domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 780 : O aliciador

O aliciador 

O que tornava ainda mais terrível a situação de Hoffmann, visto que acrescentava humilhação à sua dor, era o fato de não ter sido chamado à casa de Arsène, isso estava claro para ele, por ser o homem que ela notara na plateia da Ópera, mas pura e simplesmente como pintor, uma máquina de fazer retratos, um espelho que reflete os corpos que lhe apresentam. Estava explicada a indiferença de Arsène ao deixar cair na frente dele, uma a uma, todas as peças que vestia; a perplexidade quando ele beijara sua mão; a raiva quando, no meio do amargo beijo com que avermelhara seu ombro, ele declarara seu amor. E, pensando bem, que loucura a sua, simples estudante alemão, aventurar-se em Paris com trezentos ou quatrocentos táleres, ou seja, com uma soma que não dava para pagar o tapete daquela antecâmara; que loucura aspirar à bailarina da moda, à mulher mantida pelo pródigo e voluptuoso Danton! Não era o som de palavras que comovia aquela mulher, era o som do ouro. Seu amante não era quem a amava mais, mas quem lhe pagava mais. Se Hoffmann tivesse mais dinheiro que Danton, seria Danton o escorraçado quando Hoffmann chegasse. Seja como for, o certo é que o escorraçado não era Danton, e sim Hoffmann. Hoffmann voltou mais uma vez para o seu quartinho, mais ressentido e acabrunhado do que nunca. Antes de encontrar-se com Arsène, ainda alimentava alguma esperança, mas o que acabava de ver, aquela indiferença por ele como homem, aquele luxo em meio ao qual encontrara a linda bailarina, constituindo não apenas sua vida física, como sua vida moral, tudo aquilo, a menos que uma soma inaudita lhe caísse nas mãos, tornava impossível para Hoffmann até mesmo a esperança da posse. Era num estado lamentável, portanto, que Hoffmann chegava ao seu quarto. Até aquele momento, a sensação única que Arsène lhe despertava, sensação toda física, toda feita de atração, na qual o coração não tinha voz, resultara apenas em desejo, irritação e febre. Agora, desejo, irritação e febre haviam se transformado em profunda depressão. Restava a Hoffmann uma única esperança: reencontrar o médico sinistro e pedir uma orientação, embora houvesse naquele homem alguma coisa de estranho, de fantástico, de sobre-humano, fazendo crer que, mal se via em sua companhia, saía da vida real para entrar numa espécie de sonho, no qual não era acompanhado pela vontade, e nem pelo livre-arbítrio, tornando-se joguete de um mundo que existia para ele sem existir para os outros. Na hora de costume, portanto, voltou à birosca da rua de la Monnaie. Mas foi em vão que se posicionou dentro de sua nuvem de fumaça: nenhum rosto semelhante ao do médico apareceu através dela; foi em vão que fechou os olhos: quando os abriu, não havia ninguém sentado no banco que instalara do outro lado da mesa. Uma semana se passou assim. No oitavo dia, Hoffmann, impaciente, deixou a birosca da rua de la Monnaie uma hora antes do costume, em torno das quatro da tarde, e, via Saint-Germain Auxerrois e o Louvre, alcançou como um autômato a rua Saint-Honoré. Tão logo chegou, percebeu um grande alvoroço para as bandas do cemitério dos Inocentes e foi se aproximando da praça do Palais Royal. Lembrou-se do que acontecera no dia seguinte ao de sua entrada em Paris e reconheceu o mesmo fragor, o mesmo estrépito que já o impressionara na execução da sra. du Barry. Com efeito, eram as carroças da Conciergerie que, abarrotadas de condenados, dirigiam-se à praça da Revolução. Sabemos o horror que Hoffmann sentia por esse tipo de espetáculo. Portanto, como as carroças avançavam velozmente, sua única saída foi refugiar-se num bar na esquina da rua da Lei. Ali, de costas para a rua, fechou os olhos e tapou os ouvidos, pois os gritos da du Barry ainda reverberavam no fundo de seu coração. Em seguida, calculando que as carroças haviam passado, voltou-se e, para seu grande espanto, viu, descendo de uma cadeira na qual subira para ver melhor, seu amigo Zacharias Werner. — Werner! — exclamou Hoffmann, precipitando-se na direção do rapaz. — Werner! — Ah, é você — disse o poeta. — Onde se meteu? — Estou aqui, bem aqui, mas com as mãos nos ouvidos para não ouvir os gritos desses infelizes e os olhos fechados para não vê-los. — A rigor, caro amigo, você errou — disse Werner —, você é pintor! E o que visse lhe teria fornecido tema para um quadro maravilhoso. Havia na terceira carroça, preste atenção, havia uma mulher, uma beldade, um pescoço, ombros, verdade que os cabelos foram cortados atrás, mas caíam magnificamente de ambos os lados até o chão. — Ouça — disse Hoffmann —, nesse aspecto, vi o que há de melhor. Quem viu a du Barry, viu tudo. Se um dia eu vier a cogitar um quadro, acredito, esse modelo será suficiente. Aliás, pretendo abandonar os quadros. — E por que isso? — perguntou Werner. — Tomei horror à pintura. — Mais um desapontamento. — Meu caro Werner, se eu ficar em Paris, enlouquecerei. — Você enlouquecerá onde quer que esteja, meu caro Hoffmann. Portanto, melhor em Paris que em outras plagas. Em todo caso, conte-me a causa dessa loucura. — Oh, meu caro Werner, estou apaixonado. — Por Antônia, sei disso, você me contou. — Não. Antônia… — gaguejou Hoffmann. — Antônia é diferente, amo-a! — Diabos! A distinção é