O julgamento de Páris
Hoffmann era o homem das mudanças bruscas. Depois da praça da Revolução e
do povo ululante cercando o cadafalso, do céu escuro e do sangue, ansiava pelo
brilho dos lustres, da multidão alegre, das flores, da vida, enfim. Não tinha muita
certeza se o espetáculo que presenciara sumiria-lhe da mente por tal artifício,
mas queria ao menos distrair os olhos e comprovar que ainda havia pessoas
vivendo e rindo no mundo.
Dirigiu-se então à Ópera. Chegou por instinto, sem saber como. Sua
determinação tomara a dianteira e ele a seguira como um cego o seu cão,
enquanto seu espírito viajava por um caminho oposto e através de impressões
diametralmente opostas.
Assim como na praça da Revolução, uma multidão se aglomerava no bulevar
onde, nessa época, ficava o teatro da Ópera, hoje teatro da Porte Saint-Martin.
Hoffmann parou diante daquela multidão e olhou o cartaz.
Encenava-se O julgamento de Páris, balé-pantomima em três atos do sr.
Gardel Júnior, filho do mestre-coreógrafo de Maria Antonieta que mais tarde
veio a ser mestre-coreógrafo do imperador.90
“O julgamento de Páris?” murmurou o poeta, olhando fixamente o cartaz
como se para gravar no espírito, com a ajuda dos olhos e do ouvido, a
significação destas quatro palavras: O julgamento de Páris!
Em vão repetia as sílabas que compunham o título do balé, pareciam-lhe
vazias de sentido, de tal forma seu pensamento pelejava para expulsar as
terríveis lembranças que o ocupavam e ceder lugar à obra extraída da Ilíada de
Homero pelo sr. Gardel Júnior.
Estranha época essa, quando num mesmo dia era possível assistir a uma
condenação pela manhã, a uma execução às quatro horas, a um balé à noite e
ainda se corria o risco de ser preso depois de todas essas emoções!
Hoffmann compreendeu que, se outra pessoa não lhe dissesse o que estavam
encenando, ele ficaria sem saber e talvez enlouquecesse diante do cartaz.
Aproximou-se de um senhor gordo que estava na fila com a esposa, já que
em todos os tempos os homens gordos cismam de ficar na fila com as esposas, e
indagou:
— O que temos esta noite, cavalheiro?
— Como vê no cartaz à sua frente, cavalheiro — respondeu o homem gordo
—, temos O julgamento de Páris.
— O julgamento de Páris… — repetiu Hoffmann. — Ah, sim, o julgamento
de Páris, sei do que se trata.
O senhor gordo olhou para aquele estranho perguntador e deu de ombros,
manifestando o mais profundo desprezo por um rapaz que, em plena época
mitológica, era capaz de esquecer por um segundo a história do julgamento de
Páris.
— Quer a explicação do balé, cidadão? — perguntou o vendedor de libretos,
aproximando-se de Hoffmann.
— Sim, dê-me um.
Era, para nosso herói, uma prova a mais de que ia ao espetáculo, e ele
precisava de uma.
Abriu o libreto e examinou-o.
Era impresso com esmero num belo papel branco, enriquecia-o um prefácio
do autor.
“Que coisa maravilhosa é o homem”, pensou Hoffmann, percorrendo as
poucas linhas daquele prefácio, linhas que ainda não lera, mas que leria, “e
como, ao mesmo tempo em que faz parte da massa comum dos homens, ele
caminha sozinho, solitário, egoísta e indiferente rumo a seus interesses e
ambições! Por exemplo, eis um homem, o sr. Gardel Júnior, que apresentou este
balé em 5 de março de 1793, isto é, seis semanas após a morte do rei, isto é, seis
semanas após um dos maiores acontecimentos do mundo. Pois bem, no dia em
que esse balé foi apresentado, irromperam emoções particulares dentro das
emoções gerais. Seu coração exultou quando aplaudiram, e, naquele momento,
se lhe viessem falar do acontecimento que ainda sacudia o mundo e
mencionassem o nome do rei Luís XVI, ele teria exclamado: ‘Luís XVI, quem
é?’Depois, a partir do dia em que entregara seu balé ao público, como se a terra
inteira não devesse mais se preocupar senão com aquele evento coreográfico,
fez um prefácio à explicação de sua pantomima. Essa é boa! Leiamos seu
prefácio e vejamos se, esquecendo a data em que foi escrito, encontro nele
algum vestígio das coisas em meio às quais ele vinha à luz.”
Hoffmann pôs os cotovelos sobre a balaustrada do teatro e eis o que leu.
Sempre notei, nos balés de ação, que o efeito dos cenários e dos divertimentos
variados e agradáveis era o que mais atraía a multidão e os aplausos
frenéticos.
“Cumpre admitir que se trata de um homem perspicaz”, pensou Hoffmann,
incapaz de reprimir um sorriso à leitura daquela primeira ingenuidade. “Como!
