domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 775 : O julgamento de Páris

 O julgamento de Páris

Hoffmann era o homem das mudanças bruscas. Depois da praça da Revolução e do povo ululante cercando o cadafalso, do céu escuro e do sangue, ansiava pelo brilho dos lustres, da multidão alegre, das flores, da vida, enfim. Não tinha muita certeza se o espetáculo que presenciara sumiria-lhe da mente por tal artifício, mas queria ao menos distrair os olhos e comprovar que ainda havia pessoas vivendo e rindo no mundo. Dirigiu-se então à Ópera. Chegou por instinto, sem saber como. Sua determinação tomara a dianteira e ele a seguira como um cego o seu cão, enquanto seu espírito viajava por um caminho oposto e através de impressões diametralmente opostas. Assim como na praça da Revolução, uma multidão se aglomerava no bulevar onde, nessa época, ficava o teatro da Ópera, hoje teatro da Porte Saint-Martin. Hoffmann parou diante daquela multidão e olhou o cartaz. Encenava-se O julgamento de Páris, balé-pantomima em três atos do sr. Gardel Júnior, filho do mestre-coreógrafo de Maria Antonieta que mais tarde veio a ser mestre-coreógrafo do imperador.90 “O julgamento de Páris?” murmurou o poeta, olhando fixamente o cartaz como se para gravar no espírito, com a ajuda dos olhos e do ouvido, a significação destas quatro palavras: O julgamento de Páris! Em vão repetia as sílabas que compunham o título do balé, pareciam-lhe vazias de sentido, de tal forma seu pensamento pelejava para expulsar as terríveis lembranças que o ocupavam e ceder lugar à obra extraída da Ilíada de Homero pelo sr. Gardel Júnior. Estranha época essa, quando num mesmo dia era possível assistir a uma condenação pela manhã, a uma execução às quatro horas, a um balé à noite e ainda se corria o risco de ser preso depois de todas essas emoções! Hoffmann compreendeu que, se outra pessoa não lhe dissesse o que estavam encenando, ele ficaria sem saber e talvez enlouquecesse diante do cartaz. Aproximou-se de um senhor gordo que estava na fila com a esposa, já que em todos os tempos os homens gordos cismam de ficar na fila com as esposas, e indagou: — O que temos esta noite, cavalheiro? — Como vê no cartaz à sua frente, cavalheiro — respondeu o homem gordo —, temos O julgamento de Páris. — O julgamento de Páris… — repetiu Hoffmann. — Ah, sim, o julgamento de Páris, sei do que se trata. O senhor gordo olhou para aquele estranho perguntador e deu de ombros, manifestando o mais profundo desprezo por um rapaz que, em plena época mitológica, era capaz de esquecer por um segundo a história do julgamento de Páris. — Quer a explicação do balé, cidadão? — perguntou o vendedor de libretos, aproximando-se de Hoffmann. — Sim, dê-me um. Era, para nosso herói, uma prova a mais de que ia ao espetáculo, e ele precisava de uma. Abriu o libreto e examinou-o. Era impresso com esmero num belo papel branco, enriquecia-o um prefácio do autor. “Que coisa maravilhosa é o homem”, pensou Hoffmann, percorrendo as poucas linhas daquele prefácio, linhas que ainda não lera, mas que leria, “e como, ao mesmo tempo em que faz parte da massa comum dos homens, ele caminha sozinho, solitário, egoísta e indiferente rumo a seus interesses e ambições! Por exemplo, eis um homem, o sr. Gardel Júnior, que apresentou este balé em 5 de março de 1793, isto é, seis semanas após a morte do rei, isto é, seis semanas após um dos maiores acontecimentos do mundo. Pois bem, no dia em que esse balé foi apresentado, irromperam emoções particulares dentro das emoções gerais. Seu coração exultou quando aplaudiram, e, naquele momento, se lhe viessem falar do acontecimento que ainda sacudia o mundo e mencionassem o nome do rei Luís XVI, ele teria exclamado: ‘Luís XVI, quem é?’Depois, a partir do dia em que entregara seu balé ao público, como se a terra inteira não devesse mais se preocupar senão com aquele evento coreográfico, fez um prefácio à explicação de sua pantomima. Essa é boa! Leiamos seu prefácio e vejamos se, esquecendo a data em que foi escrito, encontro nele algum vestígio das coisas em meio às quais ele vinha à luz.” Hoffmann pôs os cotovelos sobre a balaustrada do teatro e eis o que leu. Sempre notei, nos balés de ação, que o efeito dos cenários e dos divertimentos variados e agradáveis era o que mais atraía a multidão e os aplausos frenéticos. “Cumpre admitir que se trata de um homem perspicaz”, pensou Hoffmann, incapaz de reprimir um sorriso à leitura daquela primeira ingenuidade. “Como! Ele notou que o que atrai nos balés são os efeitos de cenários e os divertimentos variados e agradáveis… Que