domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 786 : O Arsenal

O Arsenal

No dia 4 de dezembro de 1846, meu navio achando-se ancorado na baía de Túnis desde a véspera, acordei por volta das cinco da manhã com uma dessas sensações de profunda melancolia que deixam, por um dia inteiro, o olho úmido e o peito opresso. Essa sensação era fruto de um sonho. Pulei do beliche, enfiei uma calça, subi ao convés e observei o que havia à frente e ao redor de mim. Minha esperança era que a maravilhosa paisagem aberta sob meus olhos distraísse meu espírito daquela preocupação, tanto mais obstinada quanto menos real sua causa. À minha frente, ao alcance de um tiro de fuzil, eu via o píer, que se estendia do forte de la Goulette ao forte do Arsenal, deixando uma estreita passagem para os navios que desejassem atravessar do golfo para o lago. Esse lago, de águas azuis como o anil do céu por elas refletido, estava bastante agitado em certos lugares, graças a um grupo de cisnes que batiam suas asas em revoada, enquanto, sobre boias sinalizadoras instaladas aqui e ali para indicar baixas profundidades, mantinha-se imóvel, qual aves de sepulcros, um biguá que, subitamente, deixando-se cair como uma pedra, mergulhava para capturar sua presa, voltava à superfície da água com um peixe atravessado no bico, engolia esse peixe, subia novamente em sua boia e reassumia sua taciturna imobilidade, até que um novo peixe, passando ao seu alcance, despertasse-lhe o apetite e, vencendo sua preguiça, o fizesse desaparecer e reaparecer mais uma vez. Nesse ínterim, de cinco em cinco minutos, o ar era riscado por uma fila de flamingos cujas asas púrpuras contrastavam com o branco fosco de sua plumagem. Formando um losango, lembravam um baralho composto exclusivamente de ases de ouros voando em fila indiana. No horizonte avistávamos Túnis, isto é, um aglomerado de casas quadradas, sem janelas, sem aberturas, subindo pela encosta como os teatros da Antiguidade, brancas como giz e se destacando no céu com singular nitidez. À esquerda, elevavam-se, imensa muralha serrilhada, as montanhas de Chumbo, designação que denota sua tonalidade escura. Aos pés da cordilheira estendiamse o marabuto 1 e a aldeia de Sidi Fathallah. À direita, avistávamos o túmulo de são Luís2 e as ruínas de Cartago, duas das maiores lembranças incrustadas na história do mundo. Às nossas costas, balançava, ancorada, a Montezuma, magnífica fragata a vapor com quatrocentos e cinquenta cavalos-força. Com certeza tais elementos bastavam para distrair a imaginação mais inquieta. Diante de todas aquelas riquezas, qualquer um teria esquecido o ontem, o hoje e o amanhã. Meu espírito, contudo, a dez anos de distância, concentravase obstinadamente num único pensamento, que um sonho havia entranhado em meu cérebro. Meu olho não se movia. Todo aquele esplêndido panorama apagava-se aos poucos na vacuidade de meu olhar. Logo não enxerguei mais nada do que existia, a realidade desapareceu e, em meio àquele vazio brumoso, como que num passe de mágica, desenhou-se um salão com lambris brancos, em cuja saleta, sentada a um piano pelo qual seus dedos passeavam displicentemente, achava-se uma mulher inspirada e pensativa ao mesmo tempo, uma musa e uma santa. Reconheci essa mulher e murmurei, como se ela pudesse ouvir: — Ave, Maria,3 cheia de graça, o Senhor é convosco. Em seguida, sem mais resistir àquele anjo de asas brancas que me reconduzia aos meus dias de juventude e, como numa visão encantadora, apontava-me aquela casta figura de menina, moça e mãe, deixei-me arrastar na corrente desse rio que chamamos memória, o qual, em vez de descer rumo ao futuro, remonta em direção ao passado. Vi-me então invadido pelo sentimento, tão egoísta, e consequentemente tão natural ao homem, que o leva a não guardar seu pensamento para si, a intensificar suas sensações comunicando-as e, por fim, a verter noutra alma o doce ou amargo licor que transborda a sua. Tomei de uma pena e escrevi: A bordo do Véloce, Diante de Cartago e Túnis, 4 de dezembro de 1846 Senhora, Ao abrir uma carta datada de Cartago e de Túnis, a senhora se perguntará quem pode lhe escrever de tal lugar, esperando receber um autógrafo de Régulo ou de Luís IX.4 Quem dera! Senhora, aquele que de tão longe coloca sua humilde lembrança a seus pés não é nem herói nem santo, e se algum dia mostrou qualquer semelhança com o bispo de Hipona,5 cujo túmulo ele visitou três dias atrás, é somente à primeira parte da vida desse grande homem que tal comparação se aplicaria. Verdade que, seguindo seu exemplo, ele pode redimir a primeira parte da vida com a segunda. Contudo, já é tarde para fazer penitência. Segundo toda a probabilidade, ele morrerá como viveu, não ousando sequer deixar confissões, as quais, a rigor, se podem ser contadas, não podem ser lidas. Decerto já correu à assinatura, não é, senhora, e sabe com quem está a lidar. Sendo assim, agora deve estar se perguntando o que — entre esse magnífico lago que é o túmulo de uma cidade e o pobre monumento que é o sepulcro de um rei — leva o autor dos Mosqueteiros e do Monte Cristo a escrever-lhe, à senhora justamente, quando, em Paris, à sua porta, ele passa às vezes um ano inteiro sem lhe fazer uma visita. Em primeiro lugar, senhora, Paris é Paris, ou seja, uma espécie de turbilhão no qual perdemos a memória de todas as coisas, ensurdecidos pelo barulho das gentes ao correr e da Terra a girar. Em Paris, veja, faço como as gentes e a Terra: corro e giro, sem falar que, quando não estou correndo nem girando, escrevo. Mas, nesses momentos, senhora, é diferente, pois, ao escrever, já não me sinto tão afastado de si como imagina, pois a senhora é uma das raras pessoas em quem penso quando escrevo, sendo muito raro eu não ruminar, ao fim de um capítulo que me satisfaz ou de um livro que saiu a contento: “Marie Nodier, aquele espírito raro e encantador, lerá isto”, e fico orgulhoso, pois espero que, lendo o que acabo de escrever, eu ainda possa me engrandecer alguns milímetros em seu juízo. Seja como for, para voltar ao meu assunto, sonhei essa noite, não ouso dizer com a senhora, mas em torno da senhora, esquecendo a maré que sacudia o gigantesco vapor a mim emprestado pelo governo 6 e no qual dou hospitalidade a um de seus amigos e admiradores, Boulanger, e a meu filho, sem contar Giraud, Maquet, Chancel e Desbarolles, que estão entre seus conhecidos.7 Seja como for, dizia eu, dormi sem pensar em nada, e, como estou muito próximo ao país das Mil e uma noites, um gênio me visitou e fez entrar num sonho no qual a senhora era a rainha. O lugar aonde ele me conduziu, ou melhor, reconduziu, madame, era muito melhor que um palácio, muito melhor que um reino, era a boa e excelente casa do Arsenal em seus tempos de alegria e felicidade, quando nosso bem-amado Charles,8 com toda a franqueza da hospitalidade antiga, e nossa respeitadíssima Marie, com toda a graça da hospitalidade moderna, faziam suas honras. Ah, creia-me, senhora, ao escrever estas linhas acabo de deixar escapar um belo e alentado suspiro! Aquela foi uma