Ele notou que o que atrai nos balés são os efeitos de cenários e os divertimentos
variados e agradáveis… Que lisonja para os srs. Haydn, Pley el e Méhul,91 que
compuseram a música do Julgamento de Páris! Vamos em frente.”
A partir dessa observação, procurei um tema capaz de valorizar os talentosos
bailarinos que só a Ópera de Paris possui e que me permitisse expor as ideias
que o acaso pudesse me oferecer. A história poética é o terreno inesgotável a
ser cultivado pelo mestre-coreógrafo. Esse terreno não é sem espinhos, mas
devemos saber afastá-los para colher a rosa.
“Que horror! Eis uma frase digna de ser emoldurada a ouro!” exclamou
Hoffmann. “Só na França para escreverem coisas desse gênero!”
E pôs-se a olhar para o libreto, preparando-se para continuar aquela
interessante leitura que começava a distraí-lo. Seu espírito, porém, desviado da
verdadeira preocupação, a ela retornava gradativamente. Os caracteres foram
se embaralhando sob os olhos do sonhador, que, deixando pender a mão que
segurava O julgamento de Páris, olhou fixamente para o chão e murmurou:
— Pobre mulher!
Era a sombra da sra. du Barry voltando a atormentá-lo.
Ele então sacudiu a cabeça, como se para expulsar vigorosamente a sombria
realidade. Após guardar no bolso o libreto do sr. Gardel Júnior, comprou um
ingresso e entrou no teatro.
A sala estava lotada e rutilante de flores, joias, sedas e ombros nus. Um
intenso burburinho, o de mulheres perfumadas e frases frívolas, o zumbido de mil
moscas esvoaçando dentro de uma caixa de sapato, feito de palavras tão
indeléveis quanto a marca das asas das borboletas nos dedos das crianças que as
capturam e que, dois minutos depois, não sabendo mais o que fazer com elas,
erguem as mãos para os céus e as devolvem à liberdade.
Hoffmann ocupou um lugar próximo à orquestra e, por um instante,
fascinado pela atmosfera efusiva que reinava na sala de espetáculo, foi capaz de
acreditar que estava ali desde a manhã e que o espectro da morte que teimava
em assombrá-lo era um pesadelo e não uma realidade. Então sua memória,
dona, como a de todos os homens, de duas lentes refletoras, uma no coração,
outra na razão, percorrendo a gradação natural das impressões alegres, voltou-se
imperceptivelmente para a linda jovem que ele deixara tão distante e cujo
medalhão sentia bater, como se outro coração, junto ao seu. Examinou todas as
mulheres que o cercavam, todos aqueles ombros alvos, todos aqueles cabelos
louros e castanhos, todos aqueles braços sinuosos, todas aquelas mãos brincando
com hastes de leque ou retocando vaidosamente flores de um penteado, e sorriu
consigo mesmo pronunciando o nome Antônia, como se ele sozinho bastasse para
superar qualquer comparação entre sua dona e as mulheres que ali se achavam,
transportando-o a um mundo de lembranças mil vezes mais encantadoras que
toda aquela realidade, por mais bela que fosse. Depois, como se não fora o
bastante, como temesse apenas ver se apagar o retrato que, através da distância,
seu pensamento redesenhava no ideal que o emoldurava, Hoffman enfiou
lentamente a mão no peito e agarrou o medalhão como uma menina
amedrontada agarra um passarinho no ninho. Certificando-se de que ninguém
podia vê-lo e embaçando com um olhar a doce imagem que tinha nas mãos,
trouxe lentamente o retrato da moça à altura da vista, adorou-o por um instante e,
após tê-lo pousado devotamente nos lábios, voltou a guardá-lo junto ao coração,
sem que ninguém pudesse presumir a alegria que acabava de ter, imitando o
gesto do homem que endireita o colete, aquele jovem espectador de cabelos
pretos e tez pálida.
Nesse momento, tocou o sinal e as primeiras notas da abertura começaram a
correr alegremente pela orquestra, como pintassilgos trinando num bosque.
Hoffmann sentou-se e, tratando de voltar a ser um homem como os demais,
isto é, um espectador atento, abriu seus dois ouvidos para a música.
Ao cabo de cinco minutos, contudo, não escutava mais e não queria mais
escutar. Não era com aquela música que prendiam a atenção de Hoffmann,
ainda mais que ele a escutava duas vezes, já que um vizinho de plateia, sem
dúvida frequentador da Ópera e admirador dos srs. Haydn, Pleyel e Méhul,
acompanhava em semitom, com uma vozinha de falsete e com precisão
milimétrica, as diferentes melodias desses três senhores. O diletante juntava
outro acompanhamento ao da boca, este com os dedos, batendo suas unhas
compridas e afiladas, no ritmo e com admirável destreza, na caixinha de rapé
que segurava na mão esquerda.
