A birosca
Hoffmann só venceu o espanto quando sentiu uma mão pousar em seu ombro.
Ergueu a cabeça. Tudo estava escuro e apagado à sua volta. O teatro, sem
luz, aparecia-lhe como o cadáver do teatro que ele antes conhecera vivo. O
soldado de guarda passeava por ali só e silencioso como o guardião da morte.
Não havia mais lustres, orquestra, raios, ruídos.
Apenas uma voz, murmurando ao seu ouvido:
— Mas cidadão, cidadão, o que está fazendo? Estamos na Ópera, cidadão.
Aqui se dorme, é verdade, mas não se deita.
Hoffmann olhou finalmente para o lado e viu uma velhinha puxando-o pela
gola de seu redingote.
Era a funcionária responsável pela plateia, que, desconhecendo as intenções
daquele espectador obstinado, não queria ir embora sem antes despachá-lo.
De todo modo, uma vez arrancado do sono, Hoffmann não opôs resistência.
Deu um suspiro e se levantou, murmurando a palavra:
— Arsène!
— Ah, Arsène! — lamentou a velhinha. — Arsène! O mocinho, claro, está
apaixonado como todo mundo. É uma grande perda para a Ópera e,
principalmente, para nós, recepcionistas de plateia.
— Para vocês, recepcionistas? — perguntou Hoffmann, feliz por encontrar
alguém disposto a falar da bailarina. — E de que maneira é uma perda para a
senhora o fato de Arsène estar ou não estar mais no teatro?
— Ora essa! Facílimo de entender. Em primeiro lugar, todas as noites em que
ela dançava, a sala ficava lotada. Surgia então um comércio de tamboretes,
cadeiras e banquinhos. Na Ópera, tudo é pago, inclusive banquinhos, cadeiras e
tamboretes extras, que eram nossos pequenos lucros. Digo pequenos —
acrescentou a velha, com um ar travesso — porque, além deles, cidadão, o
senhor compreende, havia os grandes.
— Grandes lucros?
— É.
E a velha piscou o olho.
— E que lucros seriam esses, minha boa mulher?
— Os grandes lucros vinham dos que solicitavam informações sobre ela, ou
queriam saber seu endereço, ou lhe passavam bilhetes. Havia preço para tudo, o
senhor compreende: tanto para as informações quanto para o endereço e o
bilhete. Fazíamos nosso comerciozinho, enfim, e vivíamos honestamente.
E a velha deu um suspiro que não ficou nada a dever ao de Hoffmann no
começo do diálogo que acabamos de narrar.
— Ah, ah! — fez ele. — A senhora se encarregava de passar as informações,
de indicar o endereço, de entregar os bilhetes. Continua nessa função?
— Infelizmente, senhor, as informações que eu lhe daria seriam inúteis
agora. Ninguém sabe mais o endereço de Arsène e o bilhete que me passasse
não a encontraria. Se quiser para alguma outra, a Vestris, a Bigottini, a…108
— Obrigado, minha boa mulher, obrigado. Não desejo saber nada a não ser
sobre a srta. Arsène.
E, tirando uma moedinha do bolso, disse-lhe:
— Tome, é pelo sofrimento para o qual tentou me alertar.
E, despedindo-se da velha, retornou num passo lento ao bulevar, com a
intenção de percorrer o mesmo caminho que percorrera na antevéspera, pois o
instinto que o guiara na vinda não existia mais.
Suas impressões, contudo, eram bem diferentes e seu andar exprimia dessa
defasagem. Na outra noite, avançava como um homem que viu passar a
Esperança e corre atrás dela, sem atinar que Deus lhe deu grandes asas azuis,
para que os homens nunca a alcançassem. Estava com a boca aberta e ofegante,
cabeça em pé, os braços estendidos; agora, ao contrário, quase se arrastava,
como se, após tê-la perseguido inutilmente, acabasse de perdê-la de vista. Sua
boca estava contrita; sua fronte, abatida; seus braços, arriados. Da outra vez,
levara cinco minutos, se tanto, para ir da porta Saint-Martin à rua Montmartre,
agora levara mais de uma hora, e mais de uma hora da rua Montmartre ao seu
hotel, pois, no abatimento em que caíra, pouco lhe importava chegar cedo ou
tarde; no fundo, pouco lhe importava chegar.
Dizem que há um Deus para os bêbados e os apaixonados. Sem dúvida esse
Deus velava por Hoffmann, pois fez com que evitasse as patrulhas, encontrasse
os cais, depois as pontes e depois seu hotel, aonde chegou, para grande escândalo
da hoteleira, uma e meia da manhã.
