domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 774 : Porque os museus e bibliotecas estavam fechados e a praça da Revolução, aberta

Porque os museus e bibliotecas estavam fechados e a praça da Revolução, aberta

O quarto que seria por quinze dias o paraíso terrestre para Hoffmann continha uma cama, já a conhecemos, uma mesa e duas cadeiras. Havia uma lareira enfeitada por dois vasos de vidro azul, cheios de flores artificiais. Um confeito de açúcar representando a figura da Liberdade desabrochava sob uma campânula de cristal, nela refletindo a bandeira tricolor e o barrete vermelho. Um castiçal de cobre, um móvel em velho pau-rosa no canto, uma tapeçaria do século XII à guisa de cortina, eis toda a mobília tal como se apresentou ao raiar do dia. A tapeçaria mostrava Orfeu tocando violino para reconquistar Eurídice e o violino, naturalmente, fez com que Hoffmann se lembrasse de Zacharias Werner. “Querido amigo”, pensou nosso viajante, “ele está em Paris, eu também. Estamos juntos e o verei hoje ou amanhã no mais tardar. Por onde começar? Como agir para não desperdiçar o tempo do bom Deus e ver tudo na França? Há dias só vejo cenas tenebrosas. Vamos ao salão do Louvre, casa do ex-tirano, lá verei todos os belos quadros que ele possuía, os Rubens, os Poussin.80 Ande logo.” Enquanto isso, levantou-se para ter uma panorâmica de seu bairro. Um céu cinza, fosco, lama escura sob árvores brancas, uma população atarefada e apressada e um barulho peculiar, igual ao murmúrio da água correndo — foi tudo que lhe apareceu. Flores, havia poucas. Hoffmann fechou a janela, tomou café e saiu, planejando encontrar o amigo Zacharias Werner. Quando se viu na rua, contudo, lembrou que Werner nunca lhe dera seu endereço, sem o qual seria difícil encontrá-lo. O que foi um desapontamento e tanto para Hoffmann. No mesmo instante, ele pensou: “Que pateta eu sou: Zacharias gosta das mesmas coisas que eu. Apetece-me contemplar alguns quadros, ele quererá o mesmo. Encontrarei ou ele ou seu rastro no Louvre. Vamos ao Louvre.” Do parapeito da janela no hotel, via-se o Louvre. Hoffmann dirigiu-se em linha reta até o monumento. Na porta do museu, entretanto, teve o dissabor de ouvir que os franceses, uma vez libertos, não se rebaixavam mais diante da pintura de escravos. Por outro lado, admitindo, algo improvável, que a Comuna de Paris ainda não houvesse incinerado toda aquela arte vagabunda para acender o forno dos armamentos, os franceses fariam de tudo para não alimentar, com o óleo daquelas tintas, ratos destinados ao repasto dos patriotas, se um dia os prussianos viessem sitiar Paris.81 A testa de Hoffmann suava. O homem que explicava aquilo tinha uma maneira de se exprimir que sugeria certa importância. Cumprimentavam efusivamente o falastrão. Um dos presentes deu a saber a Hoffmann que ele tivera a honra de falar com o cidadão Simon,82 governador dos filhos de França e curador dos museus reais. “Não verei nenhum quadro”, suspirou Hoffmann, “que lástima! Pois, já que não temos pintura, irei à biblioteca do finado rei e lá verei estampas, medalhas e manuscritos, sem falar na tumba de Quilderico, pai de Clóvis, e nos globos celeste e terrestre do padre Coronelli.”83

O cidadão Simon. Ao chegar, Hoffmann sofreu nova decepção, pois tomou conhecimento de que, considerando a ciência e a literatura uma fonte de corrupção e falta de civismo, a nação francesa fechara todas as instituições nas quais pretensos cientistas e literatos conspiravam, e tudo por uma questão de humanidade, a fim de poupar-se o trabalho de guilhotinar aqueles pobres-diabos. Aliás, mesmo sob o reinado do tirano, a biblioteca abria apenas duas vezes na semana. Hoffmann foi obrigado a retirar-se sem nada ter visto, esquecendo-se inclusive de pedir notícias do amigo Zacharias. Contudo, como era teimoso, perseverou e quis visitar o Museu SainteAvoy e.84 Disseram-lhe então que o proprietário havia sido guilhotinado na antevéspera. Foi até o Luxemburgo,85 mas o palácio fora transformado em prisão. No fim de suas forças e desanimado, tomou de volta o caminho do hotel, pensando em descansar um pouco as pernas, sonhar com Antônia, com Zacharias e fumar na solidão umas duas horas de um bom cachimbo. Mas, ó prodígio, o cais das Flores, tão calmo e deserto, achava-se tomado por uma multidão que se agitava e vociferava de maneira desarmoniosa. Hoffmann, que não era alto, nada conseguia enxergar por cima dos ombros de toda aquela gente. Apressando-se, furou a multidão com seus cotovelos pontudos e retornou ao seu quarto. Pôs-se à janela. Todos os olhares voltaram-se imediatamente para ele, que, notando poucas janelas abertas, ficou momentaneamente encabulado. Entretanto, a curiosidade dos espectadores logo se dirigiu para outro ponto, além da janela de Hoffmann, e o rapaz imitou os curiosos, mirando o portão de um grande prédio escuro, com telhados agudos, cujo campanário coroava uma robusta torre quadrada. Hoffmann chamou a hoteleira. — Cidadã — disse ele —, que edifício é esse, por favor? — O Palácio, cidadão. — E o que se faz no Palácio? — No Palácio da Justiça, cidadão? Julga-se. — Eu pensava que não houvesse mais tribunais. — Como não? Há o tribunal revolucionário. — Ah, é verdade… e toda essa boa gente? — Espera a chegada das carroças. — Como assim, das carroças? Desculpe, não entendo muito bem, sou estrangeiro. — Cidadão, as carroças são uma espécie de papa-defuntos dos que vão morrer. — Ah, meu Deus! — Pois é, e pela manhã chegam os prisioneiros a serem julgados pelo tribunal revolucionário. — Percebo.