época auspiciosa para mim. Suas maneiras encantadoras estendiam-na a todos e, eventualmente, atrevo-me a dizer, a mim mais que a qualquer outro. Note que é um sentimento egoísta que me aproxima de si. Alguma coisa eu captava de sua adorável alegria, como a pedra do poeta Saadi9 captava parte do perfume da rosa. Lembra-se da fantasia de arqueiro de Paul? E dos sapatos amarelos de Francisque Michel? E do meu filho, de estivador? E daquele desvão onde ficava o piano e onde a senhora cantava Lazzara,10 música magnífica cuja partitura me prometeu e que, digo-o sem me queixar, nunca me deu? Oh, uma vez que invoco essas lembranças, vou ainda mais longe: lembrase de Fontaney e de Alfred Johannot, figuras apagadas e sempre tristes em meio às nossas risadas, como se houvesse nos homens fadados a morrer jovens um vago pressentimento do túmulo?11 Lembra-se de Taylor,12 sentado num canto, imóvel, mudo e ruminando em que viagem nova poderá enriquecer a França com um quadro espanhol, uma frisa grega ou um obelisco egípcio? Lembra-se de de Vigny,13 que naquela época talvez duvidasse de sua transfiguração, ainda se dignando a misturar-se à multidão dos homens? Lembra-se de Lamartine,14 de pé diante da lareira, esparramando à nossa frente a harmonia de seus belos versos? Lembra-se de Hugo olhando para ele e escutando-o como Etéocles devia olhar e escutar Polinice,15 único entre nós com o sorriso da igualdade nos lábios, enquanto a sra. Hugo, jogando com seus belos cabelos, mantinha-se reclinada no sofá como se enfastiada da parte de glória a ela reservada? E, no centro de tudo isso, sua mãe, tão simples, generosa e delicada; sua tia, a sra. de Tercy, tão inteligente e benevolente; Dauzats,16 impagável, fanfarrão, cheio de verve; Bary e,17 tão isolado em meio ao vozerio geral que seu pensamento parecia sempre enviado pelo corpo em busca de uma das sete maravilhas do mundo; Boulanger, hoje tão melancólico, amanhã tão alegre, sempre tão grande pintor, sempre tão grande poeta, sempre tão bom amigo na alegria e na tristeza; depois, por fim, aquela garotinha esgueirandose por entre poetas, pintores, músicos, grandes homens, intelectuais e cientistas, aquela garotinha que eu pegava na concha da mão e lhe oferecia como uma estatueta de Barre ou Pradier?18 Oh, meu Deus, meu Deus! O que foi feito de tudo isso, senhora? O sopro do Senhor atingiu a pedra angular, o edifício mágico desmoronou. Aqueles que o povoavam fugiram e um deserto ocupa o lugar onde tudo era vivo, desabrochado, florido. Fontaney e Alfred Johannot estão mortos, Tay lor desistiu das viagens, de Vigny tornou-se invisível, Larmatine é deputado, Hugo, par de França, e Boulanger, meu filho e eu estamos em Cartago, de onde a vejo, senhora, enquanto dou esse belo e alentado suspiro do qual lhe falava há pouco e que, a despeito do vento que carrega numa nuvem a fumaça moribunda de nosso navio, jamais resgatará essas lembranças preciosas, carregadas pelo tempo de asas escuras para dentro da névoa cinzenta do passado. Ó primavera, juventude do ano! Ó juventude, primavera da vida! Pois bem, foi este o mundo evanescido que um sonho me restituiu noite passada, tão brilhante e visível, mas ao mesmo tempo, ai de mim!, tão impalpável quanto esses átomos que dançam num raio de sol infiltrado no quarto escuro pelo vão de uma persiana entreaberta. Agora, madame, já entende o motivo dessa carta, não é? O presente adernaria incessantemente não fosse mantido em equilíbrio pelo peso da esperança e o contrapeso das lembranças, e, infelizmente ou talvez felizmente, sou daqueles em quem as lembranças prevalecem sobre a esperança. Hora de mudar de assunto, pois, a tristeza só é permitida com a condição de não ser imposta aos outros. O que anda fazendo meu amigo Boniface?19 Ah, oito ou dez dias atrás visitei uma cidade que lhe reservará muitos aborrecimentos quando ele encontrar seu nome no livro do cruel agiota conhecido como Salústio. Essa cidade é Constantina, a velha Cirta, maravilha construída no topo de um rochedo, sem dúvida por uma raça de animais fantásticos com asas de águias e mãos de homens, tal como Heródoto e Levaillant, dois grandes viajantes, testemunharam.20 Em seguida, fizemos uma escala em Útica e nos deixamos ficar em Bizerta.21 Nesta última cidade, Giraud fez o retrato de um notário turco, e Boulanger, de um sumo sacerdote. Envio-os para a senhora a fim de que possa compará-los aos notários e aos sumos sacerdotes de Paris. Duvido que estes últimos levem alguma vantagem. Quanto a mim, caí na água numa caçada a flamingos e cisnes, episódio, que, no Sena, provavelmente congelado a essa hora, poderia ter tido consequências desastrosas, mas que, no lago de Catão,22 não teve outro inconveniente senão me fazer tomar um banho de roupa e tudo, e isso para grande espanto de Alexandre, de Giraud e do prefeito da cidade, que, do alto de um terraço, acompanhavam nosso barco com os olhos e, sem compreenderem que eu apenas perdera o meu centro de gravidade, atribuíam o incidente a um rasgo teatral de minha parte. Comportei-me como os biguás de que lhe falava há pouco, senhora; como eles desapareci, como eles voltei à tona. Apenas não tinha, como eles, um peixe no bico. Cinco minutos depois, já havia esquecido tudo e estava seco como o sr. Valery,23 de tal forma o sol teve a gentileza de me acariciar. Oh, onde quer que esteja, senhora, eu gostaria de enviar um raio desse belo sol ao menos para fazer desabrochar um ramo de miosótis em sua janela! Adeus, perdoe-me a extensa carta. Não tenho o hábito da coisa e, como a criança que se justificava por ter ganhado o mundo, prometo-lhe não reincidir. Mas também, quem mandou o porteiro do céu deixar aberta essa porta de marfim pela qual saem os sonhos dourados? Queira aceitar, senhora, a homenagem de meus mais respeitosos sentimentos. Alexandre Dumas Aperto cordialmente a mão de Jules.24 Agora, a que propósito serviu essa carta toda íntima? É que, para contar a meus leitores a história da mulher da gargantilha de veludo, eu precisava abrirlhes as portas do Arsenal, isto, é da casa de Charles Nodier. E agora que essa porta foi aberta pela mão de sua filha, dando-nos a certeza de ser bem-vindos: “Quem me ama me segue.” * * * Nos confins de Paris, dando continuidade ao cais dos Celestinos, encostado na rua Morland e dominando o rio, ergue-se um casarão, escuro e de aspecto triste, conhecido como Arsenal. Parte do terreno ocupado por esse pesado casarão chamava-se, antes da escavação dos fossos da cidade, Campo de Gesso. Certo dia, quando se preparava para a guerra, a cidade de Paris comprou o terreno e, para nele instalar sua artilharia, empreendeu a construção de paióis. Em 1533, Francisco I25 constatou que lhe faltavam canhões e planejou fundir alguns. Emprestou um desses paióis de sua generosa cidade, prometendo, naturalmente, terminada a fundição, devolvê-lo. Em seguida, a pretexto de acelerar o trabalho, tomou emprestado um segundo, depois um terceiro, sempre com a mesma promessa. Por fim, inspirando-se no provérbio segundo o qual o que é bom para roubar é bom para