O Arsenal
No dia 4 de dezembro de 1846, meu navio achando-se ancorado na baía de Túnis
desde a véspera, acordei por volta das cinco da manhã com uma dessas
sensações de profunda melancolia que deixam, por um dia inteiro, o olho úmido
e o peito opresso.
Essa sensação era fruto de um sonho.
Pulei do beliche, enfiei uma calça, subi ao convés e observei o que havia à
frente e ao redor de mim.
Minha esperança era que a maravilhosa paisagem aberta sob meus olhos
distraísse meu espírito daquela preocupação, tanto mais obstinada quanto menos
real sua causa.
À minha frente, ao alcance de um tiro de fuzil, eu via o píer, que se estendia
do forte de la Goulette ao forte do Arsenal, deixando uma estreita passagem para
os navios que desejassem atravessar do golfo para o lago. Esse lago, de águas
azuis como o anil do céu por elas refletido, estava bastante agitado em certos
lugares, graças a um grupo de cisnes que batiam suas asas em revoada,
enquanto, sobre boias sinalizadoras instaladas aqui e ali para indicar baixas
profundidades, mantinha-se imóvel, qual aves de sepulcros, um biguá que,
subitamente, deixando-se cair como uma pedra, mergulhava para capturar sua
presa, voltava à superfície da água com um peixe atravessado no bico, engolia
esse peixe, subia novamente em sua boia e reassumia sua taciturna imobilidade,
até que um novo peixe, passando ao seu alcance, despertasse-lhe o apetite e,
vencendo sua preguiça, o fizesse desaparecer e reaparecer mais uma vez.
Nesse ínterim, de cinco em cinco minutos, o ar era riscado por uma fila de
flamingos cujas asas púrpuras contrastavam com o branco fosco de sua
plumagem. Formando um losango, lembravam um baralho composto
exclusivamente de ases de ouros voando em fila indiana.
No horizonte avistávamos Túnis, isto é, um aglomerado de casas quadradas,
sem janelas, sem aberturas, subindo pela encosta como os teatros da
Antiguidade, brancas como giz e se destacando no céu com singular nitidez. À
esquerda, elevavam-se, imensa muralha serrilhada, as montanhas de Chumbo,
designação que denota sua tonalidade escura. Aos pés da cordilheira estendiamse
o marabuto
1 e a aldeia de Sidi Fathallah. À direita, avistávamos o túmulo de
são Luís2 e as ruínas de Cartago, duas das maiores lembranças incrustadas na
história do mundo. Às nossas costas, balançava, ancorada, a Montezuma,
magnífica fragata a vapor com quatrocentos e cinquenta cavalos-força.
Com certeza tais elementos bastavam para distrair a imaginação mais
inquieta. Diante de todas aquelas riquezas, qualquer um teria esquecido o ontem,
o hoje e o amanhã. Meu espírito, contudo, a dez anos de distância, concentravase
obstinadamente num único pensamento, que um sonho havia entranhado em
meu cérebro.
Meu olho não se movia. Todo aquele esplêndido panorama apagava-se aos
poucos na vacuidade de meu olhar. Logo não enxerguei mais nada do que existia,
a realidade desapareceu e, em meio àquele vazio brumoso, como que num passe
de mágica, desenhou-se um salão com lambris brancos, em cuja saleta, sentada
a um piano pelo qual seus dedos passeavam displicentemente, achava-se uma
mulher inspirada e pensativa ao mesmo tempo, uma musa e uma santa.
Reconheci essa mulher e murmurei, como se ela pudesse ouvir:
— Ave, Maria,3 cheia de graça, o Senhor é convosco.
Em seguida, sem mais resistir àquele anjo de asas brancas que me
reconduzia aos meus dias de juventude e, como numa visão encantadora,
apontava-me aquela casta figura de menina, moça e mãe, deixei-me arrastar na
corrente desse rio que chamamos memória, o qual, em vez de descer rumo ao
futuro, remonta em direção ao passado.
Vi-me então invadido pelo sentimento, tão egoísta, e consequentemente tão
natural ao homem, que o leva a não guardar seu pensamento para si, a
intensificar suas sensações comunicando-as e, por fim, a verter noutra alma o
doce ou amargo licor que transborda a sua.
Tomei de uma pena e escrevi:
A bordo do Véloce,
Diante de Cartago e Túnis, 4 de dezembro de 1846
Senhora,
Ao abrir uma carta datada de Cartago e de Túnis, a senhora se perguntará
quem pode lhe escrever de tal lugar, esperando receber um autógrafo de
Régulo ou de Luís IX.4 Quem dera! Senhora, aquele que de tão longe coloca
sua humilde lembrança a seus pés não é nem herói nem santo, e se algum dia
mostrou qualquer semelhança com o bispo de Hipona,5 cujo túmulo ele
visitou três dias atrás, é somente à primeira parte da vida desse grande
homem que tal comparação se aplicaria. Verdade que, seguindo seu
exemplo, ele pode redimir a primeira parte da vida com a segunda. Contudo,
já é tarde para fazer penitência. Segundo toda a probabilidade, ele morrerá
como viveu, não ousando sequer deixar confissões, as quais, a rigor, se
podem ser contadas, não podem ser lidas.
Decerto já correu à assinatura, não é, senhora, e sabe com quem está a
lidar. Sendo assim, agora deve estar se perguntando o que — entre esse
magnífico lago que é o túmulo de uma cidade e o pobre monumento que é o
sepulcro de um rei — leva o autor dos Mosqueteiros e do Monte Cristo a
escrever-lhe, à senhora justamente, quando, em Paris, à sua porta, ele passa
às vezes um ano inteiro sem lhe fazer uma visita.
Em primeiro lugar, senhora, Paris é Paris, ou seja, uma espécie de
turbilhão no qual perdemos a memória de todas as coisas, ensurdecidos pelo
barulho das gentes ao correr e da Terra a girar. Em Paris, veja, faço como as
gentes e a Terra: corro e giro, sem falar que, quando não estou correndo nem
girando, escrevo. Mas, nesses momentos, senhora, é diferente, pois, ao
escrever, já não me sinto tão afastado de si como imagina, pois a senhora é
uma das raras pessoas em quem penso quando escrevo, sendo muito raro eu
não ruminar, ao fim de um capítulo que me satisfaz ou de um livro que saiu a
contento: “Marie Nodier, aquele espírito raro e encantador, lerá isto”, e fico
orgulhoso, pois espero que, lendo o que acabo de escrever, eu ainda possa me
engrandecer alguns milímetros em seu juízo.
Seja como for, para voltar ao meu assunto, sonhei essa noite, não ouso
dizer com a senhora, mas em torno da senhora, esquecendo a maré que
sacudia o gigantesco vapor a mim emprestado pelo governo
6 e no qual dou
hospitalidade a um de seus amigos e admiradores, Boulanger, e a meu filho,
sem contar Giraud, Maquet, Chancel e Desbarolles, que estão entre seus
conhecidos.7 Seja como for, dizia eu, dormi sem pensar em nada, e, como
estou muito próximo ao país das Mil e uma noites, um gênio me visitou e fez
entrar num sonho no qual a senhora era a rainha.
O lugar aonde ele me conduziu, ou melhor, reconduziu, madame, era
muito melhor que um palácio, muito melhor que um reino, era a boa e
excelente casa do Arsenal em seus tempos de alegria e felicidade, quando
nosso bem-amado Charles,8 com toda a franqueza da hospitalidade antiga, e
nossa respeitadíssima Marie, com toda a graça da hospitalidade moderna,
faziam suas honras.
Ah, creia-me, senhora, ao escrever estas linhas acabo de deixar escapar
um belo e alentado suspiro! Aquela foi uma época auspiciosa para mim. Suas
maneiras encantadoras estendiam-na a todos e, eventualmente, atrevo-me a
dizer, a mim mais que a qualquer outro. Note que é um sentimento egoísta
que me aproxima de si. Alguma coisa eu captava de sua adorável alegria,
como a pedra do poeta Saadi9 captava parte do perfume da rosa.
Lembra-se da fantasia de arqueiro de Paul? E dos sapatos amarelos de
Francisque Michel? E do meu filho, de estivador? E daquele desvão onde
ficava o piano e onde a senhora cantava Lazzara,10 música magnífica cuja
partitura me prometeu e que, digo-o sem me queixar, nunca me deu?
Oh, uma vez que invoco essas lembranças, vou ainda mais longe: lembrase
de Fontaney e de Alfred Johannot, figuras apagadas e sempre tristes em
meio às nossas risadas, como se houvesse nos homens fadados a morrer
jovens um vago pressentimento do túmulo?11 Lembra-se de Taylor,12
sentado num canto, imóvel, mudo e ruminando em que viagem nova poderá
enriquecer a França com um quadro espanhol, uma frisa grega ou um
obelisco egípcio? Lembra-se de de Vigny,13 que naquela época talvez
duvidasse de sua transfiguração, ainda se dignando a misturar-se à multidão
dos homens? Lembra-se de Lamartine,14 de pé diante da lareira,
esparramando à nossa frente a harmonia de seus belos versos? Lembra-se de
Hugo olhando para ele e escutando-o como Etéocles devia olhar e escutar
Polinice,15 único entre nós com o sorriso da igualdade nos lábios, enquanto a
sra. Hugo, jogando com seus belos cabelos, mantinha-se reclinada no sofá
como se enfastiada da parte de glória a ela reservada?
E, no centro de tudo isso, sua mãe, tão simples, generosa e delicada; sua
tia, a sra. de Tercy, tão inteligente e benevolente; Dauzats,16 impagável,
fanfarrão, cheio de verve; Bary e,17 tão isolado em meio ao vozerio geral que
seu pensamento parecia sempre enviado pelo corpo em busca de uma das
sete maravilhas do mundo; Boulanger, hoje tão melancólico, amanhã tão
alegre, sempre tão grande pintor, sempre tão grande poeta, sempre tão bom
amigo na alegria e na tristeza; depois, por fim, aquela garotinha esgueirandose
por entre poetas, pintores, músicos, grandes homens, intelectuais e
cientistas, aquela garotinha que eu pegava na concha da mão e lhe oferecia
como uma estatueta de Barre ou Pradier?18 Oh, meu Deus, meu Deus! O
que foi feito de tudo isso, senhora?
O sopro do Senhor atingiu a pedra angular, o edifício mágico desmoronou.
Aqueles que o povoavam fugiram e um deserto ocupa o lugar onde tudo era
vivo, desabrochado, florido.
Fontaney e Alfred Johannot estão mortos, Tay lor desistiu das viagens, de
Vigny tornou-se invisível, Larmatine é deputado, Hugo, par de França, e
Boulanger, meu filho e eu estamos em Cartago, de onde a vejo, senhora,
enquanto dou esse belo e alentado suspiro do qual lhe falava há pouco e que, a
despeito do vento que carrega numa nuvem a fumaça moribunda de nosso
navio, jamais resgatará essas lembranças preciosas, carregadas pelo tempo
de asas escuras para dentro da névoa cinzenta do passado. Ó primavera,
juventude do ano! Ó juventude, primavera da vida!
Pois bem, foi este o mundo evanescido que um sonho me restituiu noite
passada, tão brilhante e visível, mas ao mesmo tempo, ai de mim!, tão
impalpável quanto esses átomos que dançam num raio de sol infiltrado no
quarto escuro pelo vão de uma persiana entreaberta.
Agora, madame, já entende o motivo dessa carta, não é? O presente
adernaria incessantemente não fosse mantido em equilíbrio pelo peso da
esperança e o contrapeso das lembranças, e, infelizmente ou talvez
felizmente, sou daqueles em quem as lembranças prevalecem sobre a
esperança.
