domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 772 : O juramento

O juramento

Talvez o leitor se pergunte, quer dizer, nos pergunte, como, tendo a mãe de Antônia morrido cantando, mestre Gottlieb Murr permitia que a filha, isto é, aquela alma de sua alma, se expusesse ao mesmo perigo que fizera a mãe sucumbir. No começo, quando ouvira Antônia balbuciar suas primeiras notas, o pobre pai tremera como a folha junto à qual o passarinho canta. Mas Antônia era um passarinho e o velho músico logo percebeu que o canto era sua língua de origem. Assim, ao emprestar à sua voz um alcance como talvez não houvesse igual no mundo, Deus indicara que mestre Gottlieb nada tinha a temer nesse sentido. Com efeito, quando ao dom natural do canto juntara-se o estudo da música, quando as dificuldades mais árduas do solfejo foram apresentadas à moça e vencidas prontamente com uma facilidade estarrecedora, sem esgares, sem piscadelas, sem esforço, sem tensionar uma veia de seu pescoço, ele compreendera a perfeição do instrumento e, como ao cantar os trechos anotados para as vozes mais altas Antônia permanecia sempre aquém de seu limite, ele se convencera de que não havia perigo algum em permitir que o doce rouxinol seguisse sua maviosa vocação. Mestre Gottlieb, entretanto, esquecera-se de que a corda musical não é a única a ressoar no coração das moças, havendo outra muito mais frágil, muito mais vibrante, muito mais mortal: a corda do amor! Esta havia se manifestado na pobre criança quando ela ouviu o som do arco de Hoffmann. Curvada sobre um bordado no quarto contíguo àquele onde se encontravam o rapaz e o velho, Antônia levantara a cabeça assim que o primeiro trinado varou o ar. Pusera-se então a escutar. Aos poucos uma sensação estranha penetrara em sua alma, percorrendo suas veias em calafrios desconhecidos. Ela ergueu-se lentamente, apoiando uma das mãos na cadeira, enquanto a outra deixava escapar o bordado dos dedos entreabertos. Ficou imóvel por um instante e avançou, cautelosamente, até a porta, como relatamos, sombra sonhada da vida material, até aparecer, poética visão, à porta do gabinete de mestre Gottlieb Murr. Vimos como a música diluíra, em sua retorta incandescente, aquelas três almas numa só, e como, ao fim do concerto, Hoffmann transformara-se num comensal da casa. Era a hora em que o velho Gottlieb costumava pôr-se à mesa. Ele convidou Hoffmann para jantar, convite que o rapaz aceitou com a mesma cordialidade com que fora feito. Então, por alguns instantes, a bela e poética virgem dos cânticos divinos transformou-se em singela dona de casa. Antônia serviu chá como Clarisse Harlowe, preparou torradas com manteiga como Charlotte62 e terminou por se instalar igualmente à mesa e comer feito uma simples mortal. Os alemães não entendem a poesia como a entendemos. Em nossa sociedade afetada, a mulher que come e bebe perde a poesia. Se uma mulher jovem e bonita acha-se à mesa é para presidir à refeição. Se tem um copo à sua frente, é para nele depositar suas luvas, se é que deve tirá-las. Se tem um prato, é para nele beliscar, no fim da refeição, uma uva, da qual a imaterial criatura consente às vezes em sorver os grãos mais dourados, como faz a abelha com uma flor. Nada mais natural, pela acolhida que tivera na casa de mestre Gottlieb, que Hoffmann lá voltasse no dia seguinte, no outro e nos subsequentes. No que se refere a mestre Gottlieb, aquela assiduidade das visitas de Hoffmann não parecia preocupá-lo em nada. Antônia era por demais pura, casta e obediente ao pai para que o velho suspeitasse de uma indignidade de sua parte. Sua filha era santa Cecília,63 era a Virgem Maria, era um anjo dos céus. Nela, a essência divina prevalecia de tal forma sobre a matéria terrena que o velho nunca julgara apropriado ensinar-lhe sobre o perigo maior existente no contato de