A família Hof mann
Dentre as incontáveis e deslumbrantes cidades que se alinham às margens do
Reno, feito as contas de um rosário cujo cordão é o rio, devemos incluir
Mannheim, segunda capital do grão-ducado de Baden; Mannheim, segunda
residência do grão-duque.
Hoje, quando os barcos a vapor sobem e descem o Reno passando por
Mannheim, quando uma ferrovia chega até lá, quando a cidade, em meio ao
crepitar do tiroteio, com os cabelos desgrenhados e a túnica manchada de
sangue, desfraldou o estandarte da rebelião
1 contra seu grão-duque, hoje não sei
mais como é Mannheim. Na época em que começa esta história, porém, já se
vão quase cinquenta e seis anos, vou lhes dizer como era.
Era a cidade alemã por excelência, sossegada e política ao mesmo tempo,
um pouco triste, ou melhor, sonhadora: era a cidade dos romances de August
Lafontaine e dos poemas de Goethe, de Henriette Bellmann e de Werther.2
Com efeito, bastava um relance em Mannheim para no mesmo instante —
vendo suas casas honestamente enfileiradas, sua divisão em quatro bairros, suas
ruas largas e bonitas onde a relva viceja, sua fonte mitológica, seu passeio
sombreado por um duplo renque de acácias, que o atravessa ponta a ponta —
julgar quão doce e fácil seria a vida nesse paraíso, isto se, vez por outra, lá não
surgissem paixões amorosas ou políticas que colocassem uma pistola na mão de
Werther ou um punhal na de Sand.3
Uma praça destaca-se pelo caráter bastante peculiar. Nela estão situados
tanto a igreja quanto o teatro.
Ambos devem ter sido construídos simultaneamente, decerto pelo mesmo
arquiteto; decerto ainda em meados do outro século, quando os caprichos de uma
favorita influenciavam a arte a ponto de toda uma vertente artística ganhar o seu
nome, desde a igreja até a garçonnière, desde a estátua de bronze de seis metros
até a miniatura de porcelana da Saxônia.
A igreja e o teatro de Mannheim pertencem, portanto, ao estilo Pompadour.
A igreja possui dois nichos externos: num deles está uma Minerva, no outro
uma Hebe.4
A porta do teatro é encimada por duas esfinges, uma representando a
Comédia, a outra, a Tragédia.
A primeira dessas esfinges tem uma máscara sob a pata, a segunda, um
punhal. Ambas ostentam na cabeça um coque rígido e anguloso, o qual concorre
maravilhosamente para seu aspecto egípcio.
Enfim, toda a praça, casas elegantes, árvores agitadas, muros festonados,
possui o mesmo caráter e forma um conjunto agradabilíssimo.
Pois bem, é a um quarto situado no primeiro andar de uma dessas casas, a
com janelas dando de viés para o portão da igreja dos Jesuítas, que vamos
conduzir nossos leitores, não obstante advertindo-os de que os remoçamos mais
de meio século e que nos encontramos no ano da graça, ou da desgraça, de 1793,
e no domingo, dia 10 de maio. Tudo, devido à primavera, está desabrochando: as
algas na margem do rio, as margaridas na campina, as pilriteiras nas cercas, a
rosa nos jardins, o amor nos corações.
Acrescentemos ainda o seguinte: um dos corações batendo mais
ardorosamente na cidade de Mannheim, e em seus arredores, era o do rapaz que
morava nesse quartinho recém-mencionado, cujas janelas davam
diagonalmente para o portão da igreja dos Jesuítas.
O quarto e o rapaz merecem descrições individuais.
O quarto era certamente o de uma pessoa inconstante e pitoresca ao mesmo
tempo, combinando ateliê de pintura, loja de música e gabinete de estudo.
Havia uma paleta, pincéis e um cavalete e, sobre esse cavalete, um croqui
iniciado.
Havia uma guitarra, uma viola d’amore e um cravo; sobre esse cravo, a
partitura aberta de uma sonata.
Havia pena, tinta e papel e, sobre esse papel, um esboço de poema de amor.