sutil. Conte-me isso. Cidadão assessor, cerveja e copos. Os dois rapazes abasteceram seus cachimbos e, num canto do bar, na mesa mais isolada, sentaram-se um diante do outro. Ali, Hoffmann contou a Werner tudo que lhe acontecera, desde o dia quando estivera na Ópera e vira Arsène dançar, até o momento em que fora empurrado pelas duas mulheres para fora da alcova. — Que ótimo! — disse Werner, quando Hoffmann terminou. — Que ótimo!? — ele repetiu, espantadíssimo que o amigo não se mostrasse tão abatido quanto ele. — Diga-me — declarou Werner — o que há de desesperador nisso tudo? — Há, meu caro, agora sabendo que só é possível possuir aquela mulher na base do dinheiro, há que perdi toda esperança. — E por que perdeu toda esperança? — Porque jamais terei quinhentos luíses para atirar a seus pés. — E por que não os teria se eu os tenho, quinhentos luíses, mil luíses, dois mil luíses…? — E onde eu arranjaria isso, santo Deus! — gritou Hoffmann. — Ora, no Eldorado de que lhe falei, na nascente do Pactolo, meu caro, no jogo.120 — No jogo — exclamou Hoffmann, estremecendo. — Mas você sabe que jurei a Antônia não mais jogar. — E daí! — zombou Werner. — Também jurou ser-lhe fiel. Hoffmann suspirou profundamente e apertou o camafeu contra o coração. — No jogo, meu amigo! — insistiu Werner. — Ah, eis uma banca de verdade! Não é como a de Mannheim ou Homburg, que ameaça estourar com míseras mil libras. Um milhão, meu amigo, um milhão! Montanhas de ouro! É lá que se refugia, creio eu, todo o numerário da França. Nada desses papéis podres, nada desses pobres assignats depreciados, que perdem três quartos do valor… belos luíses. Belos luíses, duplos, quádruplos! Quer ver uma amostra? E Werner tirou do bolso um punhado de luíses, que mostrou a Hoffmann e cujos raios irradiaram-se através do espelho de seus olhos até o fundo de sua consciência. — Oh, não, não, jamais! — exclamou, lembrando-se ao mesmo tempo da profecia do velho soldado e da prece de Antônia. — Nunca mais voltarei a jogar. — Pois está errado. Com a sua sorte, quebraria a banca. — E Antônia! E Antônia! — Ora, caro amigo, quem irá contar a Antônia que você jogou e ganhou um milhão? Quem lhe dirá que, com vinte e cinco mil libras, você conquistou os encantos de sua linda bailarina? Acredite, volte para Mannheim com novecentos e setenta e cinco mil libras e Antônia não lhe perguntará onde conseguiu suas quarenta e oito mil e quinhentas mil libras de renda, nem o que fez com as vinte e cinco mil que faltam. E, dizendo estas palavras, Werner levantou-se. — Aonde você vai? — perguntou Hoffmann. — Vou encontrar uma garota, uma dama da Comédie Française que me honra com suas bondades e que gratifico com metade de meus lucros. Afinal, sou poeta, vou a um teatro literário; você é músico, escolheu um teatro cantante e dançante. Boa sorte no jogo, caro amigo, todos os meus cumprimentos à srta. Arsène. Não se esqueça do endereço da jogatina, 113. Adeus. — Oh — murmurou Hoffmann —, você já havia me dito, não esqueci. E deixou que seu amigo Werner se afastasse, nem cogitando em lhe pedir seu endereço, como fizera quando o encontrara da primeira vez. Porém, mesmo depois que Werner se foi, Hoffmann não ficou sozinho. Cada palavra do amigo tornara-se, por assim dizer, visível e palpável. Todas elas brilhavam diante de seus olhos, murmuravam aos seus ouvidos. Com efeito, onde Hoffmann poderia se abastecer de ouro senão na nascente do ouro! O único triunfo possível sobre um desejo impossível não lhe havia sido indicado? Ora, por Deus! Até mesmo Werner constatara: Hoffmann já descumprira uma parte de seu juramento. Que mal haveria se descumprisse a outra? Depois, segundo Werner, não eram vinte e cinco mil libras, cinquenta mil libras, cem mil libras que ele poderia ganhar. Os horizontes materiais dos campos, bosques e do próprio mar têm fim, ao passo que o horizonte do feltro verde, não. O demônio do jogo é como Satanás, tem o poder de transportar o jogador até a mais alta montanha da terra e de lá apontar-lhe todos os reinos do mundo.121 Que felicidade, que alegria, que orgulho quando retornasse à casa de Arsène, à mesma alcova de onde fora escorraçado! Com que supremo desdém esmagaria aquela mulher e seu terrível amante, quando, numa sumária resposta às palavras: “O que vem fazer aqui?”, ele lançasse, novo Júpiter, uma chuva de ouro sobre a nova Dânae!122 E tudo isso deixara de ser uma alucinação de seu espírito, um sonho de sua fantasia, agora era a realidade, era o possível. Tinha tantas probabilidades de ganhar quanto de perder. As de ganhar eram até maiores, pois, como sabemos, Hoffmann tinha sorte no jogo. Oh! Aquele número 113! Aquele número 113! Com seus algarismos de fogo, como dizia Hoffmann, o guiava, farol infernal, rumo ao abismo onde a vertigem uiva de deleite, numa cama de ouro! Hoffmann debateu-se uma hora e tanto com a mais explosiva das paixões. Em seguida, percebendo ser impossível resistir por mais tempo, atirou uma moeda de quinze centavos sobre a mesa, deixando o troco de gorjeta para o assessor, e, correndo sem parar, alcançou o cais das Flores, subiu ao seu quarto, pegou os trezentos táleres que lhe restavam e, sem perder tempo com reflexões, pulou dentro de um coche, gritando: — Ao Palais Égalité!123

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