Hora de mudar de assunto, pois, a tristeza só é permitida com a condição
de não ser imposta aos outros. O que anda fazendo meu amigo Boniface?19
Ah, oito ou dez dias atrás visitei uma cidade que lhe reservará muitos
aborrecimentos quando ele encontrar seu nome no livro do cruel agiota
conhecido como Salústio. Essa cidade é Constantina, a velha Cirta, maravilha
construída no topo de um rochedo, sem dúvida por uma raça de animais
fantásticos com asas de águias e mãos de homens, tal como Heródoto e
Levaillant, dois grandes viajantes, testemunharam.20
Em seguida, fizemos uma escala em Útica e nos deixamos ficar em
Bizerta.21 Nesta última cidade, Giraud fez o retrato de um notário turco, e
Boulanger, de um sumo sacerdote. Envio-os para a senhora a fim de que
possa compará-los aos notários e aos sumos sacerdotes de Paris. Duvido que
estes últimos levem alguma vantagem.
Quanto a mim, caí na água numa caçada a flamingos e cisnes, episódio,
que, no Sena, provavelmente congelado a essa hora, poderia ter tido
consequências desastrosas, mas que, no lago de Catão,22 não teve outro
inconveniente senão me fazer tomar um banho de roupa e tudo, e isso para
grande espanto de Alexandre, de Giraud e do prefeito da cidade, que, do alto
de um terraço, acompanhavam nosso barco com os olhos e, sem
compreenderem que eu apenas perdera o meu centro de gravidade,
atribuíam o incidente a um rasgo teatral de minha parte.
Comportei-me como os biguás de que lhe falava há pouco, senhora; como
eles desapareci, como eles voltei à tona. Apenas não tinha, como eles, um
peixe no bico.
Cinco minutos depois, já havia esquecido tudo e estava seco como o sr.
Valery,23 de tal forma o sol teve a gentileza de me acariciar.
Oh, onde quer que esteja, senhora, eu gostaria de enviar um raio desse
belo sol ao menos para fazer desabrochar um ramo de miosótis em sua
janela!
Adeus, perdoe-me a extensa carta. Não tenho o hábito da coisa e, como a
criança que se justificava por ter ganhado o mundo, prometo-lhe não
reincidir. Mas também, quem mandou o porteiro do céu deixar aberta essa
porta de marfim pela qual saem os sonhos dourados?
Queira aceitar, senhora, a homenagem de meus mais respeitosos
sentimentos.
Alexandre Dumas
Aperto cordialmente a mão de Jules.24
Agora, a que propósito serviu essa carta toda íntima? É que, para contar a
meus leitores a história da mulher da gargantilha de veludo, eu precisava abrirlhes
as portas do Arsenal, isto, é da casa de Charles Nodier.
E agora que essa porta foi aberta pela mão de sua filha, dando-nos a certeza
de ser bem-vindos: “Quem me ama me segue.”
* * *
Nos confins de Paris, dando continuidade ao cais dos Celestinos, encostado na rua
Morland e dominando o rio, ergue-se um casarão, escuro e de aspecto triste,
conhecido como Arsenal.
Parte do terreno ocupado por esse pesado casarão chamava-se, antes da
escavação dos fossos da cidade, Campo de Gesso. Certo dia, quando se
preparava para a guerra, a cidade de Paris comprou o terreno e, para nele
instalar sua artilharia, empreendeu a construção de paióis. Em 1533, Francisco
I25 constatou que lhe faltavam canhões e planejou fundir alguns. Emprestou um
desses paióis de sua generosa cidade, prometendo, naturalmente, terminada a
fundição, devolvê-lo. Em seguida, a pretexto de acelerar o trabalho, tomou
emprestado um segundo, depois um terceiro, sempre com a mesma promessa.
Por fim, inspirando-se no provérbio segundo o qual o que é bom para roubar é
bom para guardar, guardou sem-cerimônia os três paióis tomados emprestados.
Vinte anos depois, um incêndio atingiu dez toneladas de pólvora. A explosão
foi medonha: Paris tremeu como treme Catânia nos dias em que o Encelado se
enfurece.26 Pedras foram lançadas até a ponta do faubourg Saint-Marceau e o
fragor desse terrível estrondo chegou a sacudir Melun.27 Como se estivessem
bêbadas, as casas da vizinhança balançaram por um instante, para em seguida
virarem pó. Os peixes pereceram no rio, mortos pelo inesperado trauma. Como
se não bastasse, trinta pessoas, arrastadas pelo furacão de labaredas, se
despedaçaram pelos ares; cento e cinquenta saíram feridas. De onde vinha
aquele sinistro? Qual era a causa da tragédia? Isso permaneceu ignorado e, em
virtude de tal ignorância, a culpa foi jogada nos protestantes.
Carlos IX28 mandou reconstruir, em escala maior, os prédios destruídos. Que
belo construtor, Carlos IX! Mandou esculpir o Louvre e cinzelar a fonte dos
Inocentes por Jean Goujon, que ali foi morto, como todos sabem, por uma bala
perdida. Teria decerto completado o trabalho, o grande artista e grande poeta, se
Deus, que tinha algumas contas a acertar com ele a respeito de 24 de agosto de
1572, não o tivesse chamado para Si.29
Seus sucessores retomaram as construções no ponto em que ele as deixara e
as levaram adiante. Em 1584, Henrique III30 mandou esculpir a porta que dá
acesso ao cais dos Celestinos. Ladeada por colunas em forma de canhões, sobre
o friso de mármore que a encimava lia-se este dístico de Nicolau Bourbon, que
Santeuil dizia valer sozinho o peso de toda a estrutura:31
Œtna hœc Henrico vulcania tela ministrat
Tela giganteos debellatura furores.
O que significa: “Aqui, o Etna prepara os raios com que Henrique deve
debelar a ira dos gigantes.”
E, com efeito, após ter fulminado os gigantes da Liga, Henrique plantou o
belo jardim que vemos nos mapas da época de Luís XIII, quando Sully transferiu
seu ministério para lá32 e mandou pintar e dourar os belos salões que ainda hoje
compõem a biblioteca do Arsenal.
Em 1823, Charles Nodier foi convidado a dirigir essa biblioteca e deixou a rua
de Choiseul, onde morava, para se estabelecer em sua nova residência.
Era um homem adorável, Nodier, sem um único vício mas cheio de defeitos,
desses defeitos encantadores que forjam a originalidade do homem de gênio,
pródigo, despreocupado flâneur, tão flâneur quanto Fígaro era preguiçoso!33 Com
prazer.
Nodier sabia praticamente tudo que era dado saber ao homem. Aliás, tinha a
prerrogativa do homem de gênio: quando não sabia, inventava, e o que inventava
era muito mais engenhoso, muito mais pitoresco, muito mais plausível que a
realidade.
Sistemático por excelência, cheio de paradoxos e exaltações, mas nem de
longe um sectário, era em si mesmo que Nodier mostrava-se paradoxal, era em
si mesmo que Nodier elaborava sistemas. Adotados tais sistemas, reconhecidos
tais paradoxos, ele os mudava e imediatamente se obrigava a construir outros.
Nodier era o homem de Terêncio,34 a quem nada humano é estranho.
Amava pela felicidade de amar; amava como o sol brilha, como a água
rumoreja, como a flor perfuma. Gostava de tudo que era bom, de tudo que era
belo, de tudo que era grande. Até mesmo na maldade, separava o que havia de
bom, como, na planta venenosa, o químico, do âmago do próprio veneno, extrai o
remédio salutar.
Quantas vezes Nodier amara? Ele próprio teria dificuldade em responder. A
propósito, como grande poeta que era, confundia sempre sonho e realidade.
Nodier cultivou com tanto amor as fantasias de sua imaginação que terminou por
acreditar em sua existência. Para ele, Thérèse Aubert, a Fada dos Farelos e Inès
de la Sierra existiram.35 Eram, aliás, suas filhas, como Marie; eram irmãs de
Marie, com a ressalva de a sra. Nodier não haver contribuído em nada para
engendrá-las. Como Júpiter, Nodier arrancara todas essas Minervas de seu
crânio.36
Mas não eram apenas a criaturas humanas, não eram apenas às filhas de Eva
e filhos de Adão que Nodier concedia a vida com seu sopro criador. Ele inventou
um animal e o batizou. Em seguida, invocando sua própria autoridade, indiferente
à opinião de Deus, dotou-o de vida eterna.
Esse animal era o taratantaleo.
O quê?! Não conhecem o taratantaleo? Pois eu tampouco, mas Nodier o
conhecia. Nodier o sabia de cor. Discorria sobre os hábitos, a rotina, as manias do
taratantaleo. Teria discorrido sobre seus amores se, tão logo percebeu que o
taratantaleo carregava em si o princípio da vida eterna, não o houvesse
condenado ao celibato, a reprodução sendo inútil ali onde há ressurreição.
Como Nodier descobriu o taratantaleo?
Ouçam a história:
Aos dezoito anos, Nodier achava-se às voltas com a entomologia. Sua vida
dividiu-se em seis fases distintas:
Primeiro, fez história natural: a Biblioteca entomológica.
Depois, linguística: o Dicionário das onomatopeias.
Depois, política: a Napoleone.
Depois, filosofia religiosa: as Meditações do claustro.
Depois, poesia: os Ensaios de um jovem bardo.
Depois, romance: Jean Sbogar, Smarra, Trilby, O pintor de Salzburgo, A
senhorita de Marsan, Adèle, O vampiro, O sonho de ouro, Lembranças da
mocidade, O rei da Boêmia e seus sete castelos, As fantasias do doutor Neófobo e
mil outras coisas encantadoras que vocês não conhecem, que eu conheço e cujo
nome não me ocorre à pena.
Nodier, portanto, achava-se na primeira fase de seus estudos, às voltas com a
entomologia. Morava no sexto andar, um acima daquele em que Béranger37
situa o poeta. Fazia experimentos no microscópio com o infinitamente pequeno e,
muito antes de Raspail,38 descobrira todo um mundo de animálculos invisíveis.
Certo dia, após ter examinado a água, o vinho, o vinagre, o queijo, o pão, enfim,
substâncias corriqueiras em experimentações, pegou um punhado de areia
molhada numa canaleta e o expôs na gaiola de seu microscópio, aplicando em
seguida o olho na lente.
Viu então mover-se um animal estranho, com a forma de um velocípede,
dotado de duas rodas que agitava rapidamente. Precisava atravessar um rio? Suas
rodas funcionavam como as de um barco a vapor. Precisava transpor um terreno
seco? Elas funcionavam como as de um cabriolé. Nodier observou-o, detalhou-o,
desenhou-o, analisou-o com o máximo de cuidado, até que lembrou-se de um
compromisso e saiu às pressas, deixando ali seu microscópio, seu punhado de
areia e o taratantaleo do qual ela era o mundo.
Quando Nodier voltou, era tarde. Estava cansado, deitou, dormiu como
dormimos aos dezoito anos. Portanto, foi apenas no dia seguinte, abrindo os olhos,
que pensou no punhado de areia, no microscópio e no taratantaleo.
Mas que pena! A areia secara durante a noite e o pobre taratantaleo, que sem
dúvida dependia de umidade para viver, estava morto. Seu pequeno cadáver
estava prostrado, suas rodas, imóveis. O barco a vapor não funcionava mais; o
velocípede parara.
Contudo, por mais morto que estivesse, nem por isso o animal deixava de
pertencer a uma curiosa variedade dos efêmeros, e seu cadáver merecia ser
conservado qual o de um mamute ou um mastodonte. Apenas convinha,
obviamente, tomar precauções muito maiores para manipular um animal cem
vezes menor que um ácaro do que para deslocar um animal dez vezes mais
volumoso, como um elefante.
