Um hotel da rua Saint-Honoré
Hoffmann recuou, aterrado. Apesar da voz e da fisionomia, ainda duvidava.
Contudo, ao erguer a cabeça, Arsène deixou cair as mãos sobre os joelhos e,
desnudando o colo, deixou à mostra o estranho agrafo de diamante que unia as
duas pontas da gargantilha de veludo e resplandecia na noite.
— Arsène, Arsène! — repetiu Hoffmann.
Arsène pôs-se de pé.
— O que faz aqui a esta hora? — perguntou o rapaz. — Vestindo essa túnica
cinza! Os ombros nus! Como isso pôde acontecer?!
— Ele foi preso ontem — explicou Arsène. — Vieram prender-me também,
fugi do jeito que estava. Hoje à noite, às onze horas, achando meu quarto muito
pequeno e minha cama muito fria, saí e vim para cá.
Essas palavras foram pronunciadas num tom estranho, sem gestos, sem
inflexões. Saíam de uma boca empalidecida, que se abria e fechava como uma
mola, lembrando um autômato falante.
— Mas — exclamou Hoffmann — não pode ficar aqui!
— Aonde eu iria? Ao lugar de onde vim, só quero voltar o mais tarde possível.
Senti muito frio.
— Ora, venha comigo! — convidou Hoffmann.
— Com você! — estranhou Arsène.
E pareceu ao rapaz que daquele olho apagado, à luz das estrelas, chegava-lhe
um olhar desdenhoso, como o que já o esmagara na encantadora alcova da rua
de Hanôver.
— Estou rico, tenho ouro! — gritou Hoffmann.
O olho da bailarina lançou um raio.
— Vamos — ela disse —, mas… para onde?
— Onde?
Com efeito, para onde Hoffmann levaria aquela mulher de luxo e
sensualidade, se mesmo fora dos palácios mágicos e dos jardins encantados da
Ópera ela estava habituada a pisar em tapetes persas, a se cobrir com cashmere
indiano?
Não, obviamente, para o seu quartinho de estudante. Lá ela ficaria sem
espaço e com frio, como no lugar obscuro ao qual parecia tanto temer voltar.
— Onde, com efeito? — perguntou Hoffmann. — Não conheço nada de
Paris.
— Posso guiá-lo — sugeriu Arsène.
— Oh, sim! Sim! — entusiasmou-se Hoffmann.
— Siga-me — disse a moça.
Com o mesmo andar rígido e automático, que em nada lembrava a
flexibilidade maravilhosa que Hoffmann admirara na bailarina, ela pôs-se a
caminhar diante dele.
Não ocorreu ao rapaz oferecer-lhe o braço: seguiu-a.
Arsène entrou na rua Royale, que à época chamava-se rua da Revolução,
virou à direita na rua Saint-Honoré, que na época chamava-se simplesmente
Honoré, e então, parando diante da fachada de um magnífico hotel, bateu.
A porta se abriu imediatamente.
O porteiro, perplexo, examinou Arsène.
— Fale — disse ela ao rapaz —, ou eles não permitirão minha entrada e serei
obrigada a voltar para junto da guilhotina.
— Meu amigo — começou Hoffmann, interpondo-se afogueado entre a
moça e o porteiro —, eu estava atravessando os Champs Ély sées quando ouvi
gritarem por socorro. Acorri a tempo de impedir que a dama fosse assassinada,
porém tarde demais para impedir que fosse roubada. Dê-me, rápido, seu melhor
quarto, e mande acender uma bela lareira e servir uma boa ceia. Aqui está um
luís.
Um luís era uma bela soma para a época, representando novecentos e vinte e
cinco francos em assignats.
O porteiro tirou seu barrete encardido e tocou uma campainha. Um menino
acorreu ao chamado.
— Depressa! Depressa! O melhor quarto do hotel para o cavalheiro e a
dama.
— Para o cavalheiro e a dama? — repetiu o garoto, perplexo, alternando seu
olhar entre a roupa modesta de Hoffman e os trajes sumários de Arsène.
— Sim — atalhou Hoffmann —, o melhor, o mais bonito, que seja
principalmente bem-aquecido e iluminado, aqui está um luís.
O garoto pareceu sofrer a mesma influência que o porteiro, curvando-se
diante do luís e apontando para uma grande escada, iluminada pela metade
devido ao adiantado da hora, mas sobre cujos degraus estendia-se, luxo bastante
incomum para a época, um tapete.
— Subam — disse ele —, e aguardem à porta do nº3.
Saiu correndo e desapareceu.
No primeiro degrau da escada, Arsène parou.
Diáfana e delicada, ela parecia sentir uma dificuldade invencível para erguer
o pé.
Era como se o seu leve sapato de cetim tivesse solas de chumbo.
