista interpelou-o: — Conhece, em Mannheim, um velho amigo meu, um velho músico… — … chamado Gottlieb Murr? — exclamou Hoffmann. — Precisamente, conhece-o? — Se conheço! Claro que conheço, uma vez que é sua filha que é minha noiva. — Antônia! — exclamou por sua vez o cambista. — Sim, Antônia — respondeu Hoffmann. — Quer dizer, rapaz, que é para se casar com Antônia que está voltando a Mannheim? — Sem dúvida. — Fique então em Paris, pois fará uma viagem inútil. — E posso saber por quê? — Porque eis uma carta de seu pai me comunicando que há uma semana, às três da tarde, Antônia morreu subitamente, tocando harpa. Era justamente o dia em que Hoffmann fora à casa de Arsène para fazer seu retrato; era justamente a hora em que pousara seus lábios sobre seu ombro nu. Hoffmann, pálido, trêmulo, aniquilado, abriu o camafeu para trazer a imagem de Antônia aos lábios, mas o marfim, como se ainda virgem do pincel do artista, voltara a ser branco e puro. Nada de Antônia restava então para Hoffmann, duas vezes infiel a seu juramento, sequer a imagem daquela a quem jurara amor eterno. Duas horas depois, na companhia de Werner e do bondoso cambista, Hoffmann embarcava no coche de Mannheim, aonde chegou justo a tempo de acompanhar ao cemitério o corpo de Gottlieb Murr, que, ao morrer, recomendara que o enterrassem ao lado de sua querida Antônia. 1. “o estandarte da rebelião”: a propagação de fortes correntes liberais por toda a Alemanha, na primeira metade do séc.XIX, culminará, em 1848, num levante em Berlim (que fracassa) e distúrbios políticos por todo o país. Em Mannheim, é formada uma assembleia de democratas. 2. August Lafontaine (1758-1831): romancista alemão, prolífico autor de romances sentimentais, entre os quais Henriette Bellmann. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): maior escritor alemão romântico, autor do Fausto e de Os sofrimentos do jovem Werther. 3. “uma pistola na mão de Werther…”: na novela epistolar Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, o herói, apaixonado pela noiva de seu melhor amigo, suicida-se com uma pistola. Quanto a Sand, em 1819, o estudante Karl Ludwig Sand (1795-1820) assassinou o político e dramaturgo August von Kotzebue (1761-1819), espião do czar e inimigo da onda liberalizante que varria a Alemanha. Preso, foi decapitado. Dumas, de passagem por Mannheim vinte anos depois, faz uma visita ao carrasco, que lhe conta em detalhe seus últimos momentos. 4. Minerva, ou Palas-Atena para os gregos, é a deusa romana da inteligência, e Hebe, ou Juventas para os romanos, a deusa grega da juventude. 5. Táler: moeda de prata alemã, existente desde 1518. Seu nome deu origem a “dólar”. 6. Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann (1776-1822): escritor, compositor e desenhista da escola romântica. Advogado por formação, serviu na administração prussiana de 1796 a 1806 e de 1814 até sua morte. Como desenhista e pintor, sua independência e sua propensão à sátira lhe causaram sérios aborrecimentos junto a seus superiores hierárquicos, os quais ele não hesitava caricaturar. Fanático por música, trocou seu terceiro prenome, “Wilhelm”, por “Amadeus”, em homenagem a Mozart, seu ídolo, investindo na carreira de crítico musical, depois na de compositor. Compôs diversas óperas, entre elas Ondina, bem como obras vocais e instrumentais. Hoffmann, porém, é conhecido sobretudo pela produção literária. Assinando-se “E.T.A. Hoffmann”, escreveu inúmeros contos (Märchen), entre os quais “O homem da areia”, e romances, tornando-se, nos anos 1820, uma das figuras ilustres do romantismo alemão e inspirando diversos artistas, na Europa e no resto do mundo. 7. Atual Kaliningrado, na Rússia. 8. Friedrich von Schiller (1759-1805): escritor e dramaturgo, expoente do romantismo alemão. Seu drama em versos Os salteadores é uma das obras emblemáticas do movimento literário Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), precursor do romantismo. Em 1792, ganhou cidadania francesa pelos textos que escrevera contra os tiranos. 9. Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803): poeta romântico alemão, autor de dramas épicos inspirados em mitos germânicos, em especial o de Arminius (Hermann), vencedor das legiões romanas. 10. uma das nove Musas gregas, justamente a da música. 11. O imperador do Sacro Império Romano-Germânico Carlos V (1500-58) foi um aficcionado pela arte da relojoaria, tendo, inclusive, no fim da vida, se dedicado à fabricação de vários e sofisticados modelos. 