O juramento
Talvez o leitor se pergunte, quer dizer, nos pergunte, como, tendo a mãe de
Antônia morrido cantando, mestre Gottlieb Murr permitia que a filha, isto é,
aquela alma de sua alma, se expusesse ao mesmo perigo que fizera a mãe
sucumbir.
No começo, quando ouvira Antônia balbuciar suas primeiras notas, o pobre
pai tremera como a folha junto à qual o passarinho canta. Mas Antônia era um
passarinho e o velho músico logo percebeu que o canto era sua língua de origem.
Assim, ao emprestar à sua voz um alcance como talvez não houvesse igual no
mundo, Deus indicara que mestre Gottlieb nada tinha a temer nesse sentido. Com
efeito, quando ao dom natural do canto juntara-se o estudo da música, quando as
dificuldades mais árduas do solfejo foram apresentadas à moça e vencidas
prontamente com uma facilidade estarrecedora, sem esgares, sem piscadelas,
sem esforço, sem tensionar uma veia de seu pescoço, ele compreendera a
perfeição do instrumento e, como ao cantar os trechos anotados para as vozes
mais altas Antônia permanecia sempre aquém de seu limite, ele se convencera
de que não havia perigo algum em permitir que o doce rouxinol seguisse sua
maviosa vocação.
Mestre Gottlieb, entretanto, esquecera-se de que a corda musical não é a
única a ressoar no coração das moças, havendo outra muito mais frágil, muito
mais vibrante, muito mais mortal: a corda do amor!
Esta havia se manifestado na pobre criança quando ela ouviu o som do arco
de Hoffmann. Curvada sobre um bordado no quarto contíguo àquele onde se
encontravam o rapaz e o velho, Antônia levantara a cabeça assim que o primeiro
trinado varou o ar. Pusera-se então a escutar. Aos poucos uma sensação estranha
penetrara em sua alma, percorrendo suas veias em calafrios desconhecidos. Ela
ergueu-se lentamente, apoiando uma das mãos na cadeira, enquanto a outra
deixava escapar o bordado dos dedos entreabertos. Ficou imóvel por um instante
e avançou, cautelosamente, até a porta, como relatamos, sombra sonhada da
vida material, até aparecer, poética visão, à porta do gabinete de mestre Gottlieb
Murr.
Vimos como a música diluíra, em sua retorta incandescente, aquelas três
almas numa só, e como, ao fim do concerto, Hoffmann transformara-se num
comensal da casa.
Era a hora em que o velho Gottlieb costumava pôr-se à mesa. Ele convidou
Hoffmann para jantar, convite que o rapaz aceitou com a mesma cordialidade
com que fora feito.
Então, por alguns instantes, a bela e poética virgem dos cânticos divinos
transformou-se em singela dona de casa. Antônia serviu chá como Clarisse
Harlowe, preparou torradas com manteiga como Charlotte62 e terminou por se
instalar igualmente à mesa e comer feito uma simples mortal.
Os alemães não entendem a poesia como a entendemos. Em nossa sociedade
afetada, a mulher que come e bebe perde a poesia. Se uma mulher jovem e
bonita acha-se à mesa é para presidir à refeição. Se tem um copo à sua frente, é
para nele depositar suas luvas, se é que deve tirá-las. Se tem um prato, é para
nele beliscar, no fim da refeição, uma uva, da qual a imaterial criatura consente
às vezes em sorver os grãos mais dourados, como faz a abelha com uma flor.
Nada mais natural, pela acolhida que tivera na casa de mestre Gottlieb, que
Hoffmann lá voltasse no dia seguinte, no outro e nos subsequentes. No que se
refere a mestre Gottlieb, aquela assiduidade das visitas de Hoffmann não parecia
preocupá-lo em nada. Antônia era por demais pura, casta e obediente ao pai para
que o velho suspeitasse de uma indignidade de sua parte. Sua filha era santa
Cecília,63 era a Virgem Maria, era um anjo dos céus. Nela, a essência divina
prevalecia de tal forma sobre a matéria terrena que o velho nunca julgara
apropriado ensinar-lhe sobre o perigo maior existente no contato de dois corpos
do que na união de duas almas.
Hoffmann, portanto, estava feliz, isto é, tão feliz quanto é permitido a uma
criatura mortal. O sol da alegria nunca ilumina completamente o coração do
homem; sempre há, em certos pontos desse coração, uma mancha escura
lembrando que a felicidade completa não existe neste mundo, mas apenas no
céu.