Foi então com o filete de uma pena que Nodier transportou o punhado de
areia da gaiola de seu microscópio para uma caixinha de papelão, preparada
para ser o sepulcro do taratantaleo.
Jurou mostrar aquele cadáver ao primeiro cientista que se aventurasse a subir
os seis andares até onde morava.
São tantas as coisas em nossa cabeça quando temos dezoito anos que é
absolutamente normal nos esquecermos do cadáver de um efêmero. Durante
três meses, dez meses, um ano talvez, Nodier se esqueceu do cadáver do
taratantaleo.
Um dia, viu-se com a caixa nas mãos. Quis verificar a mudança que um ano
produzira em seu animal. O tempo estava encoberto, desabava um temporal.
Para ver melhor, ele aproximou o microscópio da janela e esvaziou na esquadria
o conteúdo da caixinha.
O cadáver continuava imóvel e deitado na areia. Mas o tempo, que tanto
influencia os colossos, parecia haver se esquecido do infinitamente pequeno.
Nodier observava seu efêmero quando, subitamente, um pingo de chuva,
soprado pelo vento, caiu na gaiola do microscópio e umedeceu o punhado de
areia.
Ao contato daquele frescor vivificante, pareceu a Nodier que seu taratantaleo
se reanimou, que mexeu uma antena, depois a outra, que fez girar uma de suas
rodas, que fez girar suas duas rodas, que recuperou seu centro de gravidade, que
seus movimentos se regularizaram, que viveu, enfim.
O milagre da ressurreição acabara de se operar, e não no intervalo de três
dias, mas no de um ano.
Nodier repetiu dez vezes o mesmo teste; dez vezes a areia secou e o
taratantaleo morreu, dez vezes a areia foi umedecida e dez vezes o taratantaleo
ressuscitou.
Não era um efêmero que Nodier descobrira, era um imortal. Segundo toda a
probabilidade, seu taratantaleo assistira ao dilúvio e assistiria ao Juízo Final.
Por um infortúnio, num dia em que Nodier, talvez pela vigésima vez,
preparava-se para repetir seu experimento, uma rajada de vento carregou a
areia seca e, junto com ela, o cadáver do fenomenal taratantaleo.
Nodier procurou em vários resíduos de areia molhada em sua calha e em
outros lugares, mas foi inútil, jamais encontrou o equivalente do que perdera: o
taratantaleo era o único de sua espécie e, perdido para todos os homens, não vivia
mais senão nas lembranças de Nodier.
Mas também nelas vivia de modo a jamais morrer por completo.
Mencionamos os defeitos de Nodier. O maior deles, pelo menos aos olhos da
sra. Nodier, era a bibliomania. Esse defeito, que fazia a felicidade de Nodier, era
um desespero para sua mulher.
Afinal, todo o dinheiro que Nodier ganhava ia em livros. Quantas vezes, tendo
saído para ir receber dois ou trezentos francos, absolutamente necessários à
rotina doméstica, ele não voltou com um volume raro, com um exemplar único!
O dinheiro ficara nos Techener ou na Guillemot.39
A sra. Nodier ameaçava se zangar, mas Nodier puxava o volume do bolso,
abria-o, fechava-o, acariciava-o, mostrava à mulher um erro de impressão que
comprovava a autenticidade do livro…
— Pense bem, querida, arranjarei outros quinhentos francos, já um livro
desses, hum!, um livro desses é impossível de encontrar. Pergunte a
Pixérécourt.40
Pixérécourt era a grande admiração de Nodier, que sempre adorou o
melodrama. Nodier chamava Pixérécourt de o Corneille41 dos bulevares.
Quase todas as manhãs Pixérécourt visitava Nodier.
A manhã, na casa de Nodier, era dedicada às visitas dos bibliófilos. Era lá que
se reuniam o marquês de Ganay, o marquês de Château-Girou, o marquês de
Chalabre, o conde de Labédoy ère, Bérard, o homem dos elzevires, que em seus
momentos de ócio, refez a Carta de 1830; o bibliófilo Jacob, o cientista Weiss de
Besançon, o universal Peignot de Dijon;42 enfim, os cientistas estrangeiros que,
tão logo botavam os pés em Paris, davam um jeito de se apresentar, ou se
apresentavam por iniciativa própria, a esse cenáculo famoso em toda a Europa.
Lá, todos consultavam Nodier, o oráculo da reunião; lá, os livros lhe eram
mostrados; lá, pediam-se avaliações; era sua distração favorita. Quanto aos
cientistas do Instituto, não davam o ar da graça, pois viam Nodier com inveja.
Nodier associava inteligência e poesia à ciência, e este era um erro que a
Academia de Ciências perdoava tão pouco quanto a Academia Francesa.
Além disso, Nodier gracejava com frequência, e era ferino de vez em
quando. Certo dia, escreveu O rei da Boêmia e seus sete castelos, e daquela vez
escarneceu cruelmente. Julgava-se Nodier para sempre brigado com o Instituto.
Pelo contrário: a Academia de Tombuctu forçou a sua entrada na Academia
Francesa.
Não devemos esperar outra coisa de irmãs.
Após duas ou três horas de um trabalho sempre fácil, após cobrir uma média
de dez ou doze páginas de papel de quinze centímetros de altura por dez de
largura, com uma letra legível, regular e sem rasuras, Nodier saía.
Uma vez na rua, Nodier caminhava ao léu, quase sempre acompanhando a
linha dos cais, mas atravessando o rio de um lado para o outro, dependendo da
situação topográfica das barracas; em seguida, das barracas ele passava aos
livreiros e, dos livreiros, aos encadernadores.
Pois Nodier não era especialista apenas em livros, era-o em encadernações
também. As obras-primas de Le Gascon sob Luís XIII, de Du Seuil sob Luís XIV,
de Pasdeloup sob Luís XV e de Derome sob Luís XV e Luís XVI, eram-lhe tão
familiares que, de olhos fechados, ao simples toque, identificava-as. Fora Nodier
quem ressuscitara a encadernação, que sob a Revolução e o Império havia
deixado de ser uma arte; foi ele quem incentivou e dirigiu os restauradores dessa
arte, os Thouvenin, os Braudel, os Niedrée, os Bauzonnet e os Legrain.
Thouvenin, morrendo de angina, levantara-se de seu leito de agonia para dar
uma última espiada nas encardenações que fazia para Nodier.43
A incursão de Nodier terminava quase sempre no Crozet ou no Techener, dois
cunhados desunidos pela rivalidade e entre os quais seu plácido temperamento
vinha se interpor. Lá reuniam-se os bibliófilos; lá as pessoas se encontravam para
falar de livros, edições, vendas; lá, efetuavam-se trocas. E, se quando Nodier
aparecia, um grito ressoava, mal ele abria a boca, era o silêncio absoluto. Então
Nodier discorria, Nodier formulava paradoxos, de omni re scibili et quibusdam
aliis.44
À noite, após o jantar em família, Nodier tinha o hábito de trabalhar na sala
de jantar, dispondo ao seu redor três velas em triângulo, nunca mais, nunca
menos. Já mencionamos o papel e a qualidade da letra, sempre com penas de
ganso. Nodier tinha horror não só a penas de ferro, como, mais genericamente, a
todas as novas invenções: o gás deixava-o furibundo, o vapor exasperava-o; na
destruição das florestas e no esgotamento das minas de carvão, via, inexorável e
próximo, o fim do mundo. Era nesses furores que Nodier mostrava-se
exuberante na verve e fulminante no entusiasmo.
Por volta das nove e meia da noite, Nodier saía. Desta feita, não era mais a
linha dos cais que ele acompanhava, era a dos bulevares. Entrava no teatro da
Porte Saint-Martin, no Ambigu ou no Funambules, no Funambules de
preferência. Foi Nodier quem divinizou Deburau, para ele só havia três atores no
mundo: Deburau, Potier e Talma.45 Potier e Talma estavam mortos, restara
Deburau, para consolar Nodier da perda dos outros dois.
Nodier vira cem vezes O boi furioso.46
Aos domingos, Nodier almoçava invariavelmente na casa de Pixérécourt. Lá,
encontrava suas visitas: o bibliófilo Jacob, rei até a chegada de Nodier, vicerei
quando Nodier chegava, o marquês de Ganay, o marquês de Chalabre.
O marquês de Ganay, espírito volúvel, colecionador maníaco, apaixonado por
um livro como um hedonista do tempo da Regência apaixonava-se por uma
mulher, com o único objetivo de possuí-la. Então, depois de possuí-lo, era-lhe fiel
por um mês — fiel, não, entusiasta: carregava-o consigo, parava os amigos para
mostrá-lo, colocava-o debaixo do travesseiro no fim do dia, acordando no meio
da noite e acendendo a vela para contemplá-lo, mas sem jamais o ler. Invejava
sempre os livros de Pixérécourt, que Pixérécourt se recusava a lhe vender pelo
preço que fosse, e vingava-se dessa recusa comprando no leilão da sra. de
Castellane47 um manuscrito que havia dez anos Pixérécourt ambicionava.
— Não tem importância — dizia Pixérécourt, furioso —, ele ainda será meu.
— O quê? — perguntava o marquês de Ganay.
— O seu manuscrito.
— E quando isso vai acontecer?
— Quando você morrer, meu caro!
E Pixérécourt teria cumprido com a palavra, se o marquês de Ganay não
houvesse julgado por bem sobreviver a Pixérécourt.
Quanto ao marquês de Chalabre, só ambicionava uma coisa: uma Bíblia que
ninguém teria, mas que ele ambicionava ardentemente.
Atormentou de tal forma Nodier pela indicação de um exemplar único que
este terminou por fazer melhor ainda, indicando-lhe um exemplar que não
existia.
O marquês de Chalabre pôs-se imediatamente à cata desse exemplar.
Nunca Cristóvão Colombo mostrou-se tão obstinado em descobrir a América,
nunca Vasco da Gama foi tão persistente em encontrar a Índia, quanto o marquês
de Chalabre na caçada à sua Bíblia. A América, contudo, existia entre o grau 70°
de latitude norte e os 53° e 54° de latitude sul, enquanto a Índia estendia-se
efetivamente aquém e além do Ganges, ao passo que a Bíblia do marquês de
Chalabre não existia sob nenhuma latitude e tampouco estendia-se além ou
aquém do Sena. Daí resulta que Vasco da Gama encontrou a Índia, Cristóvão
Colombo descobriu a América e o marquês procurou, procurou, de norte a sul,
de leste a oeste, e não encontrou sua Bíblia.
Quanto mais inacessível, maior a obstinação do marquês em encontrá-la.
Oferecera por ela quinhentos francos, oferecera mil francos, oferecera dois
mil, quatro mil, dez mil francos. Os bibliógrafos, sem exceção, não se entendiam
a respeito da malfadada Bíblia. Escreveu-se para a Alemanha e a Inglaterra.
Nada. Ninguém se esfalfaria de tal maneira baseado apenas numa informação
de Chalabre, teriam simplesmente respondido: Ela não existe. Mas, sendo de
Nodier a informação, a coisa mudava de figura. Se Nodier dissesse: a Bíblia
existe, incontestavelmente a Bíblia existia. O papa podia se enganar, Nodier era
infalível.
As buscas duraram três anos. Todos os domingos o marquês de Chalabre,
almoçando com Nodier na casa de Pixérécourt, perguntava-lhe:
— E então! E essa Bíblia, meu caro Charles?
— Que tem ela?
— Inencontrável!
— Quaere et invenies48 — respondia Nodier.
E, imbuído de um novo ânimo, o bibliômano voltava a procurar, mas não
encontrava.
Terminaram por apresentar uma Bíblia ao marquês de Chalabre.