12. O alemão Christoph von Gluck (1714-87) e o italiano Niccolò Piccinni (1728- 1800) foram compositores de óperas do período clássico (1750-1820), protagonizando a “querela entre gluckistas e piccinnistas”, que opôs os partidários da música alemã (ou francesa), para os quais a música subordinava-se ao texto e à dramaturgia, aos da música italiana, que defendiam a primazia da melodia. Em 1779, os dois rivais, que se admiravam reciprocamente, lançaram-se um desafio: cada um comporia uma Ifigênia em Táurida e o público escolheria a melhor. A ópera de Gluck, levada ao palco em 1779, foi ovacionada pelo público e desde logo considerada a vencedora, tanto mais que a de Piccinni, um fiasco, só veio a ser encenada dois anos depois. 13. Frederico: moeda de ouro, com a efígie do imperador Frederico II o Grande (1712-86), da Prússia, modelo do “déspota esclarecido”. 14. O diabo coxo: alusão ao romance de Alain-René Lessage (1668-1747), na realidade uma imitação da obra homônima espanhola, de Luís Vélez de Guevara (1799-1644). Asmodeu, o diabo coxo, introduz o jovem Don Cleofas na intimidade das casas de Madri, cujos telhados ergue a fim de surpreender os segredos de seus habitants 15. Zacharias Werner (1768-1823), escritor romântico alemão, autor de dramas marcados pelo misticismo, como Martinho Lutero ou A consagração da força (1808), Átila (1808) e O 24 de fevereiro (1809). Talvez procurando expiar os pecados cometidos pelo personagem criado por Dumas, o verdadeiro Werner converteu-se ao catolicismo, em 1810, tornando-se pregador quatro anos mais tarde. As famílias Hoffmann e Werner eram vizinhas em Königsberg e Hoffmann (ver nota 6) teve como padrinho o pai de Zacharias. 16. Nome bíblico significando “Enviado”. 17. No Fausto, de Goethe, Mefistófeles assume a forma de um cão preto, da raça mastim, para entrar no quarto de Fausto, e é um rato quem o ajuda a sair. 18. Moeda de prata em uso no Império Austro-Húngaro entre 1754 e 1892, a sexagésima parte do florim. 19. Heroína do Fausto, Margarida, moça simples e modesta, é seduzida e abandonada pelo personagem-título, com a ajuda de Mefistófeles. Devido a esse caso amoroso, perde a mãe, envenenada, e o irmão, morto em duelo pelo amante. Consumida pela culpa, afoga o filho nascido de sua união com Fausto. Ao final da história, é absolvida de seus pecados por “uma voz do alto”. 20. Murr: nome tirado do último e inacabado romance de Hoffmann, O gato Murr (1820-21). Nele, descrito como um “bichano inteligente, culto, filósofo e poeta”, o personagem-título conta sua vida, na realidade a do mestre de capela Johann Kreisler, personagem fictício que, neste e em outros dois romances do escritor — Kreisleriana (1814) e Os sofrimentos musicais do mestre de capela Johann Kreisler (1810) —, funciona como seu alter ego. 21. Referência ao filósofo e escritor genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-78), que, embora de peruca em seu retrato mais famoso, pintado por Quentin de Latour (1704-88), foi um dos primeiros a abandonar seu uso. 22. Domenico Cimarosa (1749-1801), compositor italiano de várias óperas-bufas, entre elas Il matrimonio segreto (O casamento secreto), que data de 1792. 23. Giovanni Paisiello (1740-1816): compositor italiano, grande rival de Cimarosa, autor de óperas-bufas como O barbeiro de Sevilha (1782) e La Molinara (1786). 24. É duvidoso que Hoffmann tenha estado com Wolfgang Amadeus Mozart (1756-91), falecido quando Hoffmann tinha quinze anos. Os libretos de ópera citados por Murr são da autoria de Lorenzo Da Ponte (1749-1838). 25. De fato, Hoffmann compôs pelo menos oito sonatas, um quinteto, coros, duas missas e um miserere. 26. Johann Sebastian Bach (1685-1750): compositor alemão, deixou mais de mil peças em todos os gêneros musicais (exceto a ópera); é considerado não só o mestre do barroco, como um dos maiores compositores de todos os tempos. Giovanni Battista Pergolese (1710-36): compositor italiano, autor da ópera-bufa La serva padrona (1733) e do famoso Stabat mater (ver nota 53), terminado logo antes de sua morte. Franz Joseph Haydn (1732-1809): compositor austríaco que, além de compor inúmeras peças de câmara e música sacra, estabeleceu a forma definitiva da sinfonia. 27. Tiorba: espécie de alaúde com dois braços, suplantado progressivamente pela guitarra ao longo do séc.XVII. 28. Giuseppe Tartini (1692-1770), violinista virtuose e compositor italiano, autor da sonata em sol menor Il trillo del diavolo (O trilo do diabo). 29. Antonio Stradivari, vulgo Stradivarius (1644-1737): célebre luthier italiano de Cremona, cujos violinos ainda são considerados os melhores de todos os tempos. Aprendeu o ofício com Nicolò Amati (1596-1684) e fabricou seu primeiro violino em 1666. Entre 1680 e 1690, sua produção divergiu do estilo do mestre e sua fama espalhou-se para além de Cremona. Por volta de 1715, seus instrumentos atingiram o auge da perfeição, tanto no aspecto visual (seu verniz ganhou a famosa coloração marrom-alaranjada) quanto no sonoro. 