Segunda récita de O julgamento de Páris
Mas o impulso de Hoffmann não o levou muito longe. Na esquina da rua SaintMartin,
parou.
Seu peito ofegante, a testa suando.
Passou a mão esquerda na raiz dos cabelos, comprimiu o peito com a direita
e respirou.
Nesse momento, tocaram-lhe no ombro.
Estremeceu.
— Não acredito, é ele! — disse uma voz.
Voltou-se e deixou escapar um grito.
Era seu amigo Zacharias Werner.
Os dois rapazes atiraram-se nos braços um do outro.
Duas perguntas cruzaram-se no ar:
— O que faz por aqui?
— Aonde vai?
— Cheguei ontem — contou Hoffmann —, vi a sra. du Barry sendo
guilhotinada e, para me distrair, vim à Ópera.
— Pois eu cheguei há seis meses, faz cinco que vejo guilhotinarem vinte ou
vinte e cinco indivíduos diariamente e, para me distrair, vou ao cassino.
— Oh!
— Me acompanha?
— Não, obrigado.
— Erro seu, sinto-me inspirado. Com a sua sorte, você faria uma fortuna. E,
considerando sua formação musical, você deve se aborrecer terrivelmente na
Ópera. Venha comigo e farei com que ouça música de verdade.
— Música?
— Sim, a música do ouro, sem falar que lá onde frequento todos os prazeres
se reúnem: mulheres encantadoras, ceias deliciosas e uma jogatina feroz!
— Obrigado, meu amigo, impossível! Prometi, mais que isso, jurei!
— A quem?
— A Antônia.
— Então conheceu-a?
— Amo-a, meu amigo, adoro-a.
— Ah, compreendo, foi isso que o atrasou! E você lhe jurou…?
— Jurei parar de jogar e…
Hoffmann hesitou.
— E o que mais?
— E ser-lhe fiel — balbuciou.
— Então não deve ir ao 113.
— O que é o 113?
— É a casa que acabei de sugerir. Pois eu, como nada jurei, para lá irei.
Adeus, Theodor.
— Adeus, Zacharias.
E Werner se afastou, enquanto Hoffmann permanecia pregado no lugar.
Quando Werner distanciou-se uns cem passos, Hoffmann percebeu que havia
se esquecido de pedir-lhe o endereço, e o único endereço que Zacharias lhe dera
fora o do cassino.
Ora, esse estava gravado no cérebro de Hoffmann, como na porta da casa
fatal, em números de fogo!
Entretanto, o que acabava de acontecer enfraquecera um pouco os pruridos
de Hoffmann. Assim é feita a natureza humana, sempre indulgente consigo
mesma, ainda que tal indulgência não passe de egoísmo. Acabava de renunciar
ao jogo por Antônia, e julgava-se quite com seu juramento, mas esquecia que, se
continuava pregado na esquina do bulevar com a rua Saint-Martin, o motivo não
era outro senão o fato de estar à beira de descumprir a metade mais importante
desse juramento.
Mas, eu repito, sua resistência diante de Werner fizera-o indulgente diante de
Arsène. Adotou um meio-termo e, ao invés de retornar à sala de espetáculos,
ação à qual seu demônio tentador o impelia com todas as forças, resolveu
esperá-la na saída dos atores.
Hoffmann conhecia a topografia dos teatros na palma da mão e não teve
dificuldade em encontrar a porta certa. Na rua de Bondy, entreviu um longo
corredor, iluminado, sujo e úmido, pelo qual passavam, como sombras, homens
com roupas sórdidas, e compreendeu que era por aquela porta que entravam e
saíam os pobres mortais que o vermelho, o branco, o azul, a gaze, a seda e as
lantejoulas transformavam em deuses e deusas.
