domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 773 : Uma barreira de Paris em 1793

Uma barreira de Paris em 1793

Foi bastante triste a viagem do rapaz por aquela França tão ansiada. Não por ter de enfrentar, ao aproximar-se do centro, as mesmas dificuldades experimentadas na fronteira; não, a República francesa dava melhor acolhida aos que chegavam do que aos que partiam. Apesar disso, um indivíduo só era admitido na felicidade de saborear aquela insubstituível forma de governo após cumprir certo número de formalidades inimaginavelmente rigorosas. Embora tenha sido a época em que os franceses menos souberam escrever, foi quando mais escreveram. Parecia conveniente então, a todos os novos funcionários, abandonar suas ocupações domésticas ou artísticas para assinar passaportes, apresentar denúncias, conceder vistos, fazer recomendações, em suma, ocupar-se de tudo que concerne ao estado de patriota. A burocracia nunca evoluiu tanto como nessa época. Ao enxertar-se no terrorismo, essa doença endêmica da administração francesa produziu as mais belas amostras de garranchos de que já se ouvira falar até aquele dia. O passaporte de Hoffmann era de uma exiguidade notável. Era a época das exiguidades: jornais, livros, prospectos, tudo se limitava ao simples in-octavo,66 e olhe lá. Desde a Alsácia,67 o passaporte do nosso viajante, como dizíamos, foi invadido por assinaturas de funcionários que às vezes lembravam zigue-zagues de beberrões atravessando de lado as ruas e esbarrando num muro aqui e noutro acolá. Hoffmann, portanto, viu-se obrigado a acrescentar uma folha ao seu passaporte e depois outra na Lorena,68 onde as assinaturas ganharam proporções especialmente colossais. Ali, o patriotismo era mais ardoroso e os escribas, mais simplórios. Houve um prefeito que usou duas páginas, frente e verso, para dar a Hoffmann um autógrafo assim concebido: “Ófiman, jovi allemao, hamigo da libredade, indu a pé pra Paris. Açinado, Golier.” Munido desse admirável documento certificando sua pátria, sua idade, seus princípios, sua destinação e seus meios de transporte, Hoffmann tratou apenas de costurar todos aqueles retalhos cívicos, cabendo a nós dizer que, em sua chegada a Paris, possuía um belíssimo volume, o qual, segundo ele, mandaria encapar em metal se um dia voltasse a se aventurar em nova viagem, pois, de tanto manuseio, as folhas corriam grande risco estando encadernadas em simples papelão. Em toda parte lhe repetiam: — Meu caro forasteiro, a província continua habitável, mas Paris segue tumultuada. Desconfie, cidadão, há uma polícia bastante meticulosa em Paris e, na sua qualidade de alemão, poderia não ser tratado como bom francês. Ao que Hoffmann respondia com um sorriso altivo, reminiscência dos orgulhos espartanos de quando os espiões da Tessália procuravam engrossar as forças de Xerxes, rei dos persas.69 Chegou às portas de Paris. Era noite, as barreiras estavam fechadas. Hoffmann falava bem a língua francesa, mas ou um homem é alemão ou não é. Quando não é, tem um sotaque que se assemelha ao linguajar de uma de nossas províncias; quando é, de pronto acaba identificado como alemão. Convém detalhar a vigilância nas barreiras. A princípio, elas ficavam fechadas. Em seguida, sete ou oito seccionários,70 gente ociosa e esbanjando inteligência, Lavaters amadores,71 rondavam em destacamentos, fumando seus cachimbos, em torno de dois ou três agentes da polícia municipal. Essa brava gente, que, de missão em missão, terminou por assombrar todas as salas de clubes, todos os escritórios distritais, todos os lugares onde a política se esgueirara de forma ativa ou passiva, essa gente que vira delatados na Assembleia Nacional ou na Convenção 72 todos os deputados; nas tribunas, todos os aristocratas machos e fêmeas; nas calçadas, todos os elegantes; nos teatros, todas as celebridades suspeitas; nas revistas de tropa, todos os oficiais; e vira ainda, nos tribunais, todos os réus mais ou menos inocentados; nas