Antônia
Antônia pareceu mil vezes mais bonita a Hoffmann quando abriu a porta e
atravessou o umbral do que quando descera os degraus da igreja.
No espelho que acabava de refletir a imagem da moça, a apenas dois passos
dele, Hoffmann pudera captar num relance todas as belezas que lhe haviam
escapado a distância.
Antônia tinha apenas dezessete anos. Era de estatura média, mais para alta,
porém tão esguia sem magreza, e flexível sem fraqueza, que todas as
comparações de lírios balançando-se em ramagens ou palmas vergando ao vento
teriam sido insuficientes para descrever aquela morbidezza italiana, única palavra
da língua a exprimir razoavelmente a ideia de suave languidez sugerida por seu
aspecto. Sua mãe, como Julieta,46 era uma das mais belas flores da primavera
de Verona, e viam-se em Antônia, não diluídas mas em contraste, fazendo o
encanto da moça, os trunfos das duas raças que disputam os louros da beleza. A
delicadeza da pele das mulheres do Norte convivia com a pele fosca das
mulheres do Sul; seus cabelos louros, volumosos e leves ao mesmo tempo,
flutuando à menor brisa qual um vapor dourado, deixavam na sombra olhos e
sobrancelhas de veludo negro. E, fato ainda mais inusitado, era sobretudo em sua
voz que a mistura harmoniosa das duas línguas tornava-se perceptível. Desse
modo, quando Antônia falava alemão, a suavidade da formosa língua em que,
nas palavras de Dante, ressoa o sim, vinha amenizar a aspereza do sotaque
germânico.47 Ao contrário, quando falava italiano, a língua um tanto frouxa de
Metastásio e Goldoni48 adquiria a firmeza proporcionada pela poderosa dicção
da língua de Schiller e Goethe.
Antônia pareceu mil vezes mais bonita a Hof mann.
Mas não apenas no aspecto físico podia-se notar esse amálgama. No aspecto
moral, Antônia dava um exemplo maravilhoso e raro daquilo que poesias
antagônicas, o sol da Itália e as brumas da Alemanha, são capazes de reunir. Era
ao mesmo tempo uma musa e uma fada, a Lorelei da balada e a Beatrice da
Divina comédia.49
É que Antônia, artista por excelência, era filha de uma grande artista. Sua
mãe, acostumada à musica italiana, vira-se um dia arrebatada pela música
alemã. A partitura da Alceste de Gluck
50 caíra-lhe nas mãos e ela pedira ao
marido, mestre Gottlieb, que lhe mandasse traduzir o poema em italiano;
traduzido o poema em italiano, fora cantá-lo em Viena. Mas superestimara suas
forças, ou melhor, a admirável cantora não conhecia os limites da própria
sensibilidade. Na terceira récita da ópera, que fizera o maior sucesso, na
admirável ária de Alceste:
Divindades do Estige,51 ministros da morte,
Não invocarei sua piedade cruel.
Poupo a um terno esposo sua funesta sorte,
Mas entrego-lhe uma esposa fiel.
Quando alcançou o ré e tomou fôlego, empalideceu, vacilou, desmaiou: um
vaso rompera-se naquele peito tão generoso. O sacrifício aos deuses infernais
consumara-se na realidade: a mãe de Antônia morrera.
O pobre mestre Gottlieb, regendo a orquestra de sua poltrona, viu vacilar,
empalidecer, tombar aquela a quem amava acima de todas as coisas. Mais que
isso, ao ouvir romper-se em seu peito a fibra na qual a vida estava presa, lançou
um grito que se misturou ao último suspiro da virtuose.
Daí talvez o ódio que mestre Gottlieb votava aos mestres alemães; o cavaleiro
Gluck,52 muito inocentemente, matara sua Teresa, o que não era motivo para
odiá-lo menos. Mortalmente abatido por aquela dor profunda, só pudera aplacá-
la à medida que retransmitira a Antônia, enquanto a menina crescia, todo o amor
que dedicara à mãe.
Agora, aos dezessete anos, a moça representava tudo para o velho. Ele vivia
para Antônia, respirava por Antônia. Jamais a ideia da morte de Antônia lhe
passara pela cabeça, e, caso houvesse passado, não teria se preocupado muito,
visto que mal lhe ocorria sobreviver a ela.
Não foi com um sentimento menos entusiasta, embora esse sentimento fosse
mais puro ainda, que Hoffmann viu surgir Antônia na soleira do gabinete.
A jovem avançou lentamente. Duas lágrimas brilhavam em sua pálpebra e,
dando três passos em direção a Hoffmann, ela estendeu-lhe a mão.
Depois, num tom de casta intimidade, e como se conhecesse o rapaz há dez
anos, cumprimentou:
— Bom dia, irmão.
