domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 770 : Mestre Gottlieb Murr

Mestre Gottlieb Murr

Foi o maestro em pessoa quem veio abrir para Hoffmann. Hoffmann nunca vira mestre Gottlieb e, não obstante, o reconheceu. Por mais bizarro que fosse, só podia ser um artista, e, mais que isso, um grande artista. Era um velhote entre cinquenta e cinco e sessenta anos, com uma perna torta e, a despeito disso, não manquejando muito dessa perna, que parecia um sacarolha. Quando andava, ou melhor, saltitava, e seu saltito lembrava bastante o de um passarinho, quando saltitava e ultrapassava as pessoas que introduzia em sua casa, ele parava, fazia um corrupio sobre sua perna torta, parecendo cravar um prego no chão, e seguia adiante. Enquanto o seguia, Hoffmann examinava-o e gravava no espírito um dos retratos fantásticos e maravilhosos de que nos forneceu, em suas obras, tão completa galeria. O rosto do velho expressava entusiasmo, ao mesmo tempo malicioso e inteligente, forrado por uma pele de pergaminho, mosqueada de vermelho e preto como uma partitura de cantochão. No centro dessa estranha figura brilhavam dois olhos penetrantes, cuja intensidade ficava ainda mais nítida quando os óculos que usava, e jamais tirava, nem dormindo, eram erguidos sobre a testa ou descidos até a ponta do nariz, o que ele fazia constantemente. Mas apenas quando tocava violino, levantando a cabeça e olhando ao longe, realmente fazia uso do pequeno apetrecho, que em sua casa parecia antes um objeto de luxo do que de necessidade. Calvo, nunca se desfazia de uma touca preta, que se tornara parte integrante de sua pessoa. Fosse dia, fosse noite, mestre Gottlieb recebia suas visitas de touca. Só ao sair admitia cobri-la com uma pequena peruca à la Jean-Jacques,21 o que fazia com que a touca se espremesse entre o crânio e a peruca. Escusado dizer que mestre Gottlieb nunca deu a mínima para o pedaço de veludo que aparecia sob seus cabelos falsos, os quais, combinando mais com a touca do que com a cabeça, acompanhavam-na em sua excursão aérea todas as vezes que mestre Gottlieb cumprimentava uma pessoa.

O rosto do velho expressava entusiasmo, ao mesmo tempo malicioso e inteligente… Hoffmann olhou ao redor e não viu ninguém. Seguiu então mestre Gottlieb aonde mestre Gottlieb (que, como dissemos, caminhava à sua frente) houve por bem levá-lo. O maestro Gottlieb deteve-se num amplo gabinete repleto de partituras empilhadas e pautas espalhadas. Sobre a mesa, dez ou doze caixas mais ou menos ornamentadas, todas com um formato diante do qual o músico não se engana, isto é, o de estojos de violino. Naquele momento, mestre Gottlieb estava produzindo uma ópera para o teatro de Mannheim, arriscando-se a usar como libreto Il matrimonio segreto, de Cimarosa.22 Um arco, um sabre de madeira, atravessava o seu cinto, ou melhor, achavase preso numa algibeira abotoada de sua calça. Uma pena apontava insolentemente atrás de sua orelha, e seus dedos estavam todos manchados de tinta. Com esses dedos, ele pegou a carta que Hoffmann lhe apresentava e, dando uma espiada para ver o remetente, reconhecendo a letra, divagou: — Ah, Zacharias Werner, poeta, poeta sim, mas jogador. Depois, como se a qualidade corrigisse um pouco o defeito, acrescentou: — Jogador, jogador sim, mas poeta. Em seguida, abrindo a carta, perguntou: — Ele viajou, não viajou? — Está de partida neste momento, senhor. — Deus o ilumine — suspirou Gottlieb, erguendo os olhos para o céu, como se para recomendar o amigo ao Todo-Poderoso. — Mas ele fez bem em partir. As viagens formam a mocidade. Se eu não tivesse viajado, não teria conhecido o imortal Paisiello,23 o divino