domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 779 : O retrato

O retrato

Ao sair da birosca, Hoffmann ia acenando para um fiacre, mas o médico bateu suas mãos secas uma contra a outra e, a esse sinal, idêntico ao que teriam feito duas mãos de esqueleto, apresentou-se um coche forrado de preto, atrelado a dois cavalos pretos e conduzido por um cocheiro trajando preto. Onde estivera estacionado? De onde saíra? Teria sido tão difícil para Hoffmann responder quanto para Cinderela de onde vinha a carruagem que a levara ao baile do príncipe Miraflores.111 Um pequeno criado, preto tanto nos trajes quanto na pele, abriu a portinhola. Hoffmann e o doutor entraram, sentando-se um ao lado do outro. Sem demora, o coche pôs-se a deslizar silenciosamente em direção à hospedaria de Hoffmann Ao chegar à porta, Hoffmann hesitou em subir ao quarto. Parecia-lhe que, tão logo virasse as costas, coche, cavalos, médico e seus dois criados desapareceriam como haviam aparecido. Mas, nesse caso, médico, coche e criados teriam se dado ao trabalho de conduzir Hoffmann da birosca da rua de la Monnaie ao cais das Flores? Não fazia qualquer sentido. Hoffmann, serenado pelo simples conforto da lógica, desceu então do coche, entrou na hospedaria, subiu apressadamente a escada, precipitou-se no quarto, pegou paleta, pincéis e caixa de tintas, escolheu a maior de suas telas e voltou a descer no mesmo ritmo que subira. O coche continuava à porta. Pincéis, paleta e caixa de tintas foram colocados no interior do veículo. O criado foi incumbido de transportar a tela. Em seguida, o coche voltou a deslizar com a mesma rapidez e silêncio. Dez minutos mais tarde, parava em frente a uma encantadora pensão situada na rua de Hanôver nº45. Hoffmann memorizou a rua e o número a fim de, em caso de necessidade, poder voltar sem a ajuda do médico. A porta se abriu. O médico decerto era conhecido ali, pois o porteiro sequer perguntou aonde ia. Hoffmann seguiu-o com seus pincéis, sua caixa de tintas, sua paleta, sua tela e toda a sua coragem. Subiram ao primeiro andar e entraram numa antecâmara que lembrava o vestíbulo da Casa do Poeta, em Pompeia.112 Todos se lembram, naquela época a moda era grega. A antecâmara de Arsène era pintada a fresco, decorada com candelabros e estátuas de bronze. Da antecâmara, o médico e Hoffmann passaram ao salão. O salão era grego como a antecâmara, forrado com linho de Sedan a setenta francos a peça. Só o tapete custava seis mil libras. O médico apontou o tapete para Hoffmann. Representava a batalha de Arbela,113 copiada do famoso mosaico de Pompeia. Hoffmann, fascinado diante do luxo inaudito, não compreendia por que faziam tapetes como aquele para as pessoas pisarem em cima. Do salão, passaram à alcova. Esta era forrada de cashmere. No fundo, num módulo, havia um sofá-cama semelhante àquele em que o sr. Guérin deitou Dido para escutar as aventuras de Eneias.114 Ali Arsène ordenara que a esperassem. — Agora, rapaz — alertou o médico —, que chegou até aqui, comporte-se de maneira apropriada. Não preciso dizer que, o namorado titular surpreendendo-o aqui, o senhor está perdido. — Oh! — exclamou Hoffmann. — Quero apenas revê-la, apenas revê-la, e… A frase morreu em seus lábios e ele permaneceu de olhos fixos, braços estendidos, ofegante. Uma porta, escondida no revestimento de madeira, acabava de se abrir e, atrás de um espelho giratório, apareceu Arsène, verdadeira divindade do templo no qual ela se dignava a tornar-se visível para seu adorador. Eram os trajes de Aspásia115 em todo o seu luxo antigo, com pérolas nos cabelos, manto púrpura bordado em ouro, peplo branco e comprido, preso na cintura por um simples cordão de pérolas, anéis nos dedos dos pés e das mãos e, em meio a tudo isso, aquele estranho ornamento que parecia indissociável de sua pessoa, aquela gargantilha de veludo, com apenas quatro milímetros de largura, fechada por seu lúgubre agrafo de diamante. — Ah, é o senhor cidadão, o encarregado de fazer meu