Mestre Gottlieb, mal se viu na presença da filha, emudeceu e se imobilizou.
Sua alma, como sempre, deixara seu corpo e, esvoaçando, cantava ao ouvido de
Antônia todas as melodias de amor e felicidade que canta um pai diante da filha
bem-amada.
Descansara então seu querido Antonio Amati sobre a mesa e, juntando
ambas as mãos como teria feito perante a Virgem, contemplava a chegada de
sua criança.
Quanto a Hoffmann, não sabia se estava acordado ou dormindo, se estava na
terra ou no céu, se era uma mulher que vinha em sua direção ou um anjo que lhe
aparecia.
Assim, quase deu um passo para trás quando viu Antônia aproximar-se e
estender-lhe a mão, chamando-o irmão. Exclamou, quase engasgando:
— A senhorita, minha irmã!
— Sim — disse Antônia —, não é o sangue que faz a família, é a alma. Todas
as flores são irmãs no perfume, todos os artistas são irmãos na arte. Nunca o vi, é
verdade, mas o conheço. Seu arco acaba de me contar sua vida. O senhor é um
poeta, com uma pitada de loucura, pobre amigo. Ai! É essa centelha ardente que
Deus aprisiona em nossa cabeça ou nosso peito, que nos queima o cérebro ou
consome o coração.
Depois, voltando-se para mestre Gottlieb:
— Bom dia, pai, por que ainda não beijou sua Antônia? Ah, já entendi, Il
matrimonio segreto, o Stabat mater, Cimarosa, Pergolese, Porpora, o que é
Antônia ao lado desses grandes gênios?53 Uma pobre criança que o ama, mas
que o senhor esquece por eles.
— Eu, esquecê-la! — exclamou Gottlieb. — O velho Murr esquecer Antônia!
O pai esquecer a filha! Pelo quê? Por algumas míseras notas musicais, por uma
mixórdia de semibreves e semínimas, de pretas e brancas, de sustenidos e
bemóis! Tem razão! Veja como a esqueço.
E, girando sobre sua perna torta com uma agilidade espantosa, com a outra
perna e as duas mãos o velho fez voar as partes de orquestração do Matrimonio
segreto, prontinhas para serem distribuídas aos músicos da orquestra.
— Papai! Papai! — suplicava Antônia.
— Fogo! Fogo! — gritou mestre Gottlieb. — Fogo, para que eu queime tudo
isso. Fogo, para queimar Pergolese! Fogo, para queimar Cimarosa! Fogo, para
queimar Paisiello! Fogo, para queimar meus Stradivarius! Meus Granuelo!54
Fogo, para o meu Antonio Amati! Minha filha, minha Antônia, não declarou que
eu preferia as cordas, a madeira e o papel à minha carne e ao meu sangue?
Fogo! Fogo! Fogo!!!
E o velho se agitava como um louco, saltitando sobre sua perna como o diabo
coxo, movendo os braços como um moinho de vento.
Antônia observava a loucura do pai com um doce sorriso de orgulho filial
satisfeito. Ela, que apenas se mostrara vaidosa diante dele, sabia perfeitamente
que governava o velho, que seu coração era um reino onde ela era soberana.
Interrompeu-o então no meio de suas evoluções e, atraindo-o para si, aplicou-lhe
um singelo beijo na testa.
O velho deu um grito de alegria, tomou a filha nos braços, agarrou-a como
faria com um passarinho e foi cair, após três ou quatro giros, sobre um grande
sofá, onde começou a niná-la como faz a mãe com o bebê.
No início, Hoffmann olhara mestre Gottlieb com terror. Vendo-o lançar as
partituras para cima e tomar a filha nos braços, julgara-o um louco furioso, um
possuído. Contudo, diante do sorriso tranquilo de Antônia, acalmara-se
imediatamente e, juntando com respeito as partituras espalhadas, recolocou-as
sobre as mesas e estantes de música, ao mesmo tempo em que observava
furtivamente a estranha dupla, na qual o próprio velho não deixava de ter sua
poesia.
De repente alguma coisa doce, suave, etérea atravessou o ar. Era um vapor,
uma melodia, alguma coisa ainda mais divina, era a voz de Antônia, que vestia a
fantasia de artista e atacava a composição de Stradella que por um milagre
salvara a vida de seu autor, a Pietà, Signore.55
Às primeiras vibrações daquela voz de anjo, Hoffmann permaneceu imóvel,
enquanto o velho Gottlieb, soerguendo lentamente a filha do colo, depositou-a,
deitada como ela se achava, no sofá. Em seguida, correndo até seu Antonio
Amati e fazendo coincidir o acompanhamento com os versos, passou a sublinhar
o canto de Antônia com a harmonia de seu arco e a sustentá-lo como o anjo
sustenta a alma a caminho do céu.