guardar, guardou sem-cerimônia os três paióis tomados emprestados. Vinte anos depois, um incêndio atingiu dez toneladas de pólvora. A explosão foi medonha: Paris tremeu como treme Catânia nos dias em que o Encelado se enfurece.26 Pedras foram lançadas até a ponta do faubourg Saint-Marceau e o fragor desse terrível estrondo chegou a sacudir Melun.27 Como se estivessem bêbadas, as casas da vizinhança balançaram por um instante, para em seguida virarem pó. Os peixes pereceram no rio, mortos pelo inesperado trauma. Como se não bastasse, trinta pessoas, arrastadas pelo furacão de labaredas, se despedaçaram pelos ares; cento e cinquenta saíram feridas. De onde vinha aquele sinistro? Qual era a causa da tragédia? Isso permaneceu ignorado e, em virtude de tal ignorância, a culpa foi jogada nos protestantes. Carlos IX28 mandou reconstruir, em escala maior, os prédios destruídos. Que belo construtor, Carlos IX! Mandou esculpir o Louvre e cinzelar a fonte dos Inocentes por Jean Goujon, que ali foi morto, como todos sabem, por uma bala perdida. Teria decerto completado o trabalho, o grande artista e grande poeta, se Deus, que tinha algumas contas a acertar com ele a respeito de 24 de agosto de 1572, não o tivesse chamado para Si.29 Seus sucessores retomaram as construções no ponto em que ele as deixara e as levaram adiante. Em 1584, Henrique III30 mandou esculpir a porta que dá acesso ao cais dos Celestinos. Ladeada por colunas em forma de canhões, sobre o friso de mármore que a encimava lia-se este dístico de Nicolau Bourbon, que Santeuil dizia valer sozinho o peso de toda a estrutura:31 Œtna hœc Henrico vulcania tela ministrat Tela giganteos debellatura furores. O que significa: “Aqui, o Etna prepara os raios com que Henrique deve debelar a ira dos gigantes.” E, com efeito, após ter fulminado os gigantes da Liga, Henrique plantou o belo jardim que vemos nos mapas da época de Luís XIII, quando Sully transferiu seu ministério para lá32 e mandou pintar e dourar os belos salões que ainda hoje compõem a biblioteca do Arsenal. Em 1823, Charles Nodier foi convidado a dirigir essa biblioteca e deixou a rua de Choiseul, onde morava, para se estabelecer em sua nova residência. Era um homem adorável, Nodier, sem um único vício mas cheio de defeitos, desses defeitos encantadores que forjam a originalidade do homem de gênio, pródigo, despreocupado flâneur, tão flâneur quanto Fígaro era preguiçoso!33 Com prazer. Nodier sabia praticamente tudo que era dado saber ao homem. Aliás, tinha a prerrogativa do homem de gênio: quando não sabia, inventava, e o que inventava era muito mais engenhoso, muito mais pitoresco, muito mais plausível que a realidade. Sistemático por excelência, cheio de paradoxos e exaltações, mas nem de longe um sectário, era em si mesmo que Nodier mostrava-se paradoxal, era em si mesmo que Nodier elaborava sistemas. Adotados tais sistemas, reconhecidos tais paradoxos, ele os mudava e imediatamente se obrigava a construir outros. Nodier era o homem de Terêncio,34 a quem nada humano é estranho. Amava pela felicidade de amar; amava como o sol brilha, como a água rumoreja, como a flor perfuma. Gostava de tudo que era bom, de tudo que era belo, de tudo que era grande. Até mesmo na maldade, separava o que havia de bom, como, na planta venenosa, o químico, do âmago do próprio veneno, extrai o remédio salutar. Quantas vezes Nodier amara? Ele próprio teria dificuldade em responder. A propósito, como grande poeta que era, confundia sempre sonho e realidade. Nodier cultivou com tanto amor as fantasias de sua imaginação que terminou por acreditar em sua existência. Para ele, Thérèse Aubert, a Fada dos Farelos e Inès de la Sierra existiram.35 Eram, aliás, suas filhas, como Marie; eram irmãs de Marie, com a ressalva de a sra. Nodier não haver contribuído em nada para engendrá-las. Como Júpiter, Nodier arrancara todas essas Minervas de seu crânio.36 Mas não eram apenas a criaturas humanas, não eram apenas às filhas de Eva e filhos de Adão que Nodier concedia a vida com seu sopro criador. Ele inventou um animal e o batizou. Em seguida, invocando sua própria autoridade, indiferente à opinião de Deus, dotou-o de vida eterna. Esse animal era o taratantaleo. O quê?! Não conhecem o taratantaleo? Pois eu tampouco, mas Nodier o conhecia. Nodier o sabia de cor. Discorria sobre os hábitos, a rotina, as manias do taratantaleo. Teria discorrido sobre seus amores se, tão logo percebeu que o taratantaleo carregava em si o princípio da vida eterna, não o houvesse condenado ao celibato, a reprodução sendo inútil ali onde há ressurreição. Como Nodier descobriu o taratantaleo? Ouçam a história: Aos dezoito anos, Nodier achava-se às voltas com a entomologia. Sua vida dividiu-se em seis fases distintas: Primeiro, fez história natural: a Biblioteca entomológica. Depois, linguística: o Dicionário das onomatopeias. Depois, política: a Napoleone. Depois, filosofia religiosa: as Meditações do claustro. Depois, poesia: os Ensaios de um jovem bardo. Depois, romance: Jean Sbogar, Smarra, Trilby, O pintor de Salzburgo, A senhorita de Marsan, Adèle, O vampiro, O sonho de ouro, Lembranças da mocidade, O rei da Boêmia e seus sete castelos, As fantasias do doutor Neófobo e mil outras coisas encantadoras que vocês não conhecem, que eu conheço e cujo nome não me ocorre à pena. Nodier, portanto, achava-se na primeira fase de seus estudos, às voltas com a entomologia. Morava no sexto andar, um acima daquele em que Béranger37 situa o poeta. Fazia experimentos no microscópio com o infinitamente pequeno e, muito antes de Raspail,38 descobrira todo um mundo de animálculos invisíveis. Certo dia, após ter examinado a água, o vinho, o vinagre, o queijo, o pão, enfim, substâncias corriqueiras em experimentações, pegou um punhado de areia molhada numa canaleta e o expôs na gaiola de seu microscópio, aplicando em seguida o olho na lente. Viu então mover-se um animal estranho, com a forma de um velocípede, dotado de duas rodas que agitava rapidamente. Precisava atravessar um rio? Suas rodas funcionavam como as de um barco a vapor. Precisava transpor um terreno seco? Elas funcionavam como as de um cabriolé. Nodier observou-o, detalhou-o, desenhou-o, analisou-o com o máximo de cuidado, até que lembrou-se de um compromisso e saiu às pressas, deixando ali seu microscópio, seu punhado de areia e o taratantaleo do qual ela era o mundo. Quando Nodier voltou, era tarde. Estava cansado, deitou, dormiu como dormimos aos dezoito anos. Portanto, foi apenas no dia seguinte, abrindo os olhos, que pensou no punhado de areia, no microscópio e no taratantaleo. Mas que pena! A areia secara durante a noite e o pobre taratantaleo, que sem dúvida dependia de umidade para viver, estava morto. Seu pequeno cadáver estava prostrado, suas rodas, imóveis. O barco a vapor não funcionava mais; o velocípede parara. Contudo, por mais morto que estivesse, nem por isso o animal deixava de pertencer a uma curiosa variedade dos efêmeros, e seu cadáver merecia ser conservado qual o de um mamute ou um mastodonte. Apenas