O Palácio da Justiça. — Às quatro horas, todos os prisioneiros são julgados e postos nas carroças que o cidadão Fouquier requereu para esse fim. — Quem é esse cidadão Fouquier? — O promotor público. — Muito bem, e depois? — E depois as carroças avançam lentamente em direção à praça da Revolução, onde a guilhotina tem lugar cativo. — É verdade?! — O quê! Saiu e não viu a guilhotina! É a primeira coisa que os estrangeiros visitam ao chegar. Parece que nós, franceses, somos os únicos a ter guilhotinas. — Meus parabéns, senhora. — Fale cidadã. — Perdão. — Veja, as carroças estão chegando… — Vai retirar-se, cidadã? — Vou, perdi o gosto pela coisa. E a hoteleira fez menção de retirar-se. Hoffmann reteve-a delicadamente pelo braço. — Desculpe se lhe faço uma pergunta — disse ele. — Faça. — Por que disse que perdeu o gosto? Eu teria dito simplesmente “não gosto”. — Eis a história, cidadão. No começo, guilhotinavam-se os aristocratas, que diziam malvadíssimos. Estes mostravam-se tão altivos, insolentes e provocadores que a piedade não vinha molhar nossos olhos com facilidade. Assistíamos então prazerosamente. Era um belo espetáculo, a luta dos corajosos inimigos da nação contra a morte. Mas eis que um dia vejo subir na carroça um velhinho cuja cabeça batia nas grades do veículo. Foi doloroso. No dia seguinte, religiosas. Noutro dia, uma criança de catorze anos, e terminei vendo uma adolescente numa carroça e a mãe noutra, as duas pobres mulheres enviando-se beijos sem trocarem uma palavra. Estavam tão pálidas, tinham o olhar tão triste, um sorriso tão fatal nos lábios, com os dedos tão trêmulos e calejados mexendo-se sozinhos para modelar o beijo em suas bocas que jamais esquecerei aquele horrível espetáculo e jurei nunca mais me arriscar a vê-lo de novo. — Percebo, percebo! — disse Hoffmann, afastando-se da janela. — Então é assim? — É, cidadão. E agora, o que está fazendo? — Fechando a janela, cidadã. — Para quê? — Para não ver. — O senhor! Um homem! — Preste atenção, cidadã, estou em Paris para estudar arte e respirar liberdade. Pois bem! Se por infelicidade eu presenciasse um desses espetáculos que acaba de mencionar, se visse, cidadã, uma adolescente ou uma mulher com saudade da vida sendo arrastada para a morte, eu pensaria em minha noiva, a quem amo e que, talvez… Não, cidadã, não ficarei por muito mais tempo neste quarto. Há algum nos fundos da casa? — Schhh!, infeliz, está falando alto. Se meus assessores ouvirem… — Seus assessores! O que é isso, um assessor? — É o sinônimo republicano de lacaio. — Muito bem! Se os seus lacaios me ouvirem, o que acontecerá? — Acontecerá que, dentro de três ou quatro dias, eu poderei vê-lo, dessa mesma janela, numa das carroças às quatro da tarde. Falando com ares de mistério, a boa senhora desceu precipitadamente e Hoffmann imitou-a. Esgueirou-se para fora de casa, decidido a tudo para evitar o espetáculo popular. Chegando à esquina do cais, o sabre dos gendarmes brilhou, estourou um tumulto, a multidão gritou e acorreu. Hoffmann disparou em direção à rua Saint-Denis, na qual entrou feito louco. Como uma corça, ziguezagueou por várias ruelas e desapareceu naquele dédalo inextricável entre o cais do Ferro-Velho e Les Halles. Respirou finalmente vendo-se na rua dos Ferreiros, na qual, com a sensibilidade do poeta e do pintor, reconheceu a famosa praça, local do assassinato de Henrique IV.86 Em seguida, sempre caminhando, sempre procurando, viu-se em plena rua Saint-Honoré, onde as lojas foram se fechando conforme ele passava. Hoffmann admirava a tranquilidade do bairro. As lojas não se fechavam sozinhas, as janelas de algumas casas eram vedadas num determinado ritmo, como se houvessem recebido um sinal. Hoffmann não demorou a entender a manobra. Viu os fiacres desviarem e tomarem as ruas laterais. Ouviu um galope de cavalos e reconheceu policiais. Atrás deles, na primeira névoa da noite, percebeu uma confusão terrível de andrajos, braços erguidos, chuços brandidos e olhos flamejantes. Dominando tudo, uma carroça. Do turbilhão que o alcançava, sem que ele pudesse se esconder ou fugir, Hoffmann ouviu saírem gritos tão agudos, tão dolorosos, que nada que ouvira