Ao longo das paredes, arcos, flechas, balestras do século XV, gravuras do
XVI, instrumentos musicais do XVII, baús de todas as épocas, copos de todas as
formas, ânforas de todas as espécies, sem falar nos colares de contas de vidro,
leques de plumas, lagartos empalhados, flores secas, todo um mundo, enfim, mas
todo um mundo que não valia vinte e cinco táleres5 de boa prata.
O morador desse quarto era pintor, músico ou poeta? Ignoramos.
Fumante ele era, com certeza, pois, em meio a todos aqueles apetrechos, a
coleção mais completa, mais à vista, a que ocupava o lugar de honra e raiava
como um sol acima de um velho sofá, ao alcance da mão, era uma coleção de
cachimbos.
Porém, independentemente do que fosse, poeta, músico, pintor ou fumante,
no momento ele não fumava, não pintava, não escrevia, não compunha.
Não; ele olhava.
Olhava, imóvel, de pé, recostado na parede, prendendo a respiração.
Olhava pela janela aberta, depois de armar uma proteção com a cortina,
para ver sem ser visto. Olhava como olhamos quando os olhos não passam da
luneta do coração!
Mas o que ele tanto olhava?
Um lugar, por enquanto, completamente deserto: o portão da igreja dos
Jesuítas.
Nada mais natural, estava deserto porque a igreja estava cheia.
Agora, que aspecto tinha o morador desse quarto, aquele que olhava por trás
da cortina, cujo coração tanto palpitava ao olhar?
Era um rapaz de dezoito anos no máximo, estatura baixa, corpo magro,
aspecto selvagem. Seus longos cabelos negros caíam-lhe sobre a fronte, tapandolhe
a visão quando ele não os afastava com a mão, e, através do véu de cabelos,
seu olhar brilhava fixo e feroz, como o olhar de um homem cujas faculdades
mentais não costumam manter-se em perfeito equilíbrio.
Esse rapaz não era nem poeta, nem pintor, nem músico: era uma mistura de
tudo isso, era a pintura, a música e a poesia reunidas, um todo bizarro,
extravagante, bom e mau, corajoso e tímido, dinâmico e indolente. Resumindo,
esse rapaz era Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann.6
Nascera durante uma severa noite de inverno, em 1776, quando o vento batia,
quando a neve caía, quando tudo que não era rico sofria. Viera ao mundo em
Königsberg,7 nos ermos da Velha Prússia. Nascido tão fraco, franzino e de
compleição tão singela, a exiguidade de sua pessoa fizera com que todos
julgassem muito mais urgente encomendar-lhe um túmulo do que comprar-lhe
um berço. Isso aconteceu no mesmo ano em que Schiller,8 ao escrever o drama
dos Salteadores, assinava “Schiller, escravo de Klopstock”.9 Pertencia a uma
daquelas velhas famílias burguesas, como tínhamos na França na época da
Fronda, como ainda há na Alemanha, mas como logo não haverá mais em lugar
algum. Sua mãe, embora de temperamento enfermiço, demonstrava uma
profunda resignação, o que dava a sua pessoa doente um aspecto de adorável
melancolia. Seu pai, de atitude e espírito severos, era advogado criminal e
comissário de justiça junto ao Tribunal Superior Provincial. Em torno dessa mãe
e desse pai, havia tios juízes, tios morgados, tios burgomestres, tias ainda jovens,
ainda bonitas, ainda vaidosas. Tios e tias, todos eles músicos, artistas, repletos de
seiva e alegria. Hoffmann afirmava tê-los conhecido, lembrava-se deles
executando estranhos concertos à sua volta, criança de seis, oito e dez anos, nos
quais tocavam velhos instrumentos cujos nomes hoje sequer lembramos:
tímpanos, rabecas, cítaras, cistres, violas d’amore, violas da gamba. Bem
verdade que ninguém mais, a não ser Hoffmann, chegara a ver esses tios e tias
musicistas; e também que esses tios e tias, após apagarem, na saída, a luz que
ardia sobre suas estantes de partituras, haviam se retirado sucessivamente como
espectros.
Olhava como olhamos quando os olhos não passam da luneta do coração!
De todos esses tios, entretanto, restava um. De todas essas tias, entretanto,
restava uma.
Essa tia era uma das lembranças preferidas de Hoffmann.