O tempo escoava, a neve caía, mas Hoffmann, perturbadíssimo ante aquela
estranha aparição, que tinha alguma coisa de sobrenatural, nem sentia o frio
intenso que parecia perseguir os transeuntes. Em vão condensava em vapores
quase palpáveis o bafejo que lhe saía da boca, suas mãos continuavam em brasa,
sua testa continuava úmida. Apesar disso, ali deixou-se ficar, recostado num
muro, olhos fixos no corredor. A neve, que caía em flocos cada vez mais grossos,
ia, portanto, amortalhando-o lentamente, transformando o jovem estudante, com
seu gorro na cabeça e enfiado num redingote alemão, quase numa estátua de
mármore. Por fim, começaram a sair por aquele ralo os primeiros a terminar o
trabalho, isto é, a guarda da noite, depois os contrarregras, depois todo esse
mundo sem nome que vive do teatro, depois os artistas homens, menos
demorados para se vestir que as mulheres, depois, as mulheres, depois, por fim, a
bela bailarina, que Hoffmann reconheceu não apenas pelo lindo rosto, não
apenas pelo meneio único de quadris, como também pela gargantilha de veludo
que lhe apertava o pescoço e na qual cintilava a estranha joia que o Terror
acabara de pôr na moda.101
Mal Arsène surgiu no umbral da porta, antes mesmo que Hoffmann tivesse
tempo de esboçar um gesto, um coche avançou rapidamente, uma portinhola se
abriu e a moça, leve como se ainda voasse no palco, atirou-se em seu interior.
Uma sombra apareceu através dos vidros, a qual Hoffmann julgou identificar
como pertencente ao homem do camarote, sombra que recebeu a bela ninfa nos
braços. Em seguida, sem que nenhuma voz precisasse especificar o destino ao
cocheiro, o coche afastou-se a galope.
Tudo que acabamos de narrar em quinze ou vinte linhas deu-se na velocidade
do raio.
Vendo o coche se afastar, Hoffmann deu uma espécie de grito, desprendeuse
do muro, qual uma estátua saltando do nicho, e, sacudindo a neve que cobria
seu corpo, pôs-se a persegui-lo.
O coche, no entanto, era puxado por dois cavalos tão vigorosos que o rapaz,
por mais rápida a sua carreira irrefletida, nunca seria capaz de alcançá-los.
Enquanto seguiu pelo bulevar, tudo correu bem; até mesmo enquanto seguiu
pela rua do Bourbon-Villeneuve, que acabava de ser desbatizada para ganhar o
nome de rua “Nova Igualdade”, tudo ainda correu bem; porém, quando chegou à
praça das Vitórias, agora praça da Vitória Nacional, o coche tomou a direita e
sumiu da vista de Hoffmann.
Não sendo mais guiada nem pelo barulho nem pela visão, a corrida do rapaz
perdeu o ímpeto. Ele parou por um instante na esquina da rua Neuve-Eustache,
apoiou-se no muro para tomar fôlego, e depois, não vendo mais nada, não
ouvindo mais nada, orientou-se, julgando ser hora de retornar ao hotel.
Não foi nada fácil para Hoffmann localizar-se naquele dédalo de ruas,
formando uma rede quase inextricável, da Pointe Saint-Eustaque ao cais do
Ferro-Velho. No fim, graças às numerosas patrulhas que circulavam pelas ruas,
graças a seu passaporte perfeitamente em regra, graças à prova de que chegara
apenas na véspera, a qual o visto da barreira permitia-lhe fornecer, obteve da
milícia cidadã informações tão precisas que conseguiu retornar ao hotel e
reencontrar seu modesto quarto, onde se fechou aparentemente sozinho, mas em
realidade na companhia da lembrança viva do que se passara.
Daí em diante, Hoffmann viu-se eminentemente às voltas com duas visões,
uma das quais se apagava gradualmente, enquanto a outra ganhava cada vez
mais consistência.
A visão que se apagava era a figura pálida e desgrenhada da du Barry,
arrastada da Conciergerie102 para a carroça, da carroça para o cadafalso.
A visão que ganhava realidade era a figura cheia de vida e sorridente da bela
bailarina saltando do fundo da ribalta em direção a um e a outro camarote.
Hoffmann fez de tudo para se ver livre daquela imagem. Tirou os pincéis do
baú e pintou; tirou o violino da caixa e tocou; pediu pena e tinta e fez versos. Mas
os versos que compunha eram em louvor de Arsène. A melodia que tocava era a
música que sublinhara sua aparição, cujas notas irrequietas alçavam-na, como se
tivessem asas. Por fim, os croquis que fazia eram seu retrato com aquela mesma
gargantilha de veludo, estranho adorno preso ao pescoço de Arsène por um fecho
ainda mais estranho.