30. Em italiano, “lá, eu te darei a mão”, famoso dueto do primeiro ato de Don Giovanni, de Mozart, ópera que estreou em 1787. 31. Termo italiano que designa trecho ou movimento musical impetuoso e animado. 32. Em francês,”deslocado”, termo que designa o deslocamento da mão esquerda em direção aos agudos, nos instrumentos das famílias do violino e do alaúde. 33. Archangelo Corelli (1653-1713), compositor italiano, fundador da escola clássica de violino e primeiro a alcançar fama exclusivamente com a música instrumental. 34. Gaetano Pugnani (1731-98), compositor italiano e um dos mais requisitados violinistas do séc.XVIII, foi professor de Viotti (ver nota 40). 35. Em italiano, “sustentação”, ornamento melódico que consiste na produção de notas acentuadas, antes ou depois de outras mais fracas. 36. Francesco Geminiani (1687-1762): violinista, compositor e teórico italiano. Estudou em Roma com Corelli (ver nota 33) e Domenico Scarlatti (1685-1757), e, em 1711, radicou-se em Londres, onde fez brilhante carreira como virtuose do violino. 37. Expressão italiana que significa “compasso roubado”. Diz-se do andamento ampliado além do matematicamente disponível, logo, retardado ou estendido. 38. Felice de Giardini (1716-96), violinista e compositor italiano, passou grande parte da vida em Londres, onde foi primeiro violino de orquestra. 39. Nicolò Jommelli (1714-74), compositor italiano, autor de cerca de cem obras cênicas, entre óperas e operetas. 40. Giovanni Battista Viotti (1755-1824): violinista e compositor italiano radicado na França que, num desafio musical em 1792, enfrentou seu colega francês, de origem croata, Giovanni Giarnowicki, ou Giorvanichi (1745-1804), que o suplantou. 41. “um sármata, um welche”: tratamento pejorativo dado pelos alemães aos estrangeiros. Os sármatas eram um povo nômade que percorria a vastidão das estepes eslavas, da ucrânia à república do Altai, passando pelo Cazaquistão. A expressão interrogativa alemã “welche” significa qual, quem, qualquer. 42. Pierre Rode (1774-1830), violinista e compositor francês, assim como Rodolphe Kreutzer (1766-1831), a quem Beethoven dedicou uma célebre sonata para piano e violino. 43. Granuelo, luthier desconhecido, citado por Hoffmann em seu conto “O barão de B.”. 44. Antonio Amati (c.1540-?), da célebre família de luthiers de Cremona, Itália, aperfeiçoou o design do violino com o irmão, Girolamo (1561-1630). 45. Alusão ao canto 21 da Odisseia, poema épico de Homero (sécs.X-IX a.C.). Penélope, esposa de Ulisses (Odisseu, em grego), assediada por uma chusma de pretendentes enquanto o marido lutava em Troia, propõe-lhes um desafio: aquele que retesar o arco de Ulisses a terá como esposa. Todos fracassam. Ulisses, porém, disfarçado de mendigo, apodera-se do arco, estica sua corda e, junto com o filho Telêmaco, liquida os interesseiros candidatos a noivo. 46. Personagem da clássica tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1564-1616), ambientada na cidade de Verona, na Itália. 47. Alusão à obra De vulgari eloquentia, do italiano Dante Alighieri (1265-1321), tratado de retórica poética no qual ele busca fixar as normas para o uso da língua vulgar, consagrando dessa forma seu valor e legitimidade como expressão artística. 48. Pietro Trapassi, vulgo Metastásio (1698-1782): poeta, dramaturgo e libretista de ópera italiano, responsável, por exemplo, por La clemenza di Tito, de Mozart. Carlo Goldoni (1707-93): dramaturgo, fez o teatro italiano evoluir da farsa para a comédia de costumes. 49. Lorelei: criatura fantástica do rio Reno, sereia que enfeitiçava os marinheiros e causava sua perdição. Foi um tema bastante explorado durante o romantismo alemão, cantado sobretudo pelos poetas Clemens Brentano (1778-1842), em Godwi ou A estátua da mãe, e Heinrich Heine (1797-1856). Beatrice: Na Divina comédia, poema narrativo de Dante Alighieri (ver nota 47), Beatrice guia o autor através das nove esferas do Paraíso. Beatrice Portinari, que existiu na vida real e foi a musa de Dante, também foi cantada em sua coletânea de poemas Vita nuova. 50. Alceste, personagem-título de uma ópera de Gluck (ver nota 12) cujo enredo traz que o rei Admeto morrerá, a menos que encontre alguém que se sacrifique e assuma o seu lugar nos Infernos. Todos os seus amigos se recusam, exceto sua esposa, Alceste, que morre no lugar dele, antes de ser retirada dos Infernos por Héracles. 51. Na mitologia grega, Estige pode ser uma oceânida, isto é, uma das filhas de Oceano e Tétis, ou, como no caso da ária citada, um dos rios do Hades, reino dos mortos. 