Um apaixonado e um louco
No momento em que algumas pessoas deixavam a igreja dos Jesuítas, embora a
celebração da missa ainda estivesse pela metade, e para elas estava voltada toda
a atenção de Hoffmann, bateram na sua porta.
O rapaz balançou a cabeça e bateu o pé numa reação de impaciência, mas
não respondeu.
Bateram novamente.
Um olhar iracundo foi fulminar o indiscreto através da porta.
Bateram uma terceira vez.
Dessa vez, o rapaz imobilizou-se por completo. Estava visivelmente decidido
a não abrir.
Porém, em vez de se obstinar em bater, o visitante contentou-se em
pronunciar um dos prenomes de Hoffmann:
— Theodor… — disse ele.
— Ah, é você, Zacharias Werner15 — murmurou Hoffmann.
— Sim, sou eu. Faz questão de ficar sozinho?
— Não, espere.
E Hoffmann foi abrir.
Um rapaz alto e pálido, magro e louro, um pouco atordoado, entrou. Podia ter
três ou quatro anos a mais que Hoffmann. Quando a porta se abriu, ele pôs a mão
em seu ombro e os lábios em sua testa, como poderia ter feito um irmão mais
velho.
Zacharias Werner.
Era, com efeito, um verdadeiro irmão para Hoffmann. Nascido na mesma
casa que ele, Zacharias Werner, futuro autor de Martinho Lutero, Átila, O 24 de
fevereiro e Cruz do Báltico, crescera sob a dupla proteção de sua mãe e da mãe
de Hoffmann.
As duas mulheres, ambas acometidas por uma doença nervosa que terminou
em loucura, haviam transmitido aos filhos a enfermidade, que, atenuada pela
transmissão, traduzia-se numa imaginação fantástica em Hoffmann e numa
tendência à melancolia em Zacharias. A mãe deste último, a exemplo da
Virgem, julgava-se incumbida de uma missão divina. Seu filho, seu Zacharias,
deveria ser o novo Cristo, o futuro Siloé16 prometido pelas Escrituras. Enquanto
ele dormia, ela lhe tecia coroas de miosótis, com as quais cingia sua fronte.
Ajoelhava-se diante dele, cantando, com sua voz doce e harmoniosa, os mais
belos cânticos de Lutero, esperando a cada versículo ver a coroa de miosótis
transformar-se em auréola.
Os dois meninos foram criados juntos. Tinha sido principalmente porque
Zacharias morava em Heidelberg, onde estudava, que Hoffmann fugira da casa
de seu tio, e Zacharias, por sua vez, pagando-lhe amizade com amizade, fora
encontrá-lo em Mannheim, quando este lá procurava uma música melhor do que
a encontrada em Heidelberg.
Porém, uma vez reunidos, uma vez em Mannheim, longe da autoridade de
mãe tão meiga, os dois rapazes haviam tomado gosto pelas viagens, esse
complemento indispensável da educação do estudante alemão, e resolveram
visitar Paris.
Werner, por causa do estranho espetáculo oferecido pela capital da França
em meio ao período de terror que atravessava; Hoffmann, a fim de comparar a
música francesa com a italiana e, sobretudo, para estudar os recursos do grande
teatro da ópera francesa, no tocante à direção e aos cenários. Hoffmann
cultivava, desde essa época, a ideia que alimentou a vida inteira: ser diretor de
teatro.
Além disso, Werner, libertino por temperamento, apesar de religioso por
criação, tinha grandes esperanças de usufruir, para deleite próprio, da peculiar
liberdade de costumes a que se chegara em 1793, e da qual um de seus amigos,
recém-chegado de uma viagem a Paris, fizera descrição tão sedutora que virara
a cabeça do voluptuoso estudante.
Hoffmann pretendia visitar museus, a respeito dos quais ouvira maravilhas, e,
ainda vacilante em seu estilo, comparar a pintura italiana à alemã.