retrato? — perguntou Arsène. — Sim — balbuciou Hoffmann. — Sim, madame, o doutor fez a gentileza de me recomendar. Hoffmann procurou à sua volta como se para pedir apoio ao médico, mas este desaparecera. — Mas como?! — exclamou Hoffmann, perturbadíssimo. — Mas como?! — O que está procurando, o que está perguntando, cidadão? — Ora, madame, estou procurando, estou perguntando… estou recorrendo ao doutor, à pessoa, enfim, que me trouxe aqui. — Por que precisa de quem o trouxe — disse Arsène —, se já está onde deveria? — Mas e o doutor, e o doutor? — insistiu Hoffmann. — Vamos! — impacientou-se Arsène. — Ou vai desperdiçar seu tempo à procura dele? O doutor tem seus afazeres, tratemos dos nossos. — Estou às suas ordens, madame — disse Hoffmann, trêmulo. — Vejamos, aceita então fazer meu retrato? — Ser escolhido para tal privilégio fez de mim o homem mais feliz do mundo. Mas, confesso, é muita responsabilidade. — Oh, deixemos a modéstia de lado! Se não acertar, eu chamo outro. Ele quer um retrato meu. Vi que o senhor me olhava como quem devia estar gravando minha aparência na memória e dei-lhe a preferência. — Obrigado, mil vezes obrigado — exclamou Hoffmann, devorando Arsène com os olhos. — Oh, sim, gravei-a em minha memória: aqui, aqui, aqui. E apertou o coração com as mãos. De repente, vacilou e empalideceu. — O que há? — perguntou Arsène, completamente à vontade. — Nada — respondeu Hoffmann —, nada. Comecemos. Ao levar a mão ao coração, ele sentira, entre o peito e a camisa, o camafeu de Antônia. — Sim, comecemos — emendou Arsène. — Mas falar é fácil. Em primeiro lugar, não é em absoluto com essa fantasia que ele quer que eu seja retratada. A palavra “ele”, que já aparecera duas vezes, trespassava o coração de Hoffmann, como teria feito uma das agulhas de ouro que sustentavam o penteado da moderna Aspásia. — E como ele quer que seja retratada? — Como Erígona!116 — Perfeito. Creio que um penteado com pâmpanos dará um toque especial. — O senhor acha? — fez Arsène, dengosa. — Mas creio que uma pele de tigre tampouco me enfearia. Ela tocou uma campainha. A criada entrou. — Eucáris — disse Arsène —, traga o tirso, os pâmpanos e a pele de tigre.117 Em seguida, arrancando dois ou três grampos que prendiam seu penteado e sacudindo a cabeça, Arsène envolveu-se numa onda de cabelos negros que caiu em cascata sobre seu ombro, resvalou em seus quadris e se espalhou, densa e crespa, até o tapete. Hoffmann deixou escapar um grito de admiração. — O que há? — perguntou Arsène. — O que há — exclamou Hoffmann — é que nunca vi cabelos assim. — Ele também quer que eu tire partido disso, daí nós termos escolhido a fantasia de Erígona, que me permite posar com os cabelos soltos. Dessa vez o ele e o nós desfecharam no coração de Hoffmann dois golpes em vez de um. Durante esse tempo, a srta. Eucáris trouxera as uvas, o tirso e a pele de tigre. — É tudo de que precisamos? — perguntou Arsène. — Sim, acho que sim — balbuciou Hoffmann. — Muito bem, deixe-nos a sós e só apareça se eu tocar. A srta. Eucáris saiu e fechou a porta atrás de si. — Agora, cidadão — pediu Arsène —, ajude-me um pouco com esse penteado, é assunto de sua competência. Confio muito, para me embelezar, na sensibilidade do pintor. — E tem razão! — exclamou Hoffmann. — Meu Deus! Meu Deus! Como vai ficar bela! Pegando a folhagem de parreira, torceu-a ao redor da cabeça de Arsène, com a arte do pintor que valoriza e exalta todas as coisas. Em seguida, tomou nas mãos, todo trêmulo no início, aqueles longos cabelos perfumados, e, com a ponta dos dedos, modelou seu ébano flexível em meio às contas de topázio e às flores outonais de esmeralda e rubi. Como prometera, sob suas mãos, mãos de poeta, pintor e amante, a bailarina ficou tão deslumbrante que, olhando-se no espelho, não conteve um grito de alegria e orgulho. — Oh, o senhor tem razão! — exclamou Arsène. — Sim, estou muito, muito mais bela. Agora, continuemos. — Continuemos? Como assim? — E meus trajes de bacante? Hoffmann começava a