domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 777 : Segunda récita de O julgamento de Pári

Segunda récita de O julgamento de Páris

Mas o impulso de Hoffmann não o levou muito longe. Na esquina da rua SaintMartin, parou. Seu peito ofegante, a testa suando. Passou a mão esquerda na raiz dos cabelos, comprimiu o peito com a direita e respirou. Nesse momento, tocaram-lhe no ombro. Estremeceu. — Não acredito, é ele! — disse uma voz. Voltou-se e deixou escapar um grito. Era seu amigo Zacharias Werner. Os dois rapazes atiraram-se nos braços um do outro. Duas perguntas cruzaram-se no ar: — O que faz por aqui? — Aonde vai? — Cheguei ontem — contou Hoffmann —, vi a sra. du Barry sendo guilhotinada e, para me distrair, vim à Ópera. — Pois eu cheguei há seis meses, faz cinco que vejo guilhotinarem vinte ou vinte e cinco indivíduos diariamente e, para me distrair, vou ao cassino. — Oh! — Me acompanha? — Não, obrigado. — Erro seu, sinto-me inspirado. Com a sua sorte, você faria uma fortuna. E, considerando sua formação musical, você deve se aborrecer terrivelmente na Ópera. Venha comigo e farei com que ouça música de verdade. — Música? — Sim, a música do ouro, sem falar que lá onde frequento todos os prazeres se reúnem: mulheres encantadoras, ceias deliciosas e uma jogatina feroz! — Obrigado, meu amigo, impossível! Prometi, mais que isso, jurei! — A quem? — A Antônia. — Então conheceu-a? — Amo-a, meu amigo, adoro-a. — Ah, compreendo, foi isso que o atrasou! E você lhe jurou…? — Jurei parar de jogar e… Hoffmann hesitou. — E o que mais? — E ser-lhe fiel — balbuciou. — Então não deve ir ao 113. — O que é o 113? — É a casa que acabei de sugerir. Pois eu, como nada jurei, para lá irei. Adeus, Theodor. — Adeus, Zacharias. E Werner se afastou, enquanto Hoffmann permanecia pregado no lugar. Quando Werner distanciou-se uns cem passos, Hoffmann percebeu que havia se esquecido de pedir-lhe o endereço, e o único endereço que Zacharias lhe dera fora o do cassino. Ora, esse estava gravado no cérebro de Hoffmann, como na porta da casa fatal, em números de fogo! Entretanto, o que acabava de acontecer enfraquecera um pouco os pruridos de Hoffmann. Assim é feita a natureza humana, sempre indulgente consigo mesma, ainda que tal indulgência não passe de egoísmo. Acabava de renunciar ao jogo por Antônia, e julgava-se quite com seu juramento, mas esquecia que, se continuava pregado na esquina do bulevar com a rua Saint-Martin, o motivo não era outro senão o fato de estar à beira de descumprir a metade mais importante desse juramento. Mas, eu repito, sua resistência diante de Werner fizera-o indulgente diante de Arsène. Adotou um meio-termo e, ao invés de retornar à sala de espetáculos, ação à qual seu demônio tentador o impelia com todas as forças, resolveu esperá-la na saída dos atores. Hoffmann conhecia a topografia dos teatros na palma da mão e não teve dificuldade em encontrar a porta certa. Na rua de Bondy, entreviu um longo corredor, iluminado, sujo e úmido, pelo qual passavam, como sombras, homens com roupas sórdidas, e compreendeu que era por aquela porta que entravam e saíam os pobres mortais que o vermelho, o branco, o azul, a gaze, a seda e as lantejoulas transformavam em deuses e deusas. O tempo escoava, a neve caía, mas Hoffmann, perturbadíssimo ante aquela estranha aparição, que tinha alguma coisa de sobrenatural, nem sentia o frio intenso que parecia perseguir os transeuntes. Em vão condensava em vapores quase palpáveis o bafejo que lhe saía da boca, suas mãos continuavam em brasa, sua testa continuava úmida. Apesar disso, ali deixou-se ficar, recostado num muro, olhos fixos no corredor. A neve, que caía em flocos cada vez mais grossos, ia, portanto, amortalhando-o lentamente, transformando o jovem estudante, com