Aliás, quaisquer que fossem os motivos secretos que impeliam os dois
amigos, o desejo de visitar a França era igual em ambos.
Para realizarem tal desejo, só lhes faltava uma coisa: dinheiro.
Contudo, por uma singular coincidência, o acaso quisera que Zacharias e
Hoffmann recebessem no mesmo dia cinco fredericos de ouro de suas mães.
Dez fredericos de ouro perfaziam quase duzentas libras. Era uma bela soma
para dois estudantes que viviam hospedados, aquecidos e alimentados a cinco
táleres por mês. Mas era uma quantia muito aquém da necessária para
realizarem a famosa viagem planejada.
Ocorrera uma ideia aos dois rapazes, e, como a ideia ocorrera
simultaneamente a ambos, tomaram-na por uma inspiração celestial: era ir jogar
e arriscar cada um seus cinco fredericos de ouro.
Com aqueles dez fredericos, nenhuma viagem era possível. Arriscando-os,
poderiam ganhar soma suficiente para uma volta ao mundo.
Dito e feito: a estação das águas se aproximava e desde1ºde maio as casas de
jogo estavam abertas. Werner e Hoffmann entraram numa delas.
Werner foi o primeiro a tentar a sorte, perdendo, em cinco tentativas, seus
cinco fredericos de ouro.
Chegara a vez de Hoffmann.
Tremendo, Hoffmann arriscou seu primeiro frederico de ouro e ganhou.
Animado com aquele início, dobrou a aposta. Hoffmann estava num dia de
sorte, ganhando quatro rodadas em cinco, e, como era daqueles que depositavam
toda a confiança no destino, em vez de hesitar foi em frente, dobrando suas
apostas a cada jogada. Era como se um poder sobrenatural o assessorasse. Sem
nada planejado, sem cálculo algum, apostava seu ouro numa carta e seu ouro
duplicava, triplicava, quintuplicava. Zacharias, mais trêmulo que uma pessoa
com febre, mais pálido que um espectro, murmurava: “Chega, Theodor, chega”,
mas o jogador zombava daquela timidez pueril. Ouro sucedia a ouro, que
engendrava ouro. Soaram finalmente as duas horas da manhã, horário de
fechamento do cassino, o jogo foi interrompido. Os dois rapazes pegaram sem
contar seus pacotes de ouro. Zacharias, mal conseguindo acreditar que toda
aquela fortuna lhe pertencia, foi o primeiro a sair; Hoffmann ia segui-lo, quando
um velho oficial, que não o perdera de vista durante todo o tempo em que jogara,
interpelou-o quando estava na porta.
— Moço — disse ele, pousando-lhe a mão no ombro e olhando-o fixamente
—, se continuasse nesse ritmo, iria estourar a banca, concordo, mas, quando isso
acontecer, o senhor não passará de um alvo ainda mais fácil para o diabo.
E, sem esperar pela resposta de Hoffmann, desapareceu. Hoffmann saiu, por
sua vez, porém não era mais o mesmo. A profecia do velho soldado fora um
banho de água fria, e aquele ouro, abarrotando seus bolsos, pesou-lhe. Sentia-se
carregando um fardo de iniquidades.
Werner esperava-o, animadíssimo. Voltaram juntos para a casa de
Hoffmann, um rindo, dançando e cantando; o outro, pensativo, quase triste. O que
ria, dançava e cantava era Werner; o que se mostrava pensativo e quase triste era
Hoffmann. Mesmo assim, resolveram partir na noite seguinte para a França.
Despediram-se com um abraço.
Ficando a sós, Hoffmann contou seu ouro.
Tinha cinco mil táleres, isto é, vinte e três ou vinte e quatro mil francos.
Refletiu longamente e pareceu tomar uma decisão difícil.
Enquanto refletia, à luz da lamparina de cobre que iluminava o quarto, seu
rosto estava pálido e sua testa, banhada de suor.