convinha, obviamente, tomar precauções muito maiores para manipular um animal cem vezes menor que um ácaro do que para deslocar um animal dez vezes mais volumoso, como um elefante. Foi então com o filete de uma pena que Nodier transportou o punhado de areia da gaiola de seu microscópio para uma caixinha de papelão, preparada para ser o sepulcro do taratantaleo. Jurou mostrar aquele cadáver ao primeiro cientista que se aventurasse a subir os seis andares até onde morava. São tantas as coisas em nossa cabeça quando temos dezoito anos que é absolutamente normal nos esquecermos do cadáver de um efêmero. Durante três meses, dez meses, um ano talvez, Nodier se esqueceu do cadáver do taratantaleo. Um dia, viu-se com a caixa nas mãos. Quis verificar a mudança que um ano produzira em seu animal. O tempo estava encoberto, desabava um temporal. Para ver melhor, ele aproximou o microscópio da janela e esvaziou na esquadria o conteúdo da caixinha. O cadáver continuava imóvel e deitado na areia. Mas o tempo, que tanto influencia os colossos, parecia haver se esquecido do infinitamente pequeno. Nodier observava seu efêmero quando, subitamente, um pingo de chuva, soprado pelo vento, caiu na gaiola do microscópio e umedeceu o punhado de areia. Ao contato daquele frescor vivificante, pareceu a Nodier que seu taratantaleo se reanimou, que mexeu uma antena, depois a outra, que fez girar uma de suas rodas, que fez girar suas duas rodas, que recuperou seu centro de gravidade, que seus movimentos se regularizaram, que viveu, enfim. O milagre da ressurreição acabara de se operar, e não no intervalo de três dias, mas no de um ano. Nodier repetiu dez vezes o mesmo teste; dez vezes a areia secou e o taratantaleo morreu, dez vezes a areia foi umedecida e dez vezes o taratantaleo ressuscitou. Não era um efêmero que Nodier descobrira, era um imortal. Segundo toda a probabilidade, seu taratantaleo assistira ao dilúvio e assistiria ao Juízo Final. Por um infortúnio, num dia em que Nodier, talvez pela vigésima vez, preparava-se para repetir seu experimento, uma rajada de vento carregou a areia seca e, junto com ela, o cadáver do fenomenal taratantaleo. Nodier procurou em vários resíduos de areia molhada em sua calha e em outros lugares, mas foi inútil, jamais encontrou o equivalente do que perdera: o taratantaleo era o único de sua espécie e, perdido para todos os homens, não vivia mais senão nas lembranças de Nodier. Mas também nelas vivia de modo a jamais morrer por completo. Mencionamos os defeitos de Nodier. O maior deles, pelo menos aos olhos da sra. Nodier, era a bibliomania. Esse defeito, que fazia a felicidade de Nodier, era um desespero para sua mulher. Afinal, todo o dinheiro que Nodier ganhava ia em livros. Quantas vezes, tendo saído para ir receber dois ou trezentos francos, absolutamente necessários à rotina doméstica, ele não voltou com um volume raro, com um exemplar único! O dinheiro ficara nos Techener ou na Guillemot.39 A sra. Nodier ameaçava se zangar, mas Nodier puxava o volume do bolso, abria-o, fechava-o, acariciava-o, mostrava à mulher um erro de impressão que comprovava a autenticidade do livro… — Pense bem, querida, arranjarei outros quinhentos francos, já um livro desses, hum!, um livro desses é impossível de encontrar. Pergunte a Pixérécourt.40 Pixérécourt era a grande admiração de Nodier, que sempre adorou o melodrama. Nodier chamava Pixérécourt de o Corneille41 dos bulevares. Quase todas as manhãs Pixérécourt visitava Nodier. A manhã, na casa de Nodier, era dedicada às visitas dos bibliófilos. Era lá que se reuniam o marquês de Ganay, o marquês de Château-Girou, o marquês de Chalabre, o conde de Labédoy ère, Bérard, o homem dos elzevires, que em seus momentos de ócio, refez a Carta de 1830; o bibliófilo Jacob, o cientista Weiss de Besançon, o universal Peignot de Dijon;42 enfim, os cientistas estrangeiros que, tão logo botavam os pés em Paris, davam um jeito de se apresentar, ou se apresentavam por iniciativa própria, a esse cenáculo famoso em toda a Europa. Lá, todos consultavam Nodier, o oráculo da reunião; lá, os livros lhe eram mostrados; lá, pediam-se avaliações; era sua distração favorita. Quanto aos cientistas do Instituto, não davam o ar da graça, pois viam Nodier com inveja. Nodier associava inteligência e poesia à ciência, e este era um erro que a Academia de Ciências perdoava tão pouco quanto a Academia Francesa. Além disso, Nodier gracejava com frequência, e era ferino de vez em quando. Certo dia, escreveu O rei da Boêmia e seus sete castelos, e daquela vez escarneceu cruelmente. Julgava-se Nodier para sempre brigado com o Instituto. Pelo contrário: a Academia de Tombuctu forçou a sua entrada na Academia Francesa. Não devemos esperar outra coisa de irmãs. Após duas ou três horas de um trabalho sempre fácil, após cobrir uma média de dez ou doze páginas de papel de quinze centímetros de altura por dez de largura, com uma letra legível, regular e sem rasuras, Nodier saía. Uma vez na rua, Nodier caminhava ao léu, quase sempre acompanhando a linha dos cais, mas atravessando o rio de um lado para o outro, dependendo da situação topográfica das barracas; em seguida, das barracas ele passava aos livreiros e, dos livreiros, aos encadernadores. Pois Nodier não era especialista apenas em livros, era-o em encadernações também. As obras-primas de Le Gascon sob Luís XIII, de Du Seuil sob Luís XIV, de Pasdeloup sob Luís XV e de Derome sob Luís XV e Luís XVI, eram-lhe tão familiares que, de olhos fechados, ao simples toque, identificava-as. Fora Nodier quem ressuscitara a encadernação, que sob a Revolução e o Império havia deixado de ser uma arte; foi ele quem incentivou e dirigiu os restauradores dessa arte, os Thouvenin, os Braudel, os Niedrée, os Bauzonnet e os Legrain. Thouvenin, morrendo de angina, levantara-se de seu leito de agonia para dar uma última espiada nas encardenações que fazia para Nodier.43 A incursão de Nodier terminava quase sempre no Crozet ou no Techener, dois cunhados desunidos pela rivalidade e entre os quais seu plácido temperamento vinha se interpor. Lá reuniam-se os bibliófilos; lá as pessoas se encontravam para falar de livros, edições, vendas; lá, efetuavam-se trocas. E, se quando Nodier aparecia, um grito ressoava, mal ele abria a boca, era o silêncio absoluto. Então Nodier discorria, Nodier formulava paradoxos, de omni re scibili et quibusdam aliis.44 À noite, após o jantar em família, Nodier tinha o hábito de trabalhar na sala de jantar, dispondo ao seu redor três velas em triângulo, nunca mais, nunca menos. Já mencionamos o papel e a qualidade da letra, sempre com penas de ganso. Nodier tinha horror não só a penas de ferro, como, mais genericamente, a todas as novas invenções: o gás deixava-o furibundo, o vapor exasperava-o; na destruição das florestas e no esgotamento das minas de carvão, via, inexorável e próximo, o fim do mundo. Era nesses furores que Nodier mostrava-se exuberante na verve e fulminante no entusiasmo. Por volta das nove e meia da noite, Nodier saía. Desta feita, não era mais a linha dos