domingo, 3 de dezembro de 2017
T2 N° 781 : O 113
O 113
O Palais Royal — que naquela época chamava-se Égalité e hoje se chama Palais National,124 pois em nosso país a primeira coisa que os revolucionários fazem é mudar os nomes de ruas e praças, preparando-as para as futuras restaurações —, o Palais Royal, como eu dizia, afinal é seu nome mais familiar, não era naquela época o que é hoje, mas, em matéria de pitoresco, ou mesmo de estranheza, não lhe ficava nada a dever. Sobretudo à noite, à hora em que Hoffmann lá chegava. Sua configuração pouco diferia da que vemos agora, salvo que a parte hoje conhecida como galeria de Orléans era ocupada por uma dupla galeria em alpendre, que mais tarde daria lugar a um passeio com seis fileiras de colunas dóricas; salvo que, em vez de tílias, havia castanheiras no jardim; e que, onde hoje é o tanque, erguia-se um circo, vasto galpão protegido por sebes, guarnecido com janelas e cuja cumeeira era coroada por arbustos e flores. Não vão acreditar que esse circo foi o espetáculo digno desse que chamamos por tal nome. Não, os acrobatas e mágicos que se esgrimiam no circo do Palais Égalité (cuja natureza nada tinha a ver com a daquele acrobata inglês, o sr. Price, que alguns anos antes tanto maravilhara a França e que engendrou os Mazurier e os Auriol) faziam outro gênero.125 Na época, o circo era ocupado pelos Amigos da Verdade,126 que promoviam sessões a que era possível assistir com a condição de ser assinante do jornal A Boca de Ferro. Com seu exemplar matinal, à noite era-se admitido naquele lugar de delícias e ouviam-se discursos de todos os federados, ali reunidos, diziam, com o louvável objetivo de proteger governantes e governados, de imparcializar as leis e ir buscar, em qualquer canto do mundo, em qualquer país, de qualquer cor, de qualquer opinião, um amigo da verdade; depois, descoberta a verdade, ela seria ensinada aos homens. Como veem, sempre houve na França gente convencida de ser a eleita para esclarecer as massas e de que o resto da humanidade não passava de uma populaça absurda. O que o vento que soprou fez do nome, das ideias e das vaidades dessa gente? Seja como for, o circo contribuía com seu barulho para o barulho geral e misturava suas buliçosas sessões ao grande concerto que despertava todas as noites no jardim do Palais Égalité. Pois, convém dizer, naqueles tempos de miséria, exílio, terror e perseguições, o Palais Royal tornara-se o centro para onde a vida, comprimida o dia inteiro nas paixões e nas lutas, rumava, à noite, a fim de procurar o sonho e tentar esquecer a verdade em busca da qual esfalfavam-se os membros do Círculo Social e os sócios do circo. Quando todos os bairros de Paris ficavam desertos e às escuras; quando as sinistras patrulhas, compostas pelos carcereiros do dia e pelos carrascos do dia seguinte, rondavam como bestas-feras procurando uma presa qualquer, quando, ao pé da lareira, privados de um amigo ou de um parente morto ou emigrado, aqueles que haviam permanecido sussurravam tristemente seus temores ou sofrimentos, o Palais Royal cintilava como o deus do mal, acendia suas cento e oitenta arcadas, exibia suas joias nas vitrines das joalherias, lançava, enfim, em meio às carmanholas populares e através da miséria geral, suas filhas perdidas, resplandecentes de diamantes, cobertas de branco e vermelho, vestindo o mínimo necessário, em veludo ou seda, e passeando seu esplêndido impudor sob as árvores e nas galerias. Havia, nesse luxo da prostituição, uma última ironia contra o passado, um último insulto feito à monarquia. Exibir aquelas criaturas com aquelas indumentárias reais era atirar lama, depois sangue, na face da encantadora corte de mulheres acostumadas ao luxo, cuja rainha fora Maria Antonieta e que o furacão revolucionário carregara do Trianon para a praça da guilhotina, como