prisões, todos os padres poupados — esses dignos patriotas conheciam tão bem sua Paris que todo rosto, se muito marcante, devia dizer-lhes alguma coisa, e na verdade quase sempre dizia. Não era fácil passar despercebido nessa época: muita riqueza na roupa chamava a atenção, muita simplicidade despertava a suspeita. Como a sujeira era um dos sinais de civismo mais difundidos, todo carvoeiro, aguadeiro ou cozinheiro podia esconder um aristocrata. E a mão branca de belas unhas, como a dissimular completamente? E o andar aristocrático, ausente agora em nossos dias, e que entretanto fazia os mais humildes parecerem estar calçando os saltos mais altos, como escondê-lo a vinte pares de olhos, aguçados como nem os de um sabujo em ação ficariam? Tão logo chegava, portanto, o forasteiro era revistado, interrogado, despido moralmente com a sem-cerimônia instalada pelo hábito e a liberdade permitida… pela liberdade. Hoffmann compareceu perante esse tribunal por volta das seis horas da tarde do dia 7 de dezembro. O céu estava cinza, hostil, misturando neblina e granizo. Mas os gorros de urso e de lontra que aprisionavam as cabeças patriotas deixavam-lhes sangue quente suficiente, no cerebelo e nos ouvidos, para que conservassem toda a presença de espírito e suas preciosas faculdades de investigação. Hoffmann foi detido por certa mão, delicadamente encostada em seu peito. O jovem forasteiro vestia um paletó cinza-chumbo, um grosso redingote e botas alemãs lhe desenhavam uma perna bastante graciosa, limpa por não ter encontrado lama desde a última escala, quando o avanço do coche foi interrompido pela geada, e brilhante graças à umidade na estrada ligeiramente salpicada pela neve dura, ao longo da qual Hoffmann andara por vinte e quatro quilômetros.

“Aonde vai desse jeito, cidadão, com essas botas reluzentes?” — Aonde vai desse jeito, cidadão, com essas botas reluzentes? — perguntou um agente ao rapaz. — A Paris, cidadão. — Não tem vergonha, jovem prusssssiano? — replicou o seccionário, pronunciando o epíteto “prussiano” com uma prodigalidade de “s” que fez com que dez curiosos rodeassem o forasteiro. Os prussianos naquele momento não eram menos inimigos da França do que os filisteus dos compatriotas de Sansão, o israelita.73 — Pois bem, sim, sou pruziano — respondeu Hoffmann, disfarçando o sotaque e trocando os cinco “s” do seccionário por um “z”. — Algum problema? — Ora, se é prussiano, com certeza também é um espiãozinho de Pitt e Cobourg.74 Hein? — Leia meu passaporte — respondeu Hoffmann, exibindo seu livreto a um dos alfabetizados da barreira. — Venha — replicou este, girando nos calcanhares para levar o estrangeiro ao corpo de guarda. Absolutamente calmo, Hoffmann acompanhou seu guia. Quando, à luz das lamparinas enfumaçadas, os patriotas viram aquele rapaz arisco, de olhar firme, cabelos desalinhados, mastigando seu francês com o máximo de consciência possível, um deles exclamou: — Este não negará que é aristocrata, ele tem mãos e pés! — Você é uma tolo, cidadão — rebateu Hoffmann. — Sou tão patriota quanto vocês e, além de tudo, sou uma artista. Dizendo tais palavras, tirou do bolso um daqueles cachimbos assustadores, cujo fundo apenas um nadador alemão é capaz de alcançar. O cachimbo teve um efeito extraordinário nos seccionários, que saboreavam o tabaco em modestos pitos. Puseram-se todos a contemplar o rapazola, que amassava no bojo do cachimbo, com habilidade fruto de grande prática, a provisão de tabaco de uma semana inteira. Em seguida, ele sentou-se, acendeu metodicamente o fumo, até que o fornilho apresentasse uma ampla crosta incandescente na superfície, e, em intervalos regulares, aspirou nuvens de fumaça que saíram em colunas azuladas e esbeltas de seu nariz e lábios. — Ele fuma bem — disse um dos seccionários. — Parece que é famoso — comentou outro. — Aqui estão suas certidões. — O que veio fazer em Paris? — perguntou um terceiro. — Estudar a ciência da liberdade — replicou Hoffmann. — E o que