cais que ele acompanhava, era a dos bulevares. Entrava no teatro da Porte Saint-Martin, no Ambigu ou no Funambules, no Funambules de preferência. Foi Nodier quem divinizou Deburau, para ele só havia três atores no mundo: Deburau, Potier e Talma.45 Potier e Talma estavam mortos, restara Deburau, para consolar Nodier da perda dos outros dois. Nodier vira cem vezes O boi furioso.46 Aos domingos, Nodier almoçava invariavelmente na casa de Pixérécourt. Lá, encontrava suas visitas: o bibliófilo Jacob, rei até a chegada de Nodier, vicerei quando Nodier chegava, o marquês de Ganay, o marquês de Chalabre. O marquês de Ganay, espírito volúvel, colecionador maníaco, apaixonado por um livro como um hedonista do tempo da Regência apaixonava-se por uma mulher, com o único objetivo de possuí-la. Então, depois de possuí-lo, era-lhe fiel por um mês — fiel, não, entusiasta: carregava-o consigo, parava os amigos para mostrá-lo, colocava-o debaixo do travesseiro no fim do dia, acordando no meio da noite e acendendo a vela para contemplá-lo, mas sem jamais o ler. Invejava sempre os livros de Pixérécourt, que Pixérécourt se recusava a lhe vender pelo preço que fosse, e vingava-se dessa recusa comprando no leilão da sra. de Castellane47 um manuscrito que havia dez anos Pixérécourt ambicionava. — Não tem importância — dizia Pixérécourt, furioso —, ele ainda será meu. — O quê? — perguntava o marquês de Ganay. — O seu manuscrito. — E quando isso vai acontecer? — Quando você morrer, meu caro! E Pixérécourt teria cumprido com a palavra, se o marquês de Ganay não houvesse julgado por bem sobreviver a Pixérécourt. Quanto ao marquês de Chalabre, só ambicionava uma coisa: uma Bíblia que ninguém teria, mas que ele ambicionava ardentemente. Atormentou de tal forma Nodier pela indicação de um exemplar único que este terminou por fazer melhor ainda, indicando-lhe um exemplar que não existia. O marquês de Chalabre pôs-se imediatamente à cata desse exemplar. Nunca Cristóvão Colombo mostrou-se tão obstinado em descobrir a América, nunca Vasco da Gama foi tão persistente em encontrar a Índia, quanto o marquês de Chalabre na caçada à sua Bíblia. A América, contudo, existia entre o grau 70° de latitude norte e os 53° e 54° de latitude sul, enquanto a Índia estendia-se efetivamente aquém e além do Ganges, ao passo que a Bíblia do marquês de Chalabre não existia sob nenhuma latitude e tampouco estendia-se além ou aquém do Sena. Daí resulta que Vasco da Gama encontrou a Índia, Cristóvão Colombo descobriu a América e o marquês procurou, procurou, de norte a sul, de leste a oeste, e não encontrou sua Bíblia. Quanto mais inacessível, maior a obstinação do marquês em encontrá-la. Oferecera por ela quinhentos francos, oferecera mil francos, oferecera dois mil, quatro mil, dez mil francos. Os bibliógrafos, sem exceção, não se entendiam a respeito da malfadada Bíblia. Escreveu-se para a Alemanha e a Inglaterra. Nada. Ninguém se esfalfaria de tal maneira baseado apenas numa informação de Chalabre, teriam simplesmente respondido: Ela não existe. Mas, sendo de Nodier a informação, a coisa mudava de figura. Se Nodier dissesse: a Bíblia existe, incontestavelmente a Bíblia existia. O papa podia se enganar, Nodier era infalível. As buscas duraram três anos. Todos os domingos o marquês de Chalabre, almoçando com Nodier na casa de Pixérécourt, perguntava-lhe: — E então! E essa Bíblia, meu caro Charles? — Que tem ela? — Inencontrável! — Quaere et invenies48 — respondia Nodier. E, imbuído de um novo ânimo, o bibliômano voltava a procurar, mas não encontrava. Terminaram por apresentar uma Bíblia ao marquês de Chalabre. Não era a Bíblia indicada por Nodier, mas na data só havia a diferença de um ano; não era impressa em Kehl, mas em Estrasburgo, distante apenas uma légua; não era única, verdade, mas o único outro exemplar que existia, encontrava-se no Líbano, perdido em um mosteiro druso. O marquês de Chalabre levou a Bíblia a Nodier e pediu-lhe um parecer: — Ora! — respondeu Nodier, que via o marquês prestes a enlouquecer se não tivesse uma Bíblia qualquer. — Pegue essa, caro amigo, já que é impossível encontrar a outra. O marquês de Chalabre comprou a Bíblia mediante a soma de dois mil francos, mandou encaderná-la de maneira esplêndida e guardou-a num estojo especial. Quando morreu, o marquês de Chalabre deixou sua biblioteca para a srta. Mars.49 A srta. Mars, que era tudo menos bibliômana, pediu a Merlin 50 que classificasse os livros do defunto e os pusesse à venda. Merlin, o homem mais honesto da terra, adentrou um dia a casa da srta. Mars com trinta ou quarenta mil francos em espécie na mão. Encontrara-os dentro de uma espécie de carteira escondida no interior da magnífica encadernação daquela Bíblia quase única. — Por que — perguntei a Nodier — pregou essa peça no pobre marquês de Chalabre, logo você, tão pouco amigo das farsas? — Porque ele estava se arruinando, meu amigo, e porque durante os três anos em que procurou sua Bíblia, não pensou em outra coisa. No fim desses três anos, queimou dois mil francos; durante esses três anos, teria queimado cinquenta mil. Agora que já mostramos nosso bem-amado Charles durante a semana e aos domingos de manhã, descrevamos o que ele era aos domingos das seis horas da tarde até a meia-noite.

Como conheci Nodier? Como todos conheciam Nodier. Ele me fizera um favor — foi em 1827 —, eu acabava de terminar Christine.51 Não conhecia ninguém nos ministérios, ninguém no teatro. Meu agente, em vez de me ajudar a chegar à ComédieFrançaise, era uma pedra no meu sapato. Dois ou três dias antes, eu escrevera este último verso, tão apupado e tão aplaudido: Pois bem…! Serei piedosa, meu pai, matem-no! Sob esses versos, eu havia escrito a palavra FIM. Não me restava mais nada a fazer senão ler minha peça aos senhores comediantes do rei, e ser aceito ou recusado por eles. Infelizmente, nessa época, o governo da Comédie-Française era, como o governo de Veneza — republicano, mas aristocrático —, e não era qualquer um que se aproximava dos sereníssimos senhores do comitê. De fato, havia um examinador encarregado de selecionar obras de jovens inéditos, os quais, por conseguinte, não tinham direito a uma leitura senão após tal parecer. Contavam-se, porém, na tradição dramática, histórias tão lúgubres de manuscritos esperando um, dois anos, até três, por sua leitura que eu, íntimo de Dante e Milton, não ousava enfrentar aqueles limbos, tremendo de medo que minha pobre Christine fosse simplesmente aumentar o número de Questi sciaurati, che mai no fur vivi.52 Eu ouvira falar de Nodier como protetor inato de todo poeta no nascedouro. Pedi um bilhete de apresentação junto ao barão Tay lor.53 Ele aceitou fazê-lo. Uma semana depois fui lido no Théâtre Français, e mais ou menos recebido. Digo mais ou menos porque havia em Christine, relativamente ao período em que vivíamos, isto é, o ano da graça de 1827, tais enormidades literárias que os senhores atores ordinários do rei não ousaram me receber de pronto, subordinando sua opinião à do sr. Picard,54 autor de A cidadezinha.