um homem bêbado que fosse arrastando na lama o vestido branco de sua noiva. O luxo fora entregue às mulheres mais vis, restando à virtude caminhar em andrajos. Esta era uma das verdades descobertas pelo Círculo Social. Não obstante, o povo que acabava de dar impulso tão violento ao mundo, o povo parisiense ao qual, infelizmente, o raciocínio só ocorre depois do entusiasmo, fazendo com que nunca tenha sangue-frio suficiente senão para lembrar-se das tolices já cometidas, o povo, dizíamos, pobre e malvestido, não entendia muito bem a filosofia dessa contradição e não era com desprezo, mas com inveja, que roçava naquelas rainhas de abjeção, naquelas hediondas majestades do vício. E quando, com os sentidos excitados pelo que via, com os olhos em fogo, ele queria agarrar aqueles corpos que pertenciam a todo mundo, pediam-lhe ouro. Como ele não tinha, era ignominiosamente escorraçado. Assim esboroava-se o grande princípio de igualdade proclamado pelo cutelo, escrito com o sangue e no qual as prostitutas do Palais Roy al tinham o direito de, rindo, cuspir. Em dias como esses, a exacerbação moral era de tal ordem que a realidade exigia estranhas contradições. Não era mais sobre o vulcão, era dentro do vulcão mesmo que se dançava, e os pulmões, habituados ao ar de enxofre e lava, não se contentaram mais com os tépidos perfumes de outros tempos. Dito isto, o Palais Royal renascia todas as noites, iluminando tudo com sua coroa de fogo. Alcoviteiro de pedra, apregoava acima da grande e monótona cidade: — Eis a noite, venham! Tenho tudo em mim, fortuna e amor, jogo e mulheres! Faço qualquer negócio, inclusive no ramo do suicídio e do assassinato. Vocês, que não comem desde ontem, que sofrem, que choram, venham a mim. Verão como somos ricos. Verão como rimos. Alguém tem uma consciência ou uma filha para negociar? Venham! Encherão os olhos de ouro e os ouvidos de obscenidades. Andarão chafurdando no vício, na corrupção e no esquecimento. Venham hoje à noite, amanhã talvez estejam mortos. Era esta a grande razão. Era preciso viver como se morria, num piscar de olhos. E todos iam. Naturalmente, centro de tudo, o lugar mais frequentado era o salão de jogo. Era lá que havia o necessário para se ter o resto. De todos aqueles ardentes respiradouros, era o 113 que mais luz emitia, com sua lanterna vermelha, olho imenso do ciclope ébrio chamado Palais Égalité. Se o inferno tem um número, este deve ser 113. Oh, tudo ali estava programado! No rés do chão, um restaurante; no primeiro andar, o jogo: o peito do estabelecimento encerrava o coração, era mais do que natural; no segundo, havia com que gastar a grande energia absorvida pelo corpo no rés do chão, o dinheiro que o bolso ganhara no andar de baixo. Tudo estava programado, repetimos, para que o dinheiro não saísse da casa. E era para essa casa que Hoffmann corria, o poético pretendente de Antônia. O 113 ficava no mesmo lugar de hoje, a algumas lojas da casa Corcelet.127 Mal Hoffmann apeou do coche e pôs os pés na galeria do palácio, foi assediado pelas divindades locais, graças a seu traje de estrangeiro, que, naqueles tempos como hoje, inspirava mais confiança que o traje nacional. Nunca um país fora tão desprezado por si próprio. — Onde fica o 113? — perguntou Hoffmann à garota que se pendurara no seu braço. — Ah, é para lá que você vai… — desdenhou Aspásia. — Ora, queridinho, basta orientar-se por aquela lanterna vermelha. Mas lembre-se de separar dois luíses para gastar no 115. Hoffmann mergulhou na galeria indicada como Cúrcio no abismo.128 No minuto seguinte estava no salão de jogo. Lá, reinava a algazarra de uma hasta pública. Bem verdade que ali se vendiam muitas coisas. Os salões irradiavam douraduras, lustres, flores e mulheres mais belas, suntuosas e decotadas que as do andar de baixo. Hoffmann deixou à sua