mais? — acrescentou o francês, pouco impressionado com o heroísmo de tal frase, provavelmente por ela ter virado lugar-comum. — A arte da pintura — acrescentou Hoffmann. — Ah, é pintor como o cidadão David?75 — Exatamente. — Sabe, como ele, fazer patriotas romanos nus em pelo? — Faço-os todos vestidos — respondeu Hoffmann. — É menos bonito. — Isso depende — replicou Hoffmann, com imperturbável sangue-frio. — Faça então o meu retrato — disse o seccionário, com admiração. — Será um prazer. Hoffmann pegou um tição na estufa, limitando-se a apagar sua ponta rutilante, e, na parede caiada de branco, desenhou um dos rostos mais feios que jamais desonraram a capital do mundo civilizado. O gorro peludo com cauda de raposa, os cantos da boca cheios de espuma, as suíças grossas, o cachimbo curto e o queixo fugidio foram imitados com tão rara precisão de verdade em sua caricatura que todos os guardas pediram ao rapaz o favor de ser dezenhado por ele. Hoffmann obedeceu de bom grado e esboçou na parede uma série de patriotas tão bem elaborados quanto os burgueses da Ronda noturna de Rembrandt,76 apesar de menos nobres, logicamente. Com os patriotas de bom humor, terminaram as suspeitas e o alemão foi naturalizado parisiense. Ofereceram-lhe uma cerveja de boas-vindas e ele, moço perspicaz, ofereceu a seus anfitriões vinho da Borgonha, que os cidadãos aceitaram de coração aberto. Foi então que um deles, mais esperto que os demais, agarrou seu próprio e grosso nariz fazendo um gancho com o indicador, e questionou-o, piscando o olho esquerdo. — Confesse uma coisa, cidadão alemão! — O quê, amigo? — O objetivo de sua missão. — Já lhe disse: política e pintura. — Não, não, outra coisa. — Tem minha palavra, cidadão. — Veja bem que não o estamos acusando. Simpatizamos com você e o protegeremos. Mas aqui estão dois delegados do clube dos Capuchinhos e dois jacobinos. Quanto a mim, sou do Irmãos e Amigos.77 Escolha a qual desses clubes você prestará sua homenagem.

Desenhou um dos rostos mais feios que jamais desonraram a capital do mundo civilizado. — Que homenagem? — indagou Hoffmann, surpreso. — Oh, não procure esconder, é tão bonito que deveria se pavonear por isso. — Sério, cidadão, você me deixa sem graça, explique-se. — Preste atenção e veja se não adivinhei — desafiou o patriota. Abrindo o registro dos passaportes, apontou com o dedo adiposo uma página na qual, sob a rubrica Estrasburgo, liam-se as seguintes linhas: “Hoffmann, viajante, procedente de Mannheim, despachou em Estrasburgo uma caixa assim etiquetada: ‘Frágil’.” — É verdade — disse Hoffmann. — Pois bem, o que contém essa caixa? — Fiz minha declaração à alfândega de Estrasburgo. — Vejamos, cidadãos, o que esse malandro bem-intencionado traz aqui… Lembram-se da remessa de nossos patriotas de Auxerre? — Sim — disse um deles —, uma caixa de toucinho. — Para fazer o quê? — perguntou Hoffmann. — Para lubrificar a guilhotina! — exclamou um coro de vozes satisfeitas. — Ora — assustou-se Hoffmann, empalidecendo um pouco —, que relação pode haver entre minha caixa e a remessa dos patriotas de Auxerre? — Leia — disse o parisiense, mostrando-lhe seu passaporte —, leia, rapaz: “Viajando pela política e pela arte.” Está escrito! — Ó República! — murmurou Hoffmann para si mesmo. — Confesse, portanto, jovem amigo da liberdade — intimou seu protetor. — Fazê-lo seria me gabar de uma ideia que não tive — admitiu Hoffmann. — Longe de mim vangloriar-me. Não, a caixa que despachei em Estrasburgo e que chegará pela transportadora contém apenas um violino, uma caixa de tintas e algumas telas enroladas. Essas palavras reduziram em muito a estima que alguns haviam concebido por Hoffmann. Devolveram-lhe seus papéis, aceitaram sua bebida, mas deixaram de vê-lo como um salvador dos povos escravos. Um dos patriotas chegou a acrescentar: — Ele se parece com Saint-Just,78 prefiro Saint-Just. Hoffmann, novamente mergulhado em seu devaneio, aquecido pela estufa, o tabaco e o vinho da