Cimarosa… — Ora — atalhou Hoffmann —, nem por isso conheceria menos suas obras, mestre Gottlieb. — Sim, as obras certamente. Mas o que é conhecer a obra sem o artista? É conhecer a alma sem o corpo. A obra é o espectro, a aparição, é o que resta de nós após a morte. Mas, note bem, o corpo é o que viveu. Você jamais compreenderá inteiramente a obra de um homem se não conhecer o próprio homem. Com a cabeça, Hoffmann assentiu. — É verdade — concordou —, tanto que só vim a gostar de Mozart depois de conhecer o próprio Mozart.24 — Sim, sim — exclamou Gottlieb —, Mozart tem coisas boas, mas por que tem coisas boas? Porque viajou à Itália. A música alemã, rapaz, é a música dos homens, mas a música italiana, guarde bem isto, é a música dos deuses. — Contudo — rebateu Hoffmann, sorrindo —, não foi na Itália que Mozart fez As bodas de Fígaro e Don Giovanni, já que uma foi feita em Viena para o imperador e a outra em Praga para o Teatro Italiano. — É verdade, rapaz, é verdade, e me agrada ver o espírito nacional sair em defesa de Mozart. Não resta dúvida, se o pobre-diabo tivesse tido tempo para mais uma ou duas viagens à Itália, ele seria um mestre, um grande mestre. Mas esse Don Giovanni e essas Bodas de Fígaro que você menciona, foram compostas a partir do quê? A partir de libretos italianos, versos italianos, à luz do sol de Bolonha, Roma ou Nápoles. Creia-me, rapaz, esse sol, é preciso tê-lo visto e sentido para apreciá-lo em seu justo valor. Eu, por exemplo, faz quatro anos que não vou à Itália; pois faz quatro anos que tirito de frio, exceto quando penso na Itália. Só o pensamento da Itália me aquece. Não preciso de sobretudo quando penso na Itália, não preciso de paletó, nem de touca preciso. A lembrança me ressuscita: ó música de Bolonha, ó sol de Nápoles! E o semblante do velhinho exprimiu, por um momento, uma beatitude suprema, e todo o seu corpo pareceu estremecer num gozo infinito, como se as torrentes do sol meridional, ainda irrigando sua cabeça, corressem de sua fronte calva para os seus ombros e de seus ombros para toda a sua pessoa. Hoffmann, naturalmente, evitou arrancá-lo daquele êxtase, aproveitando para observar à sua volta, ainda esperançoso de ver Antônia. Mas as portas estavam fechadas e, atrás delas, não se ouvia nenhum barulho que indicasse a presença de um ser vivo. Foi obrigado então a voltar-se para mestre Gottlieb, cujo êxtase aplacava-se gradualmente e que terminou por sair dele com uma espécie de sacudidela. — Brrrrr! Você dizia, meu rapaz…? — interpelou-o. Hoffmann sentiu um calafrio. — Eu dizia, mestre Gottlieb, que venho da parte de meu amigo Zacharias Werner, que me falou de sua bondade para com os jovens, e como sou músico… — Ah, é músico? E Gottlieb reergueu-se, levantou a cabeça, jogou-a para trás e, através de seus óculos, momentaneamente pousados nos últimos confins do nariz, olhou para Hoffmann. — Sim, sim — acrescentou —, cabeça de músico, testa de músico, olho de músico… E faz o quê? É compositor ou instrumentista? — Ambos, mestre Gottlieb. — Ambos! — repetiu mestre Gottlieb. — Ambos! Esses moços não têm juízo. Seria preciso a vida inteira de um homem, de dois homens, de três homens, para alguém ser um ou outro, e eles são um e outro. E executou o seu corrupio, levantando os braços para o céu e parecendo estar furando o assoalho com o saca-rolha de sua perna direita. Terminada a pirueta e parando diante de Hoffmann, inquiriu-o: — Vejamos, jovem presunçoso, o que realizou em matéria de composição? — Ora, sonatas, cânticos sagrados, quintetos.25 — Sonatas depois de Sebastian Bach! Cânticos sagrados depois de Pergolese! Quintetos depois de Joseph Hay