Arsène
Após ter examinado detidamente a caixinha de rapé, Hoffmann devolveu-a ao
dono, agradecendo-lhe com um sinal silencioso da cabeça, retribuído com outro
igualmente cortês, e no entanto, se é que é possível, mais silencioso ainda.
“Vejamos agora se ele fala”, perguntou-se Hoffmann, e, voltando-se para o
vizinho, puxou conversa:
— Peço que me desculpe a indiscrição, cavalheiro, mas essa pequena
caveira de diamante que adorna sua caixinha de rapé me impressionou desde o
início, pois é um ornamento raro numa caixa dessa natureza.
— Com efeito, creio que é a única no gênero — replicou o desconhecido com
uma voz metálica, cujos sons imitavam perfeitamente o barulho de moedas de
prata empilhadas umas sobre as outras. — Ganhei de uns herdeiros agradecidos,
cujo pai foi meu paciente.
— O senhor é médico?
— Sim, senhor.
— Havia curado o pai desses jovens?
— Ao contrário, cavalheiro, tivemos a infelicidade de perdê-lo.
— Tento entender o motivo da gratidão.
O médico pôs-se a rir.
Suas respostas não o impediam de continuar cantarolando, e ainda
cantarolando replicou:
— É, acho que matei mesmo aquele velho.
— Como assim, matou?
— Testei nele um remédio novo. Oh, meu Deus, ele bateu as botas apenas
uma hora depois. Foi realmente muito esquisito.
E tornou a cantarolar.
— Parece gostar de música, cavalheiro… — reiniciou Hoffmann.
— Principalmente desta, sim, senhor.
“Que diabos!” pensou Hoffmann. “Eis um homem que se engana tanto na
música quanto na medicina.”
Nesse instante, as cortinas se ergueram.
O estranho médico aspirou uma pitada de rapé e se recostou o mais
comodamente possível na poltrona, como um homem que não quer perder nada
do espetáculo diante de si.
Enquanto se recostava, perguntou a Hoffmann, como que por instinto:
— O senhor é alemão, cavalheiro?
— Perfeitamente.
— Reconheci pelo sotaque. Lindo país, horrendo sotaque.
Hoffmann assentiu diante daquela frase, misto de elogio e crítica.
— E por que veio à França?
— Para ver.
— E o que já viu?
— Vi guilhotinarem alguém, senhor.
— Estava hoje na praça da Revolução?
— Estava.
— Então assistiu à morte da sra. du Barry.
— Sim — respondeu Hoffmann, com um suspiro.
— Conheci-a profundamente — continuou o médico lançando-lhe um olhar
de cumplicidade, imprimindo à palavra “conheci” toda a força de sua
significação. — Bela mulher, por sinal.
— E cuidou dela também?
— Não, mas cuidei de seu negro, Zamora.
— Aquele miserável! Contaram-me que foi ele quem denunciou a ama.
— Pois é, grande patriota aquele negrinho.
— Deveria ter feito com ele o que fez com o velho, o senhor sabe, o da
caixinha de rapé.
— Para quê? Ele não tinha herdeiros.
E a risada do médico tilintou novamente.
— E o senhor, não assistiu à execução? — continuou Hoffmann, que se via
tomado por uma irresistível ânsia de falar da pobre criatura, cuja imagem
sangrenta não o abandonava.
— Não. Ela estava emagrecida?
— Quem?
— A condessa.
— Não sei dizer, cavalheiro.
— E por quê?
— Porque a primeira vez que a vi foi naquela carroça.
— Que pena. Fiquei curioso, pois a conheci bem obesa. Mas amanhã irei ver
o corpo. Ah, pronto, olhe!
O médico apontou para o palco, onde, naquele exato momento Vestris, que
fazia o papel de Páris, aparecia no monte Ida e fazia todo tipo de galanteio à
ninfa Enona.93
Hoffmann olhou para onde apontava seu vizinho, porém só depois de
certificar-se de que o soturno médico realmente prestava atenção no palco, e que
o tema daquela conversa parecia-lhe absolutamente banal.
“Seria curioso ver esse homem chorar”, pensou Hoffmann.
— Conhece o enredo da peça? — voltou a perguntar o médico, após o silêncio
de alguns minutos.
— Não, senhor.
— Oh, é interessantíssimo. Há inclusive situações comovedoras. Um de meus
amigos e eu sentimos lágrimas nos olhos da outra vez.
“Um de seus amigos!” ruminou o poeta. “Quem pode ser amigo desse
homem? Só se for um coveiro.”
— Ah, bravo, bravo, Vestris — vibrou o homenzinho, batendo as mãos.
O médico escolhera para manifestar sua admiração o momento em que
Páris, como dizia o libreto que Hoffmann comprara na porta, apanha sua aljava
e corre em auxílio dos pastores, que, aterrorizados, fogem de um leão terrível.