Hoffmann, no entanto, levava uma vantagem sobre o comum da espécie.
Um homem quase nunca é capaz de explicar a causa da dor que fustiga o seu
bem-estar, da sombra que, obscura e negra, se projeta sobre sua radiosa
felicidade.
Hoffmann sabia o que o deixava infeliz.
Era a promessa feita a Zacharias Werner de ir encontrar-se com ele em
Paris. Era o estranho desejo de visitar a França, que se eclipsava tão logo ele se
achava na presença de Antônia, mas voltava a raiar quando ficava a sós. Mas
não era só isso: à medida que o tempo passava e as cartas de Zacharias,
invocando a palavra do amigo, tornavam-se mais enfáticas, Hoffmann
mergulhava na tristeza.
Com efeito, a presença da moça não era mais suficiente para expulsar o
fantasma que agora o perseguia. Mesmo ao seu lado, Hoffmann caía em
devaneios profundos. Com que sonhava? Com Zacharias Werner, cuja voz
parecia ouvir. Muitas vezes, seu olho, distraído no início, terminava por se fixar
num ponto do horizonte. O que via aquele olho, ou melhor, julgava ver? A estrada
de Paris. Depois, numa das curvas dessa estrada, Zacharias caminhando na
frente e fazendo-lhe sinal para que o seguisse.
Aos poucos o fantasma, que antes aparecia para Hoffmann em intervalos
raros e desiguais, passou a visitá-lo com maior regularidade, terminando por
persegui-lo obstinadamente.
Seu amor por Antônia só fez aumentar. Contudo, mesmo sabendo que ela era
necessária à sua vida e à felicidade de seu futuro, Hoffmann sentia que, antes de
se lançar naquela felicidade e para que tal felicidade fosse duradoura, precisava
realizar a peregrinação planejada ou, caso contrário, o desejo encerrado em seu
coração, por mais estranho que fosse, iria devorá-lo aos poucos.
Um dia, quando, sentado perto de Antônia, enquanto mestre Gottlieb copiava
em seu gabinete o Stabat de Pergolese, que pretendia apresentar na Sociedade
Filarmônica de Frankfurt, Hoffmann caíra num daqueles devaneios habituais,
Antônia, após observá-lo demoradamente, tomou-lhe as mãos.
— Você deve ir, querido — disse.
Hoffmann olhou-a, perplexo.
— Ir? — repetiu. — E para onde?
— Para a França, até Paris.
— E quem lhe revelou, Antônia, esse desejo secreto do meu coração, que a
mim mesmo não ouso confessar?
— Eu poderia me atribuir o dom de uma fada, Theodor, e declarar: “Li no
seu pensamento, li nos seus olhos, li em seu coração”, mas estaria mentindo.
Não, apenas me lembrei, só isso.
— E do que se lembrou, querida Antônia?
— Ora, na véspera do dia em que você foi à casa de meu pai, Zacharias
Werner lá estivera e nos falara desse plano de viagem, de seu desejo ardente de
ver Paris, desejo acalentado durante quase um ano e prestes a se realizar. Mais
tarde, você me contou o que o impedira de partir, como, ao me ver pela primeira
vez, foi tomado pelo mesmo sentimento irresistível que me arrebatou ao ouvi-lo,
e agora só lhe resta me dizer que me ama da mesma forma.
Hoffmann esboçou um gesto.
— Não se dê esse trabalho: eu sei — continuou Antônia. — Porém existe
alguma coisa cujo poder supera esse amor, é o desejo de ir à França, de
encontrar Zacharias, de ver Paris, enfim.
— Antônia! — exclamou Hoffmann. — O que acaba de dizer é tudo verdade,
exceto num ponto: ao acreditar em alguma coisa no mundo mais forte que o meu
amor! Não, juro-lhe, Antônia, esse desejo, tão estranho que me foge ao controle,
eu o teria sepultado em meu coração se você mesma não o houvesse arrancado
de lá. Mas você está certa. Sim, há uma voz que me chama a Paris, uma voz
mais forte que a minha vontade. Contudo, repito, à qual eu não teria obedecido.
Essa voz é a do destino!
— Seja. Cumpramos nosso destino, meu querido. Você partirá amanhã.
Quanto tempo precisa?