dn!26 Ah, mocidade, mocidade! Com um sentimento de profunda piedade, prosseguiu: — E como instrumentista, como instrumentista? Qual é o seu instrumento? — Praticamente todos, desde a rabeca até o cravo, desde a viola d’amore até a tiorba,27 mas o instrumento a que mais venho me dedicando é o violino. — Quer dizer — zombou mestre Gottlieb — que você resolveu prestar essa homenagem ao violino? Nossa, que sorte a do pobre violino! Por acaso — acrescentou, indo na direção de Hoffmann, saltitando sobre uma única perna para chegar mais rápido — sabe o que é o violino, infeliz? O violino! — e mestre Gottlieb equilibrou o corpo sobre aquela perna única de que falamos, a outra permanecendo suspensa como a de uma ave pernalta —, o violino! Ora, é o instrumento mais difícil de todos, o violino foi inventado pelo próprio Satã para levar o homem à danação, e isso quando ele já havia esgotado sua reserva de invenções. Com o violino, veja, Satã desencaminhou mais almas do que com os sete pecados capitais juntos. Basta ver o imortal Tartini,28 Tartini, meu mestre, meu herói, meu deus, basta vê-lo, o único a atingir a perfeição no violino. Mas só ele sabe o que lhe custou neste mundo, e no outro, haver tocado uma noite inteira com o violino do próprio diabo e lhe surripiado o arco. Oh, violino! Sabe, infeliz profanador, que sob sua simplicidade quase miserável esse instrumento esconde os mais inesgotáveis tesouros de harmonia que o homem pode beber na taça dos deuses? Estudou essa madeira, essas cordas, esse arco, essa crina, sobretudo a crina? Porventura espera reunir, combinar, domar sob seus dedos esse conjunto maravilhoso, que há dois séculos resiste às investidas dos mais sagazes, que se queixa, que geme, que se lamenta sob seus dedos e que jamais cantou senão sob os dedos do imortal Tartini, meu mestre? Quando empunhou um violino pela primeira vez, pensou no que fazia, rapaz? Mas você não é o primeiro — acrescentou Gottlieb, com um suspiro arrancado do fundo das entranhas —, nem será o último que o violino terá consumido, violino, eterno tentador! Outros além de você julgaram-se predestinados e desperdiçaram suas vidas maltratando suas cordas, você só irá aumentar o número de infelizes, já tão numerosos, tão inúteis à sociedade, tão insuportáveis para seus semelhantes. Então, de repente e sem transição, agarrando um violino e um arco como um mestre de esgrima agarra dois floretes, apresentando-os a Hoffmann, exclamando com ares de desafio: — Pois muito bem, toque alguma coisa! Vamos, toque e lhe direi em que pé está e, se ainda houver tempo de puxá-lo do precipício, assim farei, como fiz com o desventurado Zacharias Werner. Ele também tocava violino, tocava com furor, com raiva. Sonhava milagres, mas chamei-o à razão. Ele espatifou o violino e tocou fogo. Aninhei então um contrabaixo em suas mãos e consegui acalmá-lo. Ali havia espaço para seus dedos compridos e magros. No começo, ele suou, mas agora, agora toca suficientemente bem para adular o tio, ao passo que, se houvesse insistido com o violino, estaria adulando o diabo. Vamos, vamos, rapaz, eis um violino, mostre o que sabe. Hoffmann pegou o violino e o examinou. — Sim, sim — disse mestre Gottlieb —, está se perguntando por sua procedência, como o gourmet cheira o vinho a ser bebido. Belisque uma corda, uma só, e, se o ouvido não lhe soprar o nome de quem fez o violino, você não é digno de tocá-lo. Hoffmann puxou uma corda, a qual devolveu um som vibrante, prolongado, fremente. — É um Antonio Stradivarius29 — afirmou. — Nada mal, mas de que época da vida de Stradivarius? Vamos parar para pensar, ele fez muitos violinos entre 1698 e 1728.