Não era a Bíblia indicada por Nodier, mas na data só havia a diferença de um
ano; não era impressa em Kehl, mas em Estrasburgo, distante apenas uma légua;
não era única, verdade, mas o único outro exemplar que existia, encontrava-se
no Líbano, perdido em um mosteiro druso. O marquês de Chalabre levou a Bíblia
a Nodier e pediu-lhe um parecer:
— Ora! — respondeu Nodier, que via o marquês prestes a enlouquecer se
não tivesse uma Bíblia qualquer. — Pegue essa, caro amigo, já que é impossível
encontrar a outra.
O marquês de Chalabre comprou a Bíblia mediante a soma de dois mil
francos, mandou encaderná-la de maneira esplêndida e guardou-a num estojo
especial.
Quando morreu, o marquês de Chalabre deixou sua biblioteca para a srta.
Mars.49 A srta. Mars, que era tudo menos bibliômana, pediu a Merlin
50 que
classificasse os livros do defunto e os pusesse à venda. Merlin, o homem mais
honesto da terra, adentrou um dia a casa da srta. Mars com trinta ou quarenta mil
francos em espécie na mão.
Encontrara-os dentro de uma espécie de carteira escondida no interior da
magnífica encadernação daquela Bíblia quase única.
— Por que — perguntei a Nodier — pregou essa peça no pobre marquês de
Chalabre, logo você, tão pouco amigo das farsas?
— Porque ele estava se arruinando, meu amigo, e porque durante os três anos
em que procurou sua Bíblia, não pensou em outra coisa. No fim desses três anos,
queimou dois mil francos; durante esses três anos, teria queimado cinquenta mil.
Agora que já mostramos nosso bem-amado Charles durante a semana e aos
domingos de manhã, descrevamos o que ele era aos domingos das seis horas da
tarde até a meia-noite.
Como conheci Nodier?
Como todos conheciam Nodier. Ele me fizera um favor — foi em 1827 —, eu
acabava de terminar Christine.51 Não conhecia ninguém nos ministérios,
ninguém no teatro. Meu agente, em vez de me ajudar a chegar à ComédieFrançaise,
era uma pedra no meu sapato. Dois ou três dias antes, eu escrevera
este último verso, tão apupado e tão aplaudido:
Pois bem…! Serei piedosa, meu pai, matem-no!
Sob esses versos, eu havia escrito a palavra FIM. Não me restava mais nada a
fazer senão ler minha peça aos senhores comediantes do rei, e ser aceito ou
recusado por eles.
Infelizmente, nessa época, o governo da Comédie-Française era, como o
governo de Veneza — republicano, mas aristocrático —, e não era qualquer um
que se aproximava dos sereníssimos senhores do comitê.
De fato, havia um examinador encarregado de selecionar obras de jovens
inéditos, os quais, por conseguinte, não tinham direito a uma leitura senão após tal
parecer. Contavam-se, porém, na tradição dramática, histórias tão lúgubres de
manuscritos esperando um, dois anos, até três, por sua leitura que eu, íntimo de
Dante e Milton, não ousava enfrentar aqueles limbos, tremendo de medo que
minha pobre Christine fosse simplesmente aumentar o número de
Questi sciaurati, che mai no fur vivi.52
Eu ouvira falar de Nodier como protetor inato de todo poeta no nascedouro.
Pedi um bilhete de apresentação junto ao barão Tay lor.53 Ele aceitou fazê-lo.
Uma semana depois fui lido no Théâtre Français, e mais ou menos recebido.
Digo mais ou menos porque havia em Christine, relativamente ao período em
que vivíamos, isto é, o ano da graça de 1827, tais enormidades literárias que os
senhores atores ordinários do rei não ousaram me receber de pronto,
subordinando sua opinião à do sr. Picard,54 autor de A cidadezinha.
O barão Taylor.
O sr. Picard era um dos oráculos da época.
Firmin
55 me levou à casa dele. O sr. Picard me recebeu numa biblioteca
recheada com todas as edições de suas obras e enfeitada com seu busto. Pegou
meu manuscrito, marcou encontro comigo para dali a uma semana e se
despediu.
Uma semana depois, contada pelas horas, apresentei-me à porta do sr.
Picard. Visivelmente, o sr. Picard não me esperava, recebendo-me com o sorriso
de Rigobert56 em Casa à venda.
— Cavalheiro — ele me disse, estendendo-me os originais adequadamente
enrolados —, porventura dispõe de meios de subsistência?
Preâmbulo nada animador.
— Sim, senhor — respondi. — Tenho um modesto emprego na casa do sr.
duque de Orléans.
— Pois bem, minha criança — aconselhou-me, colocando afetuosamente
meu casaco entre suas duas mãos e pegando as minhas ao mesmo tempo —,
volte para o seu escritório!
E, encantado por haver se pronunciado, esfregou as mãos, indicando com o
gesto que a audiência chegara ao fim.
Nem por isso deixava eu de dever um agradecimento a Nodier. Apresenteime
no Arsenal. Nodier recebeu-me como recebia, com um sorriso também…
Mas há sorrisos e sorrisos, alerta Molière.57
Talvez um dia eu esqueça o sorrido de Picard, mas nunca esquecerei o de
Nodier.
Queria provar a Nodier que não era de forma alguma tão indigno de sua
proteção quanto a resposta de Picard poderia tê-lo feito pensar. Deixei meus
originais com ele. No dia seguinte, recebi uma carta encantadora que me
devolvia toda a coragem e me convidava para os serões do Arsenal.
Estes eram uma coisa mágica, que nenhuma pena será capaz de reproduzir.
Aconteciam aos domingos e começavam, na realidade, às seis horas.
Pontualmente às seis, a mesa era posta. Havia os comensais fundadores:
Cailleux, Tay lor e Francis Wey, a quem Nodier amava como um filho;58 mais
tarde, eventualmente, um ou dois convidados e, depois, quem quisesse.
Uma vez admitido nessa encantadora intimidade, ia-se jantar à casa de
Nodier para desfrutar de seu dono. Havia sempre dois ou três lugares à mesa
esperando os convidados de última hora. Se os três lugares fossem insuficientes,
acrescentava-se um quarto, um quinto, um sexto. Se fosse preciso estender a
mesa, ela era estendida. Mas ai do décimo terceiro a chegar! Este jantava
impiedosamente a uma mesinha, a menos que um décimo quarto viesse tirá-lo
do castigo.
Nodier tinha suas manias: preferia o pão preto ao pão de farinha branca, o
estanho à prataria, a lamparina à vela.
Ninguém dava atenção a isso, a não ser a sra. Nodier, que obedecia ao seu
gosto.
Ao fim de um ou dois anos, eu fazia parte dessa intimidade que mencionei
acima. Podia chegar sem aviso, na hora do jantar. Recebiam-me com gritos que
não deixavam dúvida quanto à minha boa acolhida, e instalavam-me à mesa, ou
melhor, eu me instalava à mesa entre a sra. Nodier e Marie.
Decorrido certo tempo, o que não passava de uma cláusula de fato tornou-se
uma cláusula de direito. Chegava eu tarde demais, já estavam todos à mesa, meu
lugar estava ocupado? Faziam um sinal de desculpas ao comensal usurpador,
meu lugar me era devolvido; juro, sentavam num lugar qualquer aquele que eu
deslocara.
Nodier então afirmava que eu era sua salvação, na medida em que o
dispensava de entrar em debates. Mas se eu era a salvação para ele, era uma
danação para os demais. Nodier era o conversador mais cativante que houve no
mundo. Podiam fazer com a minha conversação tudo que fazem para o fogo
realmente pegar, despertá-la, atiçá-la, adicionar-lhe a limalha que faz brotar
tanto as faíscas do espírito quanto as da forja: era verve, era entusiasmo, era
juventude. Contudo, não era jamais aquela bonomia, aquele encanto
inexprimível, aquela graça infinita com que, qual numa rede estendida, o
passarinheiro pega tudo, aves de pequeno e grande porte. Eu não era Nodier.
Era um paliativo que dava para o gasto, e só.
Mas às vezes eu estava enfastiado, às vezes não queria falar e, diante de
minha recusa, convinha naturalmente que, como dono da casa, Nodier falasse.
Então todo mundo escutava, crianças pequenas e homens ilustres. Era ao mesmo
tempo Walter Scott e Perrault,59 era o cientista às voltas com o poeta, era a
memória em luta com a imaginação. Não apenas era divertido ouvir Nodier, vê-
lo fazia bem. Seu corpo comprido e esguio, seus braços magros e extensos, suas
mãos finas e pálidas, seu rosto alongado cheio de uma bondade melancólica, tudo
isso se harmonizava com sua fala um tanto arrastada, modulada por certas
ênfases periodicamente introduzidas, um sotaque do Franche-Comté que Nodier
nunca perdeu completamente.60 Oh, então a narrativa era coisa inesgotável,
sempre nova, nunca repetida. O tempo, o espaço, a história e a natureza eram
para Nodier aquela bolsa de Fortunato, da qual Peter Schlemihl retirava as mãos
sempre cheias.61 Conhecera todo mundo, Danton, Charlotte Corday, Gustavo III,
Cagliostro, Pio VI, Catarina II, o grande Frederico, que sei eu?62 Como o conde
de Saint-Germain
63 e o taratantaleo, assistira à criação do mundo e atravessara
os séculos transformando-se. Tinha inclusive uma teoria das mais engenhosas
sobre essa transformação. Segundo Nodier, os sonhos não passavam de uma
recordação de dias vividos em outro planeta, uma reminiscência de outros
tempos. Segundo ele, os sonhos mais fantásticos correspondiam a fatos
acontecidos em outros tempos, em Saturno, Vênus ou Mercúrio. As imagens
mais estranhas não passavam da sombra das formas que haviam gravado suas
lembranças em nossa alma imortal. Ao visitar pela primeira vez o Museu dos
Fósseis do Jardim das Plantas, impressionara-se ao encontrar animais que vira no
dilúvio de Deucalião e Pirra e às vezes deixava escapar que, notando a tendência
dos Templários ao domínio universal, ele aconselhara Tiago de Molay a refrear
sua ambição.64 Não era culpa sua se Jesus Cristo fora crucificado: fora o único
de seus seguidores a deixá-lo de sobreaviso quanto às más intenções de Pilatos.
Mas com quem Nodier mais esbarrara fora com o Judeu Errante: a primeira vez
em Roma, na época de Gregório VII; a segunda, em Paris, na véspera da noite
de São Bartolomeu; e a última em Vienne, na região do Dauphiné, quando ele
carregava consigo documentos de grande valor.65 E, a esse propósito, apontava
um erro no qual haviam caído os cientistas e os poetas, em especial Edgar
Quinet:66 não era Ahasverus, que é um nome meio grego meio latino, apelidado
de o homem dos cinco tostões, era Isaac Laquedem; era por este que ele
respondia, obtivera a informação de sua própria boca. Depois da política, da
filosofia e da tradição, ele passava à história natural. Oh, como nessa ciência
Nodier distanciava-se de Heródoto, Plínio, Marco Polo, Buffon e Lacépède!67
Conhecera aranhas ao lado das quais a aranha de Pélisson não passava de uma
piada, convivera com sapos que faziam Matusalém parecer uma criança.68 Por
fim, travara relações com jacarés perto dos quais a tarasca não passava de uma
lagartixa.
Isaac Laquedem.