dois corpos do que na união de duas almas. Hoffmann, portanto, estava feliz, isto é, tão feliz quanto é permitido a uma criatura mortal. O sol da alegria nunca ilumina completamente o coração do homem; sempre há, em certos pontos desse coração, uma mancha escura lembrando que a felicidade completa não existe neste mundo, mas apenas no céu. Hoffmann, no entanto, levava uma vantagem sobre o comum da espécie. Um homem quase nunca é capaz de explicar a causa da dor que fustiga o seu bem-estar, da sombra que, obscura e negra, se projeta sobre sua radiosa felicidade. Hoffmann sabia o que o deixava infeliz. Era a promessa feita a Zacharias Werner de ir encontrar-se com ele em Paris. Era o estranho desejo de visitar a França, que se eclipsava tão logo ele se achava na presença de Antônia, mas voltava a raiar quando ficava a sós. Mas não era só isso: à medida que o tempo passava e as cartas de Zacharias, invocando a palavra do amigo, tornavam-se mais enfáticas, Hoffmann mergulhava na tristeza. Com efeito, a presença da moça não era mais suficiente para expulsar o fantasma que agora o perseguia. Mesmo ao seu lado, Hoffmann caía em devaneios profundos. Com que sonhava? Com Zacharias Werner, cuja voz parecia ouvir. Muitas vezes, seu olho, distraído no início, terminava por se fixar num ponto do horizonte. O que via aquele olho, ou melhor, julgava ver? A estrada de Paris. Depois, numa das curvas dessa estrada, Zacharias caminhando na frente e fazendo-lhe sinal para que o seguisse. Aos poucos o fantasma, que antes aparecia para Hoffmann em intervalos raros e desiguais, passou a visitá-lo com maior regularidade, terminando por persegui-lo obstinadamente. Seu amor por Antônia só fez aumentar. Contudo, mesmo sabendo que ela era necessária à sua vida e à felicidade de seu futuro, Hoffmann sentia que, antes de se lançar naquela felicidade e para que tal felicidade fosse duradoura, precisava realizar a peregrinação planejada ou, caso contrário, o desejo encerrado em seu coração, por mais estranho que fosse, iria devorá-lo aos poucos. Um dia, quando, sentado perto de Antônia, enquanto mestre Gottlieb copiava em seu gabinete o Stabat de Pergolese, que pretendia apresentar na Sociedade Filarmônica de Frankfurt, Hoffmann caíra num daqueles devaneios habituais, Antônia, após observá-lo demoradamente, tomou-lhe as mãos. — Você deve ir, querido — disse. Hoffmann olhou-a, perplexo. — Ir? — repetiu. — E para onde? — Para a França, até Paris. — E quem lhe revelou, Antônia, esse desejo secreto do meu coração, que a mim mesmo não ouso confessar? — Eu poderia me atribuir o dom de uma fada, Theodor, e declarar: “Li no seu pensamento, li nos seus olhos, li em seu coração”, mas estaria mentindo. Não, apenas me lembrei, só isso. — E do que se lembrou, querida Antônia? — Ora, na véspera do dia em que você foi à casa de meu pai, Zacharias Werner lá estivera e nos falara desse plano de viagem, de seu desejo ardente de ver Paris, desejo acalentado durante quase um ano e prestes a se realizar. Mais tarde, você me contou o que o impedira de partir, como, ao me ver pela primeira vez, foi tomado pelo mesmo sentimento irresistível que me arrebatou ao ouvi-lo, e agora só lhe resta me dizer que me ama da mesma forma. Hoffmann esboçou um gesto. — Não se dê esse trabalho: eu sei — continuou Antônia. — Porém existe alguma coisa cujo poder supera esse amor, é o desejo de ir à França, de encontrar Zacharias, de ver Paris, enfim. — Antônia! — exclamou Hoffmann. — O que acaba de dizer é tudo verdade, exceto num ponto: ao acreditar em alguma coisa no mundo mais forte que o meu amor! Não, juro-lhe, Antônia, esse desejo, tão estranho que me foge ao controle, eu o teria sepultado em meu coração se você mesma não o houvesse arrancado de lá. Mas você está certa. Sim, há uma voz que me chama a Paris, uma voz mais forte que a