“Vamos, vamos, rapaz, eis um violino, mostre o que sabe.” — Ah, quanto a isso — admitiu Hoffmann —, confesso minha ignorância e me parece impossível… — Impossível, herege, impossível!? É como se me declarasse, infeliz, ser impossível conhecer a idade do vinho ao prová-lo. Preste atenção: tão verdade quanto hoje é dia 10 de maio de 1793, este violino foi fabricado durante a viagem que o imortal Antonio fez de Cremona a Mântua em 1705, deixando a oficina nas mãos de seu primeiro aluno. Portanto, como pode ver, este Stradivarius, sinto-me bem à vontade para afirmar, é simplesmente de terceira categoria. Muito receio, porém, que ainda seja bom demais para um criançola como você. Ande, toque! Hoffmann apoiou o violino no ombro e, não sem um aperto no coração, executou algumas variações sobre o tema de Don Giovanni. La ci darem’ la mano.30 Mestre Gottlieb manteve-se de pé, diante de Hoffmann, marcando o andamento simultaneamente com a cabeça e com a ponta do pé de sua perna torta. À medida que Hoffmann tocava, seu rosto ganhava vida, seus olhos brilhavam, seu maxilar superior comprimia o lábio inferior, e, de ambos os lados do beiço achatado, saíam dois dentes, que na posição normal ele estava destinado a esconder mas que, no momento, apontavam como duas presas de javali. Por fim, um allegro,31 no qual Hoffmann saiu-se muito bem, fez com que mestre Gottlieb mexesse ligeiramente a cabeça, quase sugerindo um sinal de aprovação. Hoffmann concluiu com um démanché32 que julgava dos mais brilhantes, mas que, longe de satisfazer o velho músico, suscitou-lhe uma careta medonha. Em todo caso, sua fisionomia foi resserenando e, batendo no ombro do rapaz, ele concedeu: — Pensando bem, é menos ruim do que eu esperava. Quando esquecer tudo o que aprendeu, quando não der mais esses pulinhos na moda, quando refrear esses arroubos saltitantes e esses démanchés estridentes, faremos alguma coisa de você. Esse elogio, vindo de homem tão difícil como o velho músico, deixou Hoffmann radiante. E ele não esquecia, por afogado que estivesse no oceano musical, que mestre Gottlieb era o pai da bela Antônia. Então, agarrando no ar as palavras que acabavam de brotar da boca do velho: — E quem se encarregará de fazer alguma coisa de mim? — perguntou — É o senhor, mestre Gottlieb? — Por que não, rapaz, por que não, caso se disponha a escutar o velho Murr? — É o que farei, mestre, e o quanto quiser. — Oh — murmurou o velhinho com certa melancolia, pois seu olhar se projetava no passado, pois sua memória retrocedia a outros tempos —, o que conheci de virtuoses! Conheci Corelli,33 por tradição, é verdade. Foi ele quem inaugurou a estrada, quem abriu o caminho. Ou se toca à maneira de Tartini ou melhor desistir. Ele foi o primeiro a vislumbrar que o violino era, se não um deus, pelo menos o templo de onde um deus podia sair. Depois dele, vem Pugnani,34 violino aceitável, inteligente, mas frouxo, muito frouxo, sobretudo em alguns appogiamenti.35 Depois, Geminiani,36 este, vigoroso, mas vigoroso aos arrancos, sem transições. Fui a Paris expressamente para vê-lo, assim como você quer ir a Paris para ver o teatro da Ópera. Um maníaco, meu amigo, um sonâmbulo, minha criança, um homem que gesticulava sonhando, especialista no tempo rubato,37 fatal tempo rubato, que mata mais instrumentistas que a varíola, que a febre amarela, que a peste. Então eu tocava para ele minhas sonatas no estilo do imortal Tartini, meu mestre, e foi quando ele admitiu seu erro. Infelizmente, o aluno estava enfiado até o pescoço no método. Ele tinha setenta e um anos, a pobre criança! Quarenta anos antes, eu o teria salvado, como fiz com Giardini.38 Este, eu peguei a tempo, mas, infelizmente, ele era incorrigível. O diabo em pessoa se apossara de sua mão esquerda e então ele ia, ia, ia num ritmo tão veloz que sua mão direita não conseguia acompanhá-lo. Eram extravagâncias, pulinhos, démanchés de dar epilepsia num holandês. Por exemplo, num dia em que na presença de Jommelli39 ele assassinava um trecho magnífico, o bom Jommelli, que era o homem mais valente do mundo, desfechou-lhe uma bofetada tão rude que Giardini ficou um mês com a bochecha inflamada e Jommelli, três semanas com uma luxação no pulso. É, como Lulli, um louco, um verdadeiro louco, um dançarino de corda bamba, um acrobata intrépido, um equilibrista sem vara, cujas mãos deveriam manejar não um arco, mas uma vara. Ai de mim — exclamou tristemente o velhinho —, digo sem nenhuma esperança: com Nardini