Hoffmann ofereceu-lhe o braço.
Arsène apoiou a mão no braço oferecido pelo rapaz e, embora ele não
sentisse a pressão do punho da bailarina, sentiu o frio que seu corpo lhe
transmitia.
Então, com um esforço violento, Arsène subiu o primeiro degrau e os outros
sucessivamente, mas cada um deles arrancava-lhe um suspiro.
— Oh, pobre mulher — murmurou Hoffmann —, como deve ter sofrido!
— Sim, sim, muito… Sofri muito.
Chegaram à porta do nº3.
Quase junto com eles, chegou o garoto carregando um imenso braseiro. Ele
abriu a porta do quarto e num instante a lareira se inflamou e as velas foram
acesas.
— Está com fome? — perguntou Hoffmann.
— Não sei — respondeu Arsène.
— A melhor ceia que puderem nos oferecer, menino — comandou
Hoffmann.
— Cavalheiro — observou o garoto —, não se diz mais menino, mas assessor.
Tirando isso, o cavalheiro paga tão bem que pode falar como quiser.
Em seguida, encantado com a piada, saiu, dizendo:
— Em cinco minutos, a ceia!
Fechada a porta atrás do assessor, Hoffmann dirigiu seus olhos ávidos para
Arsène.
Ela tinha tanta urgência de se aproximar do fogo que não tivera tempo de
puxar uma poltrona para junto da lareira. Apenas se acocorara no canto do átrio,
na mesma posição em que Hoffmann a encontrara diante da guilhotina. Ali, com
os cotovelos nos joelhos, parecia preocupada em manter, com ambas as mãos, a
cabeça reta sobre os ombros.
— Arsène! Arsène! — chamou o rapaz. — Não lhe falei que estava rico?
Olhe e veja se menti.
Hoffmann começou por virar o chapéu em cima da mesa. Este achava-se
repleto de luíses simples e duplos, os quais, ao caírem no mármore, fizeram
aquele barulho de ouro tão singular e inconfundível.
Depois do chapéu, esvaziou os bolsos, e um atrás do outro seus bolsos
regurgitaram o imenso butim que acabava de conquistar no jogo.
Uma montanha de ouro móvel e reluzente formou-se sobre a mesa
Ouvindo aquele barulho, Arsène pareceu ganhar vida. Voltou a cabeça, e a
vista pareceu operar a ressurreição iniciada pela audição.
E mergulhou suas mãos pálidas na montanha de metal.
— Oh — exclamou —, tudo isso lhe pertence?
— Amim, não, Arsène, a você.
— Amim! — exultou a bailarina.
E mergulhou suas mãos pálidas na montanha de metal.
Os braços da moça desapareceram até o cotovelo.
Aquela mulher, cuja vida havia sido o ouro, pareceu ressuscitar em contato
com ele.
— A mim! — exclamava. — A mim! — E dizia essas palavras num tom
vibrante e metálico que se harmonizava perfeitamente ao tilintar dos luíses.
Dois garotos entraram, trazendo uma ampla refeição, que quase deixaram
cair ao perceberem aquele monte de riquezas nas mãos crispadas da moça.
— Ótimo — disse Hoffmann —, agora tragam champanhe, e deixem-nos a
sós.
Os garotos trouxeram várias garrafas de champanhe e se retiraram.
Atrás deles, Hoffmann foi empurrar a porta, que fechou com o trinco.
Em seguida, com os olhos inflamados de desejo, aproximou-se novamente de
Arsène, a quem encontrou junto à mesa, a sorver a vida não da fonte da
Juventude, mas da fonte do Pactolo.
— E então? — perguntou ele.
— Como é belo o ouro! — a jovem respondeu. — Fazia tempo que não o
tinha nas mãos.
— Venha! Vamos comer — disse Hoffmann. — Depois, fique
completamente à vontade, Dânae, pode tomar um banho de ouro se quiser.
E arrastou-a para a mesa.
— Estou com frio! — ela disse.
Hoffmann olhou à sua volta. As janelas e a cama eram forradas em
damasco vermelho. Arrancou uma cortina da janela e passou-a a Arsène.
Arsène envolveu-se na cortina, que pareceu drapejar-se por si só como as
pregas de um manto antigo, e, sob aqueles panos vermelhos, seu rosto pálido
ganhou nova cor.
Era quase medo o que Hoffmann sentia.
Pôs-se à mesa, serviu-se e bebeu duas ou três taças de champanhe, uma atrás
da outra. Pareceu-lhe então que uma leve coloração tingia os olhos de Arsène.
Serviu-lhe, então, e ela, por sua vez, bebeu.
Intimou-a a que comesse, mas ela se recusou. Como Hoffmann insistia, ela
disse:
— Não consigo engolir.
— Bebamos, então.