Da mesma forma, aconteciam a Nodier esses acasos que só acontecem aos
homens de gênio. Um dia em que procurava lepidópteros — foi durante sua
temporada na Estíria, país das rochas graníticas e das árvores seculares —, ao
subir numa árvore para explorar uma cavidade que percebera no tronco enfiou a
mão dentro dela como era seu costume — fazia isso com tanta imprudência que
em outra oportunidade, quando retirou o braço de uma toca similar, havia nele,
como um enfeite, uma cobra enroscada — um dia, portanto, descobrindo uma
toca, enfiou a mão e sentiu alguma coisa de flácido e pegajoso que cedia à
pressão de seus dedos. Retirou imediatamente a mão e observou: dois olhos
refletiam um fogo baço no fundo da toca. Nodier acreditava no diabo. Assim,
vendo aqueles dois olhos que não pareciam pouco com os olhos incandescentes
de Caronte, como disse Dante,69 a primeira reação de Nodier foi fugir. Contudo,
refletiu, desceu, pegou uma machadinha e, depois de calcular a profundidade da
toca, começou por fazer uma abertura no lugar onde presumia encontrar-se
aquele elemento desconhecido. Na quinta ou sexta machadada, a árvore
esguichou sangue, nem mais nem menos que, sob a espada de Tancredo,70
esguichou sangue da floresta encantada de Tasso. Mas não foi uma bela guerreira
que apareceu, foi um enorme sapo incrustado na árvore, para onde, sem dúvida,
fora arrastado pelo vento, quando era do tamanho de uma abelha. Há quanto
tempo estava ali? Duzentos, trezentos, quinhentos anos, talvez. Tinha quinze
centímetros de comprimento por nove de largura.
Outro caso ocorreu na Normandia, na época em que Nodier fazia com
Taylor certa viagem pitoresca da França, quando entrou numa igreja. Na
abóbada dessa igreja achavam-se pendurados uma aranha gigantesca e um sapo
descomunal. Ele se dirigiu a um camponês para pedir informações sobre aquele
casal sui generis.
Eis o que, após tê-lo conduzido até uma das lápides da igreja, na qual estava
esculpido um cavaleiro deitado vestindo sua armadura, o velho camponês lhe
contou:
O tal cavaleiro era um antigo barão, que deixara no país lembranças tão
funestas que os mais temerários desviavam para não pisar sobre seu túmulo, e
isso não por respeito, mas por terror. Sobre esse túmulo, em consequência de um
juramento feito por esse cavaleiro em seu leito de morte, deveria arder uma
lamparina noite e dia. Uma piedosa doação, feita pelo morto, que subvencionava
essa despesa e muitas outras.
Um belo dia, ou melhor, uma bela noite em que por acaso o pároco não
dormia, ele viu, da janela de seu quarto, que dava para a da igreja, a lamparina
empalidecer e apagar. Atribuiu o fato a um acidente e não lhe dispensou maiores
atenções.
Na noite seguinte, contudo, acordando por volta das duas da manhã, ocorreulhe
certificar-se de que a lamparina ardia. Desceu da cama, aproximou-se da
janela e constatou de visu que a igreja achava-se mergulhada na mais profunda
escuridão.
O episódio, que se repetiu duas vezes em quarenta e oito horas, foi ganhando
certa gravidade. No dia seguinte, ao nascer do sol, o pároco mandou chamar o
bedel e terminou por acusá-lo de colocar o azeite na própria salada em vez de na
lamparina. O bedel jurou pelos seus grandes deuses que não fora nada daquilo —
havia quinze anos tinha a honra de ser bedel —, enchia conscienciosamente a
lamparina. Aquilo só podia ser um trote do malvado cavaleiro, que, após
atormentar os vivos em vida, voltava a atormentá-los trezentos anos depois de
morto.
O pároco declarou acreditar plenamente na palavra do bedel, porém mesmo
assim desejava estar presente quando ele fosse abastecer a lamparina no fim do
dia. Consequentemente, ao cair da noite e na presença do pároco, o azeite foi
introduzido no recipiente e a lamparina, acesa. Feito isso, o próprio pároco fechou
a porta da igreja, meteu a chave no bolso e se retirou para seus aposentos.
Pegou então o breviário, instalou-se numa grande poltrona próxima à janela
e, com os olhos alternadamente concentrados no livro e na igreja, esperou.
Em torno da meia-noite, viu a luz que iluminava os vitrais diminuir,
empalidecer e extinguir-se.
Daquela vez, havia uma causa estranha, misteriosa e inexplicável, com a qual
o pobre bedel não tinha relação alguma.
Por um instante, o pároco pensou que ladrões se introduziam na igreja e
roubavam o azeite. Porém, supondo o delito cometido por ladrões, eram
rapazolas bem honestos, uma vez que se limitavam a roubar o azeite, poupando
os vasos sagrados.
Não eram ladrões, portanto. A causa era outra, diferente de tudo que se
imaginava, uma causa sobrenatural talvez. O pároco resolveu desvendá-la, fosse
ela qual fosse.
Na noite seguinte, ele mesmo despejou o azeite para se convencer de que não
estava sendo iludido por nenhum truque de mágica. Depois, em vez de sair, como
fizera na véspera, escondeu-se num confessionário.
As horas se passaram, a lamparina iluminava com um fulgor calmo e
uniforme. Deu meia-noite.
O pároco julgou ouvir um leve ruído, semelhante ao de uma pedra se
movendo. Em seguida, viu como que a sombra de um animal com patas
gigantescas, cuja sombra subiu numa coluna, correu ao longo de uma cornija,
apareceu por um instante na abóbada, desceu ao longo da corda do sino e fez
uma escala na lamparina, que começou a empalidecer, vacilou e se apagou.
O pároco se viu na mais completa escuridão. Compreendeu que era uma
experiência a ser repetida, aproximando-se do lugar onde acontecia a cena.
Nada mais fácil: em vez de se refugiar no confessionário que ficava no lado
da igreja oposto à lamparina, bastava ele se esconder no confessionário situado a
poucos metros dela.
Na noite seguinte, tudo se repetiu como na véspera, salvo pela mudança de
confessionário por parte do pároco, que também se muniu de uma lanterna de
furta-fogo.71
Até a meia-noite, a mesma calma, o mesmo silêncio, a mesma honestidade
da lamparina no cumprimento de suas funções. Mas novamente, no último toque
da meia-noite, ouviu-se o mesmo estalo da véspera. Com a diferença de que,
como o estalo se produzia a quatro passos do confessionário, os olhos do pároco
puderam imediatamente se fixar na área de onde vinha o barulho.
Era o túmulo do cavaleiro que estalava.
Em seguida, a lápide esculpida que cobria o sepulcro ergueu-se lentamente e,
do vão do túmulo, o pároco viu sair uma aranha do tamanho de um peixe, com
dezoito centímetros de comprimento, patas medindo uma vara, a qual se pôs
incontinenti, sem hesitação, sem procurar pelo caminho que lhe era visivelmente
familiar, a escalar a coluna, correr sobre sua cornija, descer ao longo da corda e,
lá chegando, beber o azeite da lamparina, que se apagou.
O pároco recorreu à sua lanterna, cujos raios dirigiu para o túmulo do
cavaleiro.
Percebeu então que o que a mantinha entreaberta era um sapo do tamanho
de uma tartaruga-marinha, o qual, ao inchar, erguia a lápide e dava passagem à
aranha, que corria para sorver o azeite e voltava para dividi-lo com o
companheiro.
Ambos viviam assim fazia séculos naquele túmulo, onde provavelmente
morariam hoje se um incidente não houvesse revelado ao pároco a presença de
um ladrão qualquer em sua igreja.
No dia seguinte, o pároco requereu braços fortes para erguer a pedra do
túmulo e executar o inseto e o réptil, cujos cadáveres foram pendurados no teto
como prova daquele estranho episódio.
A propósito, o camponês que contava o caso a Nodier era um dos que haviam
sido chamados pelo pároco para combater os dois comensais do túmulo do
cavaleiro e, como ele, cismara com o sapo. Uma gota de sangue do imundo
animal que pingara sobre sua pálpebra quase o deixara cego como Tobias.72
Saiu no lucro, ficando apenas caolho.
* * *
Nodier era inesgotável com suas histórias de sapo. Havia alguma coisa de
misterioso na longevidade desse animal que agradava à sua imaginação. Por
exemplo, sabia todas as histórias de sapos centenários ou milenares, sendo de sua
competência todos aqueles descobertos em pedras ou troncos de árvore, desde o
sapo descoberto em 1756 pelo escultor Leprince, em Eretteville, no cerne de um
rochedo onde estava incrustado, até o sapo confinado por Hérissant, em 1771,
num compartimento de gesso, que ele reencontrou vivinho da silva em 1774.73
Quando se perguntava a Nodier de que viviam os infelizes prisioneiros, sua
resposta era: de sua pele. Estudara um sapo de segunda categoria que trocara de
pele seis vezes num inverno, engolindo seis vezes a velha. Quanto aos
encontrados em pedras de formação primitiva, da época da criação do mundo,
como o sapo descoberto na jazida de Brunswick, em Gothie, a completa
inatividade na qual haviam sido obrigados a permanecer, a suspensão da vida
numa temperatura que não permitia nenhuma dissolução e que não tornava
necessária a compensação de nenhuma perda, a umidade do lugar, que
preservava a do animal e impedia sua destruição por ressecamento, tudo isso
parecia a Nodier razões suficientes para uma convicção na qual ele professava
fé e ciência ao mesmo tempo.
Aliás, como dissemos, Nodier possuía certa humildade natural, certa
inclinação a se apequenar, que o arrastava para os simples e humildes. O Nodier
bibliófilo descobria obras-primas ignoradas, que ele exumava do túmulo das
bibliotecas; o Nodier filantropo descobria entre os vivos poetas desconhecidos,
que ele trazia à tona e conduzia à celebridade. Toda injustiça, toda opressão o
revoltavam e, segundo ele, oprimia-se o sapo, era-se injusto com o sapo,
ignoravam-se ou negavam-se a conhecer as virtudes do sapo. O sapo era bom
amigo, Nodier já provara isso pela parceria do sapo com a aranha e, a rigor,
provava duas vezes, contando outra história de sapo e lagartixa, não menos
fantástica que a primeira — o sapo era portanto não apenas bom amigo, mas
também um bom pai e bom esposo. Sendo o parteiro da própria mulher, o sapo
dera aos maridos as primeiras lições de amor conjugal; envolvendo os ovos de
sua família em torno das patas traseiras ou carregando-os nas costas, dera aos
chefes de família a primeira lição de paternidade. Quanto à baba que o sapo
espalha ou expele se atormentado, Nodier garantia que era a substância mais
inócua do mundo, preferindo-a à saliva de muitos críticos de arte seus
conhecidos.
Não que esses críticos não fossem recebidos em sua casa como os demais e,
inclusive, bem recebidos. Contudo, pouco a pouco, iam se retirando
espontaneamente, pois não ficavam à vontade em meio à benevolência que era a
atmosfera natural do Arsenal, através da qual o deboche não passava senão
como passa um pirilampo em meio àquelas bonitas noites de Nice e Florença,
isto é, para emitir um lampejo e logo se apagar.
Chegava-se ao fim de um jantar encantador, no qual todos os incidentes, com
exceção do sal na toalha, ou do pão caído ao contrário, eram encarados pelo lado
filosófico. Em seguida, o café era servido na mesa. No fundo, Nodier era um
sibarita,74 deleitando-se com o estado de sensualidade perfeita, que não coloca
nenhum movimento, deslocamento ou perturbação entre a sobremesa e o
coroamento da sobremesa. Durante esse momento de delícias asiáticas, a sra.
Nodier se levantava e ia acender as luzes do salão. Muitas vezes, eu, que não
tomava café, fazia-lhe companhia. Minha estatura alta mostrava-se utilíssima
quando se tratava de acender o lustre sem subir nas cadeiras.