52. Alusão ao conto de Hoffmann “O cavaleiro Gluck” (1809). Para mais sobre Gluck, ver nota 12. 53. Expressão latina que significa “Estava a mãe [do Salvador]”; refere-se a poema do séc. XIII, de autoria incerta, que passou a integrar a liturgia romana no final do séc.XV. No séc. XVIII, era geralmente musicado para solistas, com ou sem coro, e orquestra. Cimarosa e Pergolese: ver notas 22 e 26, respectivamente. Nicolò Porpora (1686-1768): compositor italiano, autor de óperas, motetos e madrigais. 54. Ver nota 43. 55. Alessandro Stradella (1644-82), cantor e compositor italiano, autor de óperas, motetos, madrigais e do oratório S. Giovanni Batista, onde aparece a ária “Pietà, Signore”. 56. Em italiano, “Piedade, Senhor, pelo meu sofrimento”. 57. Em italiano, “suave”. Indicação para o instrumentista executar a nota ou trecho musical “com pouco volume sonoro”, o oposto de “forte”. 58. Em italiano, “forçando”. Nota fortemente acentuada, passando do piano ao forte. 59. Em italiano,”diminuindo”. Instrução para reduzir gradualmente a intensidade sonora. 60. Antônio Canova (1757-1822): escultor italiano, a princípio influenciado pelo barroco e, mais tarde, um defensor do neoclassicismo. Foi o escultor oficial de Napoleão Bonaparte. 61. Volgi: primeira palavra do verso “volgi i tuoi sguardi sopra di me”, ou “volte teus olhares para mim”, da ária que está sendo executada. 62. Clarisse Harlowe: heroína do romance homônimo de Samuel Richardson (1689-1761), no qual uma moça virtuosa apaixona-se por um devasso. Charlotte: alusão à heroína de Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe (ver notas 2 e 3). 63. Santa Cecília, que teria vivido nos primeiros tempos do cristianismo, morreu depois de um longo martírio, o qual ela suportou entoando hinos cristãos. É a padroeira da música sacra 64. Étienne Méhul (1763-1817): compositor francês de ópera, além de autor do Canto da despedida (1794), canção revolucionária considerada “irmã da Marselhesa”. Nicolas Dalayrac (1753-1809): compositor francês de óperascômicas. 65. Na mitologia grega, Orfeu, filho da musa Calíope e do deus Apolo, é um músico sublime e dotado de uma voz sedutora. Ao tentar resgatar sua amada Eurídice do mundo dos mortos, usou sua voz e sua lira para subjugar todos os monstros que encontrou pelo caminho, até chegar ao deus dos infernos, Hades. Este, igualmente cativado pela arte de Orfeu, permitiu que Eurídice o acompanhasse, com a condição de que ele não se voltasse para trás e olhasse para ela. No limiar entre o mundo dos mortos e o dos vivos, Orfeu não resistiu e, virando-se para certificar-se de que Eurídice o estava seguindo, cruzou seu olhar com o dela, que morreu definitivamente. 66. In-octavo: volume em pequeno formato, cujas folhas de impressão são dobradas três vezes, gerando oito folhas, isto é, dezesseis páginas. 67. Região historicamente disputada entre a França e a Alemanha, localizada na fronteira entre os dois países, que aderiu maciçamente ao movimento de derrubada da monarquia francesa. 68. Região francesa colada na Alsácia, a única que faz fronteira com três países ao mesmo tempo: Bélgica, Luxemburgo e Alemanha. 69. Segundo o historiador Heródoto (ver nota 20 de O Arsenal) em sua História (livro VII, 130), por ocasião das segundas guerras medas, que opuseram mais uma vez gregos e persas, a Tessália, região do nordeste da Grécia, vendeu-se aos inimigos, enquanto Esparta manteve-se fiel ao povo helênico. A esquadra persa foi derrotada na batalha de Salamina (480 a.C.), decretando o fim da guerra. 70. A Revolução de 1789 dividiu Paris em 48 seções (circunscrições administrativas), cada uma delas comportando uma assembleia de “seccionários” que, a partir de 1792, vai ganhando cada vez mais importância na vida política. Em 1792, por exemplo, os seccionários votam em massa pela destituição do rei. Em 10 de agosto do mesmo ano, formam na prefeitura de Paris uma comuna insurgente. Até sua supressão, em 1795, as assembleias de seção participam de todas as revoltas populares parisienses. As seções servirão de base para a criação dos “quartiers” (bairros) de Paris. 71. O suíço Johann Kaspar Lavater (1741-1801) foi o criador da fisiognomonia, teoria que pretendia desvendar o caráter do indivíduo pela análise de seus traços faciais 72. A Assembleia Nacional Legislativa, eleita em agosto e setembro de 1791, promulgou uma Constituição que estabelecia a monarquia constitucional como regime de governo. Com a derrubada e a prisão de Luís XVI, foi sucedida pela Convenção Nacional, a qual governou a França entre 1792 e 1795, e logo em sua primeira sessão aboliu o poder real. 73. Os filisteus, de origem egeia, estão entre os povos do mar que invadiram o Mediterrâneo oriental após o colapso da civilização micênica, fixando-se na faixa litorânea do sudoeste de Canaã em c.1190 a.C. Sansão, décimo segundo e último juiz de Israel, dono de uma força descomunal, guerreou incessantemente os filisteus e teria morrido ao derrubar as colunas do templo sobre si mesmo e seus inimigos. 