— Um mês, Antônia. Dentro de um mês, estarei de volta.
— Um mês não lhe bastará, Theodor. Em um mês não terá visto nada. Doulhe
dois, dou-lhe três: dou-lhe o tempo que quiser, enfim, mas exijo uma coisa,
ou melhor, duas coisas de você.
— Quais são, querida Antônia, quais? Não hesite em dizer.
— Amanhã é domingo, dia de missa. Olhe pela janela como olhou no dia da
partida de Zacharias Werner e, como naquele dia, querido, somente um pouco
mais triste, me verá subir os degraus da igreja. Venha então juntar-se a mim no
lugar de costume, sente-se então ao meu lado e, no momento em que o padre
estiver consagrando o sangue de Nosso Senhor, faça-me dois juramentos: ser fiel
a mim e não jogar.
— Oh, tudo que quiser, agora mesmo, querida Antônia, eu juro.
— Fale baixo, Theodor, amanhã.
— Antônia, Antônia, você é um anjo.
— E agora, que vamos nos despedir, não teria alguma coisa a dizer a meu
pai?
— Sim, tem razão. Mas, na verdade, confesso-lhe, Antônia, hesito, tremo.
Meu Deus! Quem sou eu para ousar ter a esperança de…?
— Você é o homem que eu amo, Theodor. Vá procurar meu pai, vá.
E, fazendo a Hoffmann um sinal com a mão, abriu a porta de um quartinho
transformado por ela em oratório.
Hoffmann não tirou os olhos da moça até que a porta se fechasse e, através
da porta, enviou-lhe, junto com todos os beijos de sua boca, todo o fervor de seu
coração.
Entrou em seguida no gabinete de mestre Gottlieb.
O velho habituara-se de tal modo ao passo de Hoffmann que sequer ergueu
os olhos de sua mesa, onde copiava o Stabat. O rapaz entrou e permaneceu de pé
atrás dele.
No fim de um instante, não ouvindo mais nada, sequer a respiração do rapaz,
mestre Gottlieb se mexeu.
— Ah, é você, rapaz — constatou, girando a cabeça a fim de enxergar
Hoffmann através dos óculos. — Veio me dizer alguma coisa?
Hoffmann abriu a boca, mas fechou-a sem articular um som.
— Ficou mudo? — perguntou o velho. — Ora, seria um grande azar! Um
rapagão como você, tão desinibido quando quer, não pode perder a língua assim,
a menos que seja castigo por ter abusado dela!
— Não, mestre Gottlieb, não, não perdi a língua, graças a Deus. Porém, o que
tenho a lhe dizer…
— E então?
— E então!… é coisa difícil.
— Que bobagem! Será então muito difícil dizer: “Mestre Gottlieb, amo sua
filha”?
— O senhor já sabia, mestre Gottlieb?
— Como não? E seria completamente louco, ou muito tolo, se não houvesse
percebido seu amor.
— E mesmo assim permitiu que eu continuasse a amá-la.
— Por que não, visto que ela também o ama?
— Mas, mestre Gottlieb, o senhor sabe que não possuo fortuna.
— Ora, os passarinhos possuem alguma fortuna? Eles piam, acasalam-se,
constroem um ninho e Deus os alimenta. Nós, artistas, somos muito parecidos
com os passarinhos. Nós cantamos e Deus vem em nossa ajuda. Quando o canto
não bastar, você será pintor; quando a pintura for insuficiente, você será músico.
Eu não era mais rico que você quando me casei com minha desventurada
Teresa. Pois bem, nunca nos faltaram nem pão nem teto. Sempre precisei de
dinheiro, mas ele nunca me faltou. Você é rico de amor? É tudo que lhe pergunto.
Merece o tesouro que ambiciona? É tudo que desejo saber. Ama Antônia, mais
que sua vida, mais que sua alma? Então estou tranquilo, a Antônia nunca nada
faltará. Não a ama tanto assim? A coisa muda de figura: mesmo com cem mil
libras de renda, sempre lhe faltaria tudo.
Hoffmann estava quase de joelhos diante daquela adorável filosofia do
artista. Inclinou-se diante da mão do velho, que o puxou para si e o abraçou.