— Não sou curioso, mas gostaria de ter visto o leão.
Assim terminava o primeiro ato.
Então o médico levantou-se, voltou-se, apoiou-se na poltrona em frente à sua
e, substituindo a caixinha de rapé por um pequeno binóculo, passou a espiar as
mulheres da plateia.
Hoffmann seguia mecanicamente a direção do binóculo, observando com
espanto que a pessoa sobre a qual ele se fixava estremecia instantaneamente e
logo voltava os olhos para aquele que a espiava, como se a isso fosse obrigada
por uma força invisível, que a imobilizava nessa posição até o médico parar de
examiná-la.
— Por acaso também recebeu esse binóculo de herança, cavalheiro? —
perguntou Hoffmann.
— Não, foi um presente do sr. de Voltaire.94
— Quer dizer que também o conheceu?
— Muito, éramos muito ligados.
— Era médico dele?
— Ele não acreditava na medicina. É bem verdade que não acreditava em
muita coisa.
— É fato que morreu se confessando?
— Ele, cavalheiro, ele! Arouet!95 Ora, vamos! Não apenas não se confessou,
como recebeu cinicamente o padre que tentou assisti-lo! Posso falar disso com
conhecimento de causa, pois estava presente.
— O que aconteceu então?
— Arouet está para morrer. Tersac, o vigário, chega e lhe pergunta, antes de
mais nada, como homem que não tem tempo a perder:
“Cavalheiro, reconhece a trindade de Jesus Cristo?”
“Cavalheiro, permita que eu morra sossegado, por favor”, responde-lhe
Voltaire.”
“Entretanto”, continua Tersac, “preciso saber se reconhece Jesus Cristo como
filho de Deus.”
“Em nome do diabo”, exclama Voltaire, “não me fale mais desse homem”
— e, reunindo o pouco de forças que lhe resta, dá um soco na cabeça do vigário
e morre. Como eu ri, meu Deus, como eu ri!
— Realmente, deve ter sido engraçado — disse Hoffmann, com uma voz
desdenhosa —, não há melhor maneira de morrer para o autor de A donzela de
Orléans.96
— Ah, sim, A donzela! — exclamou o sinistro homem. — Que obra-prima!
Admirável! Só conheço um livro capaz de rivalizar com este.
— Qual?
— Justine, do sr. de Sade. Conhece Justine?97
— Não, senhor.
— E o marquês de Sade?
— Tampouco.
— Veja, cavalheiro — entusiasmou-se o médico —, Justine é tudo que se
pode ler de mais imoral, é Crébillon filho
98 nu em pelo, é maravilhoso. Cuidei de
uma adolescente que leu.
— E ela morreu, como o seu velhinho?
— Morreu, mas morreu feliz.
E o olho do médico, à evocação das causas daquela morte, cintilou de
satisfação.
Soou o toque para o segundo ato.
O que não aborreceu Hoffmann, seu vizinho o assustava.
— Ah! — disse o médico, ajeitando-se na poltrona com um sorriso extasiado.
— Vamos ver Arsène.
— Quem é Arsène?
— Não conhece?
— Não, senhor.
— Que coisa! Então não conhece nada, rapaz! Arsène é Arsène, isso diz tudo.
Aliás, verá.
E, antes que a orquestra desse a primeira nota, o médico voltou a cantarolar a
introdução do segundo ato.
A cortina se abriu.
O pano de fundo representava um campo de flores e relva, atravessando um
riacho que nascia no sopé de um rochedo.
Hoffmann deixou a cabeça cair nas mãos.
Decididamente, o que ele via e ouvia não conseguia distraí-lo do pensamento
doloroso e da lembrança lúgubre que o haviam deixado naquele estado.
“O que isso teria mudado…?” pensou, mergulhando bruscamente nas
impressões do dia. “O que teria mudado no mundo se tivessem deixado aquela
infeliz mulher viver? Que mal resultaria se aquele coração tivesse continuado a
bater, aquela boca a respirar? Que desgraça causaria? Por que interromper
bruscamente tudo aquilo? Com que direito ceifar a vida no meio de seu impulso?
Ela estaria tranquilamente no meio de todas essas mulheres, ao passo que, neste
momento, seu pobre corpo, o corpo que foi amado por um rei, jaz na lama de
um cemitério, sem flores, sem cruz, sem cabeça. Como ela gritava, meu Deus,
como gritava! Depois, de repente…”
Hoffmann escondeu a testa nas mãos.
“O que faço aqui?” perguntou a si mesmo. “Oh, tenho de ir.”
E talvez de fato ele estivesse saindo quando, ao erguer a cabeça, viu no palco
uma bailarina ausente no primeiro ato e cuja dança a plateia inteira contemplava
sem fazer um movimento, sem exalar um sopro.
