domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 782 : O camafeu

 O camafeu

O crupiê pegou e examinou o camafeu de ouro: — Cavalheiro — disse a Hoffmann, pois no 113 ainda se usava essa forma de tratamento —, venda-o se quiser, e jogue em dinheiro. Repito, só aceitamos ouro ou prata em dinheiro. Hoffmann recolheu o camafeu e, sem dizer uma palavra, deixou o salão de jogo. Durante o tempo necessário para descer a escada, muitos pensamentos, conselhos e pressentimentos zuniram à sua volta, mas ele se fez de surdo a todos esses vagos rumores, entrando abruptamente no cambista, que, um minuto antes, acabava de trocar seus luíses por táleres. Displicentemente recostado em sua larga poltrona de couro, o bom homem lia, os óculos pousados na ponta do nariz, iluminado por uma pequena lamparina, que emitia uma luz baça, à qual acabava de juntar-se o louco reflexo das moedas de ouro, deitadas em suas bacias de cobre. Ele estava emoldurado por uma fina grade de ferro, recoberta por cortininhas de seda verde e enfeitada com uma portinhola da altura da mesa, portinhola pela qual uma só mão passava. Hoffmann nunca admirara tanto o ouro. Como se houvesse entrado num raio de sol, abria olhos ofuscados e, embora tivesse visto mais ouro no jogo do que via ali, não era o mesmo ouro, filosoficamente falando. Havia, entre o ouro ruidoso, ágil e irrequieto do 113 e o ouro tranquilo, grave e mudo do cambista, a diferença que há entre o tagarela oco e sem verve e o pensador transbordante de meditação. Não se pode fazer nada de bom com o ouro da roleta ou das cartas, pois, em vez de pertencer a quem o possui, quem o possui é que lhe pertence. Nascido de fonte corrupta, ele deve desaguar num objeto impuro. Ele carrega a vida dentro de si, mas a vida perversa, e tem pressa de ir embora tal como chegou. Ele só aconselha o vício, não faz o bem, quando o faz, é sem querer. Inspira desejos quatro vezes, vinte vezes maiores que o seu valor e, uma vez conquistado, parece desvalorizado. Em suma, o dinheiro do jogo, ganhado ou ambicionado, perdido ou embolsado, tem um valor sempre fictício. Ora um punhado de ouro não representa nada, ora uma única moeda encerra a vida de um homem. Enquanto o ouro comercial, o ouro do cambista, como o que Hoffmann buscava junto a seu compatriota, vale de fato seu preço de face. Ele sai do cofre, seu ninho de cobre, por um valor igual ou superior ao seu. Não se prostitui ao passar, como uma cortesã, sem pudor, sem preferência, sem amor, de mão em mão. Tem amor-próprio. Uma vez fora da casa de câmbio, pode ser corrompido, pode frequentar a ralé, o que talvez fizesse antes de chegar ali, mas enquanto está ali é respeitável e digno de consideração. Ele é a imagem da necessidade, e não do capricho. É merecido e não dado pela sorte. Não é lançado aleatoriamente como simples fichas pela mão do crupiê, é metodicamente contado moeda por moeda, lentamente, pelo cambista, e com todo o respeito devido. É silencioso, e nisso reside sua grande eloquência. Portanto, Hoffmann, em cuja imaginação uma comparação desse gênero levava apenas um minuto para ir embora, pôs-se a temer que o cambista jamais lhe desse ouro tão real em troca de seu camafeu. Julgou-se então forçado, apesar da perda de tempo que isso representava, a adotar perífrases e circunlóquios para chegar ao que pretendia, ainda mais que não era um negócio, mas um favor que vinha pedir ao cambista. — Cavalheiro — disse-lhe —, sou eu, aquele que acabou de trocar táleres por ouro. — Sim, cavalheiro, estou reconhecendo-o — respondeu o cambista. — É alemão, senhor? — De Heidelberg. — Foi lá que fiz meus estudos. — Cidade encantadora! — Com efeito. Enquanto isso, o sangue de Hoffmann fervilhava. Cada minuto dispensado àquela conversa parecia-lhe um ano de vida perdido. Prosseguiu, então, com um sorriso: — Achei que, sendo meu compatriota, pudesse me prestar um favor. — Qual seria? — perguntou o cambista, fechando a cara ao ouvir tal palavra. O cambista não empresta mais que a formiga.133 — Emprestar-me três luíses tendo esse camafeu de ouro como garantia. E, ao mesmo tempo, Hoffmann passou o camafeu ao comerciante, que, colocando-o numa balança, pesou-o. — Não prefere vendê-lo? — perguntou o cambista. — Oh, não! — exclamou Hoffmann. — Não, já