— Vamos, vamos — disse-lhe. — Já acertamos tudo. Faça sua viagem, uma
vez que a ânsia de ouvir aquela música medonha dos srs. Méhul e Dalayrac64 o
atormenta. É uma doença de juventude, da qual logo se verá curado. Estou
tranquilo; faça essa viagem, meu amigo, volte e aqui reencontrará Mozart,
Beethoven, Cimarosa, Pergolese, Paisiello, Porpora e, de quebra, mestre Gottlieb
e sua filha, isto é, um pai e uma esposa. Vá, mocinho, vá.
E mestre Gottlieb beijou Hoffmann novamente, o qual, percebendo que
anoitecia, julgou não ter mais tempo a perder e foi para o hotel onde fixara
residência, a fim de preparar-se para a viagem.
Logo na manhã do dia seguinte, Hoffmann posicionou-se em sua janela. À
medida que se aproximava o momento de deixar Antônia, a separação lhe
parecia cada vez mais impossível. Todo o fascinante período de sua vida que mal
terminara, aqueles sete meses que haviam passado como um dia e que
ressurgiam em sua memória, ora como um vasto horizonte que ele abraçava
num relance, ora como uma série de dias alegres e ininterruptos, uns depois dos
outros, sorridentes e coroados de flores, os cantos maviosos de Antônia, que o
haviam cercado de uma atmosfera repleta de doces melodias — todos esses
eram atrativos tão poderosos que ele parecia estar em luta com um desconhecido
e maravilhoso feiticeiro que traz para junto de si os corações mais fortes e as
almas mais frias.
Às dez horas, Antônia apareceu na esquina da rua onde, àquela mesma hora,
sete meses antes, Hoffmann a vira pela primeira vez. A boa Lisbeth, sua velha
criada, a seguia como de costume. Ambas subiram os degraus da igreja. Ao
chegar ao último degrau, Antônia voltou-se, avistou Hoffmann, chamou-o com a
mão e entrou na igreja.
Hoffmann se lançou para fora de casa e entrou atrás dela na igreja.
Antônia já estava ajoelhada e em oração.
Hoffmann era protestante e, embora cânticos em outra língua sempre lhe
houvessem parecido assaz ridículos, ao ouvir Antônia entoar aquele hino de
igreja tão doce e grandioso ao mesmo tempo, lamentou não saber os versos para
misturar sua voz à de Antônia, suavizada mais ainda pela profunda melancolia
que a envolvia.
Durante todo o tempo que durou o santo sacrifício, ela cantou com a mesma
voz com que os anjos devem cantar no céu. Então, finalmente, quando a sineta
do coroinha anunciou a consagração da hóstia, no momento em que os fiéis
curvavam-se perante o Deus que, nas mãos do padre, eleva-se acima de suas
cabeças, apenas Antônia ergueu a fronte.
— Jure — disse ela.
— Juro — obedeceu Hoffmann, com uma voz trêmula. — Juro abandonar o
jogo.
— É o único juramento que pretende fazer, querido?
— Oh, não, espere! Juro ser-lhe fiel de coração e espírito, de corpo e alma.
— E jura em nome de…?
— Oh! — exclamou Hoffmann, no auge da exaltação. — Em nome do que
há de mais caro, do que tenho de mais sagrado, pela sua vida!
— Obrigada — exclamou Antônia por sua vez —, pois, se não cumprir com
sua palavra, morrerei.
Hoffmann estremeceu, um calafrio percorreu seu corpo de cima a baixo.
Não se arrependeu, teve apenas medo.
O padre descia os degraus do altar, transportando o Santo Sacramento para a
sacristia.
No momento em que o corpo divino de Nosso Senhor passava, Antônia
agarrou a mão de Hoffmann e proferiu:
— Ouviu esse juramento, meu Deus?
Hoffmann quis falar.
— Silêncio, silêncio, por favor: quero que as palavras de seu juramento, as
últimas que terei escutado de sua boca, sussurrem eternamente em meus
ouvidos. Até breve, querido, até breve.
E, escapando ligeira como uma sombra, a moça deixou um camafeu na mão
do noivo.
Hoffmann viu-a afastar-se como Orfeu deve ter visto Eurídice em fuga.65
Quando Antônia saiu, ele abriu o camafeu.
Este continha o retrato de Antônia, radiosa de juventude e beleza.
Duas horas depois, Hoffmann ocupava seu lugar na mesma diligência que
Zacharias Werner ocupara, repetindo:
— Não se preocupe, Antônia, oh, não! Não vou jogar, e, sim!, eu serei fiel!
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