O salão então se iluminava, pois, antes do jantar e nos dias comuns, era-se
recebido exclusivamente nos aposentos da sra. Nodier. Iluminado o salão,
clareavam-se os lambris, pintados de branco com relevos Luís XV, um
mobiliário dos mais simples, composto de doze poltronas e um sofá em casimira
vermelha, cortinas xadrez da mesma cor, um busto de Hugo, uma estátua de
Henrique IV, um retrato de Nodier e uma paisagem alpina de Régnier.75
Nesse salão, cinco minutos depois de iluminado, entravam os convidados.
Nodier vinha por último, apoiado seja no braço de Dauzats, seja no braço de
Bixio, seja no braço de Francis Wey, seja no meu, sempre suspirando e se
queixando como se a respiração fosse seu único patrimônio.76 Ia então estenderse
numa grande poltrona à direita da lareira, com as pernas esticadas e os braços
pendentes, ou postar-se de pé diante dela, com as panturrilhas ao fogo e de costas
para o espelho. Quando se acomodava na poltrona, estava tudo dito. Nodier,
mergulhado naquele instante de beatitude proporcionado pelo café, queria
desfrutar egoisticamente de si mesmo e seguir em silêncio o sonho de seu
espírito; quando se recostava próximo à lareira, era diferente: desejava falar.
Então todos se calavam, então se desenrolava uma daquelas encantadoras
histórias de sua juventude, que pareciam um romance de Longus, um idílio de
Teócrito ou algum sombrio drama da Revolução, cujo palco era sempre um
campo de batalha da Vendeia ou a praça da Revolução, ou ainda alguma
misteriosa conspiração de Cadoudal ou de Oudet, de Staps ou de Lahorie.77
Nesse caso, os que entravam faziam silêncio, cumprimentavam com a mão e
iam sentar-se numa poltrona ou recostar-se no lambri. A história terminava como
terminam todas as coisas. Ninguém aplaudia, da mesma forma que ninguém
aplaude o murmúrio de um rio ou o canto de um pássaro. Porém, extinto o
murmúrio, sumido o canto, ainda escutávamos. Então, Marie, sem falar nada,
instalava-se ao piano e, subitamente, uma brilhante girândola de notas espocava
nos ares como o prelúdio de um fogo de artifício. Então os jogadores, relegados
aos cantos, punham-se às mesas e jogavam.
Nodier por muito tempo só jogara batalha, era seu jogo predileto e no qual se
julgava uma força superior. Terminou fazendo uma concessão ao século e
jogava canastra.
Então Marie entoava versos de Hugo, de Lamartine ou meus, musicados por
ela. Depois, em meio àquelas encantadoras melodias, sempre curtas demais,
ouvia-se deflagrar o estribilho de uma contradança. Os cavalheiros procuravam
seus pares e um baile tinha início.
Baile encantador, pelo qual Marie era a única responsável, lançando, em
meio aos ágeis trinados que seus dedos bordavam nas teclas do piano, uma
palavra àqueles mais próximos a ela, a cada travessia, a cada corrente de damas,
a cada troca de lado. Nesse momento, Nodier desaparecia, completamente
eclipsado, pois não era um desses donos de casa absolutistas e resmungões cuja
presença sentimos e aproximação adivinhamos. Era o anfitrião da Antiguidade,
que se ofusca para dar lugar àquele a quem recebe, contentando-se em ser
gracioso, fraco, quase feminino.
Nodier, por sinal, após ofuscar-se um pouco, logo desaparecia
completamente. Nodier deitava cedo, ou melhor, deitavam Nodier cedo. Era a
sra. Nodier que se incumbia desse desvelo. No inverno, era a primeira a deixar o
salão, depois, às vezes, quando as brasas morriam na cozinha, via-se um braseiro
passar, se encher e entrar no quarto. Nodier seguia o braseiro e estava tudo dito.
Dez minutos depois, a sra. Nodier reaparecia. Nodier estava deitado e dormia
ao som das melodias de sua filha e ao ruído dos passos e risos dos dançarinos.
Um dia encontramos Nodier muito mais humilde que o normal. Dessa vez,
parecia encabulado, envergonhado. Preocupados, perguntamos o que tinha.
Nodier acabava de ser eleito para a Academia.
Pediu-nos suas mais humildes desculpas, a Hugo e a mim.
Mas não era culpa sua, a Academia nomeara-o quando ele menos esperava.
É que Nodier, cuja erudição valia a de todos os acadêmicos juntos, andava
demolindo o dicionário da Academia, pedra por pedra. Contava que o “imortal”
encarregado de elaborar o verbete Lagostim um dia lhe mostrara esse verbete,
pedindo sua opinião.
O texto fora concebido nos seguintes termos:
Lagostim, peixe pequeno e vermelho que anda para trás.
— Vejo apenas um errinho em sua definição — respondeu Nodier —, é que o
lagostim não é peixe, o lagostim não é vermelho, o lagostim não anda para trás.
O resto está certo.
Esqueço-me de dizer que, nesse ínterim, Marie Nodier se casara, tornando-se
sra. Mennessier, mas tal casamento em nada alterara a vida no Arsenal. Jules era
amigo de todos: se há muito tempo o víamos chegar à casa, passou a estar lá em
vez de chegar, só isso.
Engano meu, consumou-se um grande sacrifício: Nodier vendeu sua
biblioteca. Nodier amava seus livros, mas adorava Marie.
Cumpre acrescentar que ninguém como Nodier sabia criar a reputação de
um livro. Quisesse vender ou mandar vender um livro, glorificava-o com um
artigo. Com o que descobria dentro dele, transformava-o num exemplar único.
Lembro-me da história de um volume intitulado O Zumbi das terras peruanas,78
que Nodier declarou ter sido impresso nas colônias e cuja edição ele destruiu
com sua autoridade particular; o livro valia cinco francos, subiu para cem
escudos.
Embora tenha vendido seus livros em quatro lotes, Nodier continuava a
manter um pequeno acervo, um núcleo precioso, a partir do qual, no fim de dois
ou três anos, reconstruíra sua biblioteca.
Um dia, todas essas encantadoras festas foram canceladas. No último mês ou
dois, Nodier andava mais indisposto, mais resmungão. Em todo caso,
acostumados a ouvi-lo resmungando, não lhe demos a devida atenção. Isso
porque, em virtude de seu temperamento, era muito difícil separar a
enfermidade real dos sofrimentos quiméricos. Dessa vez, contudo, era clara sua
decadência. Acabaram-se os passeios pelos cais, os passeios pelos bulevares,
dando lugar apenas a passeios vagarosos, quando o céu cinzento era atravessado
por um último raio do sol de outono, num lento caminhar até Saint-Mandé.
O destino da caminhada era uma sórdida pensão, onde, em seus belos dias de
saúde, Nodier se regalava com pão preto; em geral, toda a família o
acompanhava nessas incursões, exceto Jules, preso no escritório: a sra. Nodier,
Marie e as duas crianças, Charles e Georgette. Ninguém queria mais largar o
marido, o pai e o avô. Sentiam que dispunham de pouco tempo em sua
companhia, e não o desperdiçavam.
Até o último momento, Nodier insistiu na continuação dos domingos. Mais
tarde, acabamos nos dando conta de que o barulho e o movimento no salão eram
insuportáveis para o doente em seu quarto. Um dia, Marie nos anunciou
tristemente que, no domingo seguinte, o Arsenal seria fechado, mas, bem
baixinho, para os íntimos, disse: “Não deixem de vir, conversaremos.”
Por fim, Nodier guardou o leito, para não mais levantar.
Fui visitá-lo.
— Oh, meu querido Dumas — ele disse, estendendo os braços tão logo me
viu —, na época em que eu estava em forma, você tinha em mim apenas um
amigo; agora, que estou doente, tem em mim um homem grato. Não consigo
mais trabalhar, mas ainda consigo ler e, como vê, leio-o e, quando estou cansado,
chamo minha filha e ela o lê para mim.
E, com efeito, Nodier me mostrou meus livros espalhados sobre sua cama e
sua mesa.
Foi um de meus momentos de autêntico orgulho. Nodier, isolado do mundo,
incapacitado para o trabalho, Nodier, esse espírito imenso, que sabia tudo, me lia
e se divertia ao me ler.
Tomei-lhe as mãos, tive vontade de beijá-las, tão grato me sentia.
Eu, por minha vez lera na véspera uma coisa de sua autoria, uma novela
recém-publicada em dois números da Revue des Deux Mondes.79
Era Inès de las Sierras.
Eu estava maravilhado. A novela, uma das últimas publicações de Charles,
tinha tanto frescor, tanto pitoresco, que mais parecia uma obra de juventude que
Nodier desencavara e trouxera à luz no outro horizonte de sua vida.
A história de Inès falava da aparição de espectros e fantasmas, porém todo o
fantástico da primeira parte deixava de sê-lo na segunda; o fim explicava o
início.
Queixei-me amargamente daquela explicação a Nodier:
— É verdade — ele me disse — errei. — Mas tenho outra história, e essa eu
não vou estragar, não se preocupe.
— Virá em boa hora, e quando pretende se dedicar a essa obra?
Nodier tomou minhas mãos.
— Essa eu não vou estragar porque não serei eu a escrevê-la — declarou.
— E quem o fará?
— Você.
— Eu, meu bom Charles? Mas nem conheço a trama.
— Vou lhe contar. Oh! Essa eu havia guardado para mim, ou melhor, para
você.
— Meu bom Charles, é você quem irá contá-la, escrevê-la e publicá-la.
Nodier sacudiu a cabeça.
— Vou contá-la, mas para você — ele insistiu. — Caso eu mude de ideia,
você me devolve.
— Espere minha próxima visita. Temos tempo.
— Meu amigo, repito o que eu dizia a um credor quando lhe pagava uma
parcela: aceite sempre.
E ele começou.
Jamais Nodier narrara de maneira tão encantadora.
Oh, se eu tivesse uma pena, se eu tivesse papel, se eu pudesse escrever tão
depressa quanto as palavras eram ditas!
A história era longa, fiquei para jantar.
Depois do jantar, Nodier cochilou. Saí do Arsenal sem revê-lo.
Jamais o vi novamente.
Nodier, tido como alguém propenso às queixas, havia, ao contrário, escondido
seus achaques da família até o último momento. Descoberta a doença, constatouse
que era fatal.
Nodier não era apenas cristão, era um católico praticante. Encarregara Marie
de chamar um padre quando fosse a hora. No momento oportuno, Marie mandou
chamarem o pároco da igreja de São Paulo.
Nodier se confessou. Pobre Nodier. Se cometera muitos pecados em sua vida,
com certeza não cometera um erro.
Terminada a confissão, toda a família entrou.
Nodier estava numa alcova escura de onde estendia os braços para a mulher,
a filha e os netos.
Atrás da família, estavam os criados.
Atrás dos criados, a biblioteca, isto é, amigos que não mudam nunca — os
livros.
O pároco disse em voz alta as orações, às quais Nodier, um íntimo da liturgia
cristã, repetiu em voz alta. Em seguida, terminadas as preces, ele beijou e
tranquilizou a todos a respeito de seu estado, afirmando ainda sentir-se apto a
mais um ou dois dias de vida, sobretudo se o deixassem dormir algumas horas.
Deixaram Nodier sozinho, e ele dormiu durante cinco horas.
Na noite de 26 de janeiro, isto é, na véspera de sua morte, a febre subiu e
produziu um pouco de delírio. Por volta da meia-noite, ele já não reconhecia
ninguém e sua boca pronunciava palavras sem nexo, em meio às quais
distinguimos os nomes de Tácito e Fénelon.80
Às duas horas, a morte se anunciou e Nodier foi sacudido por uma violenta
crise. A filha estava debruçada em sua cabeceira e lhe estendia uma xícara de
poção calmante. Ele abriu os olhos, olhou Marie e a reconheceu pelas lágrimas.
Pegou então a xícara de suas mãos e sorveu avidamente a beberagem nela
contida.