Ela estendeu sua taça.
— Sim, bebamos.
Hoffmann tinha fome e sede ao mesmo tempo. Comeu e bebeu.
Bebeu, sobretudo. Sentia que precisava ser audaz. Não que Arsène, como
fizera em sua casa, parecesse disposta a resistir-lhe, fosse pela força, fosse pelo
desdém, mas porque alguma coisa gelada emanava do corpo da bela comensal.
À medida que ia bebendo, a seus olhos pelo menos, Arsène ganhava vida. Em
contrapartida, quando Arsène esvaziava a taça, algumas gotas rosadas rolavam
da parte inferior da gargantilha de veludo sobre seu colo. Hoffmann observava
sem compreender, depois, sentindo alguma coisa de terrível e misterioso naquilo,
lutou contra os seus arrepios secretos multiplicando os brindes que fazia aos belos
olhos, boca e mãos da bailarina.
Ela não ficava atrás, bebendo tanto quanto ele e parecendo revigorar-se não
pelo vinho que bebia, mas pelo que Hoffmann bebia.
Subitamente, um tição rolou da lareira.
Hoffmann acompanhou com os olhos a direção do graveto em chamas, que
só parou ao esbarrar no pé de Arsène.
Provavelmente para se aquecer, Arsène tirara meias e sapatos. Seu pezinho,
branco como o mármore, achava-se pousado no mármore do átrio, tão branco
como o pé, com o qual parecia formar uma unidade.
Hoffmann gritou.
— Arsène, Arsène! Cuidado!
— Com o quê? — perguntou a bailarina.
— Com o tição… o tição encostado no seu pé…
E, com efeito, ele cobria metade do pé de Arsène.
— Retire-o — ela disse, tranquilamente.
Hoffmann abaixou-se, retirou o tição e percebeu com pavor que não fora a
brasa que queimara o pé da moça, e sim este que a apagara.
— Bebamos! — ele disse.
— Bebamos! — repetiu Arsène, estendendo a taça.
A segunda garrafa foi esvaziada.
Hoffmann, porém, sentia que a embriaguez do vinho não lhe bastava.
Avistou um cravo.
— Esplêndido…! — exultou, percebendo o trunfo que lhe oferecia a
embriaguez da música.
Precipitou-se até o instrumento.
Então, espontaneamente, sob seus dedos nasceu a melodia do pas-detrois que
Arsène dançava na Ópera de Paris quando a viu pela primeira vez.
De repente, ocorreu a Hoffmann que as cordas do cravo, na verdade, eram
de aço. O instrumento sozinho ressoava como uma orquestra inteira.
— Ah! — exclamou ele. — Melhor assim!
Acabava de descobrir na massa sonora a embriaguez que procurava. Arsène,
de seu lado, ergueu-se aos primeiros acordes.
Esses acordes, qual uma rede de ferro, envolveram toda a sua pessoa.
Jogando longe a cortina de damasco vermelho, tal como se opera uma
mudança mágica no teatro, uma mudança operou-se nela. E, em vez da túnica
cinza, em vez dos ombros órfãos de adornos, ela ressurgiu nos trajes de Flora,
resplandecente nas flores, esvoaçante na gaze, trêmula na volúpia.
Hoffmann deixou escapar um grito, e, redobrando as energias, pareceu
extrair um vigor infernal do corpo do cravo, que reverberou sob as fibras de aço.
Então a mesma miragem voltou a turvar o espírito de Hoffmann. Aquela
mulher saltitante, que ressuscitara gradualmente, atraía-o irresistivelmente.
Depois de transformar num teatro todo o espaço que separava o cravo da cama,
ela se destacava como uma aparição do inferno contra o fundo vermelho da
cortina. A cada vez que se aproximava de Hoffmann, Hoffmann soerguia-se da
cadeira, a cada vez que se afastava, Hoffmann sentia-se arrastado por seus
passos. Finalmente, à revelia do jovem músico, um novo ritmo saiu da ponta de
seus dedos. Não tocava mais a melodia que ouvira, foi uma valsa. Era O desejo,
de Beethoven. Expressando seus desejos, ela brotava de suas mãos. Arsène
acompanhara-o, girando primeiramente sobre si mesma e, pouco a pouco,
alargando o círculo que desenhava. Foi se aproximando de Hoffmann, o qual,
ofegante, sentia sua vinda, sentia sua aproximação. Compreendia que no último
círculo iria tocá-lo e que então ele seria obrigado a se levantar e a participar
daquela valsa de fogo. Sentia desejo e pavor ao mesmo tempo. Finalmente, ao
passar, Arsène estendeu a mão e, com a ponta dos dedos, roçou em Hoffmann.