Durante toda a noite, durante todo o dia seguinte, durante toda a noite e todo o
dia do outro dia, Hoffmann só viu uma coisa, ou melhor, duas coisas: de um lado,
a fantástica bailarina; do outro, o não menos fantástico doutor. Havia entre as
duas criaturas tamanha correlação! Hoffmann não compreendia uma sem a
outra. E isso não se devia à alucinação que lhe oferecia Arsène, sempre saltitante
no palco, nem à orquestra que zumbia em seus ouvidos. Não, devia-se ao
cantarolar do médico, ao sutil tamborilar de seus dedos na caixinha preta de rapé.
De tempos em tempos, um relâmpago ofuscava seus olhos, cegando-o com
faíscas dardejantes; era o duplo raio que se lançava da caixinha do médico e da
gargantilha da bailarina; era a simpatia mútua entre a guilhotina de diamantes e a
caveira de diamantes; era, em suma, a fixidez dos olhos do médico, que a seu
bel-prazer pareciam atrair e repelir a encantadora bailarina, como o olho da
serpente atrai e repele o pássaro que ela fascina.
Vinte, cem, mil vezes Hoffmann cogitou voltar à Ópera, mas enquanto a hora
não chegava, ele jurara não ceder à tentação. Aliás, lutara contra essa tentação
de todas as formas, primeiro recorrendo a seu camafeu, em seguida tentando
escrever a Antônia, mas o retrato da jovem agora estampava uma fisionomia tão
triste que Hoffmann fechava-o imediatamente tão logo o abria. As primeiras
linhas de cada carta que começava saíam tão constrangidas que ele rasgou dez
cartas antes de encher um terço da primeira página.
Finalmente, aquele malfadado dia terminou, a abertura do teatro se
aproximou, soaram sete horas e, a esse último chamado, Hoffmann, levantandose
como num passe de mágica, desceu correndo a escada e lançou-se na direção
da rua Saint-Martin.
Dessa vez, em menos de quinze minutos, sem precisar perguntar o caminho a
ninguém, como se um guia invisível lhe tivesse mostrado o trajeto, em menos de
dez minutos chegou à porta da Ópera.
Mas, estranhamente, os portões do teatro não se achavam, como dois dias
antes, apinhados de espectadores, fosse porque um incidente desconhecido de
Hoffmann havia tornado o espetáculo menos atraente, fosse porque os
espectadores já estavam lá.
Hoffmann atirou uma moeda de seis libras para a bilheteira, recebeu o
ingresso e arrojou-se para dentro da sala de espetáculos.
Mas o lugar parecia muito diferente. Primeiro, estava cheia só pela metade;
depois, no lugar das mulheres encantadoras e homens elegantes que planejara
rever, encontrou apenas mulheres de avental e homens de carmanhola.103
Nenhuma joia, nenhuma flor, nenhum colo nu subindo e descendo sob aquela
atmosfera voluptuosa dos teatros aristocráticos. Barretes redondos e barretes
vermelhos, tudo enfeitado com enormes cocardas104 nacionais. Cores escuras
nos trajes, uma nuvem triste pairando sobre as pessoas. Além disso, de ambos os
lados da sala, dois bustos horrendos, duas cabeças fazendo careta, uma, o Riso, a
outra, o Sofrimento — bustos de Voltaire e Marat,105 para resumir.
Por fim, no camarote principal, um buraco mal-iluminado, um desvão escuro
e vazio. A caverna subsistia, mas agora sem leão.
Na parte da plateia próxima à orquestra havia dois lugares vazios, um ao lado
do outro. Hoffmann alcançou um deles, o que havia ocupado na outra noite.
O outro havia pertencido ao médico, mas, como dissemos, agora encontravase
vazio.
O primeiro ato desenrolou-se sem que Hoffmann prestasse atenção na
orquestra ou se concentrasse nos atores.
Conhecia a orquestra, apreciara-a na audição anterior.
Os atores pouco lhe importavam, não viera por eles, viera por Arsène.
O pano se abriu para o segundo ato e o balé teve início.
Toda a inteligência, toda a alma, todo o coração do rapaz entraram em
compasso de espera.
Ele aguardava a entrada de Arsène.
De repente, soltou um grito.
Não era mais Arsène quem fazia o papel de Flora.