minha vontade. Contudo, repito, à qual eu não teria obedecido. Essa voz é a do destino! — Seja. Cumpramos nosso destino, meu querido. Você partirá amanhã. Quanto tempo precisa? — Um mês, Antônia. Dentro de um mês, estarei de volta. — Um mês não lhe bastará, Theodor. Em um mês não terá visto nada. Doulhe dois, dou-lhe três: dou-lhe o tempo que quiser, enfim, mas exijo uma coisa, ou melhor, duas coisas de você. — Quais são, querida Antônia, quais? Não hesite em dizer. — Amanhã é domingo, dia de missa. Olhe pela janela como olhou no dia da partida de Zacharias Werner e, como naquele dia, querido, somente um pouco mais triste, me verá subir os degraus da igreja. Venha então juntar-se a mim no lugar de costume, sente-se então ao meu lado e, no momento em que o padre estiver consagrando o sangue de Nosso Senhor, faça-me dois juramentos: ser fiel a mim e não jogar. — Oh, tudo que quiser, agora mesmo, querida Antônia, eu juro. — Fale baixo, Theodor, amanhã. — Antônia, Antônia, você é um anjo. — E agora, que vamos nos despedir, não teria alguma coisa a dizer a meu pai? — Sim, tem razão. Mas, na verdade, confesso-lhe, Antônia, hesito, tremo. Meu Deus! Quem sou eu para ousar ter a esperança de…? — Você é o homem que eu amo, Theodor. Vá procurar meu pai, vá. E, fazendo a Hoffmann um sinal com a mão, abriu a porta de um quartinho transformado por ela em oratório. Hoffmann não tirou os olhos da moça até que a porta se fechasse e, através da porta, enviou-lhe, junto com todos os beijos de sua boca, todo o fervor de seu coração. Entrou em seguida no gabinete de mestre Gottlieb. O velho habituara-se de tal modo ao passo de Hoffmann que sequer ergueu os olhos de sua mesa, onde copiava o Stabat. O rapaz entrou e permaneceu de pé atrás dele. No fim de um instante, não ouvindo mais nada, sequer a respiração do rapaz, mestre Gottlieb se mexeu. — Ah, é você, rapaz — constatou, girando a cabeça a fim de enxergar Hoffmann através dos óculos. — Veio me dizer alguma coisa? Hoffmann abriu a boca, mas fechou-a sem articular um som. — Ficou mudo? — perguntou o velho. — Ora, seria um grande azar! Um rapagão como você, tão desinibido quando quer, não pode perder a língua assim, a menos que seja castigo por ter abusado dela! — Não, mestre Gottlieb, não, não perdi a língua, graças a Deus. Porém, o que tenho a lhe dizer… — E então? — E então!… é coisa difícil. — Que bobagem! Será então muito difícil dizer: “Mestre Gottlieb, amo sua filha”? — O senhor já sabia, mestre Gottlieb? — Como não? E seria completamente louco, ou muito tolo, se não houvesse percebido seu amor. — E mesmo assim permitiu que eu continuasse a amá-la. — Por que não, visto que ela também o ama? — Mas, mestre Gottlieb, o senhor sabe que não possuo fortuna. — Ora, os passarinhos possuem alguma fortuna? Eles piam, acasalam-se, constroem um ninho e Deus os alimenta. Nós, artistas, somos muito parecidos com os passarinhos. Nós cantamos e Deus vem em nossa ajuda. Quando o canto não bastar, você será pintor; quando a pintura for insuficiente, você será músico. Eu não era mais rico que você quando me casei com minha desventurada Teresa. Pois bem, nunca nos faltaram nem pão nem teto. Sempre precisei de dinheiro, mas ele nunca me faltou. Você é rico de amor? É tudo que lhe pergunto. Merece o tesouro que ambiciona? É tudo que desejo saber. Ama Antônia, mais que sua vida, mais que sua alma? Então estou tranquilo, a Antônia nunca nada faltará. Não a ama tanto assim? A coisa muda de figura: mesmo com cem mil libras de renda, sempre lhe faltaria tudo. Hoffmann estava quase de joelhos diante daquela adorável filosofia do artista. Inclinou-se diante da mão do velho, que o puxou para si e o abraçou. — Vamos, vamos — disse-lhe. — Já acertamos tudo. Faça sua viagem, uma vez que a ânsia de ouvir aquela música medonha dos srs. Méhul e Dalayrac64 o atormenta. É