Hoffmann, com a curiosidade natural que é manifestamente a primeira
qualidade de todos os observadores, pôs-se a examinar aquele personagem que
produzia uma orquestra particular enxertada na orquestra geral.
Imaginem um homenzinho de paletó, colete e calça pretos, camisa e gravata
brancas…
O personagem, aliás, merece descrição.
Imaginem um homenzinho de paletó, colete e calça pretos, camisa e gravata
brancas, de um branco mais que o branco, quase tão cansativo aos olhos quanto o
reflexo prateado da neve. Na parte das mãos desse homenzinho, mãos magras,
transparentes como cera e se destacando sobre a calça preta, como se fossem
iluminadas por dentro, coloque punhos de fina casimira, dobrados com grande
esmero e flexíveis como folhas de lírio, e terão o conjunto do corpo. Agora
observem a cabeça, e observem-na como fazia Hoffmann, isto é, com um misto
de curiosidade e espanto. Imaginem um rosto oval, com a testa luzidia feito
marfim e ralos cabelos cor de abóbora, brotando de quando em quando como
touceiras numa planície. Suprimam as sobrancelhas e, abaixo do lugar onde elas
deveriam estar, abram dois buracos dentro dos quais vocês instalarão um olho
frio como vidro, quase sempre estático e a princípio sem vida aparente, tanto que
em vão se procuraria neles o ponto luminoso implantado por Deus no olho como
a centelha do núcleo vital. Esses olhos são azuis como a safira, sem doçura, sem
dureza. Veem, isto é certo, mas não enxergam. Um nariz seco, fino, comprido e
pontudo; uma boca pequena, de lábios entreabertos sobre dentes não brancos,
porém da mesma cor de cera que a pele, como se tingidos com uma ligeira
infiltração de sangue pálido; um queixo pontudo, severamente escanhoado;
maçãs do rosto salientes, ambas as faces carcomidas por uma cavidade em que
cabia uma noz; tais eram os traços característicos do espectador sentado ao lado
de Hoffmann.
Esse homem podia ter cinquenta anos, ou trinta. Tivesse oitenta, não teria sido
nenhum espanto. Tivesse apenas doze, ainda assim não teria sido de todo
inverossímil. Parecia que viera ao mundo já com aquela figura. Sem dúvida,
nunca fora jovem, e possivelmente parecia mais velho.
Era provável que, tocando sua pele, sentíssemos a mesma sensação de frio
que sentiríamos tocando a pele de uma serpente ou de um cadáver.
Mas ora vejam só, ele gostava muito de música.
De tempos em tempos, sua boca se esgarçava um pouco mais, sob a pressão
da voluptuosidade melômana, e três pequenas rugas, idênticas de ambos os lados,
descreviam um semicírculo na extremidade dos lábios e ali permaneciam
gravadas por cinco minutos, apagando-se depois gradualmente, como os círculos
desenhados por uma pedra jogada na água, que vão se alargando sempre, até se
confundirem por completo com a superfície imóvel.
Hoffmann não se cansava de olhar tal sujeito, e ele, embora sentindo-se
examinado, nem por isso esboçou um movimento que fosse. Sua imobilidade era
tão completa que nosso poeta, naquela época já detentor da semente imaginativa
que viria a engendrar Coppelius,92 apertou as suas duas mãos no encosto da
poltrona que tinha diante de si, debruçou o corpo e, voltando a cabeça para a
direita, tentou ver de frente o que até então vira apenas de perfil.
O homenzinho fitou Hoffmann sem espanto, sorriu, fez-lhe uma pequena
saudação amistosa e continuou a fixar os olhos no mesmo ponto, invisível para
qualquer outro além dele, acompanhando a orquestra.
— Estranho — disse Hoffmann, sentando-se novamente —, eu teria apostado
que ele não vivia.
E como se, a despeito de ter visto a cabeça do vizinho se mexer, o rapaz não
estivesse inteiramente convencido de que o resto do corpo tinha vida, voltou mais
uma vez os olhos para as mãos do personagem. Uma coisa lhe chamou a
atenção: sobre a caixinha de rapé com a qual brincavam aquelas mãos, feita de
ébano, refulgia uma pequena caveira de diamante.
Naquele dia, tudo assumiria tons fantásticos aos olhos de Hoffmann, mas ele
estava mais do que resolvido a alcançar seus fins e, debruçando-se para baixo
como fizera para a frente, grudou os olhos na caixinha de rapé, a ponto de seus
lábios quase tocarem as mãos de quem a manuseava.
O homem assim examinado, vendo que sua caixinha despertava tamanho
interesse no rapaz, passou-a silenciosamente para ele a fim de que a pudesse
contemplar mais à vontade.
Hoffmann pegou-a, girou-a, revirou-a vinte vezes, depois a abriu.
Dentro, havia rapé!
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