74. William Pitt (1759-1806): primeiro-ministro da Grã-Bretanha, financiou os exércitos da coalizão europeia contra a Revolução Francesa. Duque Frédéric de Saxe-Cobourg (1737-1815): comandante do exército austríaco que, em coalizão com a Prússia, invadiu a França em 1792, sendo rechaçado por ocasião da batalha de Valmy, em 14 de outubro do mesmo ano. 75. Jacques-Louis David (1748-1825): pintor neoclássico francês, foi deputado na Convenção (ver nota 72). Autor do célebre quadro Marat assassinado (1793), mais tarde será o pintor oficial do Império. 76. Ronda noturna: nome pelo qual é conhecido um dos quadros mais famosos do pintor holandês Rembrandt (1606-60), que entretanto não representa uma cena noturna como o título sugere, mas vespertina; o adjetivo “noturna” decorre do escurecimento provocado pelo verniz aplicado sobre a tela. O título original da pintura é A companhia de milícia do capitão Frans Banning Cocq e do tenente Willen van Ruytenburch. 77. Sobre o clube dos Capuchinhos, ver nota 51 em 1001 fantasmas. Jacobinos: assim eram denominados, durante a Revolução Francesa, os membros da Sociedade dos Amigos da Constituição, ou clube dos Jacobinos, pois sua sede ficava no convento dos Jacobinos, à rua Saint-Honoré, em Paris. Agregou diversas tendências políticas revolucionárias e exerceu grande pressão sobre as Assembleias, chegando a possuir mais de 150 filiais na província. A partir de 1793, o clube sofreu uma cisão, nele permanecendo somente os mais radicais. O clube dos Irmãos e Amigos constituiu igualmente uma associação importante. 78. Louis-Antoine de Saint-Just (1767-94), um dos mais jovens eleitos para a Convenção Nacional (ver nota 72), eloquente e radical, apoiou Robespierre até o fim, sendo ambos guilhotinados no 10 Termidor (28 de julho de 1794). 79. Deputados alinhados com o chefe da Gironda (ver nota 45 de 1001 fantasmas), Jacques-Pierre Brissot (1754-93). Eleito para a Convenção Nacional (ver nota 72), votou pela execução do rei, terminando igualmente guilhotinado. 80. Nicolas Poussin (1594-1665): mestre da pintura clássica francesa. Sobre Rubens, ver nota 67 em 1001 fantasmas. 81. A Prússia, Estado fortemente militarizado, entrará em guerra contra a França em 1792. Adversária ferrenha da Revolução, sofrerá diversas derrotas, terminando por triunfar apenas na batalha de Waterloo, em 1815, quando, aliada da Inglaterra, venceu os exércitos de Napoleão. 82. Antoine Simon (1736-94), frade capuchinho, membro do conselho geral da Comuna (governo revolucionário de Paris após a tomada da Bastilha, em 1789), cuidou de Luís XVII (1785-1795), então com doze anos de idade, durante o cativeiro de seus pais, Luís XVI e Maria Antonieta, na prisão do Temple. Próximo de Robespierre, foi guilhotinado no 10 Termidor (28 de julho de 1794). 83. “biblioteca do finado rei”: após a abolição da monarquia, futura Biblioteca Nacional de Paris, acrescida de todos os acervos confiscados das bibliotecas dos mosteiros. Quilderico I (?-451): rei dos francos sálios, povo que ocupava as margens do Reno na fronteira com o Império Romano, inaugurou a dinastia merovíngia. Seu filho Clóvis I (c.466-511) expandiu as fronteiras do território, sendo considerado o primeiro rei do que viria a se consolidar como “a França”. Vincenzo Maria Coronelli (1650-1718): religioso e geógrafo italiano, fabricava globos terrestres e elaborou verbetes para a Enciclopédia. 84. Situado à rua Sainte-Avoy e, era na realidade uma sociedade erudita de divulgação científica, criada em 1781. 85. Um museu havia sido criado em 1750 na ala leste do Palácio do Luxemburgo, expondo quadros retirados do gabinete do rei. Porém, após a adoção da lei sobre os suspeitos, em 17 de setembro de 1793, que criou os Tribunais Revolucionários para o julgamento de suspeitos de traição contra a República, o palácio passa a ser um “presídio nacional”. 86. Henrique IV (1553-1610) foi assassinado por François Ravaillac (1577-1610), um católico fanático. Ver também nota 66 em 1001 fantasmas. 87. Jeanne Bécu, condessa du Barry (1743-93), amante de Luís XV a partir de 1768. Com a morte do rei, retirou-se para o seu castelo de Louveciennes. Sob a Revolução, aderiu aos movimentos de restauração da monarquia, trabalhando como intermediária entre Paris e Londres. Denunciada e presa, foi executada em 8 de dezembro de 1793. 