compreender. — Meu Deus! — agradeceu. — Meu Deus! Sorrindo, Arsène soltou seu manto púrpura, que permaneceu preso por um único broche, o qual ela em vão tentava alcançar. — Ora, me ajude! — disse, com impaciência. — Ou terei de chamar Eucáris? — Não, não! — exclamou Hoffmann. Precipitando-se para Arsène, arrancou o broche rebelde. O manto caiu ao pé da bela grega. — Pronto — disse ele, tomando ar. — Oh! — exclamou Arsène. — Acha então que essa pele de tigre vai combinar em cima da túnica de musselina? Pois eu não acho. Além do mais, quero uma bacante de verdade, não como as vemos no teatro, mas como elas são nos quadros dos Carrache e de Albani.118 — Mas nos quadros dos Carrache e de Albani — exclamou Hoffmann —, as bacantes estão nuas. — Isso! Ele me quer assim, só com a pele de tigre, que o senhor disporá como quiser, é tarefa sua. E, dizendo essas palavras, ela desatara o cordão da cintura e abrira o fecho da gola, de maneira que a túnica deslizou ao longo de seu belo corpo e, à medida que descia dos ombros até os pés, foi mostrando-a completamente nua. — Oh! — disse Hoffmann, caindo de joelhos. — Ela não é mortal, é uma deusa! Arsène empurrou com o pé o manto e a túnica. Em seguida, tomando a pele de tigre, disse: — Vejamos, o que fazer com isso? Ora, ajude-me, cidadão-pintor, não estou habituada a me vestir sozinha. A ingênua bailarina chamava aquilo de vestir-se.

Tomou a mão de Arsène e cobriu-a de beijos. Hoffmann aproximou-se, vacilante, bêbado, fascinado, pegou a pele de tigre, prendeu as unhas de ouro no ombro da bacante e fez com que esta sentasse, ou melhor, deitasse numa cama de cashmere vermelha, onde ela teria evocado uma estátua em mármore de Paros119 se a respiração não lhe houvesse inflado os seios, se o sorriso não lhe houvesse entreaberto os lábios. — Estou bem assim? — perguntou ela, arredondando o braço acima da cabeça e pegando um cacho de uva, que fingiu esmagar entre os lábios. — Oh, sim, bela, bela, bela — murmurou Hoffmann. Então o amante, sobrepondo-se ao pintor, caiu de joelhos e, num gesto rápido como o pensamento, tomou a mão de Arsène e cobriu-a de beijos. Arsène puxou-a de volta com mais espanto que raiva. — O que pensa que está fazendo? — perguntou ao rapaz. A pergunta lhe saíra com tanta calma e frieza que Hoffmann recuou num pulo, apertando a testa com as duas mãos. — Nada, nada — balbuciou ele. — Perdoe-me, enlouqueci. — De fato. — Vejamos — exclamou Hoffmann. — Para que me chamou? Fale, fale! — Ora, para fazer meu retrato, não para outra coisa. — Oh, está bem — resignou-se Hoffmann —, tem razão. Para fazer seu retrato, não para outra coisa. E, imprimindo um profundo solavanco à sua vontade, Hoffmann prendeu a tela no cavalete, pegou sua paleta, os pincéis, e começou a esboçar o inebriante quadro que tinha diante dos olhos. Mas o artista superestimara suas forças. Quando viu o voluptuoso modelo posando não apenas em sua palpitante realidade, como, mais que isso, reproduzido pelos mil espelhos da alcova; quando, em lugar de uma Erígona, deparou-se com dez bacantes; quando viu cada espelho repetir aquele sorriso embriagador, reproduzir as ondulações do busto que a unha de ouro do tigre só cobria pela metade, sentiu que se exigia dele algo além da força humana, e, derrubando paleta e pincéis, arrojou-se para a bela bacante e imprimou em seu ombro um beijo em que se confundiam raiva e amor. Nesse exato instante, porém, a porta se abriu e a ninfa Eucáris adentrou a alcova, gritando: — Ele! Ele! Ele! Imediatamente, um Hoffmann atônito foi empurrado pelas duas mulheres e lançado para fora da alcova, com a porta se fechando atrás dele. Louco dessa vez, de amor, raiva e ciúme, atravessou o salão cambaleando, escorregou pelo corrimão mais do que desceu a escada e, sem saber como chegara ali, achou-se na rua, tendo deixado na alcova de Arsène pincéis, caixa de tintas e paleta, o que não era nada, mas também seu chapéu, que podia ser muito.

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