seu gorro na cabeça e enfiado num redingote alemão, quase numa estátua de mármore. Por fim, começaram a sair por aquele ralo os primeiros a terminar o trabalho, isto é, a guarda da noite, depois os contrarregras, depois todo esse mundo sem nome que vive do teatro, depois os artistas homens, menos demorados para se vestir que as mulheres, depois, as mulheres, depois, por fim, a bela bailarina, que Hoffmann reconheceu não apenas pelo lindo rosto, não apenas pelo meneio único de quadris, como também pela gargantilha de veludo que lhe apertava o pescoço e na qual cintilava a estranha joia que o Terror acabara de pôr na moda.101 Mal Arsène surgiu no umbral da porta, antes mesmo que Hoffmann tivesse tempo de esboçar um gesto, um coche avançou rapidamente, uma portinhola se abriu e a moça, leve como se ainda voasse no palco, atirou-se em seu interior. Uma sombra apareceu através dos vidros, a qual Hoffmann julgou identificar como pertencente ao homem do camarote, sombra que recebeu a bela ninfa nos braços. Em seguida, sem que nenhuma voz precisasse especificar o destino ao cocheiro, o coche afastou-se a galope. Tudo que acabamos de narrar em quinze ou vinte linhas deu-se na velocidade do raio. Vendo o coche se afastar, Hoffmann deu uma espécie de grito, desprendeuse do muro, qual uma estátua saltando do nicho, e, sacudindo a neve que cobria seu corpo, pôs-se a persegui-lo. O coche, no entanto, era puxado por dois cavalos tão vigorosos que o rapaz, por mais rápida a sua carreira irrefletida, nunca seria capaz de alcançá-los. Enquanto seguiu pelo bulevar, tudo correu bem; até mesmo enquanto seguiu pela rua do Bourbon-Villeneuve, que acabava de ser desbatizada para ganhar o nome de rua “Nova Igualdade”, tudo ainda correu bem; porém, quando chegou à praça das Vitórias, agora praça da Vitória Nacional, o coche tomou a direita e sumiu da vista de Hoffmann. Não sendo mais guiada nem pelo barulho nem pela visão, a corrida do rapaz perdeu o ímpeto. Ele parou por um instante na esquina da rua Neuve-Eustache, apoiou-se no muro para tomar fôlego, e depois, não vendo mais nada, não ouvindo mais nada, orientou-se, julgando ser hora de retornar ao hotel. Não foi nada fácil para Hoffmann localizar-se naquele dédalo de ruas, formando uma rede quase inextricável, da Pointe Saint-Eustaque ao cais do Ferro-Velho. No fim, graças às numerosas patrulhas que circulavam pelas ruas, graças a seu passaporte perfeitamente em regra, graças à prova de que chegara apenas na véspera, a qual o visto da barreira permitia-lhe fornecer, obteve da milícia cidadã informações tão precisas que conseguiu retornar ao hotel e reencontrar seu modesto quarto, onde se fechou aparentemente sozinho, mas em realidade na companhia da lembrança viva do que se passara. Daí em diante, Hoffmann viu-se eminentemente às voltas com duas visões, uma das quais se apagava gradualmente, enquanto a outra ganhava cada vez mais consistência. A visão que se apagava era a figura pálida e desgrenhada da du Barry, arrastada da Conciergerie102 para a carroça, da carroça para o cadafalso. A visão que ganhava realidade era a figura cheia de vida e sorridente da bela bailarina saltando do fundo da ribalta em direção a um e a outro camarote. Hoffmann fez de tudo para se ver livre daquela imagem. Tirou os pincéis do baú e pintou; tirou o violino da caixa e tocou; pediu pena e tinta e fez versos. Mas os versos que compunha eram em louvor de Arsène. A melodia que tocava era a música que sublinhara sua aparição, cujas notas irrequietas alçavam-na, como se tivessem asas. Por fim, os croquis que fazia eram seu retrato com aquela mesma gargantilha de veludo, estranho adorno preso ao pescoço de Arsène por um fecho ainda mais estranho. Durante toda a noite, durante todo o dia seguinte, durante