direita a sala onde partiam o trente-et-quarante129 e penetrou no salão da roleta. O barulho que imperava em todos os outros era o barulho do ouro. Mas era lá que pulsava aquele coração imundo. Ao redor de uma grande mesa verde estavam instalados os jogadores, todos eles indivíduos reunidos com o mesmo objetivo, mas cada um com uma fisionomia diferente. Havia moços e velhos, estes com os cotovelos erodidos pela mesa. E também quem perdera o pai na véspera, ou de manhã, ou até naquela noite. Mas todos os pensamentos concentravam-se na esfera que girava. No jogador, subsiste um único sentimento, é o desejo, e esse sentimento alimenta-se e cresce à custa de todos os outros. O sr. de Bassompierre, a quem foram dizer justo quando ele começava a dançar com Maria de Médicis:130 “Sua mãe morreu”, e que respondeu: “Minha mãe só morrerá quando eu terminar esta dança”, mesmo assim era um filho devoto comparado a um jogador. Um jogador em plena ação, a quem se viesse dizer tal coisa, sequer responderia ao recado: primeiro, porque seria tempo perdido, depois, porque um jogador, quando está jogando, além de não ter coração, não tem alma. Quando não está jogando, é a mesma coisa, ele pensa em jogar. O jogador tem todas as virtudes de seu vício. É sóbrio, paciente e incansável. Um jogador que subitamente se desvirtuasse e abraçasse uma paixão honesta, ou um sentimento nobre, com a incrível energia que põe a serviço do jogo, seria um dos maiores homens do mundo. Jamais César, Aníbal ou Napoleão 131 tiveram, nem no calor de seus maiores feitos, força igual à do jogador mais obscuro. A ambição, o amor, os sentidos, o coração, o espírito, o ouvido, o olfato, o tato, todos os recursos vitais do homem, enfim, concentram-se numa única palavra e num único objetivo: jogar. E por favor, não acreditem nessa história de que o jogador joga para ganhar. No início até pode ser, mas ele termina jogando por jogar, para ver cartas, para manusear ouro, para sentir aquelas emoções estranhas, incomparáveis a qualquer outra paixão da vida. Diante do ganho ou da perda, esses dois polos nos quais o jogador ricocheteia com a rapidez do vento, dos quais um queima como fogo e o outro congela como gelo, tais emoções fazem com que seu coração escoiceie no peito, sob o desejo ou a realidade, como um cavalo esporeado, absorva como uma esponja todas as faculdades da alma, as comprima, retenha e, feita a jogada, ejete-as bruscamente em torno dele para readquiri-las com mais força ainda. O que torna a paixão do jogo a mais forte de todas é que, insaciável, ela nunca pode ser abandonada. É uma amante que se promete sempre e que jamais se dá. Mata, mas não cansa. A paixão do jogo é a histeria do homem. Para o jogador, tudo morreu, família, amigos e pátria. Seu horizonte é o baralho e a bolinha. Sua pátria é a cadeira onde ele se instala, é o feltro verde onde se apoia. Se o condenarem à fornalha, como são Lourenço,132 e permitirem que jogue, aposto que não sentirá o fogo e sequer piscará. O jogador é silencioso. A palavra não tem serventia alguma para ele. Ele joga, ganha, perde. Não é mais homem, é máquina. Por que falaria? O alvoroço que reinava nos salões não provinha então dos jogadores, mas dos crupiês, que raspavam o ouro e gritavam com uma voz anasalada: — Façam suas apostas. Nesse momento, Hoffmann deixava de ser um observador, era um escravo do vício, caso contrário teria ali uma série de estudos curiosos a fazer. Insinuando-se rapidamente em meio aos jogadores, ele chegou à orla do feltro. Viu-se entre um homem de pé, que vestia uma carmanhola, e um velho sentado, fazendo contas a lápis num papel. Esse velho, que consumira sua existência atrás da jogada ideal, agora dilapidava seus últimos dias tentando-a e vendo-a fracassar. A jogada ideal é intangível, como a alma. Entre as cabeças de todos esses