88. Antiga praça Luís XV, depois batizada como praça de la Concorde (ou da Concórdia), depois praça da Revolução, e finalmente outra vez de la Concorde, seu nome atual. A primeira execução por meio da guilhotina aconteceu na praça de Grève, em 25 de abril de 1792. Todos os condenados seriam executados neste local, até o cadafalso ser transportado para a praça du Carroussel, onde permaneceu até maio de 1793. A guilhotina foi então deslocada para a praça de la Concorde (“da Revolução”, na época em que se desenrola a trama). Após a execução de Robespierre, volta à praça de Grève. 89. Foram estas, com efeito, as últimas palavras da condessa du Barry. 90. O julgamento de Páris: nesse conhecido episódio da mitologia grega, o pastor troiano Páris (na realidade, filho do rei Príamo) é abordado por três deusas (Hera, Afrodite e Palas-Atena) e encarregado de apontar a mais bela das três. Ele escolhe Afrodite, que em troca lhe promete o amor da mais bela das mortais, Helena, rainha de Esparta, o que irá deflagrar a guerra de Troia. Essa peça foi de fato encenada no teatro da Ópera em 1793. Balé-pantomima: gênero híbrido que mistura dança e ação dramática, bastante em voga sob a Revolução. Gardel Júnior: Pierre Gardel (1758-1840) sucede ao irmão Maximilien (1741-87) como coreógrafo da ópera, posto que ocupa até 1829. 91. A música dos balés-pantomimas é uma espécie de pot-pourri de músicas conhecidas de diferentes compositores. 92. Nome do pai da boneca Olímpia, personagens de O homem da areia, conto mais famoso de Hoffmann. 93. Marie-Jean-Auguste Vestris (1760-1842): ingressa no corpo de baile da Ópera de Paris em 1776, sendo promovido a primeiro bailarino em 1779. Sua grande popularidade no período da Revolução (aparecera no palco em trajes de sansculotte, ver nota 49) não será arranhada com o advento do Império. “Enona”: na mitologia grega, a ninfa namorada de Páris, antes de ele apaixonar-se por Helena. 94. Pseudônimo de François-Marie Arouet (1694-1778), escritor, poeta, dramaturgo e filósofo francês, um dos maiores, se não o maior, nome do Iluminismo europeu. Irreverente, foi um ferrenho adversário da “infâmia” (como chamava a Igreja católica), pregando a tolerância e a liberdade. 95. “Voltaire” seria um anagrama de “Arouet L(e) J(eune)” [Arouet o Jovem], no qual u=v e j=i; a partícula “de” (sr. de Voltaire”), denotativa de nobreza, foi acrescentada pelo próprio. 96. Poema heroico-cômico de Voltaire, de inspiração resolutamente anticlerical e tratando burlescamente a vida de Joana d’Arc (c.1412-1531), causou escândalo na época de sua publicação. 97. Justine ou Os infortúnios da virtude, romance do marquês de Sade (1740- 1814), primeiro publicado em vida do autor, em 1791, um ano após este ser libertado da Bastilha. 98. Claude-Prosper Jolyot de Crébillon (1707-77): escritor e chansonnier francês, autor de romances licenciosos, contrastava com o pai, Prosper Joly ot de Crébillon (1674-1762), acadêmico respeitável. 99. Mulher do imperador Cláudio (?25-48), seu nome virou sinônimo de “mulher dissoluta”. 100. Sobre Danton, ver nota 46 em 1001 fantasmas. 101. Na época, a guilhotina inspirou bibelôs de todo tipo, bem como cortadores de frutas, trinchantes de frangos, brinquedos etc. Charles Nodier chegou a observar que, até no teatro infantil, Polichinelo não enforcava mais os vilões, e sim decapitava-os na famigerada máquina. Em 1793, a fachada do teatro dos SansCulottes anunciava a peça A guilhotina do amor. 102. Antigo Palácio Municipal, residência e sede da monarquia francesa do séc.X ao séc. XIV, foi transformada em prisão do Estado em 1370. Durante o Terror, era considerada “a antecâmara da morte”. Maria Antonieta lá esteve, em 1793. 103. Carmanhola: paletó curto e estreito usado pelos revolucionários. 104. Cocarda: ver nota 55 de 1001 fantasmas. 105. Sobre Marat, ver notas 37 e 45 de 1001 fantasmas. 106. Na mitologia grega, Apolo é o deus da música, do canto e da poesia e Terpsícore é a ninfa da dança. 107. Assignat: originalmente um título de empréstimo emitido pelo Tesouro em 1789, cujo valor era lastreado pelos bens nacionais (bens da Igreja e dos nobres confiscados). Transformou-se em moeda corrente em 1791 e, devido a reiteradas emissões, perdeu o valor, provocando forte inflação. Foi suprimido em 1797. 108. “a Vestris”: Anne-Catherine Augier (1777-1809) estreou em O julgamento de Páris, peça na qual seu marido, Marie-Auguste Vestris (ver nota 93), fazia o papel-título. Émilie Bigottini (1784-1858): bailarina e mímica da Ópera. 