lisonja para os srs. Haydn, Pley el e Méhul,91 que compuseram a música do Julgamento de Páris! Vamos em frente.” A partir dessa observação, procurei um tema capaz de valorizar os talentosos bailarinos que só a Ópera de Paris possui e que me permitisse expor as ideias que o acaso pudesse me oferecer. A história poética é o terreno inesgotável a ser cultivado pelo mestre-coreógrafo. Esse terreno não é sem espinhos, mas devemos saber afastá-los para colher a rosa. “Que horror! Eis uma frase digna de ser emoldurada a ouro!” exclamou Hoffmann. “Só na França para escreverem coisas desse gênero!” E pôs-se a olhar para o libreto, preparando-se para continuar aquela interessante leitura que começava a distraí-lo. Seu espírito, porém, desviado da verdadeira preocupação, a ela retornava gradativamente. Os caracteres foram se embaralhando sob os olhos do sonhador, que, deixando pender a mão que segurava O julgamento de Páris, olhou fixamente para o chão e murmurou: — Pobre mulher! Era a sombra da sra. du Barry voltando a atormentá-lo. Ele então sacudiu a cabeça, como se para expulsar vigorosamente a sombria realidade. Após guardar no bolso o libreto do sr. Gardel Júnior, comprou um ingresso e entrou no teatro. A sala estava lotada e rutilante de flores, joias, sedas e ombros nus. Um intenso burburinho, o de mulheres perfumadas e frases frívolas, o zumbido de mil moscas esvoaçando dentro de uma caixa de sapato, feito de palavras tão indeléveis quanto a marca das asas das borboletas nos dedos das crianças que as capturam e que, dois minutos depois, não sabendo mais o que fazer com elas, erguem as mãos para os céus e as devolvem à liberdade. Hoffmann ocupou um lugar próximo à orquestra e, por um instante, fascinado pela atmosfera efusiva que reinava na sala de espetáculo, foi capaz de acreditar que estava ali desde a manhã e que o espectro da morte que teimava em assombrá-lo era um pesadelo e não uma realidade. Então sua memória, dona, como a de todos os homens, de duas lentes refletoras, uma no coração, outra na razão, percorrendo a gradação natural das impressões alegres, voltou-se imperceptivelmente para a linda jovem que ele deixara tão distante e cujo medalhão sentia bater, como se outro coração, junto ao seu. Examinou todas as mulheres que o cercavam, todos aqueles ombros alvos, todos aqueles cabelos louros e castanhos, todos aqueles braços sinuosos, todas aquelas mãos brincando com hastes de leque ou retocando vaidosamente flores de um penteado, e sorriu consigo mesmo pronunciando o nome Antônia, como se ele sozinho bastasse para superar qualquer comparação entre sua dona e as mulheres que ali se achavam, transportando-o a um mundo de lembranças mil vezes mais encantadoras que toda aquela realidade, por mais bela que fosse. Depois, como se não fora o bastante, como temesse apenas ver se apagar o retrato que, através da distância, seu pensamento redesenhava no ideal que o emoldurava, Hoffman enfiou lentamente a mão no peito e agarrou o medalhão como uma menina amedrontada agarra um passarinho no ninho. Certificando-se de que ninguém podia vê-lo e embaçando com um olhar a doce imagem que tinha nas mãos, trouxe lentamente o retrato da moça à altura da vista, adorou-o por um instante e, após tê-lo pousado devotamente nos lábios, voltou a guardá-lo junto ao coração, sem que ninguém pudesse presumir a alegria que acabava de ter, imitando o gesto do homem que endireita o colete, aquele jovem espectador de cabelos pretos e tez pálida. Nesse momento, tocou o sinal e as primeiras notas da abertura começaram a correr alegremente pela orquestra, como pintassilgos trinando num bosque. Hoffmann sentou-se e, tratando de voltar a ser um homem como os demais, isto é, um espectador atento, abriu seus dois ouvidos para a música. Ao cabo de cinco minutos, contudo, não escutava mais e não queria mais escutar. Não era com aquela música que prendiam a atenção de Hoffmann, ainda mais que ele a escutava duas vezes, já que um vizinho de plateia, sem dúvida frequentador da Ópera e admirador dos srs. Haydn, Pleyel e Méhul, acompanhava em semitom, com uma vozinha de falsete e com precisão milimétrica, as diferentes melodias desses três senhores. O diletante juntava outro acompanhamento ao da boca, este com os dedos, batendo suas unhas compridas e afiladas, no ritmo e com admirável destreza, na caixinha de rapé que segurava na mão esquerda. Hoffmann, com a curiosidade natural que é manifestamente a primeira qualidade de todos os observadores, pôs-se a examinar aquele personagem que produzia uma orquestra particular enxertada na orquestra geral.