e comigo extingue-se a refinada arte de tocar violino, arte que Orfeu, o mestre de todos, praticava para atrair animais, mover pedras e construir cidades. Ao invés de construir como o celestial violino, nós demolimos como as trombetas malditas. Se um dia os franceses entrarem na Alemanha e quiserem derrubar as muralhas de Philipsburg que tantas vezes assediaram, bastarão quatro violinistas conhecidos meus, mandados para executar, diante dessas portas, um simples concerto. O velho tomou fôlego e acrescentou num tom mais suave: — Sei muito bem que há Viotti,40 um aluno meu, menino cheio de boas intenções, mas impaciente, desavergonhado, sem método. Quanto a Giarnowicki, trata-se de um presunçoso, de um ignorante, e a primeira coisa que determinei à minha velha Lisbeth, se algum dia ouvisse aquele nome pronunciado à minha porta, foi que a fechasse sem hesitar. Há trinta anos Lisbeth está comigo! Pois bem, preste atenção, rapaz, eu expulso Lisbeth se ela permitir que Giarnowicki entre aqui em casa. Um sármata, um welche,41 que se atreveu a falar mal do mestre dos mestres, do imortal Tartini. Oh, àquele que me trouxer a cabeça de Giarnowicki prometo as aulas e conselhos que quiser. Quanto a você, garoto — continuou o velho, voltando a Hoffmann —, você não é forte, é verdade, mas Rode e Kreutzer,42 meus alunos, não o superavam nesse quesito. Quanto a você, eu dizia, ao vir procurar mestre Gottlieb, ao se dirigir a mestre Gottlieb, ao se fazer recomendar a ele por um homem que o conhece e aprecia, pelo desatinado Zacharias Werner, você prova que nesse peito bate um coração de artista. Portanto, rapaz, veja que agora não é mais um Antonio Stradivarius que desejo colocar em suas mãos, não, tampouco é um Granuelo,43 esse velho mestre que o imortal Tartini estimava tanto que não admitia outro em suas mãos. Não, é num Antonio Amati,44 é no antepassado, é no ancestral, é no primeiro caule de todos os violinos já fabricados, é no instrumento que será o dote de minha filha Antônia que desejo ouvi-lo, é no arco de Ulisses, veja, e quem for capaz de retesar o arco de Ulisses será digno de Penélope.45 E então o velho abriu o estojo de veludo decorado em ouro e dele retirou um violino que fazia parecer nunca haverem existido violinos e que Hoffmann só se lembrava de ter visto, se é que viu, nos concertos fantásticos de seus tios e tias. Curvando-se diante do venerável instrumento e mostrando-o a Hoffmann, disse-lhe: — Tome e trate de merecê-lo. Hoffmann inclinou-se, pegou o instrumento com respeito e esboçou um velho estudo de Bach. — Bach, Bach — murmurou Gottlieb. — No órgão, vá lá, mas de violino ele não entendia nada. Não importa. Ao primeiro som que extraíra do instrumento, Hoffmann estremecera, pois, eminente músico, compreendia o tesouro de harmonia que acabavam de colocar em suas mãos. O arco, semelhante a uma cimitarra de tão curvo, permitia ao instrumentista atacar as quatro cordas ao mesmo tempo, e a última corda alcançava tonalidades celestiais, tão maravilhosas que jamais Hoffmann pudera sonhar que a mão humana produzisse som tão divino. Enquanto isso, o velho não lhe saía do lado. Com a cabeça jogada para trás e os olhos piscando, incentivava-o: — Nada mal, rapaz, nada mal. A direita, a direita, a mão esquerda é apenas o movimento, a direita é a alma. Vamos, alma, alma, alma! Hoffmann percebia claramente que o velho Gottlieb estava com a razão e que, como dissera no primeiro teste, ele teria de desaprender tudo que sabia. Fazendo então uma transição imperceptível, mas consistente e crescente, passou do pianíssimo ao fortíssimo, da carícia à ameaça, do trovão ao raio, e perdeu-se numa torrente de harmonia que ele erguia como uma nuvem e deixava cair novamente em cachoeiras murmurantes, em pérolas líquidas, em poeira úmida. Achava-se sob a influência de uma situação inédita, de um estado limítrofe do êxtase, quando subitamente sua mão esquerda descansou sobre as cordas, o arco morreu em sua mão, o violino deslizou de seu peito e seus olhos quedaram-se fixos e ardentes. A porta acabava de se abrir e, no espelho diante do qual se apresentava, Hoffmann vira aparecer, qual uma sombra evocada por uma harmonia celestial, a bela Antônia, boquiaberta, peito opresso, olho úmido. Hoffmann deixou escapar um grito de prazer, não restando a mestre Gottlieb outra saída senão salvar o venerável Antonio Amati, que ia caindo das mãos do jovem instrumentista.


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