na vida, por mais pavoroso, chegara perto. Na carroça estava uma mulher vestida de branco. Aqueles gritos emanavam dos lábios, da alma, de todo o seu corpo amotinado. Hoffmann sentiu as pernas fraquejarem. Aqueles gritos haviam rompido suas fibras nervosas. Ele se apoiou em um marco da rua, com a cabeça recostada nas persianas entreabertas de uma loja fechada às pressas. A carroça alcançou o centro de sua escolta de bandidos e mulheres medonhas, os satélites de sempre. Porém, estranho, toda aquela borra não fervilhava, todos aqueles répteis não coaxavam, apenas a vítima contorcia-se nos braços de dois homens, implorando socorro a céu, terra, homens e coisas. Hoffmann ouviu subitamente, pela fresta da persiana, estas palavras tristemente pronunciadas por uma voz jovem: — Pobre du Barry!87 Quem diria! — A sra. du Barry! — exclamou Hoffmann. — É ela, é ela que está passando na carroça! — Sim, senhor — respondeu a voz grave e dolente no ouvido do viajante, tão próxima que, através das persianas, ele sentia o bafejo quente do interlocutor. A pobre du Barry mantinha-se ereta e agarrada aos caibros trepidantes da carroça. Os cabelos castanhos, ponto alto de sua beleza, embora tonsurados na nuca, caíam sobre suas têmporas em longas mechas inundadas de suor. Bela, com seus olhos grandes e perplexos, a boca pequena, muito pequena para os terríveis gritos que emitia, a infeliz mulher às vezes sacudia a cabeça num movimento convulsivo, a fim de desvencilhar seu rosto dos cabelos que o encobriam. Quando passou defronte ao marco no qual Hoffman caíra sentado, ela gritou: “Socorro! Salvem-me! Eu não fiz mal a ninguém! Socorro!” Quase derrubou o assistente do carrasco que a ajudava a se equilibrar. “Socorro!”, repetiu aos gritos, em meio ao mais profundo silêncio dos espectadores. Aquelas fúrias, acostumadas a insultar os bravos condenados, sentiam-se tocadas diante do irreprimível acesso de pavor de uma mulher, percebendo que seus impropérios não seriam capazes de cobrir todos os gemidos daquela febre que beirava a loucura e atingia o sublime do terrível. Hoffmann levantou-se, não sentindo mais o coração no peito. Pôs-se a correr atrás da carroça como os demais, nova sombra acrescentada à procissão de espectros, derradeira escolta de uma favorita do rei. A sra. du Barry, encarando-o, ainda gritou: — A vida! A vida…! Lego todo o meu patrimônio à nação! Cavalheiro…! Salve-me! “Oh!” pensou o rapaz. “Ela falou comigo! Pobre mulher, cujos olhares custaram tão caro, cujas palavras não tinham preço. Ela falou comigo!” Deteve-se. A carroça acabava de chegar à praça da Revolução.88 Na penumbra, adensada por uma chuva fria, Hoffmann distinguia apenas duas silhuetas: uma branca, da vítima; a outra vermelha, do cadafalso. Viu os carrascos arrastarem a túnica branca pela escada. Viu aquela forma atormentada vergando-se para resistir. E, subitamente, em meio a gritos horrendos, viu a pobre mulher perder o equilíbrio e desabar sobre a báscula. Hoffmann ouviu-a gritar: “Misericórdia, sr. carrasco, apenas mais um minuto, sr. carrasco…”89 E isso foi tudo. O cutelo escorregou, fazendo respingar um fulgor roxo. Cambaleante, Hoffmann alcançou o fosso que contornava a praça. Era um belo quadro para um artista que vinha à França atrás de impressões e ideias. Deus acabava de lhe mostrar o crudelíssimo castigo daquela que contribuíra para a derrocada da monarquia. Hoffmann considerou aquela execução covarde de du Barry como a absolvição da pobre mulher. Ela jamais tivera orgulho, uma vez que sequer sabia morrer! Na época, lamentavelmente, saber morrer foi a virtude suprema dos que nunca haviam conhecido o vício. Nesse dia, Hoffmann refletiu que, se viera à França para ver coisas extraordinárias, não perdera a viagem. Um pouco consolado pela filosofia da história, ruminou: “Resta o teatro, vamos ao teatro. Sei perfeitamente que, depois da atriz que acabo de ver, as da ópera ou da tragédia não me impressionarão, mas serei indulgente. Não convém exigir muito de mulheres que só morrem no palco. Em todo caso vou prestar bastante atenção nesta praça para nunca mais pôr os pés aqui.”

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