toda a noite e todo o dia do outro dia, Hoffmann só viu uma coisa, ou melhor, duas coisas: de um lado, a fantástica bailarina; do outro, o não menos fantástico doutor. Havia entre as duas criaturas tamanha correlação! Hoffmann não compreendia uma sem a outra. E isso não se devia à alucinação que lhe oferecia Arsène, sempre saltitante no palco, nem à orquestra que zumbia em seus ouvidos. Não, devia-se ao cantarolar do médico, ao sutil tamborilar de seus dedos na caixinha preta de rapé. De tempos em tempos, um relâmpago ofuscava seus olhos, cegando-o com faíscas dardejantes; era o duplo raio que se lançava da caixinha do médico e da gargantilha da bailarina; era a simpatia mútua entre a guilhotina de diamantes e a caveira de diamantes; era, em suma, a fixidez dos olhos do médico, que a seu bel-prazer pareciam atrair e repelir a encantadora bailarina, como o olho da serpente atrai e repele o pássaro que ela fascina. Vinte, cem, mil vezes Hoffmann cogitou voltar à Ópera, mas enquanto a hora não chegava, ele jurara não ceder à tentação. Aliás, lutara contra essa tentação de todas as formas, primeiro recorrendo a seu camafeu, em seguida tentando escrever a Antônia, mas o retrato da jovem agora estampava uma fisionomia tão triste que Hoffmann fechava-o imediatamente tão logo o abria. As primeiras linhas de cada carta que começava saíam tão constrangidas que ele rasgou dez cartas antes de encher um terço da primeira página. Finalmente, aquele malfadado dia terminou, a abertura do teatro se aproximou, soaram sete horas e, a esse último chamado, Hoffmann, levantandose como num passe de mágica, desceu correndo a escada e lançou-se na direção da rua Saint-Martin. Dessa vez, em menos de quinze minutos, sem precisar perguntar o caminho a ninguém, como se um guia invisível lhe tivesse mostrado o trajeto, em menos de dez minutos chegou à porta da Ópera. Mas, estranhamente, os portões do teatro não se achavam, como dois dias antes, apinhados de espectadores, fosse porque um incidente desconhecido de Hoffmann havia tornado o espetáculo menos atraente, fosse porque os espectadores já estavam lá. Hoffmann atirou uma moeda de seis libras para a bilheteira, recebeu o ingresso e arrojou-se para dentro da sala de espetáculos. Mas o lugar parecia muito diferente. Primeiro, estava cheia só pela metade; depois, no lugar das mulheres encantadoras e homens elegantes que planejara rever, encontrou apenas mulheres de avental e homens de carmanhola.103 Nenhuma joia, nenhuma flor, nenhum colo nu subindo e descendo sob aquela atmosfera voluptuosa dos teatros aristocráticos. Barretes redondos e barretes vermelhos, tudo enfeitado com enormes cocardas104 nacionais. Cores escuras nos trajes, uma nuvem triste pairando sobre as pessoas. Além disso, de ambos os lados da sala, dois bustos horrendos, duas cabeças fazendo careta, uma, o Riso, a outra, o Sofrimento — bustos de Voltaire e Marat,105 para resumir. Por fim, no camarote principal, um buraco mal-iluminado, um desvão escuro e vazio. A caverna subsistia, mas agora sem leão. Na parte da plateia próxima à orquestra havia dois lugares vazios, um ao lado do outro. Hoffmann alcançou um deles, o que havia ocupado na outra noite. O outro havia pertencido ao médico, mas, como dissemos, agora encontravase vazio. O primeiro ato desenrolou-se sem que Hoffmann prestasse atenção na orquestra ou se concentrasse nos atores. Conhecia a orquestra, apreciara-a na audição anterior. Os atores pouco lhe importavam, não viera por eles, viera por Arsène. O pano se abriu para o segundo ato e o balé teve início. Toda a inteligência, toda a alma, todo o coração do rapaz entraram em compasso de espera. Ele aguardava a entrada de Arsène. De repente, soltou um grito. Não era mais Arsène quem fazia o papel de Flora. A