109. Antoine-Joseph Santerre (1752-1809), rico cervejeiro do faubourg SaintAntoine, torna-se comandante-geral da Guarda Nacional em 10 de agosto de 1792, após o assassinato de seu antecessor. Foi nessa condição que participou da execução de Luís XVI em 21 de janeiro de 1793, havendo, segundo consta, ordenado que os tambores rufassem para encobrir a voz do rei, que procurava dirigir-se à multidão. 110. Ao longo da epopeia Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.), a deusa Vênus, mãe do herói Eneias, um sobrevivente da guerra de Troia em viagem à península Itálica, onde virá a ser o fundador de Roma, por algumas vezes protege o filho cobrindoo, e aos soldados que o seguem, com uma nuvem de fumaça. 111. Alusão ao vaudeville A pequena Cinderela, de Marc-Antoine-Madeleine Désaugiers (1772-1827) e Michel-Joseph Gentil de Chavagnac (1769-1846). 112. Elegante residência particular, do séc.II a.C., decorada com magníficos afrescos e mosaicos que representam cenas da vida e da mitologia gregas. Seu nome deriva de um mosaico particularmente bem-executado, no qual está representada a encenação de uma tragédia. Não se sabe se o dono da casa era mesmo um poeta. 113. Batalha de Arbela: travada em 331 a.C., coroa a vitória de Alexandre (356- 23 a.C.) sobre Dario III (c.380-30 a.C.), rei dos persas. O mosaico em questão encontra-se hoje no museu arqueológico de Nápoles. 114. Pierre-Narcisse Guérin (1774-1833), pintor francês neoclássico, autor de Dido a escutar as aventuras de Eneias. Na Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.), ao fugir de Troia, invadida pelos gregos, Eneias refugia-se em Cartago, na casa da rainha Dido, que se apaixona por ele. A partida de Eneias para a Itália provoca o desespero de Dido, que se suicida. 115. Aspásia (c.470-400), cortesã originária de Mileto, na Ásia Menor (atual Turquia), que, ao se estabelecer em Atenas, tornou-se a companheira do grande político e orador Péricles (c.495-29 a.C.), um dos responsáveis pela idade de ouro da Grécia. Aspásia passou à história como mulher emancipada e culta. 116. Na mitologia grega, Erígona é objeto do desejo de Dioniso, deus do vinho, que, para seduzi-la transforma-se num cacho de uvas. 117. Eucáris: jovem ninfa. Os prenomes gregos e romanos entram em voga durante a Revolução, o que se explica pelo banimento das referências cristãs e a admiração pelas repúblicas da Antiguidade, promovidas ao status de modelos. Tirso: bastão com um cipó enrolado, um atributo de Dioniso, deus do vinho — assim como as uvas e os pâmpanos, ramos novos de parreira constituídos apenas de folhas. 118. Carrache: célebre família de pintores italianos da Renascença, o mais ilustre deles sendo Annibale Carrache (1560-1609). Francesco Albani (1578-1660): pintor italiano, autor de A toalete de Vênus. 119. Mármore de Paros: ver nota 35 em 1001 fantasmas. 120. Eldorado: região mítica da América Sul, fabulosamente rica em ouro. A lenda de sua existência nasceu na Colômbia, na região de Bogotá, e tornou-se conhecida pelos conquistadores espanhóis em torno de 1530, mobilizando daí em diante seu imaginário e sua cobiça. Pactolo: rio da Lídia (Ásia Menor) por cujas águas corriam lantejoulas de ouro e ao qual, segundo a lenda, Creso devia sua riqueza. 121. Referência ao seguinte trecho do Evangelho de são Lucas (4, 5-8): “O demônio levou Jesus em seguida a um alto monte, e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da terra, dizendo-lhe: ‘Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu.’ Jesus respondeu: ‘Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e somente a ele só servirás.’” (Deuteronômio, 6, 13) 122. Na mitologia grega, o pai de Dânae, Acrísio, advertido por um oráculo de que será assassinado pelo neto, aprisiona a filha numa gaiola de ferro. Mesmo assim, Zeus (Júpiter para os romanos) consegue seduzi-la, sob a forma de uma chuva de ouro. Dessa união, nasce Perseu. Esse mito é narrado, por exemplo, na Antígona, de Sófocles (496-406 a.C.). 123. Originalmente Palácio Cardinal, por ter sido ocupado pelo cardeal Richelieu é legado por este último a Luís XIII (ver nota 68), ganhando o nome de Palais Royal. Em 1692, Luís XIV (ver nota 69) doa-o a seu irmão Philippe d’Orléans (1640-1701) e seus descendentes. Às vésperas da Revolução, Philippe constrói alguns prédios em certas áreas do jardim e os aluga para lojistas. A partir de 1789, torna-se um dos principais centros de agitação revolucionária. Philippe, que votara a favor da execução do rei, passa a se chamar Philippe Égalité, o que resulta em outra mudança de nome para o palácio. Em outubro de 1793, o palácio é confiscado e Philippe Égalité, guilhotinado no mês seguinte. 124. Invadido e saqueado durante os distúrbios de 1848, o Palais Roy al, chamado provisoriamente Palais National, foi estatizado. 