— Estava bom? — perguntou Marie.
— Oh, sim, minha criança, como tudo que vem de você.
E a pobre Marie deixou sua cabeça cair sobre a cabeceira da cama, cobrindo
com os cabelos a fronte úmida do moribundo.
— Oh, se você ficasse nessa posição, eu não morreria nunca.
Amorte sempre impressionava.
As extremidades começavam a esfriar, mas, à medida que recuava, a vida ia
se concentrando no cérebro, dando a Nodier uma inteligência mais lúcida do que
ele jamais tivera.
Ele então abençoou a mulher e os filhos, indagando em seguida o dia em que
estavam.
— 27 de janeiro — respondeu a sra. Nodier.
— Vocês não esquecerão essa data, não é mesmo, meus amores? — disse
Nodier.
Depois, voltando-se para a janela, suspirou:
— Eu gostaria muito de ver o dia mais uma vez.
Em seguida, cochilou.
Sua respiração começou a falhar.
Por fim, quando o primeiro raio de sol bateu nos vidros, ele reabriu os olhos,
fez um sinal de despedida com os lábios, com o olhar, e expirou.
Junto com Nodier foi-se tudo do Arsenal, alegria, vida e luz. Foi um luto
coletivo. Perdendo Nodier, cada um perdia um pedaço de si mesmo.
Quanto a mim, não sei como dizer isso, mas carrego uma coisa morta dentro
de mim desde que Nodier morreu.
Essa coisa só vive quando falo de Nodier.
Eis por que falo tanto sobre ele.
A história que vamos ler agora é a que Nodier me contou.81
1. Marabuto: local sagrado muçulmano nos países da África do Norte.
2. Luís IX (1214-70), rei da França a partir de 1226 e canonizado em 1297,
morreu vítima da peste em Túnis durante a oitava cruzada e foi enterrado em
Cartago.
3. A saudação dirige-se a Marie Mennessier-Nodier (1811-93), filha de Charles
Nodier.
4. Marco Atílio Régulo (?-c.250 a.C.): general e cônsul romano, feito prisioneiro
pelos cartagineses durante a primeira guerra púnica, foi enviado a Roma pelos
inimigos a fim de negociar a paz. Bem-sucedido em sua missão e fiel à palavra,
retornou a Cartago, onde foi torturado e morto. Luís IX: ver nota 2.
5. Referência a santo Agostinho (354-430), que, antes de ser nomeado bispo de
Hipona (hoje Anaba, na Argélia, ex-Bona), vivera uma juventude tempestuosa,
como narra em suas Confissões (c.400).
6. Convidado pelo duque de Montpensier (1824-90) para o seu casamento com a
infanta da Espanha em Madri, Dumas é igualmente encarregado pelo governo
francês de uma “missão literária” na Argélia recém-colonizada. A viagem
resulta num livro batizado com o nome do navio no qual viajou, O veloz (1847),
destinado a divulgar esse país e suscitar vocações coloniais.
7. Louis Boulanger (1806-67): pintor romântico, aluno de Eugène Devéria (1805-
65). Alexandre Dumas, filho (1824-95): romancista e dramaturgo como o pai, é
conhecido sobretudo pela peça A dama das camélias (1848). Pierre-FrançoisEugène
Giraud (1806-81): pintor e caricaturista amigo de Dumas. Auguste
Maquet (1813-86): historiador por formação, será a partir de 1842 um dos
principais colaboradores de Dumas (em especial na trilogia dos Mosqueteiros),
até brigarem na justiça, por questões autorais, em 1857. Adolphe Desbarolles
(1801-86): pintor e litógrafo. Ausone de Chancel (1808-78): poeta romântico que
ingressou na administração colonial.
8. “nosso bem-amado Charles”: trata-se, naturalmente, de Charles Nodier (1780-
1844), autor fecundo, bibliotecário do Arsenal, pai da escola romântico-fantástica
francesa. Ver também a Apresentação a este volume.
9. Saadi (c.1213-91), poeta persa. A alusão é aos seguintes versos, em tradução
livre: “um perfumado pedaço de argila, um dia no banho/ Veio da mão de um ser
amado para a minha./ Perguntei: ‘Você é almíscar ou âmbar cinza?/ Pois seu
delicioso perfume intoxica-me.’/ E o objeto respondeu: ‘Eu era um desprezível
naco de barro;/ Mas por algum tempo acompanhado de uma rosa./ A perfeição
de quem me acompanhava tomou conta de mim.’”
10. Paul: Paul-Henri Foucher (1810-75), poeta dramático, cunhado de Victor
Hugo (ver nota 15). Francisque Michel (1809-87): professor, especialista em
história e literatura medievais. Lazzara: canção escrita sobre um poema de Victor
Hugo de 1828.
11. Antoine Fontaney (1803-37): escritor e frequentador do Arsenal, apaixonado
por Marie Nodier. Rapta Gabrielle Dorval, filha da atriz Marie Dorval, e foge
com ela para Londres, antes de voltar para morrer de tuberculose em Paris.
Alfred Johannot (1800-37): gravador e pintor de cenas históricas. Irmão de
Charles (1798-1825), igualmente gravador, e de Tony (1803-52), um dos mais
importantes ilustradores do livro romântico.
12. Isidore-Justin-Séverin, vulgo barão Tay lor (1789-1889), escritor e protetor dos
escritores e artistas românticos, na época representante do rei junto ao Théâtre
Français. Autor, em
colaboração com Nodier, de uma série intitulada Viagens pitorescas e românticas
pela antiga França, incentivou os escritores românticos e produziu a montagem
de Hernani, de Victor Hugo, em 1830.
13. Alfred de Vigny (1797-1863), típico poeta romântico francês, sua obra
caracteriza-se por um pessimismo radical, já contendo os germes da poesia de
Baudelaire, Verlaine e Mallarmé.
14. Alphonse de Lamartine (1790-1869), poeta, romancista, dramaturgo e
político, grande figura do romantismo francês. Assinou o decreto que abolia a
escravatura, em 27 de abril de 1848.
15. Victor Hugo (1802-55): dramaturgo, romancista e poeta maior francês, que
dominou a cena literária francesa ao longo do séc.XIX. Participou ativamente da
vida política, sendo um defensor ferrenho da República e da abolição da pena de
morte. Viveu no exílio, voluntário, os vinte anos do Segundo Império (1851-70), na ilha de Guernsey, entre a França e a Inglaterra, onde recebeu a visita do velho
amigo Dumas. Após a derrota dos franceses diante dos prussianos na batalha de
Sedan (1870) e a consequente proclamação da República, faz um retorno triunfal
à França. Etéocles e Polinice: personagens de diversas tragédias gregas
pertencentes ao ciclo tebano (por exemplo Sete contra Tebas, de Ésquilo,
Antígona, de Sófocles), são irmãos de Antígona e Ismênia, todos eles filhos
incestuosos de Jocasta com Édipo. Ao disputarem o trono de Tebas, após o exílio
dos pais, matam-se um ao outro. Etéocles é enterrado dignamente, o que é
negado aos despojos de Polinice, despertando a revolta de Antígona.
16. Adrien Dauzats (1804-68), pintor e cenarista, colaborou com Dumas em
Quinze dias no Sinai (1838).
17. Antoine-Louis Barye (1795-1868), grande escultor e aquarelista francês
romântico, especializado na escultura de animais.
18. Jean-Auguste Barre (1811-96): escultor francês. Jean-Jacques Pradier, vulgo
James Pradier (1790-1852): escultor e pintor suíço.
19. Apelido do filho de Marie Mennessier-Nodier, Emmanuel (1836-96).
20. “Constantina, a velha Cirta”: fundada em 202 a.C., na região noroeste da atual
Argélia, foi originariamente uma importante cidade fenícia. Destruída em 311,
foi reconstruída pelo imperador romano Constantino I (272-337), que lhe deu o
nome que perdura até hoje. Heródoto de Halicarnasso (c.484-c.420 a.C.):
viajante e historiador grego, considerado o “pai da história”. François Levaillant
(1753-1824): viajante e naturalista francês, autor de uma Viagem ao interior da
África (1790).
21. Útica (em cartaginês, “cidade antiga”, em oposição a Cartago, “cidade
nova”) refere-se a uma antiga vila portuária construída pelos fenícios, situada no
norte da atual Tunísia, assim como Bizerta, ponto estratégico entre o
Mediterrâneo e o lago de Bizerta.
22. Catão de Útica (95 a.C.-46 a.C.): bisneto de Catão o Antigo e adversário
ferrenho de Cartago, suicidou-se com um punhal em Útica, após a derrota de
Cipião em Tapso, ao sul de Sussa, atual Tunísia. Adepto do estoicismo, pouco
antes de se matar teria lido o Fédon, diálogo em que Platão aborda a
imortalidade da alma.
23. Adolphe de Saint-Valery (1796-1867), colaborador de La Muse Française,
órgão oficial dos românticos franceses, e bibliotecário. Em sua autobiografia
Minhas memórias, cap.121, Dumas descreve-o tendo “seis pés e uma polegada
de altura”.
24. Jules Mennessier (1802-77), com quem Marie Nodier se casa em 1830.
25. Sobre Francisco I, ver nota 75 em 1001 fantasmas.
26. A cidade siciliana de Catânia estende-se no sopé do vulcão Etna, em cuja
cratera, segundo a mitologia grega, Zeus e Palas-Atena enterraram vivo o
gigante Encélado.
27. Comuna situada a 40 quilômetros do centro de Paris.
28. Carlos IX (1550-1574), rei da França entre 1560 e 1574. Durante seu reinado
ocorreu a noite de São Bartolomeu (ver nota 65).
29. Jean Goujon (c.1510-?), arquiteto renascentista, considerado o Fídias francês.
No que parece ser mais uma lenda a seu respeito, teria morrido assassinado no
massacre de São Bartolomeu, isto é, na noite de 24 de agosto de 1572 (ver nota
65).
30. Sobre Henrique III, ver nota 36 em 1001 fantasmas.
31. Nicolau Bourbon (1503-49) e Jean Santeuil (1630-97), poetas franceses
medievais.
32. Luís XIII: ver nota 68 em 1001 fantasmas; Maximilien de Béthune, duque de
Sully (1559-1641): ministro do rei Henrique IV, embora protestante, persuadiu-o
a se converter ao catolicismo.
33. Flâneur: do verbo francês flâner, “flanar”, caminhar sem destino ou
preocupação. Fígaro: personagem de caráter indolente, criado por Beaumarchais
(ver nota 20 em 1001 fantasmas).
34. Públio Terêncio Afro (c.190-59 a.C.): dramaturgo latino nascido em Cartago,
autor da famosa réplica, a tantos atribuída: “Homo sum, humani nihil a me alienun
puto” (Sou homem e nada do que seja humano me é estranho).
35. Thérèse Aubert, A fada dos farelos, Inès de la Sierra: novelas de sucesso de
Nodier, datando respectivamente de 1819, 1832 e 1837.
36. Com uma dor de cabeça infernal, Zeus (Júpiter) pede a Hefaísto (Vulcano),
deus da forja, que lhe abra o crânio com uma machadada para aliviá-lo, e dele
nasce Palas-Atena (Minerva).
37. Pierre-Jean de Béranger (1780-1857), poeta popular e chansonnier.
38. François-Vincent Raspail (1794-1878), médico, químico e político francês,
autor de um Ensaio de química microscópica.
39. Jacques-Joseph Techener (1802-73): livreiro e bibliófilo parisiense. Guillemot:
livraria que data do séc.XVII.