A voz de Antônia era soprano, possuindo toda a extensão que a prodigalidade
divina é capaz de emprestar não a uma voz de mulher, mas a uma voz de anjo.
Antônia percorria as cinco oitavas e meia. Emitia, com a mesma facilidade, o dó
de peito, nota divina que parece não pertencer senão aos concertos celestes, e o
da quinta oitava das notas graves. Nunca Hoffmann ouvira nada tão aveludado
como aqueles quatro primeiros compassos cantados sem acompanhamento,
“Pietà, Signore, di me dolene”.56 Essa aspiração a Deus por parte da alma
sofredora, prece ardente ao Senhor rogando piedade para o sofrimento que
chora, ganhava na boca de Antônia um sentimento de respeito divino semelhante
ao terror. Por sua vez, o acompanhamento, que recebera a frase flutuando entre
o céu e a terra, que a houvera, por assim dizer, tomado nos braços, após o lá
expirado, e que, piano, piano,57 repetia como que um eco da queixa, o
acompanhamento era em tudo digno da voz lastimosa e dorida. Exprimia-se não
em italiano, não em alemão, não em francês, mas nessa língua universal
chamada música:
Piedade, Senhor, piedade de mim, infeliz; piedade, Senhor, e se minha prece
chegar a ti, que teu rigor se desarme e que teus olhares, menos severos e mais
clementes, voltem-se para mim.
E não obstante, apesar de seguir e perseguir a voz, o acompanhamento
permitia-lhe toda a liberdade, toda a extensão. Era uma carícia, não um abraço,
um apoio, não um estorvo. E, quando no primeiro sforzando,58 quando, no ré e
nos dois fás, a voz alçou-se como se para tentar subir ao céu, o acompanhamento
pareceu temer então pesar-lhe como uma coisa terrena e quase a abandonou às
asas da fé, para voltar a sustentá-la apenas no mi bequadro, isto é, no
diminuendo,59 isto é, quando, cansada do esforço, a voz voltou a cair como que
enlanguescida, igual à madona de Canova,60 de joelhos, sentada em seu colo, na
qual tudo se recolhe, alma e corpo, esmagado por essa dúvida terrível: será que a
misericórdia do Criador é grande o bastante para fazer esquecer o erro da
criatura?
E, quando ela prosseguiu com a voz trêmula: “Que jamais eu venha a ser
amaldiçoada e precipitada no grande fogo eterno de teu rigor, ó grande Deus!”,
então o acompanhamento atreveu-se a misturar sua voz igualmente angustiada, a
qual, vislumbrando as chamas eternas, rogava ao Senhor que as afastasse. E o
violino rogou por sua vez, suplicou, gemeu, subiu com ela até o fá e desceu até o
dó, amparando-a na fraqueza, sustentando-a no terror. Enquanto a voz morria nas
profundezas do peito de Antônia, arfante e sem forças, o acompanhamento
prolongou-se após a voz extinta, assim como, depois da alma enlevada e já a
caminho do céu, continuam murmurantes e queixosas as preces dos
sobreviventes.
Às súplicas do violino de mestre Gottlieb, começou então a se misturar uma
harmonia inesperada, suave e poderosa ao mesmo tempo, quase celestial.
Antônia soergueu-se sobre o cotovelo, mestre Gottlieb voltou-se pela metade e
permaneceu com o arco suspenso sobre as cordas do violino. Hoffmann, a
princípio atônito, embriagado, em delírio, compreendeu logo que os arroubos
daquela alma precisavam de um pouco de esperança, ela se desintegraria se um
raio divino não lhe apontasse o céu, e então precipitou-se para o órgão e estendeu
seus dez dedos sobre as teclas ansiosas, e o instrumento, suspirando
profundamente, veio misturar-se ao violino de Gottlieb e à voz de Antônia.
Foi então maravilhoso o retorno do motivo Pietà, Signore, acompanhado por
aquela voz que, perseguida pelo terror na primeira parte, recuperara a
esperança. E, quando, transbordante de fé, tanto em seu talento como em sua
prece, Antônia atacou vigorosamente o fá do Volgi,61 um calafrio percorreu as
veias do velho Gottlieb e um grito escapou da boca de Hoffmann, que,
esmagando o Antonio Amati sob as torrentes de harmonia que escapavam do
órgão, prolongou a voz de Antônia após ela ter expirado e, sobre as asas não mais
de um anjo, mas de um furacão, pareceu conduzir o último suspiro daquela alma
aos pés do Senhor todo-poderoso e misericordioso.
Fez-se então um momento de silêncio. Os três entreolharam-se e, com as
almas comungando a mesma harmonia, suas mãos juntaram-se num enlace
fraternal.
A partir desse momento, não apenas Antônia chamava Hoffmann de irmão,
como o velho Gottlieb Murr passou a chamá-lo de filho!
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