é demais penhorá-lo. Eu lhe pediria, inclusive, cavalheiro, se me prestar esse favor, que me fizesse a gentileza de me guardar esse camafeu com o maior cuidado, pois prezo-o mais que a vida. Virei resgatá-lo amanhã. Só uma circunstância como esta em que me encontro para me fazer penhorá-lo. — Empresto-lhe então três luíses, cavalheiro. E o cambista, com toda a gravidade que julgava merecer tal atitude, pegou três luíses e alinhou-os diante de Hoffmann. — Oh, obrigado, cavalheiro, mil vezes obrigado! — exclamou o poeta, apoderando-se das três moedas de ouro e desaparecendo. O cambista voltou silenciosamente à sua leitura, após ter guardado o medalhão num canto da gaveta. Não era a esse homem que ocorreria a ideia de ir arriscar seu ouro contra o ouro do 113. O jogador está tão próximo do sacrilégio que Hoffmann, ao lançar sua primeira moeda de ouro no 26, pois queria arriscá-las uma a uma, pronunciou o nome de Antônia. Enquanto a bolinha girou, Hoffmann não sentiu nada, alguma coisa lhe dizia que ganharia. Deu o 26. Hoffmann, radiante, ganhou trinta e seis luíses. Separou imediatamente três no bolso do relógio para ter certeza de recuperar o camafeu de sua noiva, a quem, logicamente, devia aquele primeiro êxito. Apostou trinta e três luíses no mesmo número e o mesmo número saiu. Eram então trinta e seis vezes trinta e três luíses que ele ganhava, isto é, mil duzentos e noventa e seis luíses, isto é, mais de vinte e cinco mil francos. Então Hoffmann, enfiando a mão naquele verdadeiro rio de ouro e pegandoo aos punhados, jogou aleatoriamente, num deslumbramento sem fim. A cada jogada, a pilha de seus ganhos crescia, semelhante a uma montanha que irrompesse subitamente da água. Tinha ouro nos bolsos, no paletó, no colete, no chapéu, nas mãos, na mesa, em toda parte, enfim. Da mão dos crupiês, ele se esvaía à sua frente como o sangue de uma grande ferida. Hoffmann tornara-se o Júpiter de todas as Dânaes presentes e o caixa de todos os jogadores desafortunados, com o que perdera efetivamente uns vinte mil francos. Por fim, recolhendo todo o ouro que tinha diante de si, quando julgou ter o suficiente, fugiu, deixando todos os presentes cheios de admiração e inveja, e correu em direção à casa de Arsène. Era uma hora da manhã, mas pouco lhe importava. De posse daquela soma, achava que podia chegar a qualquer hora da noite e seria sempre bem-vindo. Regozijava-se antecipadamente, cobrindo com todo aquele ouro o belo corpo que se desvelara à sua frente e que, petrificado em mármore face ao seu amor, ganharia vida diante de sua riqueza, como a estátua de Prometeu ao encontrar sua verdadeira alma.134 Entraria na casa de Arsène, esvaziaria os bolsos até a última moeda e lhe diria: agora, me ame. Então, no dia seguinte, iria embora, a fim de escapar, se é que isso era possível, da lembrança daquele sonho febril e intenso. Bateu no portão da casa de Arsène como se fosse o dono voltando ao lar. O portão se abriu. Hoffmann correu até a escada da entrada. — Quem é? — perguntou a voz do porteiro. Hoffmann não respondeu. — Aonde vai, cidadão? — repetiu a mesma voz, e uma sombra vestida, como as sombras se mostram à noite, saiu da cabine e correu atrás de Hoffmann. Naquela época, era de bom-tom saber quem saía, e, sobretudo, quem entrava, em sua casa. — Vou à casa da srta. Arsène — respondeu Hoffmann, lançando ao porteiro três ou quatro luíses pelos quais uma hora antes teria dado a alma em troca. Essa maneira de se exprimir agradou ao assessor. — A srta. Arsène não mora mais aqui, senhor — ele respondeu, julgando, com razão, ser aconselhável substituir a palavra “cidadão” pela palavra “senhor” quando se lidava com alguém tão generoso. O homem que pede deve dizer cidadão, o que recebe só pode dizer senhor. — Como! — exclamou Hoffmann. — Arsène não mora mais aqui? — Não, cavalheiro. — Quer dizer que ela não voltou ontem à noite. — Quero dizer que não voltará mais. — Para onde foi, então? — Não faço ideia. — Meu Deus! Meu Deus! — desesperou-se Hoffmann. E agarrou a cabeça com as mãos como se para conter a fuga iminente da razão. Tudo que lhe vinha acontecendo nos últimos tempos era tão estranho que a todo instante ele dizia: “Pronto, agora eu enlouqueço!” — Não soube então da notícia? — Que notícia? — O sr. Danton