mulher que surgiu no palco era uma mulher estranha, uma mulher como qualquer outra. Todas as fibras do corpo tensionado de Hoffmann se distenderam. Ele se fechou em si mesmo, suspirando profundamente e olhando à sua volta. O homenzinho sinistro estava sentado a seu lado! Agora, porém, sem as fivelas de diamante no sapato, os anéis de diamante, a cadavérica caixinha de rapé incrustada de diamantes. As fivelas eram de cobre, seus anéis, de prata dourada, sua caixinha de rapé, de prata fosca. Não cantarolava mais, não marcava o ritmo. Como se dera tal aparição? Hoffmann não fazia ideia: não o vira chegar, não o sentira passar. — Cavalheiro! — exclamou Hoffmann. — Fale “cidadão”, meu jovem amigo, e pode me chamar de você… se puder — respondeu o homenzinho —, ou terei a cabeça cortada, e você também. — Onde ela está? — perguntou Hoffmann. — A minha…, ah, entendi… Onde ela está? Bem, parece que o rei da selva, que não desgruda os olhos da moça, percebeu que anteontem ela se correspondeu por sinais com um jovem dessa parte da plateia. Parece que esse jovem correu atrás do coche dele, de maneira que desde ontem rompeu com Arsène e Arsène saiu do teatro. — E como o diretor reagiu…? — Meu jovem amigo, o diretor faz questão de conservar a cabeça sobre os ombros, embora seja uma cabeça muito feia. Finge que está acostumado com ela e que a troca por outra, embora mais bela, pode não funcionar. — Oh, meu Deus! Então por isso o teatro está tão triste! — exclamou Hoffmann. — Por isso não há mais flores, diamantes ou joias. Por isso o senhor não tem mais suas fivelas de diamante, seus anéis de diamante, sua caixinha de rapé de diamante. Por isso, afinal de contas, que, nas laterais do palco, em vez dos bustos de Apolo e Terpsícore,106 estão esses dois bustos hediondos. Ierkt! — Ei, de onde tirou tudo isso? — perguntou o médico. — E onde viu a sala que descreveu? Onde viu anéis de diamante, caixinhas de rapé de diamante? Onde, fale de uma vez, viu os bustos de Apolo e Terpsícore? Ora, faz dois anos que as flores deixaram de desabrochar, que os diamantes transformaram-se em assignats107 e que as joias foram derretidas no altar da pátria. Quanto a mim, graças a Deus, nunca tive outras fivelas senão essas de cobre, outros anéis senão esse horrível anel de estanho, e outra caixa de rapé senão essa de prata. Quanto aos bustos de Apolo e Terpsícore — Deus me perdoe! —, estiveram ali em outros tempos, de fato, mas os amigos da humanidade depredaram o busto de Apolo e o substituíram pelo do apóstolo Voltaire; mas os amigos do povo depredaram o busto de Terpsícore e o substituíram pelo de Nosso Senhor Marat. — Oh! — exclamou Hoffmann. — Isso é impossível. Repito que anteontem vi uma sala perfumada de flores, resplandecente de trajes suntuosos, radiosa de diamantes, e homens elegantes em vez dessas matracas de avental e desses pedreiros de carmanhola. Repito que o senhor usava fivelas de diamante em seus sapatos, anéis de diamante em seus dedos, uma caveira de diamante em sua caixa de rapé. Repito… — E eu, rapaz, por minha vez afirmo — rebateu o homenzinho sinistro — que anteontem ela estava ali, que sua presença iluminava tudo, que sua respiração fazia as rosas nascerem, as joias reluzirem e os diamantes de sua imaginação faiscarem. Afirmo que está apaixonado por ela, rapaz, e que viu a sala pelo prisma da paixão. Arsène não está mais aqui, seu coração está morto, seus olhos perderam a magia, e o que o senhor vê é moletom, brim, lona, barretes vermelhos, mãos sujas e cabelos sebentos. O que o senhor vê, enfim, é o mundo tal como é, as coisas tal como são. — Oh, meu Deus! — exclamou Hoffmann, deixando a cabeça cair nas mãos —, é verdade tudo isso, será que estou enlouquecendo?




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