A mulher que surgiu no palco era uma mulher estranha, uma mulher como
qualquer outra.
Todas as fibras do corpo tensionado de Hoffmann se distenderam. Ele se
fechou em si mesmo, suspirando profundamente e olhando à sua volta.
O homenzinho sinistro estava sentado a seu lado! Agora, porém, sem as
fivelas de diamante no sapato, os anéis de diamante, a cadavérica caixinha de
rapé incrustada de diamantes.
As fivelas eram de cobre, seus anéis, de prata dourada, sua caixinha de rapé,
de prata fosca.
Não cantarolava mais, não marcava o ritmo.
Como se dera tal aparição? Hoffmann não fazia ideia: não o vira chegar, não
o sentira passar.
— Cavalheiro! — exclamou Hoffmann.
— Fale “cidadão”, meu jovem amigo, e pode me chamar de você… se
puder — respondeu o homenzinho —, ou terei a cabeça cortada, e você também.
— Onde ela está? — perguntou Hoffmann.
— A minha…, ah, entendi… Onde ela está? Bem, parece que o rei da selva,
que não desgruda os olhos da moça, percebeu que anteontem ela se
correspondeu por sinais com um jovem dessa parte da plateia. Parece que esse
jovem correu atrás do coche dele, de maneira que desde ontem rompeu com
Arsène e Arsène saiu do teatro.
— E como o diretor reagiu…?
— Meu jovem amigo, o diretor faz questão de conservar a cabeça sobre os
ombros, embora seja uma cabeça muito feia. Finge que está acostumado com
ela e que a troca por outra, embora mais bela, pode não funcionar.
— Oh, meu Deus! Então por isso o teatro está tão triste! — exclamou
Hoffmann. — Por isso não há mais flores, diamantes ou joias. Por isso o senhor
não tem mais suas fivelas de diamante, seus anéis de diamante, sua caixinha de
rapé de diamante. Por isso, afinal de contas, que, nas laterais do palco, em vez
dos bustos de Apolo e Terpsícore,106 estão esses dois bustos hediondos. Ierkt!
— Ei, de onde tirou tudo isso? — perguntou o médico. — E onde viu a sala
que descreveu? Onde viu anéis de diamante, caixinhas de rapé de diamante?
Onde, fale de uma vez, viu os bustos de Apolo e Terpsícore? Ora, faz dois anos
que as flores deixaram de desabrochar, que os diamantes transformaram-se em
assignats107 e que as joias foram derretidas no altar da pátria. Quanto a mim,
graças a Deus, nunca tive outras fivelas senão essas de cobre, outros anéis senão
esse horrível anel de estanho, e outra caixa de rapé senão essa de prata. Quanto
aos bustos de Apolo e Terpsícore — Deus me perdoe! —, estiveram ali em outros
tempos, de fato, mas os amigos da humanidade depredaram o busto de Apolo e o
substituíram pelo do apóstolo Voltaire; mas os amigos do povo depredaram o
busto de Terpsícore e o substituíram pelo de Nosso Senhor Marat.
— Oh! — exclamou Hoffmann. — Isso é impossível. Repito que anteontem
vi uma sala perfumada de flores, resplandecente de trajes suntuosos, radiosa de
diamantes, e homens elegantes em vez dessas matracas de avental e desses
pedreiros de carmanhola. Repito que o senhor usava fivelas de diamante em seus
sapatos, anéis de diamante em seus dedos, uma caveira de diamante em sua
caixa de rapé. Repito…
— E eu, rapaz, por minha vez afirmo — rebateu o homenzinho sinistro — que
anteontem ela estava ali, que sua presença iluminava tudo, que sua respiração
fazia as rosas nascerem, as joias reluzirem e os diamantes de sua imaginação
faiscarem. Afirmo que está apaixonado por ela, rapaz, e que viu a sala pelo
prisma da paixão. Arsène não está mais aqui, seu coração está morto, seus olhos
perderam a magia, e o que o senhor vê é moletom, brim, lona, barretes
vermelhos, mãos sujas e cabelos sebentos. O que o senhor vê, enfim, é o mundo
tal como é, as coisas tal como são.
— Oh, meu Deus! — exclamou Hoffmann, deixando a cabeça cair nas mãos
—, é verdade tudo isso, será que estou enlouquecendo?
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