O barão Taylor. O sr. Picard era um dos oráculos da época. Firmin 55 me levou à casa dele. O sr. Picard me recebeu numa biblioteca recheada com todas as edições de suas obras e enfeitada com seu busto. Pegou meu manuscrito, marcou encontro comigo para dali a uma semana e se despediu. Uma semana depois, contada pelas horas, apresentei-me à porta do sr. Picard. Visivelmente, o sr. Picard não me esperava, recebendo-me com o sorriso de Rigobert56 em Casa à venda. — Cavalheiro — ele me disse, estendendo-me os originais adequadamente enrolados —, porventura dispõe de meios de subsistência? Preâmbulo nada animador. — Sim, senhor — respondi. — Tenho um modesto emprego na casa do sr. duque de Orléans. — Pois bem, minha criança — aconselhou-me, colocando afetuosamente meu casaco entre suas duas mãos e pegando as minhas ao mesmo tempo —, volte para o seu escritório! E, encantado por haver se pronunciado, esfregou as mãos, indicando com o gesto que a audiência chegara ao fim. Nem por isso deixava eu de dever um agradecimento a Nodier. Apresenteime no Arsenal. Nodier recebeu-me como recebia, com um sorriso também… Mas há sorrisos e sorrisos, alerta Molière.57 Talvez um dia eu esqueça o sorrido de Picard, mas nunca esquecerei o de Nodier. Queria provar a Nodier que não era de forma alguma tão indigno de sua proteção quanto a resposta de Picard poderia tê-lo feito pensar. Deixei meus originais com ele. No dia seguinte, recebi uma carta encantadora que me devolvia toda a coragem e me convidava para os serões do Arsenal. Estes eram uma coisa mágica, que nenhuma pena será capaz de reproduzir. Aconteciam aos domingos e começavam, na realidade, às seis horas. Pontualmente às seis, a mesa era posta. Havia os comensais fundadores: Cailleux, Tay lor e Francis Wey, a quem Nodier amava como um filho;58 mais tarde, eventualmente, um ou dois convidados e, depois, quem quisesse. Uma vez admitido nessa encantadora intimidade, ia-se jantar à casa de Nodier para desfrutar de seu dono. Havia sempre dois ou três lugares à mesa esperando os convidados de última hora. Se os três lugares fossem insuficientes, acrescentava-se um quarto, um quinto, um sexto. Se fosse preciso estender a mesa, ela era estendida. Mas ai do décimo terceiro a chegar! Este jantava impiedosamente a uma mesinha, a menos que um décimo quarto viesse tirá-lo do castigo. Nodier tinha suas manias: preferia o pão preto ao pão de farinha branca, o estanho à prataria, a lamparina à vela. Ninguém dava atenção a isso, a não ser a sra. Nodier, que obedecia ao seu gosto. Ao fim de um ou dois anos, eu fazia parte dessa intimidade que mencionei acima. Podia chegar sem aviso, na hora do jantar. Recebiam-me com gritos que não deixavam dúvida quanto à minha boa acolhida, e instalavam-me à mesa, ou melhor, eu me instalava à mesa entre a sra. Nodier e Marie. Decorrido certo tempo, o que não passava de uma cláusula de fato tornou-se uma cláusula de direito. Chegava eu tarde demais, já estavam todos à mesa, meu lugar estava ocupado? Faziam um sinal de desculpas ao comensal usurpador, meu lugar me era devolvido; juro, sentavam num lugar qualquer aquele que eu deslocara. Nodier então afirmava que eu era sua salvação, na medida em que o dispensava de entrar em debates. Mas se eu era a salvação para ele, era uma danação para os demais. Nodier era o conversador mais cativante que houve no mundo. Podiam fazer com a minha conversação tudo que fazem para o fogo realmente pegar, despertá-la, atiçá-la, adicionar-lhe a limalha que faz brotar tanto as faíscas do espírito quanto as da forja: era verve, era entusiasmo, era juventude. Contudo, não era jamais aquela bonomia, aquele encanto inexprimível, aquela graça infinita com que, qual numa rede estendida, o passarinheiro pega tudo, aves de pequeno e grande porte. Eu não era Nodier. Era um paliativo que dava para o gasto, e só. Mas às vezes eu estava enfastiado, às vezes não queria falar e, diante de minha recusa, convinha naturalmente que, como dono da casa, Nodier falasse. Então todo mundo escutava, crianças pequenas e homens ilustres. Era ao mesmo tempo Walter Scott e Perrault,59 era o cientista às voltas com o poeta, era a memória em luta com a imaginação. Não apenas era divertido ouvir Nodier, vê- lo fazia bem. Seu corpo comprido e esguio, seus braços magros e extensos, suas mãos finas e pálidas, seu rosto alongado cheio de uma bondade melancólica, tudo isso se harmonizava com sua fala um tanto arrastada, modulada por certas ênfases periodicamente introduzidas, um sotaque do Franche-Comté que Nodier nunca perdeu completamente.60 Oh, então a narrativa era coisa inesgotável, sempre nova, nunca repetida. O tempo, o espaço, a história e a natureza eram para Nodier aquela bolsa de Fortunato, da qual Peter Schlemihl retirava as mãos sempre cheias.61 Conhecera todo mundo, Danton, Charlotte Corday, Gustavo III, Cagliostro, Pio VI, Catarina II, o grande Frederico, que sei eu?62 Como o conde de Saint-Germain 63 e o taratantaleo, assistira à criação do mundo e atravessara os séculos transformando-se. Tinha inclusive uma teoria das mais engenhosas sobre essa transformação. Segundo Nodier, os sonhos não passavam de uma recordação de dias vividos em outro planeta, uma reminiscência de outros tempos. Segundo ele, os sonhos mais fantásticos correspondiam a fatos acontecidos em outros tempos, em Saturno, Vênus ou Mercúrio. As imagens mais estranhas não passavam da sombra das formas que haviam gravado suas lembranças em nossa alma imortal. Ao visitar pela primeira vez o Museu dos Fósseis do Jardim das Plantas, impressionara-se ao encontrar animais que vira no dilúvio de Deucalião e Pirra e às vezes deixava escapar que, notando a tendência dos Templários ao domínio universal, ele aconselhara Tiago de Molay a refrear sua ambição.64 Não era culpa sua se Jesus Cristo fora crucificado: fora o único de seus seguidores a deixá-lo de sobreaviso quanto às más intenções de Pilatos. Mas com quem Nodier mais esbarrara fora com o Judeu Errante: a primeira vez em Roma, na época de Gregório VII; a segunda, em Paris, na véspera da noite de São Bartolomeu; e a última em Vienne, na região do Dauphiné, quando ele carregava consigo documentos de grande valor.65 E, a esse propósito, apontava um erro no qual haviam caído os cientistas e os poetas, em especial Edgar Quinet:66 não era Ahasverus, que é um nome meio grego meio latino, apelidado de o homem dos cinco tostões, era Isaac Laquedem; era por este que ele respondia, obtivera a informação de sua própria boca. Depois da política, da filosofia e da tradição, ele passava à história natural. Oh, como nessa ciência Nodier distanciava-se de Heródoto, Plínio, Marco Polo, Buffon e Lacépède!67 Conhecera aranhas ao lado das quais a aranha de Pélisson não passava de uma piada, convivera com sapos que faziam Matusalém parecer uma criança.68 Por fim, travara relações com jacarés perto dos quais a tarasca não passava de uma lagartixa.