Borgonha, permaneceu um tempo em silêncio. Bruscamente, porém, ergueu a cabeça e perguntou: — Guilhotina-se muito por aqui? — Dá para o gasto, dá para o gasto. A quantidade diminuiu um pouco depois dos brissotinos,79 mas ainda é satisfatória. — Sabem onde posso encontrar uma boa pousada, amigos? — Em qualquer lugar. — Mas e para ver todo o espetáculo? — Ah, hospede-se então para o lado do cais das Flores. — Ótimo. — Sabe onde fica o cais das Flores? — Não, mas a palavra “flores” me agrada. Já me vejo instalado no cais das Flores. Como chego lá? — Desça em linha reta a rua do Inferno e chegará ao cais. — Quer dizer que fica realmente junto da água! — exclamou Hoffmann. — Exatamente. — E a água é o Sena? — É o Sena. — O cais das Flores fica então na beira do Sena? — Conhece Paris melhor do que nós, cidadão alemão. — Obrigado. Adeus. Posso passar? — Tem apenas mais uma formalidade a cumprir. — Fale. — Deve passar no comissário de polícia e providenciar um visto. — Ótimo! Adeus. — Espere um pouco. Com essa autorização, você irá à polícia. — Ora, ora! — E fornecerá o endereço do seu hotel. — Muito bem. Terminou? — Não, você se apresentará à seção. — Para fazer o quê? — Para provar que tem recursos. — Farei tudo isso, mas então terei terminado? — Ainda não, faltará fazer doações patrióticas. — De bom grado. — E jurar ódio aos tiranos franceses e estrangeiros. — De todo o coração. Obrigado por essas valiosas informações. — E depois não deve se esquecer de escrever nome e sobrenome bem legíveis na tabuleta de sua porta. — Será feito. — Vá, cidadão, está atrapalhando nosso serviço. As garrafas estavam vazias. — Adeus, cidadãos, muito grato pela polidez. E Hoffmann partiu, sempre na companhia de seu cachimbo, mais aceso do que nunca. Eis como ele fez sua entrada na capital da França republicana. Aquele nome encantador, cais das Flores, abrira-lhe o apetite. Já se imaginava num quartinho cuja sacada desse para aquele maravilhoso cais. Esquecia-se de dezembro e dos ventos do norte, esquecia-se da neve e da morte temporária de toda a natureza. As flores acabavam de desabrochar em sua imaginação em meio ao vapor de seus lábios. Apesar dos esgotos da periferia, não via mais senão jasmins e rosas. Eram nove horas em ponto quando chegou ao cais das Flores, o qual se achava deserto e na mais completa escuridão, como são no inverno os cais do norte. Aquela noite, contudo, a solidão era mais escura e perceptível do que em outros quadrantes. Hoffmann sentia tanta fome e frio que não conseguia filosofar enquanto andava, mas não havia hotéis no cais. Erguendo os olhos, percebeu finalmente na esquina com a rua da Barricada uma grande lanterna vermelha, em cujos vidros tremulava uma luz baça. Aquele facho luminoso pendia e balançava na ponta de uma barra de ferro, bastante apropriada, naqueles tempos de revolta, para enforcar um inimigo político. Hoffmann viu apenas estes dizeres, em letras verdes, sobre o vidro vermelho: “Alojamentos para forasteiros a pé. Quartos e banheiros mobiliados.” Bateu apressadamente na porta, que se abriu para um corredor. Entrou às apalpadelas. Uma voz rude gritou-lhe: — Feche a porta! E um cachorro grande, latindo, pareceu completar: — Cuidado com as pernas. Preço combinado com uma hoteleira bastante atraente, quarto escolhido, Hoffmann viu-se dono de quatro metros de comprimento por dois e meio de largura, formando juntos um dormitório e um banheiro, mediante trinta soldos por dia, a serem pagos a cada manhã, ao levantar. Hoffmann estava tão alegre que pagou quinze dias adiantado com medo de que lhe viessem contestar a posse do precioso alojamento. Feito isso, deitou-se numa cama toda úmida, mas qualquer cama é cama para um viajante de dezoito anos. E depois, como ser exigente quando se tem a felicidade de estar hospedado no cais das Flores? Hoffmann, aliás, invocou a lembrança de Antônia. O Paraíso não está sempre ali onde invocamos os anjos? 

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