A cada rumor à sua volta, mesmo que impalpável qual o frêmito da asa de
um besouro, Hoffmann estremecia, voltando-se e olhando com terror à sua volta.
“Moço”, disse ele, pousando-lhe a mão no ombro e olhando-o fixamente.
A profecia do oficial voltava-lhe à mente, ele sussurrava versos do Fausto e
parecia-lhe ver, no umbral da porta, o rato roedor e, no canto do quarto, o
mastim negro.17
Terminou por se decidir.
Separou mil táleres, o que julgava dar e sobrar para a viagem, fez um
embrulho com os outros quatro mil, colou com cera um cartão e nele escreveu:
Ao sr. burgomestre de Königsberg, para ser distribuído entre as famílias mais
pobres da cidade.
Em seguida, satisfeito com a vitória que acabava de obter sobre si mesmo,
revigorado com o seu feito, despiu-se, deitou-se e dormiu de um estirão até as
sete horas da manhã do dia seguinte.
Acordou às sete horas e seu primeiro olhar foi para seus mil táleres e os
quatro mil táleres embrulhados. Pensou ter sonhado.
A visão do dinheiro certificou-o da realidade do que acontecera na véspera.
Mas o que era mais real, sobretudo para Hoffmann, embora ali não houvesse
nada para lembrá-lo disso, era a profecia do velho oficial.
Assim, foi sem arrependimento algum que se vestiu como de costume e,
sobraçando seus quatro mil táleres, foi levá-los pessoalmente até a diligência
com destino a Königsberg, não, contudo, sem ter o cuidado de trancar os mil
táleres restantes em sua gaveta.
Todos se lembram que os dois amigos haviam combinado de partir aquela
mesma noite para a França. Hoffmann começou seus preparativos de viagem.
Enquanto ia e vinha, enquanto espanava um paletó, dobrava uma camisa,
combinava dois lenços, Hoffmann voltou os olhos para a rua e estacou.
Uma moça de dezesseis, dezessete anos, encantadora, muito certamente
forasteira na cidade de Mannheim, uma vez que Hoffmann não a conhecia,
vinha da extremidade oposta da rua e caminhava em direção à igreja.
Em seus sonhos de poeta, pintor e músico, Hoffmann nunca vira nada igual.
Era algo que superava não apenas tudo que vira, como tudo que esperava ver.
E, contudo, da distância em que se achava, via apenas um conjunto
deslumbrante. Os detalhes lhe escapavam.
Amoça estava acompanhada de uma velha criada.
Ambas subiram lentamente os degraus da igreja dos Jesuítas e
desapareceram sob o pórtico.
Hoffmann largou seu baú pela metade, um terno borra de vinho passado pela
metade, seu redingote com brandemburgos dobrado pela metade e posicionou-se
atrás da cortina.
Foi ali que o encontramos, aguardando a saída daquela a quem vira entrar.
Temia apenas uma coisa: que fosse um anjo e, em vez de usar a porta, saísse
voando pela janela para subir novamente aos céus.
Foi nessa situação que o flagramos e que seu amigo Zacharias Werner veio
flagrá-lo em seguida.
Como dissemos, o recém-chegado encostou ao mesmo tempo a mão no
ombro e os lábios na testa do amigo.
Deu então um enorme suspiro.
Embora Zacharias Werner já fosse muito pálido por natureza, estava ainda
mais pálido do que era.
— O que há com você? — perguntou Hoffmann, efetivamente preocupado.
— Ah, meu amigo! — exclamou Werner. — Sou um bandido! Um
miserável! Mereço a morte… rache minha cabeça com um machado…
trespasse meu coração com uma flecha… Não sou mais digno de ver a luz do
céu.
— Não faça drama — retrucou Hoffmann, com o plácido alheamento do
homem feliz —, o que pode ter acontecido de tão grave, caro amigo?
— Aconteceu… o que aconteceu, não é… está me perguntando o que
aconteceu…? Pois bem, amigo, o diabo me tentou!
— O que está querendo dizer?