— Oh, que beleza de mulher! — exclamou Hoffmann, alto o suficiente para
que seus vizinhos e a própria bailarina o ouvissem.
A responsável por tal admiração súbita olhou para o rapaz que, num
rompante, dirigira-lhe a exclamação, e Hoffmann julgou ver um agradecimento
em seu olhar.
Ele corou e estremeceu, como se tocado por uma faísca elétrica.
Arsène, pois era ela, quer dizer, aquela bailarina cujo nome o velhinho
pronunciara, era realmente uma criatura impressionante, e de uma beleza que
nada tinha de tradicional.
Era alta, maravilhosamente bem-feita e exibia uma palidez transparente sob
o ruge que cobria suas faces. Os pés eram minúsculos, e quando os aterrissava no
assoalho do teatro, era como se a ponta de cada um deles pousasse sobre uma
nuvem, pois não se ouvia qualquer ruído. Sua compleição era tão magra, tão
flexível, que uma cobra não teria se contorcido como ela fazia. Toda vez,
vergando-se por inteiro, inclinava-se para trás, parecendo que seu espartilho iria
arrebentar, e adivinhava-se, na energia de sua dança e na segurança de seu
corpo, a convicção de uma beleza completa e a alma fogosa que, como a da
Messalina99 arcaica, se às vezes enlanguesce, jamais se sacia. Não sorria como
sorriem normalmente as bailarinas, seus lábios de púrpura quase nunca se
abriam; não que tivessem dentes feios a esconder, não, pois no sorriso que
dirigira a Hoffmann, quando ele muito ingenuamente a elogiara de modo tão
expansivo, nosso poeta pudera ver uma dupla fileira de pérolas, brancas e puras,
que Arsène com certeza escondia para que o ar não as manchasse. Em seus
cabelos negros e brilhantes, com reflexos azuis, enrolavam-se largas folhas de
acanto, das quais pendiam cachos de uva, cuja sombra percorria seus ombros
nus. Quanto aos olhos, eram grandes, límpidos, pretos, cintilantes, a ponto de
iluminarem tudo à sua volta. Ainda que dançasse no meio da noite, Arsène teria
iluminado seu palco. A garota tornava-se ainda mais original porque, sem razão
nenhuma, usava nesse papel de ninfa — pois representava, ou melhor, dançava
uma ninfa —, ela usava, dizíamos, uma pequena gargantilha de veludo negro,
rematada por um fecho, era ao menos um objeto que parecia ter a forma de um
fecho, o qual, feito de diamantes, lançava fulgores radiosos.
O médico olhava aquela mulher avidamente, e sua alma, a alma que lhe era
possível ter, parecia voar junto com ela. Era mais que evidente: enquanto ela
dançava, ele não respirava.
Hoffmann então observou uma coisa curiosa: fosse Arsène para a direita ou
para a esquerda, para trás ou para a frente, seus olhos nunca saíam do campo de
visão do médico, como se estabelecendo uma corrente entre os dois olhares.
Mais que isso, Hoffmann via nitidamente os raios lançados pelo fecho da
gargantilha de Arsène, e os lançados pela caveira do médico, chocarem-se,
repelirem-se e ricochetearem num mesmo feixe composto por milhares de
faíscas brancas, vermelhas e douradas.
— Faria a gentileza de me emprestar seu binóculo, senhor? — pediu
Hoffmann, arfante e sem mover a cabeça, pois era-lhe igualmente impossível
desviar os olhos de Arsène.
O médico estendeu a mão para Hoffmann, com a cabeça também imóvel,
de modo que as mãos dos dois espectadores buscaram-se por alguns instantes no
vazio antes de se encontrarem.
Alcançando enfim o binóculo, Hoffmann grudou-o nos olhos.
— É estranho… — murmurou.
— O quê? — perguntou o médico.
— Nada, nada — respondeu Hoffmann, que desejava concentrar-se
exclusivamente no que via. E, de fato, era estranho.
O binóculo aproximava de tal forma os objetos de seus olhos que, por duas ou
três vezes, ele estendeu a mão julgando tocar Arsène. Ela parecia não mais estar
na ponta da lente que a refletia, mas entre as duas lentes do binóculo. Portanto,
nosso alemão não perdia nenhum detalhe da beleza da bailarina, e aqueles
olhares, de longe já tão brilhantes, cingiam sua fronte em um círculo de fogo,
faziam o sangue ferver nas veias de suas têmporas.
A alma do rapaz fazia um som terrível dentro dele.
— Que mulher é essa? — exclamou, com uma voz fraca, sem largar o
binóculo e sem se mexer.
— É Arsène, como eu disse — repetiu o médico, em quem apenas os lábios
pareciam vivos e cujo olhar imóvel varava a bailarina.