foi preso.135 — Quando? — Ontem. Foi o sr. Robespierre quem mandou. Que grande homem é o cidadão Robespierre!136 — E daí? — E daí! A srta. Arsène foi obrigada a fugir, pois, enquanto amante de Danton, poderia acabar envolvida em toda essa confusão. — Está certo. Mas como ela fugiu? — Como alguém foge quando receia ter a cabeça cortada: em linha reta. — Obrigado, amigo, obrigado — disse Hoffmann. E, após ter deixado mais algumas moedas na mão do porteiro, saiu. Na rua, Hoffmann perguntou-se o que seria dele e de que lhe serviria agora todo aquele ouro, pois, como é razoável supor, a ideia de reencontrar Arsène não lhe ocorreu e, tampouco, a de voltar para casa e descansar. Pôs-se então, por sua vez, a andar em linha reta, fazendo o calçamento das ruas vazias ressoar sob o salto de suas botas e avançando insone dentro de seu sonho doloroso. A noite estava fria. As árvores descarnadas tremiam ao vento da noite, como doentes em delírio deixando o leito, cujos membros emagrecidos a febre agita. A geada chicoteava o rosto dos andarilhos noturnos e, apenas de tempos em tempos, nas casas que confundiam seus vultos com o céu escuro, uma janela iluminada perfurava o breu. Mas o ar frio lhe fazia bem. Sua alma se dissipava pouco a pouco naquela carreira rápida e, se é que podemos dizer, sua efervescência moral se volatilizava. Dentro do quarto, teria sufocado. Além disso, obrigando-se a seguir em frente, talvez reencontrasse Arsène. Quem sabe, ao fugir, ela não tomara o mesmo caminho que ele ao sair de casa? Assim, como se, na falta dos olhos, que não enxergavam, seus pés reconhecessem por si só o lugar onde estava, ele percorreu o bulevar deserto, atravessando a rua Royale. Levantou a cabeça e parou, percebendo que viera diretamente para a praça da Revolução, aquela praça aonde jurara nunca mais voltar. Por mais escuro que estivesse o céu, uma silhueta ainda mais escura se destacava no horizonte negro como tinta. Era a silhueta da hedionda máquina, cuja boca úmida de sangue o vento da noite secava e que dormia esperando sua fila cotidiana. Era durante o dia que Hoffmann não queria mais ver aquele lugar; era por causa do sangue que lá corria que não queria mais se encontrar ali. Porém à noite tudo era diferente. O poeta, desde sempre habitado pela intuição poética, tinha interesse em ver, tocar com o dedo, no silêncio e na penumbra, o sinistro cadafalso, cuja figura sangrenta, àquela hora, devia requentar muitas imaginações. Que belo contraste, depois da sala ruidosa do jogo, aquela praça deserta, cujo cadafalso era o anfitrião eterno, após o espetáculo da morte, do abandono e da insensibilidade! Hoffmann, portanto, ia em direção à guilhotina como se atraído por uma força magnética. Subitamente, e quase sem se dar conta, viu-se cara a cara com ela. O vento assobiava nas tábuas. Hoffmann cruzou as mãos no peito e observou. Quanta coisa não deve ter brotado no espírito daquele homem, que, com os bolsos abarrotados de ouro e ansiando por uma noite de volúpia, passava-a solitariamente diante de um cadafalso! Em meio a seus pensamentos, pareceu-lhe que uma queixa humana misturava-se às queixas do vento. Esticou o pescoço e prestou atenção. O lamento se repetiu, vindo não de longe, mas de baixo. Hoffmann olhou à sua volta e não viu ninguém. Porém, um terceiro gemido chegou-lhe aos ouvidos. “Parece voz de mulher”, murmurou, “e parece estar saindo de baixo desse cadafalso.” Então, agachando-se para enxergar melhor, começou a contornar a guilhotina. Quando passava em frente à terrível escada, tropeçou em alguma coisa. Estendeu as mãos e tocou numa criatura toda de preto e de cócoras nos primeiros degraus. — Quem é você? — perguntou Hoffmann. — Quem é você que pernoita junto a um cadafalso? E, ao mesmo tempo, ajoelhava-se para ver o rosto daquela a quem se dirigia. Mas ela não se mexia, e, com os cotovelos nos joelhos, descansava a cabeça nas mãos. Apesar do frio da noite, tinha os ombros quase inteiramente nus e Hoffmann pôde ver uma linha negra cingindo seu pescoço branco.

Arsène!”, gritou. Era uma gargantilha de veludo. — Arsène! — gritou. — Sim, sim, Arsène — murmurou com uma voz estranha a mulher de cócoras, erguendo a cabeça e fitando Hoffmann.

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