40. René-Charles-Guilbert de Pixérécourt (1773-1844), mestre do melodrama,
cujas obras são representadas nos teatros do bulevar du Temple, em Paris, o
famoso “bulevar do crime”. Dentre suas mais de 150 peças, as mais conhecidas
são Victor, o filho da floresta (1798) e Celina ou A filha do mistério (1800). Dono
de uma fabulosa biblioteca de obras raras, com cerca de 4 mil volumes.
41. Pierre Corneille (1606-84), dramaturgo francês, autor de diversas tragédias e
membro da Academia.
42. Chalabre e Labédoy ère: bibliófilos, amigos de Nodier. Auguste-Simon-Louis
Bérard (1783-1859): político, adere à oposição liberal sob a Restauração e
desempenha um grande papel na revolução de Julho (ver nota 15 de 1001
fantasmas). É um dos redatores de uma nova Carta (a “Carta Bérard”), versão
amplamente modificada da Constituição de 1814, promulgada por Luís XVIII;
bibliófilo, escreveu um Ensaio bibliográfico sobre as edições dos elzevires (1822).
Elzevir: volume impresso por um membro da dinastia dos Elzevires, tipógrafos
holandeses dos sécs.XVI e XVII. Bibliófilo Jacob: ver nota 32 de 1001 fantasmas.
Charles Weiss (1779-1866): literato e bibliógrafo, amigo de infância de Charles
Nodier. Étienne-Gabriel Peignot (1767-1849): bibliógrafo e filólogo francês, autor
de importantes bibliografias.
43. Le Gascon, Du Seuil, Pasdeloup, Derome, Thouvenin, Bradel, Niedrée,
Bauzonnet, Legrain: famosos encadernadores dos séculos XVII, XVIII e XIX.
Le Gascon, em especial, encadernou a conhecida Guirlanda de Julie; Joseph
Thouvenin (1790-1834), muito reputado, era o encadernador pessoal de LouisPhilippe
Niedrée e disseminou o uso de dourado na área refilada das páginas.
44. Em latim, “Sobre todas as coisas conhecidas e outras mais”. Divisa do teólogo
italiano Luigi Pico della Mirandola (1463-94), designando ironicamente um
homem que se arvorava a saber tudo.
45. Jean-Gaspard Deburau (1796-1846), acrobata e mímico, grande intérprete de
Pierrô no teatro dos Funambules. Charles Potier (1775-1838): ator do teatro da
Porte Saint-Martin. François-Joseph Talma (1763-1826): um dos grandes atores
da Comédie-Française. Após sua morte, Alexandre Dumas reuniu seus papéis e
os publicou sob o título Memórias de J.-F. Talma escritas por ele mesmo (1850).
46. “Pantomima-arlequinada” escrita por Charles Nodier sob o pseudônimo
Laurent Père.
47. Casada com o conde Esprit Victor Elisabeth Boniface, conde de Castellane
(1762-1848), marechal e par de França, Louise Cordélia Eucharis Greffulhe
(1796-1847) foi amante do escritor François-René de Chateaubriand (1768-
1848), um dos precursores do romantismo e marco na história da literatura
francesa. Ainda hoje suas cartas para ela são objeto de cobiça em leilões de
manuscritos.
48. Em latim, “Procura e acharás”. Evangelho de são Lucas, vulgata latina, 11, 9.
49. Anne-Françoise-Hippoly te Boutet, ou srta. Mars (1799-1847), uma das
maiores atrizes francesas do período romântico, destacou-se na ComédieFrançaise.
50. Possivelmente o dono da livraria e tipografia J.S. Merlin, em Paris.
51. Engano de Dumas quanto às datas: a peça é da primavera de 1828. Além
disso, em suas Memórias, Dumas diz ter conhecido Nodier em 1823, na
apresentação de O vampiro. Sobre Christine, ver também nota 36 de 1001
fantasmas.
52. Em italiano, “Esses desafortunados que nunca foram vivos”, citação da
Divina comédia, Inferno, canto III, verso 64.
53. Sobre o barão Tay lor, ver nota 12 de A mulher da gargantilha de veludo.
54. Louis-Benoît Picard (1769-1828), autor bem-sucedido de numerosos
vaudevilles.
55. Assim era conhecido o ator francês J.B. François Becquerelle (1784-1859).
56. Herói desse vaudeville de Nicolas-Marie d’Alayrac (1753-1809).
57. Molière: pseudônimo de Jean-Marie Poquelin (1622-73), comediógrafo, ator
e diretor teatral francês, autor de O doente imaginário, O avarento e O
misantropo, entre várias outras obras.
58. Alexandre-Achille-Alphonse de Cailloux, vulgo Cailleux (1788-1876): pintor
que colabora nas Viagens pitorescas e românticas na antiga França, junto com o
barão Tay lor e Nodier (ver respectivamente notas 12 e 8 de A mulher da
gargantilha de veludo). Francis Wey (1812-82): literato e jornalista, chegou a
publicar uma Biografia de Charles Nodier, em 1844.
59. Sobre Walter Scott, ver nota 60 em 1001 fantasmas. Charles Perrault (1628-
1703): escritor francês, conhecido sobretudo por suas antologias de contos
populares, dentre os quais A bela adormecida, Cinderela e Chapeuzinho Vermelho.
60. O Franche-Comté, região da França próxima à fronteira com a Alemanha e
a Itália, preserva até hoje o uso de dialetos locais.
61. Em A maravilhosa história de Peter Schlemihl (1814), novela do escritor
romântico alemão Adalbert von Chamisso (1781-1838), o protagonista vende sua
sombra ao diabo em troca da “bolsa de Fortunato”, fonte inesgotável de ouro.
62. Sobre Danton, ver nota 46 de 1001 fantasmas. Charlotte Corday : ver o cap.5
de 1001 fantasmas. Gustavo III (1746-92): rei da Suécia, foi assassinado durante
um baile de máscaras. Sobre o conde de Cagliostro, ver nota 17 em 1001
fantasmas. Papa Pio VI, Giannangelo Graschi (1717-99): foi feito prisioneiro em
1797, quando Napoleão Bonaparte anexou os Estados pontifícios. Morreu no
cativeiro, em Valence, no sudeste da França. Catarina II a Grande (1729-96):
czarina russa, mecenas das artes e amiga dos iluministas franceses, não hesitou
em tentar impedir os avanços dos ares liberalizantes da Revolução Francesa.
Frederico II o Grande (1712-86): imperador da Prússia, modelo do “déspota
esclarecido”.
63. Sobre o conde de Saint-Germain, ver nota 17 em 1001 fantasmas.
64. Sobre o Jardim das Plantas, em Paris, ver nota 58 em 1001 fantasmas.
Deucalião e Pirra: personagens da mitologia grega cujas peripécias são descritas
no poema épico As metamorfoses, do poeta romano Ovídio (43 a.C.-?18 d.C).
Após escapar do Dilúvio e refugiar-se no monte Parnasso, o casal repovoa a
terra jogando para trás pedras que se transformam em seres humanos. Tiago de
Molay (1243-1314): último grão-mestre da ordem dos templários, foi preso e
queimado vivo a mando de Filipe o Belo (1268-1314), rei da França.
65. Sobre o Judeu Errante, ver nota 18 em 1001 fantasmas. Gregório VII (c.1015-
1085): papa a partir de 1073, foi o artífice do que ficaria conhecido como
“reforma gregoriana”, que pretendia recuperar o prestígio da Igreja, coibindo os
abusos por parte do clero. Noite de São Bartolomeu: noite de 24 de agosto de
1572, quando milhares de protestantes foram massacrados em Paris, numa fúria
que se estendeu por vários dias e por toda a França.
66. Edgard Quinet (1803-75), escritor e historiador francês, autor do poema em
prosa Ahas-verus (1833).
67. Sobre Heródoto, ver nota 2o. Plínio o Velho (séc.I): naturalista romano, autor
de uma enciclopédica História natural. Marco Polo (1254-1324): mercador e
aventureiro veneziano, empreendeu uma fabulosa viagem à China, onde
permaneceu por 17 anos. Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-88) e Bernard
Germain de Lacépède (1756-1825): dois renomados naturalistas franceses.
68. A aranha de Pélisson: o escritor e acadêmico francês Paul Pélisson (1624-
93), preso na Bastilha, teria levado meses domesticando uma aranha,
posteriormente esmagada por seu carcereiro. Matusalém: personagem mais
idoso do Antigo Testamento, tendo vivido 969 anos, segundo o Gênesis (5, 27).
69. Caronte: na mitologia grega, o barqueiro dos Infernos, que atravessa as almas
para a outra margem do rio Aqueronte. Dante Alighieri (1265-1321) evoca-o na
Divina comédia.
70. Tancredo: herói da Jerusalém libertada, do poeta italiano Torquato Tasso
(1544-95). Sem reconhecê-la, ele mata a guerreira sarracena Clorinda em
combate. É atormentado pelo remorso: ao enfrentar as árvores da floresta
encantada, vê sangue escorrendo delas e ouve a voz da bem-amada.
71. Espécie de lamparina com uma placa móvel que permite dirigir e controlar o
foco de luz, escamoteando, caso necessário, o seu portador.
72. Referência ao Livro de Tobias (Antigo Testamento), no qual o velho Tobias é
curado da cegueira graças a um unguento fornecido por um anjo.
73. Jean-Baptiste Leprince (1734-81): pintor, gravurista e escultor francês. LouisAntoine-Prosper
Hérissant (1745-69): bibliotecário, médico e botânico francês.
74. Sibarita: adjetivo que ganhou a conotação de “indivíduo sensual e ocioso”,
numa referência aos habitantes da cidade de Síbaris, colônia grega no sul da
Itália, conhecidos por tais características.
75. Auguste Jacques Régnier (1787-1860), pintor francês.
76. Sobre Dauzats, ver nota 16. Jacques-Alexandre Bixio (1806-65): médico por
formação, depois político. Dumas conhece-o nas barricadas de 1830.
77. Longus (sécs.II-III): escritor grego, autor do romance bucólico Dafne e Cloé.
Teócrito (séc.II): poeta pastoral grego de Siracusa. Batalha da Vendeia: ver nota
58 de 1001 fantasmas. Praça da Revolução: ver nota 97 de A mulher da
gargantilha de veludo. “Cadoudal… Lahorie”: todos esses personagens históricos,
que tentaram assassinar ou derrubar Napoleão, são evocados por Nodier em sua
História das sociedades secretas dos exércitos (1815). Georges Cadoudal (1771-
1804): um dos líderes da revolta bretã, executado na esteira de uma conspiração
frustrada. Jacques-Joseph Oudet (1773-1809): coronel republicano, filiado à loja
maçônica dos Filadelfos, teria, segundo Nodier, sido assassinado em 1809 por
ordens de Napoleão. Foi substituído à frente dos Filadelfos pelo general Malet,
que fomentou a famosa conspiração de 1812. Victor-Claude-Alexandre Lahorie
(1766-1812): implicado nessa conspiração de 1812, foi fuzilado em seguida.
Frédéric Staps: jovem patriota alemão que, ao tentar assassinar Napoleão no
palácio Schönbrun, em Viena, foi condenado à morte e fuzilado.
78. O Zumbi das terras peruanas, ou A princesa de Cocagne: romance de PierreCorneille
Blessebois (1646-1700), publicado em Rouen em 1697.
79. Periódico literário mais antigo da França, em circulação desde 1829, já teve
em suas páginas, entre outros, Dumas, Balzac, George Sand e Baudelaire.
80. Públio Cornélio Tácito (55-120): historiador romano, autor dos famosos Anais.
François Salignac de la Mothe-Fénelon (1651-1715): eclesiástico e escritor
francês, autor das Aventuras de Telêmaco, romance de formação inspirado na
Odisseia, de Homero.
81. Na realidade, Dumas inspira-se num breve conto do escritor americano
Washington Irving (1783-1859), intitulado A aventura do estudante alemão.
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