Entretanto, em meio a tudo aquilo, uma luzinha dourada dançava no fundo da
imaginação de Hoffmann, como um fogo-fátuo na noite. Segundo o médico, se é
que o médico existia, se é que não era uma falsa lembrança, uma alucinação de
seu espírito, Arsène fora obrigada a deixar o teatro pelo namorado, depois que
esse namorado sentira ciúme de um rapaz instalado na plateia, com o qual
Arsène trocara olhares exageradamente ternos. Além disso, acrescentara o
médico, o tirano se enfurecera de vez por se tratar do mesmo rapaz visto
emboscado na porta de saída dos artistas, emboscado, e depois correndo
desesperado atrás do coche. Ora, o tal rapaz, que, da plateia, trocara olhares
apaixonados com Arsène, era ele, Hoffmann; o tal rapaz que se emboscara na
saída dos artistas, era ele também, Hoffmann. Ora, o tal rapaz que correra
desesperadamente atrás do coche era igualmente ele, Hoffmann. Logo, Arsène o
notara, uma vez que fora castigada por seu desvio de atenção; logo, Arsène sofria
por ele. Entrara na vida da linda bailarina pela porta do sofrimento, mas entrara,
isso era o principal: cabia a ele não sair. Mas de que maneira? Por que meios?
Por que vias corresponder-se com Arsène, dar-lhe notícias, declarar-lhe seu
amor? Se um parisiense puro-sangue já teria muita dificuldade em localizar a
bela Arsène, perdida naquela imensa cidade, imaginem Hoffmann, que chegara
havia três dias e continuava completamente desorientado.
O rapaz, portanto, nem se deu ao trabalho de procurar. Aceitou que apenas o
acaso poderia vir em seu auxílio. Dia sim, dia não, olhava o cartaz da Ópera e,
dia sim, dia não, sorria ao ver que Páris dava seu veredito na ausência daquela
que, muito mais do que Vênus, merecia o pomo da beleza.
Terminou desistindo de ir à Ópera.
Por um instante, chegou a cogitar em ir à Convenção ou aos Capuchinhos,
seguir os passos de Danton e, espionando-o dia e noite, descobrir onde escondera
a linda bailarina. Chegou mesmo a ir até a Convenção, e até aos Capuchinhos,
mas nada de Danton. Por sete ou oito dias, a mesma coisa. Danton, cansado de
dois anos de luta, vencido pelo tédio muito mais que por alguma força maior,
parecia ter se retirado da arena política, encontrando-se, diziam, em sua casa de
campo. Onde era essa casa de campo? Ninguém fazia ideia. Uns afirmavam ser
em Rueil, outros, em Auteuil.
Danton achava-se tão inacessível quanto Arsène.
Seria plausível supor que a ausência de Arsène reconduziria Hoffmann a
Antônia, mas, curiosamente, não foi o que sucedeu. Bem que ele procurou voltar
seu pensamento para a pobre filha do maestro de Mannheim, e, por um
momento, mediante o poder da vontade, todas as suas lembranças
concentraram-se no gabinete de mestre Gottlieb Murr. Porém, ao cabo desse
momento, partituras amontoadas sobre mesas e teclados, mestre Gottlieb
sacudindo-se enquanto regia, Antônia deitada no sofá, tudo desaparecia para dar
lugar a uma grande moldura iluminada, dentro da qual a princípio moviam-se
sombras, as quais em seguida ganhavam corpos, os quais assumiam formas
mitológicas e, no fim, todas essas formas mitológicas, todos esses heróis, todas
essas ninfas, todos esses deuses e semideuses desapareciam para dar lugar a uma
única deusa, à deusa dos jardins, à bela Flora, isto é, à divina Arsène, à mulher da
gargantilha de veludo e do fecho de diamantes. Então Hoffmann caía não em um
devaneio, mas num êxtase do qual só conseguia sair atirando-se na vida real,
esbarrando nos transeuntes, enredando-se na multidão e no barulho.
Quando a alucinação de Hoffmann ficava muito forte, ele saía, deixava-se
levar até a descida do cais, atravessava a Pont Neuf e geralmente só parava na
esquina da rua de la Monnaie. Ali, descobrira uma birosca, ponto de encontro dos
mais empedernidos fumantes da capital. Ali, imaginava-se em alguma taberna
inglesa, ou cantina alemã, ou music-hall holandês, de tal forma a fumaça do
cachimbo criava uma atmosfera irrespirável para qualquer outro que não um
fumante de primeira classe.
Uma vez dentro da birosca da Fraternidade, Hoffmann ocupava uma
mesinha situada no canto mais escondido, pedia uma garrafa de cerveja da
cervejaria do sr. Santerre109 — que acabava de se demitir, em prol do sr.
Henriot, de sua patente de general da Guarda Nacional de Paris —, enchia até a
boca o descomunal cachimbo que já conhecemos e se envolvia por instantes
numa nuvem de fumaça tão densa como a que a bela Vênus usava para envolver
seu filho, Eneias, sempre que a extremosa mãe julgava urgente subtrair o filho
bem-amado da ira de seus inimigos.110
Oito ou dez dias se haviam passado desde a aventura de Hoffmann na Ópera,
e, por conseguinte, desde o sumiço da bela bailarina. Era uma hora da tarde.