Imaginem um homenzinho de paletó, colete e calça pretos, camisa e gravata brancas… O personagem, aliás, merece descrição. Imaginem um homenzinho de paletó, colete e calça pretos, camisa e gravata brancas, de um branco mais que o branco, quase tão cansativo aos olhos quanto o reflexo prateado da neve. Na parte das mãos desse homenzinho, mãos magras, transparentes como cera e se destacando sobre a calça preta, como se fossem iluminadas por dentro, coloque punhos de fina casimira, dobrados com grande esmero e flexíveis como folhas de lírio, e terão o conjunto do corpo. Agora observem a cabeça, e observem-na como fazia Hoffmann, isto é, com um misto de curiosidade e espanto. Imaginem um rosto oval, com a testa luzidia feito marfim e ralos cabelos cor de abóbora, brotando de quando em quando como touceiras numa planície. Suprimam as sobrancelhas e, abaixo do lugar onde elas deveriam estar, abram dois buracos dentro dos quais vocês instalarão um olho frio como vidro, quase sempre estático e a princípio sem vida aparente, tanto que em vão se procuraria neles o ponto luminoso implantado por Deus no olho como a centelha do núcleo vital. Esses olhos são azuis como a safira, sem doçura, sem dureza. Veem, isto é certo, mas não enxergam. Um nariz seco, fino, comprido e pontudo; uma boca pequena, de lábios entreabertos sobre dentes não brancos, porém da mesma cor de cera que a pele, como se tingidos com uma ligeira infiltração de sangue pálido; um queixo pontudo, severamente escanhoado; maçãs do rosto salientes, ambas as faces carcomidas por uma cavidade em que cabia uma noz; tais eram os traços característicos do espectador sentado ao lado de Hoffmann. Esse homem podia ter cinquenta anos, ou trinta. Tivesse oitenta, não teria sido nenhum espanto. Tivesse apenas doze, ainda assim não teria sido de todo inverossímil. Parecia que viera ao mundo já com aquela figura. Sem dúvida, nunca fora jovem, e possivelmente parecia mais velho. Era provável que, tocando sua pele, sentíssemos a mesma sensação de frio que sentiríamos tocando a pele de uma serpente ou de um cadáver. Mas ora vejam só, ele gostava muito de música. De tempos em tempos, sua boca se esgarçava um pouco mais, sob a pressão da voluptuosidade melômana, e três pequenas rugas, idênticas de ambos os lados, descreviam um semicírculo na extremidade dos lábios e ali permaneciam gravadas por cinco minutos, apagando-se depois gradualmente, como os círculos desenhados por uma pedra jogada na água, que vão se alargando sempre, até se confundirem por completo com a superfície imóvel. Hoffmann não se cansava de olhar tal sujeito, e ele, embora sentindo-se examinado, nem por isso esboçou um movimento que fosse. Sua imobilidade era tão completa que nosso poeta, naquela época já detentor da semente imaginativa que viria a engendrar Coppelius,92 apertou as suas duas mãos no encosto da poltrona que tinha diante de si, debruçou o corpo e, voltando a cabeça para a direita, tentou ver de frente o que até então vira apenas de perfil. O homenzinho fitou Hoffmann sem espanto, sorriu, fez-lhe uma pequena saudação amistosa e continuou a fixar os olhos no mesmo ponto, invisível para qualquer outro além dele, acompanhando a orquestra. — Estranho — disse Hoffmann, sentando-se novamente —, eu teria apostado que ele não vivia. E como se, a despeito de ter visto a cabeça do vizinho se mexer, o rapaz não estivesse inteiramente convencido de que o resto do corpo tinha vida, voltou mais uma vez os olhos para as mãos do personagem. Uma coisa lhe chamou a atenção: sobre a caixinha de rapé com a qual brincavam aquelas mãos, feita de ébano, refulgia uma pequena caveira de diamante. Naquele dia, tudo assumiria tons fantásticos aos olhos de Hoffmann, mas ele estava mais do que resolvido a alcançar seus fins e, debruçando-se para baixo como fizera para a frente, grudou os olhos na caixinha de rapé, a ponto de seus lábios quase tocarem as mãos de quem a manuseava. O homem assim examinado, vendo que sua caixinha despertava tamanho interesse no rapaz, passou-a silenciosamente para ele a fim de que a pudesse contemplar mais à vontade. Hoffmann pegou-a, girou-a, revirou-a vinte vezes, depois a abriu. Dentro, havia rapé!


Nenhum comentário:

Postar um comentário