Na casa onde ele passara a juventude, morava uma irmã de sua mãe, moça
de olhares meigos que penetravam no fundo da alma. Moça delicada, inteligente
e elegante, a qual, no menino que todos tomavam por louco, maníaco e lunático,
via um espírito eminente, o qual ela era a única a defender, além de sua mãe, é
claro, vaticinando-lhe talento e glória, previsão que em mais de uma
oportunidade fez brotarem lágrimas nos olhos da mãe de Hoffmann, mesmo ela
sabendo o quanto a desgraça é companheira inseparável do talento e da glória.
Essa era a tia Sophie.
Musicista como toda a família, tocava alaúde. Quando Hoffmann acordava
no berço, acordava inundado por uma vibrante harmonia. Quando abria os olhos,
via a forma graciosa da moça, casada com seu instrumento. Usava quase
sempre um vestido verde-água, com laçarotes cor-de-rosa; era invariavelmente
acompanhada por um velho músico de pernas tortas e peruca branca, que tocava
um contrabaixo maior do que ele, ao qual ele se agarrava, subindo e descendo
como lagartixa na coluna da lareira. Nessa torrente de harmonia, que caía como
uma cachoeira de pérolas dos dedos da bela Euterpe,10 Hoffmann sorvera o
filtro mágico capaz de também transformá-lo em músico.
Tios e tias, todos eles músicos, artistas, repletos de seiva e alegria.
Sendo assim, natural que a tia Sophie fosse uma das lembranças preferidas de
Hoffmann.
Não se dava o mesmo com relação ao tio.
A morte do pai de Hoffmann e a doença de sua mãe fizeram-no cair nas
mãos desse tio.
Era um homem tão rigoroso quanto o pobre Hoffmann era mal-ajambrado,
tão organizado quanto o pobre Hoffmann era estranhamente distraído. Seu
espírito de ordem e exatidão impusera-se ao sobrinho desde a infância, embora
sempre tão inutilmente quanto o espírito do imperador Carlos V sobre seus
pêndulos:11 o tio enxugava gelo, as horas favoreciam a imaginação do sobrinho,
jamais a sua.
No fundo, porém, e a despeito de sua severidade e método, esse tio de
Hoffmann não era um inimigo encarniçado das artes e da imaginação. Chegava
a tolerar a música, a poesia e a pintura, ressalvando que um homem sensato não
deveria entregar-se a tais fraquezas senão depois do jantar, para não dificultar a
digestão. Fora alicerçado nesse argumento que organizara a vida de Hoffmann:
tantas horas para o sono, tantas horas para os estudos jurídicos, tantas horas para
a refeição, tantos minutos para a música, tantos minutos para a pintura, tantos
minutos para a poesia.
O desejo de Hoffmann era virar tudo aquilo de ponta-cabeça e dizer: tantos
minutos para o direito, tantas horas para a poesia, a pintura e a música, mas
Hoffmann não tinha esse poder. Daí resultara seu horror ao direito e ao tio e, um
belo dia, sua fuga de Königsberg com um punhado de táleres no bolso, rumo a
Heidelberg. Lá faria uma rápida escala, pois, considerando de segunda categoria
a música apresentada no teatro, não quis ficar.
Consequentemente, de Heidelberg fora para Mannheim, cujo teatro, nas
proximidades do qual ele se hospedara, como vimos, tinha fama de rivalizar com
as cenas líricas da França e da Itália. Dizemos da França e da Itália porque não
esquecemos que, apenas onze ou doze anos antes da época à qual nos referimos,
acontecera, na Real Academia de Música, o grande embate entre Gluck e
Piccinni.12
Hoffmann achava-se então em Mannheim, onde se hospedava próximo ao
teatro e vivia do produto de sua pintura, de sua música e de sua poesia, além de
uns parcos fredericos de ouro
13 que sua mãe volta e meia lhe mandava entregar,
no momento em que, arrogando-nos o privilégio do Diabo coxo,14 acabamos de
levantar o telhado de seu quarto e de mostrar o jovem rapaz a nossos leitores, de
pé, recostado na parede, imóvel atrás de sua cortina, arfante, olhos cravados no
portão da igreja dos Jesuítas.
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