Hoffmann, já fazia meia hora mais ou menos, encontrava-se em sua birosca,
empenhando-se com toda a força de seus pulmões em estabelecer ao seu redor
uma cortina de fumaça que o isolasse dos outros fregueses, quando, através do
vapor, pareceu-lhe discernir uma espécie de forma humana dominando todo o
barulho e ouvir o duplo som da cantoria e do tamborilar habitual do homenzinho
sinistro. Além disso, em meio àquele vapor, pareceu-lhe que um ponto luminoso
lançava faíscas. Reabriu os olhos semicerrados por uma doce sonolência, abriu
as pálpebras com dificuldade e, diante dele, sentado num tamborete, reconheceu
seu vizinho da Ópera, tanto mais que o fantástico doutor tinha, ou melhor, parecia
exibir, suas fivelas de diamante nos sapatos, os anéis de diamante nos dedos e sua
caveira na caixinha de rapé.
— Bem — disse Hoffmann —, acho que enlouqueci de novo.
E fechou rapidamente os olhos.
Porém, uma vez fechados os olhos, hermeticamente que fosse, mais
Hoffmann ouvia o singelo dueto do cantarolar e do singelo batuque daqueles
dedos, e tudo de uma maneira tão distinta, tão distinta que ele compreendeu
haver uma dose de realidade naquilo, a questão era saber qual seu tamanho. Isso
sim.
Reabriu então um olho, depois do outro. O homenzinho continuava em seu
lugar.
— Bom dia, rapaz — cumprimentou-o. — O senhor está dormindo, creio.
Aceite uma pitada, para acordar.
Abrindo a caixinha, ofereceu-lhe rapé.
Este, mecanicamente, estendeu a mão, pegou uma pitada e inalou-a.
No mesmo instante, pareceu-lhe que as paredes de seu espírito se
iluminaram.
— Ah — exclamou Hoffmann —, é o senhor, caro doutor! Que satisfação
revê-lo!
— Se tem satisfação em me reencontrar — perguntou o médico —, por que
não me procurou?
— E porventura eu sabia seu endereço?
— Oh, que dificuldade! Bastava perguntar no primeiro cemitério que
encontrasse.
— E porventura eu sabia seu nome?
— O médico da caveira, todo mundo me conhece por esse apelido. Isso para
não mencionar um lugar onde poderia ter a certeza de me encontrar.
— E que lugar é esse?
— Na Ópera. Sou o médico da Ópera. Sabe disso, me viu lá duas vezes.
— Ah, a Ópera! — disse Hoffmann, sacudindo a cabeça e suspirando.
— Exatamente. Não esteve mais lá?
— Pois é, não estive mais lá.
— Desde que Arsène deixou de fazer o papel de Flora?
— Exatamente. E, enquanto não for ela, não voltarei.
— O senhor a ama, rapaz, o senhor a ama.
— Não sei se a doença que tenho se chama amor, mas sei que, se não
contemplá-la novamente, ou morrerei de saudade ou enlouquecerei.
— Não diga isso! É pouco recomendável enlouquecer! Isola! E quanto a
morrer, pior ainda. Para a loucura, há poucos remédios; para a morte, nenhum.
— O que fazer então?
— Ora essa! Deve ir ao seu encontro.
— Como assim, ir ao seu encontro?
— Sem dúvida.
— Sabe o jeito?
— Talvez.
— Qual?
— Espere.
E o doutor pôs-se a sonhar, piscando os olhos e tamborilando na caixinha de
rapé.
Passado um instante, reabrindo os olhos e deixando seus dedos suspensos
sobre o ébano:
— O senhor é pintor, pelo que me disse…
— Sim, pintor, músico e poeta.
— No momento só precisamos da pintura.
— E daí?
— E daí! Arsène me encarregou de contratar um pintor.
— Para quê?
— Para que alguém procura um pintor, santo Deus? Para fazer seu retrato.
— O retrato de Arsène! — exultou Hoffmann, levantando-se. — Eu! Eu!
— Schhh! Não vá estragar minha reputação de homem sério.
— O senhor é meu salvador! — exclamou Hoffmann, atirando os braços no
pescoço do sinistro homenzinho.
— Mocidade, mocidade — murmurou este, acompanhando essas duas
palavras com a mesma risada que teria dado sua caveira se fosse de tamanho
natural.
— Vamos, vamos — adiantou-se Hoffmann.
— Mas o senhor precisa de uma caixa de tintas, pincéis e uma tela.
— Tenho tudo isso no meu quarto, vamos.
— Vamos — concordou o médico.
E os dois saíram da birosca.
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