uma doença de juventude, da qual logo se verá curado. Estou tranquilo; faça essa viagem, meu amigo, volte e aqui reencontrará Mozart, Beethoven, Cimarosa, Pergolese, Paisiello, Porpora e, de quebra, mestre Gottlieb e sua filha, isto é, um pai e uma esposa. Vá, mocinho, vá. E mestre Gottlieb beijou Hoffmann novamente, o qual, percebendo que anoitecia, julgou não ter mais tempo a perder e foi para o hotel onde fixara residência, a fim de preparar-se para a viagem. Logo na manhã do dia seguinte, Hoffmann posicionou-se em sua janela. À medida que se aproximava o momento de deixar Antônia, a separação lhe parecia cada vez mais impossível. Todo o fascinante período de sua vida que mal terminara, aqueles sete meses que haviam passado como um dia e que ressurgiam em sua memória, ora como um vasto horizonte que ele abraçava num relance, ora como uma série de dias alegres e ininterruptos, uns depois dos outros, sorridentes e coroados de flores, os cantos maviosos de Antônia, que o haviam cercado de uma atmosfera repleta de doces melodias — todos esses eram atrativos tão poderosos que ele parecia estar em luta com um desconhecido e maravilhoso feiticeiro que traz para junto de si os corações mais fortes e as almas mais frias. Às dez horas, Antônia apareceu na esquina da rua onde, àquela mesma hora, sete meses antes, Hoffmann a vira pela primeira vez. A boa Lisbeth, sua velha criada, a seguia como de costume. Ambas subiram os degraus da igreja. Ao chegar ao último degrau, Antônia voltou-se, avistou Hoffmann, chamou-o com a mão e entrou na igreja. Hoffmann se lançou para fora de casa e entrou atrás dela na igreja. Antônia já estava ajoelhada e em oração. Hoffmann era protestante e, embora cânticos em outra língua sempre lhe houvessem parecido assaz ridículos, ao ouvir Antônia entoar aquele hino de igreja tão doce e grandioso ao mesmo tempo, lamentou não saber os versos para misturar sua voz à de Antônia, suavizada mais ainda pela profunda melancolia que a envolvia. Durante todo o tempo que durou o santo sacrifício, ela cantou com a mesma voz com que os anjos devem cantar no céu. Então, finalmente, quando a sineta do coroinha anunciou a consagração da hóstia, no momento em que os fiéis curvavam-se perante o Deus que, nas mãos do padre, eleva-se acima de suas cabeças, apenas Antônia ergueu a fronte. — Jure — disse ela. — Juro — obedeceu Hoffmann, com uma voz trêmula. — Juro abandonar o jogo. — É o único juramento que pretende fazer, querido? — Oh, não, espere! Juro ser-lhe fiel de coração e espírito, de corpo e alma. — E jura em nome de…? — Oh! — exclamou Hoffmann, no auge da exaltação. — Em nome do que há de mais caro, do que tenho de mais sagrado, pela sua vida! — Obrigada — exclamou Antônia por sua vez —, pois, se não cumprir com sua palavra, morrerei. Hoffmann estremeceu, um calafrio percorreu seu corpo de cima a baixo. Não se arrependeu, teve apenas medo. O padre descia os degraus do altar, transportando o Santo Sacramento para a sacristia. No momento em que o corpo divino de Nosso Senhor passava, Antônia agarrou a mão de Hoffmann e proferiu: — Ouviu esse juramento, meu Deus? Hoffmann quis falar. — Silêncio, silêncio, por favor: quero que as palavras de seu juramento, as últimas que terei escutado de sua boca, sussurrem eternamente em meus ouvidos. Até breve, querido, até breve. E, escapando ligeira como uma sombra, a moça deixou um camafeu na mão do noivo. Hoffmann viu-a afastar-se como Orfeu deve ter visto Eurídice em fuga.65 Quando Antônia saiu, ele abriu o camafeu. Este continha o retrato de Antônia, radiosa de juventude e beleza. Duas horas depois, Hoffmann ocupava seu lugar na mesma diligência que Zacharias Werner ocupara, repetindo: — Não se preocupe, Antônia, oh, não! Não vou jogar, e, sim!, eu serei fiel!




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