— Essa mulher certamente tem um namorado…
— Certamente.
— E ela o ama?
— É o que dizem.
— E ele é rico?
— Riquíssimo.
— Quem é?
— Olhe à esquerda, no camarote principal.
— Não consigo mexer a cabeça.
— Vale o sacrifício.
Hoffmann fez um esforço tão intenso que soltou um grito, como se os nervos
de seu pescoço se houvessem petrificado e pulverizado naquele momento.
Olhou para o camarote indicado.
Nele, havia apenas um homem, o qual, porém, acocorado como um leão na
balaustrada de veludo, parecia preencher sozinho todo o espaço.
Era um homem entre trinta e dois, trinta e três anos, um rosto esculpido pelas
paixões. Era como se, não a varíola, mas uma erupção vulcânica houvesse
escavado os vales cujas profundezas entrecruzavam-se naquela carne
convulsionada. Seus olhos deviam ter sido pequenos em outros tempos, mas
haviam se dilatado por uma espécie de dilaceramento da alma. Ora mostravamse
átonos e vazios, como uma cratera extinta, ora expeliam chamas como uma
cratera rutilante. Não aplaudia aproximando as mãos, mas socando a
balaustrada, e a cada aplauso parecia sacudir a sala.
— Oh — fez Hoffmann —, é um homem que vejo ali?
— Sim, sim, é um homem — respondeu o homenzinho sinistro. — Sim, é um
homem, e um homem selvagem, eu diria.
— Como se chama?
— Não conhece?
— Naturalmente que não, cheguei ontem.
— Pois muito bem! É Danton.100
— Danton! — reagiu Hoffmann, estremecendo. — Oh, oh! E é ele o
namorado de Arsène?
— Ele mesmo.
— E decerto a ama…
— Loucamente. Morre de ciúme dela.
Contudo, por mais interessante que fosse contemplar Danton, Hoffmann já
voltara os olhos para Arsène, cuja dança silenciosa tinha uma aparência
fantástica.
— Mais uma informação, cavalheiro.
— Fale.
— Qual é a forma do broche que fecha sua gargantilha?
— É uma guilhotina.
— Uma guilhotina!
— Sim. Andam confeccionando umas réplicas encantadoras e todas as nossas
elegantes usam pelo menos uma. A de Arsène foi presente de Danton.
— Uma guilhotina, uma guilhotina no pescoço de uma bailarina — repetiu
Hoffmann, que sentia o cérebro inchar —, por que uma guilhotina…?
Arriscando ser tomado por louco, o alemão esticava os braços à frente, como
se para tocar um corpo, pois, em virtude de um curioso efeito de óptica, a
distância que o separava de Arsène desaparecia por instantes e ele julgava sentir
o hálito da bailarina em seu rosto e ouvir a fogosa respiração daquele peito, cujos
seios, seminus, arfavam como se abraçados pelo prazer. Hoffmann achava-se no
estado de exaltação em que julgamos respirar fogo e tememos que os sentidos
estilhassem nosso corpo.
— Basta! Basta! — dizia.
Mas a dança continuava, e a alucinação fora num tamanho crescendo que,
confundindo suas duas impressões mais fortes do dia, o espírito de Hoffmann
misturava à cena que assistia a lembrança da praça da Revolução e julgava ver
ora a sra. Du Barry, pálida e decapitada, dançar no lugar de Arsène, ora Arsène
chegando para bailar ao pé da guilhotina e às mãos do carrasco.
Forjava-se, na imaginação exaltada do rapaz, um buquê de flores e sangue,
de dança e agonia, de vida e morte.
O que predominava, contudo, era a atração elétrica que o impelia para
aquela mulher. A cada vez que as duas pernas esguias passavam-lhe diante dos
olhos e a saia transparente esvoaçava, um frêmito percorria-o da cabeça aos pés,
seu lábio ficava seco, seu bafejo, ardente, e o desejo entrava nele como entra
num homem de vinte anos.
Nesse estado de exaltação, Hoffmann só via um refúgio, era o retrato de
Antônia, o camafeu que carregava no peito, o amor puro a ser oposto ao amor
sensual, a força da casta lembrança para deter a realidade concreta.
Pegou o retrato e o levou aos lábios, porém, mal esboçara o gesto, ouviu a
risadinha aguda do homem ao seu lado e percebeu seu olhar escarninho.
Então, com o rosto vermelho, guardou novamente o camafeu onde o pegara
e, levantando-se como se por uma mola, exclamou:
— Deixem-me sair! Deixem-me sair, impossível ficar aqui por mais tempo!
E, feito um louco, deixou a plateia, pisando nos pés e tropeçando nas pernas
dos pacíficos espectadores, que resmungavam contra aquele excêntrico
dominado pelo capricho de, sem mais nem menos, sair no meio de um balé.
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