125. Price: grande dinastia de palhaços ingleses. Dumas faz alusão ao ancestral, James Price (1761-1805), membro da trupe Astley, que, a partir de 1782, ressuscitou o circo na França antes de se fundir com os Franconi. Seus descendentes, John e William Price, também fizeram sucesso na França entre 1858 e 1867. Charles Mazurier: dançarino-acrobata do teatro da Porte SaintMartin. Jean-Baptiste Auriol (1808-81): célebre palhaço francês que fez sucesso sobretudo no circo Franconi. 126. Amigos da Verdade ou Círculo Social: fundado em 1790, é simultaneamente clube político, salão literário e loja maçônica. Promove reuniões dedicadas à análise do Contrato social, de Rousseau (ver nota 21). um leão de ferro de boca aberta serve de caixa de correio, daí o nome do jornal, La Bouche de Fer. Organiza no Circo do Palais Royal reuniões da loja maçônica Amigos da Verdade. De tendência girondina (ver nota 45 de 1001 fantasmas), o clube é fechado em 1793. 127. Provavelmente um restaurante. 128. Episódio narrado por Tito Lívio (59-17 d.C.), em sua História romana. Em c.393 a.C., um terremoto abriu uma cratera no Fórum. Os áugures (espécie de profetas), consultados, afirmaram que ela só se fecharia se a cidade sepultasse em seu bojo o que constituía sua força. Argumentando que a força de Roma residia em seu exército, um jovem patrício, Marco Cúrcio, ofereceu-se em sacrifício e atirou-se todo armado dentro do abismo, que se fechou sobre ele. 129. Carteado a dinheiro. 130. François de Bassompierre (1579-1646): marechal e diplomata francês. Preso na Bastilha de 1631 a 1643, deixou Memórias. Sobre Maria de Médicis, ver nota 70 em 1001 fantasmas. 131. Júlio César (100-44 a.C.), Aníbal (247-183 a.C.) e Napoleão Bonaparte (1769-1821): generais e imperadores, respectivamente romano, cartaginês e francês. 132. São Lourenço (210/220-59) é considerado o protetor dos pobres e teria enfrentado seu martírio sem demonstrar qualquer sinal de sofrimento. 133. Referência à fábula “A cigarra e a formiga”, transmitida pelo grego Esopo (séc.VII-VI a.C.). Nela, após cantar durante todo o verão, a cigarra bate à casa da formiga e pede-lhe emprestados alguns víveres para enfrentar o inverno: “Pago com juros”, prometeu. “O que você fazia no tempo quente?” inquiriu a formiga. “Cantava para todo mundo”, respondeu a cigarra. “Pois então, agora dance!”, despachou-a a avarenta. 134. São muitas as versões do mito de Prometeu. A mais conhecida, enredo da tragédia Prometeu acorrentado, de Ésquilo (c.525-455 a.C.), apresenta-o como o titã que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens, sendo, por tal crime, acorrentado nas montanhas do Cáucaso e condenado a ter o fígado devorado diária e eternamente por um abutre. A ele é atribuída, em outras versões do mito, a criação dos homens a partir da argila e da água. 135. Na realidade, Danton foi preso em 30 de março de 1794 e executado em 5 de abril. Ver nota 46. 136. Maximilien Robespierre (1759-93), advogado e deputado na Assembleia Nacional eleito em 1789, votou pela queda da monarquia e a execução da família real. Alcunhado “o Incorruptível” por suas posições dogmáticas, terminou vítima do Terror, o qual ele contribuíra amplamente para instalar. 137. Pitt e Cobourg: ver nota 74. “Ao poste!”: referência ao poste de execução. 138. Jean Siffrein Maury (1746-1817), escritor e cardeal francês, lança-se na política em 1789, assumindo a defesa do poder real, o que o leva a ser agredido pelos revolucionários. Ameaçado de ser enforcado no poste defronte à prefeitura, tem a vida salva graças a um chiste: “E quando eu estiver lá, vocês enxergarão melhor?” Mais tarde, partidário de Napoleão Bonaparte, foi perseguido durante o período da Restauração monárquica (1814-30), chegando a ser exilado da França. 139. Estabelecimento parisiense, construído sob o reinado de Luís XIII, que funcionava como hospício, casa de saúde e prisão. ANEXOS Ambas as novelas aqui reunidas foram acrescidas de textos concebidos pelo próprio Alexandre Dumas, que descrevem as circunstâncias de sua criação. Tais adendos, até hoje, muitas vezes não constam das edições francesas. Quando publicados, aparecem em geral como prefácios do autor. Sem querer eliminá- los, mas ao mesmo tempo desejando evitar qualquer adiamento no contato direto entre o leitor e as narrativas propriamente ditas, optou-se por incluí-los ao final do volume, sob a forma de apêndices. Tal opção se justifica, ainda, pelo fato de ambos versarem sobre basicamente o mesmo tema, isto é, a arte da conversação e suas semelhanças com a narrativa ficcional.

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