Isaac Laquedem. Da mesma forma, aconteciam a Nodier esses acasos que só acontecem aos homens de gênio. Um dia em que procurava lepidópteros — foi durante sua temporada na Estíria, país das rochas graníticas e das árvores seculares —, ao subir numa árvore para explorar uma cavidade que percebera no tronco enfiou a mão dentro dela como era seu costume — fazia isso com tanta imprudência que em outra oportunidade, quando retirou o braço de uma toca similar, havia nele, como um enfeite, uma cobra enroscada — um dia, portanto, descobrindo uma toca, enfiou a mão e sentiu alguma coisa de flácido e pegajoso que cedia à pressão de seus dedos. Retirou imediatamente a mão e observou: dois olhos refletiam um fogo baço no fundo da toca. Nodier acreditava no diabo. Assim, vendo aqueles dois olhos que não pareciam pouco com os olhos incandescentes de Caronte, como disse Dante,69 a primeira reação de Nodier foi fugir. Contudo, refletiu, desceu, pegou uma machadinha e, depois de calcular a profundidade da toca, começou por fazer uma abertura no lugar onde presumia encontrar-se aquele elemento desconhecido. Na quinta ou sexta machadada, a árvore esguichou sangue, nem mais nem menos que, sob a espada de Tancredo,70 esguichou sangue da floresta encantada de Tasso. Mas não foi uma bela guerreira que apareceu, foi um enorme sapo incrustado na árvore, para onde, sem dúvida, fora arrastado pelo vento, quando era do tamanho de uma abelha. Há quanto tempo estava ali? Duzentos, trezentos, quinhentos anos, talvez. Tinha quinze centímetros de comprimento por nove de largura. Outro caso ocorreu na Normandia, na época em que Nodier fazia com Taylor certa viagem pitoresca da França, quando entrou numa igreja. Na abóbada dessa igreja achavam-se pendurados uma aranha gigantesca e um sapo descomunal. Ele se dirigiu a um camponês para pedir informações sobre aquele casal sui generis. Eis o que, após tê-lo conduzido até uma das lápides da igreja, na qual estava esculpido um cavaleiro deitado vestindo sua armadura, o velho camponês lhe contou: O tal cavaleiro era um antigo barão, que deixara no país lembranças tão funestas que os mais temerários desviavam para não pisar sobre seu túmulo, e isso não por respeito, mas por terror. Sobre esse túmulo, em consequência de um juramento feito por esse cavaleiro em seu leito de morte, deveria arder uma lamparina noite e dia. Uma piedosa doação, feita pelo morto, que subvencionava essa despesa e muitas outras. Um belo dia, ou melhor, uma bela noite em que por acaso o pároco não dormia, ele viu, da janela de seu quarto, que dava para a da igreja, a lamparina empalidecer e apagar. Atribuiu o fato a um acidente e não lhe dispensou maiores atenções. Na noite seguinte, contudo, acordando por volta das duas da manhã, ocorreulhe certificar-se de que a lamparina ardia. Desceu da cama, aproximou-se da janela e constatou de visu que a igreja achava-se mergulhada na mais profunda escuridão. O episódio, que se repetiu duas vezes em quarenta e oito horas, foi ganhando certa gravidade. No dia seguinte, ao nascer do sol, o pároco mandou chamar o bedel e terminou por acusá-lo de colocar o azeite na própria salada em vez de na lamparina. O bedel jurou pelos seus grandes deuses que não fora nada daquilo — havia quinze anos tinha a honra de ser bedel —, enchia conscienciosamente a lamparina. Aquilo só podia ser um trote do malvado cavaleiro, que, após atormentar os vivos em vida, voltava a atormentá-los trezentos anos depois de morto. O pároco declarou acreditar plenamente na palavra do bedel, porém mesmo assim desejava estar presente quando ele fosse abastecer a lamparina no fim do dia. Consequentemente, ao cair da noite e na presença do pároco, o azeite foi introduzido no recipiente e a lamparina, acesa. Feito isso, o próprio pároco fechou a porta da igreja, meteu a chave no bolso e se retirou para seus aposentos. Pegou então o breviário, instalou-se numa grande poltrona próxima à janela e, com os olhos alternadamente concentrados no livro e na igreja, esperou. Em torno da meia-noite, viu a luz que iluminava os vitrais diminuir, empalidecer e extinguir-se. Daquela vez, havia uma causa estranha, misteriosa e inexplicável, com a qual o pobre bedel não tinha relação alguma. Por um instante, o pároco pensou que ladrões se introduziam na igreja e roubavam o azeite. Porém, supondo o delito cometido por ladrões, eram rapazolas bem honestos, uma vez que se limitavam a roubar o azeite, poupando os vasos sagrados. Não eram ladrões, portanto. A causa era outra, diferente de tudo que se imaginava, uma causa sobrenatural talvez. O pároco resolveu desvendá-la, fosse ela qual fosse. Na noite seguinte, ele mesmo despejou o azeite para se convencer de que não estava sendo iludido por nenhum truque de mágica. Depois, em vez de sair, como fizera na véspera, escondeu-se num confessionário. As horas se passaram, a lamparina iluminava com um fulgor calmo e uniforme. Deu meia-noite. O pároco julgou ouvir um leve ruído, semelhante ao de uma pedra se movendo. Em seguida, viu como que a sombra de um animal com patas gigantescas, cuja sombra subiu numa coluna, correu ao longo de uma cornija, apareceu por um instante na abóbada, desceu ao longo da corda do sino e fez uma escala na lamparina, que começou a empalidecer, vacilou e se apagou. O pároco se viu na mais completa escuridão. Compreendeu que era uma experiência a ser repetida, aproximando-se do lugar onde acontecia a cena. Nada mais fácil: em vez de se refugiar no confessionário que ficava no lado da igreja oposto à lamparina, bastava ele se esconder no confessionário situado a poucos metros dela. Na noite seguinte, tudo se repetiu como na véspera, salvo pela mudança de confessionário por parte do pároco, que também se muniu de uma lanterna de furta-fogo.71 Até a meia-noite, a mesma calma, o mesmo silêncio, a mesma honestidade da lamparina no cumprimento de suas funções. Mas novamente, no último toque da meia-noite, ouviu-se o mesmo estalo da véspera. Com a diferença de que, como o estalo se produzia a quatro passos do confessionário, os olhos do pároco puderam imediatamente se fixar na área de onde vinha o barulho. Era o túmulo do cavaleiro que estalava. Em seguida, a lápide esculpida que cobria o sepulcro ergueu-se lentamente e, do vão do túmulo, o pároco viu sair uma aranha do tamanho de um peixe, com dezoito centímetros de comprimento, patas medindo uma vara, a qual se pôs incontinenti, sem hesitação, sem procurar pelo caminho que lhe era visivelmente familiar, a escalar a coluna, correr sobre sua cornija, descer ao longo da corda e, lá chegando, beber o azeite da lamparina, que se apagou. O pároco recorreu à sua lanterna, cujos raios dirigiu para o túmulo do cavaleiro. Percebeu então que o que a mantinha entreaberta era um sapo do tamanho de uma tartaruga-marinha, o qual, ao inchar, erguia a lápide e dava passagem à aranha, que corria para sorver o azeite e voltava para dividi-lo com o companheiro. Ambos