— Que quando vi todo o meu ouro essa manhã, havia tanto, que julguei ser
um sonho.
— Como assim? Um sonho?
— Havia uma mesa cheia, toda coberta — continuou Werner. — Pois bem,
meu amigo, quando vi aquilo, uma verdadeira fortuna, mil fredericos de ouro,
quando de cada moeda vi irradiar-se um raio, fui tomado pela fúria, não
consegui resistir, peguei um terço do meu ouro e fui jogar.
— E perdeu?
— Até o último kreutzer.18
— Que remédio… Um mal menor, visto restarem-lhe ainda dois terços.
— Ah, claro, os dois terços! Voltei para pegar mais um terço e…
— E perdeu-o como o primeiro?
— Em menos tempo, meu amigo, menos tempo.
— E voltou para pegar o último terço?
— Não voltei, voei. Peguei os mil e quinhentos táleres restantes e joguei tudo
no vermelho.
— Deu preto, estou certo? — adivinhou Hoffmann.
— Ah, meu amigo, preto, o horrível preto, sem hesitação, sem remorso,
como se não estivesse matando minha última esperança! Deu, meu amigo, deu
preto.
— E só lamenta os mil fredericos por causa da viagem?
— Por mais nada. Ah, se pelo menos eu tivesse separado quinhentos táleres
para ir a Paris!
— Isso o consolaria pela perda do restante?
— Num piscar de olhos.
— Então não seja por isso, querido Zacharias — disse Hoffmann,
conduzindo-o até sua gaveta. — Pronto, aqui estão os quinhentos táleres, vá.
— Como, vá?! — exclamou Werner. — E você?
— Oh, não irei mais.
— Como, não irá mais?
— Exatamente, pelo menos não neste momento.
— Mas por quê? Por que razão? O que o impede de partir? O que o prende
em Mannheim?
Hoffmann arrastou impetuosamente o amigo até a janela. Era a saída da
igreja, a missa terminara.
— Veja, olhe, olhe — disse, apontando com o dedo e assim mostrando
alguém a Werner.
Com efeito, a moça desconhecida surgia no pórtico, descendo lentamente os
degraus da igreja, missal apertado contra o peito, cabeça baixa, modesta e
pensativa como a Margarida de Goethe.19
— Está vendo — murmurava Hoffmann —, está vendo?
— Claro que estou vendo.
— E o que me diz?
— Digo que não existe mulher no mundo que valha sacrificar uma viagem a
Paris, nem a bela Antônia, nem a filha do velho Gottlieb Murr,20 o novo maestro
do teatro de Mannheim.
— Então a conhece?
— Naturalmente.
— Seu pai também, suponho?
— Era regente no teatro de Frankfurt.
— E poderia me dar uma carta de apresentação?
— Que dúvida!
— Então sente-se aqui e escreva, Zacharias.
Zacharias sentou-se à mesa e escreveu.
De partida para a França, recomendava o jovem amigo Theodor Hoffmann
a seu velho amigo Gottlieb Murr.
Hoffmann deu a Zacharias justo o tempo de terminar a carta, apor sua
assinatura, para tomá-la de suas mãos e, beijando o amigo, arrojar-se para fora
do quarto.
— Está bem — berrou pela última vez Zacharias Werner —, verá que não
existe mulher, por mais bela que seja, capaz de fazê-lo esquecer Paris.
Hoffmann ouviu as palavras do amigo, mas sequer julgou conveniente
responder-lhe, fosse com um sinal de aprovação ou de desaprovação.
Quanto a Zacharias Werner, ele meteu seus quinhentos táleres no bolso e,
para não ser mais tentado pelo demônio do jogo, correu desabalado até o ponto
final das diligências, enquanto Hoffmann fazia o mesmo até a casa do velho
maestro.
Hoffmann bateu à porta de mestre Gottlieb Murr no preciso instante em que
Zacharias Werner embarcava na diligência de Estrasburgo.
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