Este, aos gritos e pulando como se tocado por uma faísca elétrica, correu no
rastro da bailarina, juntou-se a ela, enlaçou-a nos braços, continuando em
pensamento a melodia interrompida na realidade, e apertou contra seu coração
aquele corpo novamente elástico, aspirando os olhares de seus olhos, o sopro de
sua boca, devorando com suas próprias aspirações aquele pescoço, aqueles
ombros, aqueles braços, girando não mais numa melodia respirável, mas num
vendaval de chamas que, penetrando até o fundo do peito dos dois valsistas,
terminou por lançá-los, arfantes e inconscientizados pelo delírio, na cama que os
esperava.
Quando Hoffmann acordou na manhã seguinte, um daqueles dias lívidos dos
invernos de Paris acabava de nascer e penetrava até a cama pela cortina
arrancada da janela. Ele olhou à sua volta, sem saber onde estava, e sentiu uma
massa inerte pesando sobre seu braço esquerdo. Virou-se para o lado dormente
próximo ao coração e reconheceu, deitada ao seu lado, não mais a linda bailarina
da Ópera, mas a pálida moça da praça da Revolução.
Nesse momento, tudo voltou-lhe à mente. Puxando de sob aquele corpo
enrijecido seu braço gelado, e constatando que ela continuava inerte, pegou um
candelabro, no qual ainda brilhavam cinco velas, e, à dupla luz do dia e das velas,
percebeu que Arsène estava sem movimento, pálida e de olhos fechados.
Seu primeiro pensamento foi que o cansaço havia sido mais forte que o amor,
o desejo e a vontade; e que a moça desmaiara. Tomou sua mão, estava gelada.
Procurou as batidas de seu coração, este não batia mais.
Ocorreu-lhe então uma ideia horrível. Pendurando-se no cordão da
campainha, o qual partiu em suas mãos, lançou-se em direção à porta, abriu-a e
precipitou-se pelos degraus, gritando:
— Ajudem! Socorro!
Justamente nesse instante, um homenzinho sinistro subia a escada que
Hoffmann descia. O homenzinho levantou a cabeça. Hoffmann gritou. Acabava
de reconhecer o médico da Ópera.
— Ah, é o senhor, meu prezado — cumprimentou o médico, por sua vez
reconhecendo Hoffmann. — O que aconteceu e por que todo esse barulho?
“Pronto, veja!”
— Oh, venha, venha — chamou Hoffmann, não se dando ao trabalho de
explicar ao médico o que esperava dele e torcendo para que a visão de Arsène
inanimada surtisse mais efeito do que todas as suas palavras. — Venha!
E arrastou-o quarto adentro.
Enquanto o empurrava com uma das mãos até a cama, com a outra pegou o
candelabro, que aproximou do rosto de Arsène:
— Pronto — disse —, veja!
Contudo, longe de parecer assustado, o médico declarou:
— Ah, só você, rapaz! Só você para resgatar esse cadáver, evitando que ele
apodreça na vala comum… Muito bem, rapaz, muito bem!
— Esse cadáver… — murmurou Hoffmann — resgatado… a vala comum…
O que está querendo dizer? Meu Deus!
— Estou dizendo que a nossa desventurada Arsène, presa ontem às oito da
manhã, foi julgada ontem às duas da tarde e executada ontem às quatro.
Hoffmann achou que iria enlouquecer. Agarrou o médico pelo colarinho.
— Executada ontem às quatro! — gritou, estrangulando a si mesmo. —
Arsène, executada!
E deu uma gargalhada, mas uma gargalhada tão estranha, tão estridente, tão
fora de todas as modulações do riso humano, que o médico fixou sobre ele olhos
de perplexidade.
— Duvida disso? — perguntou.
— Como assim! — exclamou Hoffmann. — Se duvido? Acredito piamente.
Ceei, valsei, passei a noite com ela.
— Trata-se então de um caso anômalo, que registrarei nos anais da medicina
— afirmou o médico. — E o senhor confirmaria a história, não é?
— Ora, não posso confirmar, uma vez que o desminto, uma vez que afirmo
que isso é impossível, que isso não é real!
— Ah, afirma que isso não é real — rebateu o médico. — Afirma-o a mim,
médico das prisões! A mim, que fiz de tudo para salvá-la e não consegui! A mim,
que lhe dei adeus ao pé da carroça! Afirma que não é real! Espere!
Então o médico esticou o braço, apertou a pequena mola de diamante que
servia de fecho à gargantilha e puxou o veludo.
O grito de Hoffmann foi terrível. Livre do único elo que a prendia aos
ombros, a cabeça da supliciada rolou da cama para o chão, só vindo a parar no
sapato de Hoffmann, como o tição só parara no pé de Arsène.
Hoffmann deu um pulo para trás e se precipitou pelas escadas, berrando:
— Estou louco!
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