homens, sentados e de pé, viam-se cabeças de mulheres, as quais apoiadas nos ombros deles, pegajosamente grudadas no seu ouro e, com uma habilidade rara, davam um jeito de, sem jogar, ganhar sobre o ganho de uns e sobre a perda de outros. Vendo aqueles copinhos cheios de ouro e aquelas pirâmides de prata, difícil acreditar que a miséria pública fosse tão grande e o ouro custasse tão caro. O homem de carmanhola lançou um pacote de papéis sobre determinado número. — Cinquenta libras — disse, para anunciar sua aposta. — O que é isso? — perguntou o crupiê, recolhendo aqueles papéis com sua raquete e pegando-os com a ponta dos dedos. — São assignats — respondeu o homem. — Não tem outro dinheiro sem ser este? — perguntou o crupiê. — Não, cidadão. — Então pode ceder o lugar a outro. — Por quê? — Porque não aceitamos isso. — É a moeda do governo. — Tanto melhor para o governo se ele consegue passá-la adiante! Nós é que não queremos isso. — Ora essa! — desabafou o homem, recolhendo de volta seus assignats. — Que dinheiro mais esquisito, não podemos sequer perdê-lo! E se afastou, amassando os assignats nas mãos. — Façam suas apostas! — gritou o crupiê. Hoffmann era jogador, já sabemos, mas, dessa vez, não era pelo jogo, era pelo dinheiro que estava ali. A febre que o queimava fazia sua alma ferver no corpo como água na chaleira. — Cem táleres no 26 — gritou. O crupiê examinou a moeda alemã como fizera com os assignats. — Vá trocá-los — disse a Hoffmann. — Só aceitamos dinheiro francês. Hoffmann desceu como um louco, entrou num cambista que calhava justamente de ser alemão e trocou seus trezentos táleres por ouro, isto é, por algo em torno de quarenta luíses. A roleta girara três vezes enquanto isso. — Quinze luíses no 26! — gritou, precipitando-se para a mesa e, com a incrível superstição dos jogadores, aferrando-se ao número que escolhera por acaso e por ser aquele em que o homem dos assignats pretendia apostar. — Apostas encerradas! — gritou o crupiê. A bolinha girou. O vizinho de Hoffmann recolheu dois punhados de ouro e os jogou no chapéu que mantinha preso entre as pernas, mas o crupiê raspou os quinze luíses de Hoffmann e de muitos outros. Saíra o 16. Hoffmann sentiu um suor frio cobrir-lhe a testa, como uma rede de malhas de aço. — Quinze luíses no 26! — repetiu. Outras vozes falaram outros números e a bolinha girou mais uma vez. Dessa vez, a banca ficou com tudo. A bolinha caíra no zero. — Dez luíses no 26! — murmurou Hoffmann, com uma voz estrangulada, antes de consertar: — Não, só nove — e guardou uma moeda de ouro para ter uma última aposta a fazer, uma última esperança a acalentar. Deu o 30. O ouro retirou-se do feltro como a maré selvagem durante o refluxo. Hoffmann, cujo peito arfava e que, através das pulsações de seu cérebro, entrevia o semblante trocista de Arsène e o rosto triste de Antônia, cravou com a mão crispada seu último luís no 26. As apostas se fizeram rapidamente. — Apostas encerradas! — gritou o crupiê. Hoffmann acompanhou com um olho ansioso a bolinha, que girava à sua frente como se fosse sua própria vida. Subitamente jogou-se para trás, escondendo a cabeça nas duas mãos. Não apenas perdera, como não tinha mais um centavo, nem em casa. Uma mulher que estava lá, e que um minuto antes era possível ter por vinte francos, soltou um grito de alegria selvagem e recolheu o punhado de ouro que acabava de ganhar. Hoffmann teria dado dez anos de sua vida por um dos luíses daquela mulher. Num gesto instintivo, ainda duvidando da realidade, tateou e vasculhou nos bolsos. Estavam de fato vazios, mas sentiu alguma coisa arredondada como uma moeda no peito e agarrou-a bruscamente. Era o camafeu de Antônia que ele esquecera. — Estou salvo! — gritou. E, arrancando-o, apostou o camafeu de ouro no 26.
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