viviam assim fazia séculos naquele túmulo, onde provavelmente morariam hoje se um incidente não houvesse revelado ao pároco a presença de um ladrão qualquer em sua igreja. No dia seguinte, o pároco requereu braços fortes para erguer a pedra do túmulo e executar o inseto e o réptil, cujos cadáveres foram pendurados no teto como prova daquele estranho episódio. A propósito, o camponês que contava o caso a Nodier era um dos que haviam sido chamados pelo pároco para combater os dois comensais do túmulo do cavaleiro e, como ele, cismara com o sapo. Uma gota de sangue do imundo animal que pingara sobre sua pálpebra quase o deixara cego como Tobias.72 Saiu no lucro, ficando apenas caolho. * * * Nodier era inesgotável com suas histórias de sapo. Havia alguma coisa de misterioso na longevidade desse animal que agradava à sua imaginação. Por exemplo, sabia todas as histórias de sapos centenários ou milenares, sendo de sua competência todos aqueles descobertos em pedras ou troncos de árvore, desde o sapo descoberto em 1756 pelo escultor Leprince, em Eretteville, no cerne de um rochedo onde estava incrustado, até o sapo confinado por Hérissant, em 1771, num compartimento de gesso, que ele reencontrou vivinho da silva em 1774.73 Quando se perguntava a Nodier de que viviam os infelizes prisioneiros, sua resposta era: de sua pele. Estudara um sapo de segunda categoria que trocara de pele seis vezes num inverno, engolindo seis vezes a velha. Quanto aos encontrados em pedras de formação primitiva, da época da criação do mundo, como o sapo descoberto na jazida de Brunswick, em Gothie, a completa inatividade na qual haviam sido obrigados a permanecer, a suspensão da vida numa temperatura que não permitia nenhuma dissolução e que não tornava necessária a compensação de nenhuma perda, a umidade do lugar, que preservava a do animal e impedia sua destruição por ressecamento, tudo isso parecia a Nodier razões suficientes para uma convicção na qual ele professava fé e ciência ao mesmo tempo. Aliás, como dissemos, Nodier possuía certa humildade natural, certa inclinação a se apequenar, que o arrastava para os simples e humildes. O Nodier bibliófilo descobria obras-primas ignoradas, que ele exumava do túmulo das bibliotecas; o Nodier filantropo descobria entre os vivos poetas desconhecidos, que ele trazia à tona e conduzia à celebridade. Toda injustiça, toda opressão o revoltavam e, segundo ele, oprimia-se o sapo, era-se injusto com o sapo, ignoravam-se ou negavam-se a conhecer as virtudes do sapo. O sapo era bom amigo, Nodier já provara isso pela parceria do sapo com a aranha e, a rigor, provava duas vezes, contando outra história de sapo e lagartixa, não menos fantástica que a primeira — o sapo era portanto não apenas bom amigo, mas também um bom pai e bom esposo. Sendo o parteiro da própria mulher, o sapo dera aos maridos as primeiras lições de amor conjugal; envolvendo os ovos de sua família em torno das patas traseiras ou carregando-os nas costas, dera aos chefes de família a primeira lição de paternidade. Quanto à baba que o sapo espalha ou expele se atormentado, Nodier garantia que era a substância mais inócua do mundo, preferindo-a à saliva de muitos críticos de arte seus conhecidos. Não que esses críticos não fossem recebidos em sua casa como os demais e, inclusive, bem recebidos. Contudo, pouco a pouco, iam se retirando espontaneamente, pois não ficavam à vontade em meio à benevolência que era a atmosfera natural do Arsenal, através da qual o deboche não passava senão como passa um pirilampo em meio àquelas bonitas noites de Nice e Florença, isto é, para emitir um lampejo e logo se apagar. Chegava-se ao fim de um jantar encantador, no qual todos os incidentes, com exceção do sal na toalha, ou do pão caído ao contrário, eram encarados pelo lado filosófico. Em seguida, o café era servido na mesa. No fundo, Nodier era um sibarita,74 deleitando-se com o estado de sensualidade perfeita, que não coloca nenhum movimento, deslocamento ou perturbação entre a sobremesa e o coroamento da sobremesa. Durante esse momento de delícias asiáticas, a sra. Nodier se levantava e ia acender as luzes do salão. Muitas vezes, eu, que não tomava café, fazia-lhe companhia. Minha estatura alta mostrava-se utilíssima quando se tratava de acender o lustre sem subir nas cadeiras. O salão então se iluminava, pois, antes do jantar e nos dias comuns, era-se recebido exclusivamente nos aposentos da sra. Nodier. Iluminado o salão, clareavam-se os lambris, pintados de branco com relevos Luís XV, um mobiliário dos mais simples, composto de doze poltronas e um sofá em casimira vermelha, cortinas xadrez da mesma cor, um busto de Hugo, uma estátua de Henrique IV, um retrato de Nodier e uma paisagem alpina de Régnier.75 Nesse salão, cinco minutos depois de iluminado, entravam os convidados. Nodier vinha por último, apoiado seja no braço de Dauzats, seja no braço de Bixio, seja no braço de Francis Wey, seja no meu, sempre suspirando e se queixando como se a respiração fosse seu único patrimônio.76 Ia então estenderse numa grande poltrona à direita da lareira, com as pernas esticadas e os braços pendentes, ou postar-se de pé diante dela, com as panturrilhas ao fogo e de costas para o espelho. Quando se acomodava na poltrona, estava tudo dito. Nodier, mergulhado naquele instante de beatitude proporcionado pelo café, queria desfrutar egoisticamente de si mesmo e seguir em silêncio o sonho de seu espírito; quando se recostava próximo à lareira, era diferente: desejava falar. Então todos se calavam, então se desenrolava uma daquelas encantadoras histórias de sua juventude, que pareciam um romance de Longus, um idílio de Teócrito ou algum sombrio drama da Revolução, cujo palco era sempre um campo de batalha da Vendeia ou a praça da Revolução, ou ainda alguma misteriosa conspiração de Cadoudal ou de Oudet, de Staps ou de Lahorie.77 Nesse caso, os que entravam faziam silêncio, cumprimentavam com a mão e iam sentar-se numa poltrona ou recostar-se no lambri. A história terminava como terminam todas as coisas. Ninguém aplaudia, da mesma forma que ninguém aplaude o murmúrio de um rio ou o canto de um pássaro. Porém, extinto o murmúrio, sumido o canto, ainda escutávamos. Então, Marie, sem falar nada, instalava-se ao piano e, subitamente, uma brilhante girândola de notas espocava nos ares como o prelúdio de um fogo de artifício. Então os jogadores, relegados aos cantos, punham-se às mesas e jogavam. Nodier por muito tempo só jogara batalha, era seu jogo predileto e no qual se julgava uma força superior. Terminou fazendo uma concessão ao século e jogava canastra. Então Marie entoava versos de Hugo, de Lamartine ou meus, musicados por ela. Depois, em meio àquelas encantadoras melodias, sempre curtas demais, ouvia-se deflagrar o estribilho de uma contradança. Os cavalheiros procuravam seus pares e um baile tinha início. Baile encantador, pelo qual Marie era a única responsável, lançando, em meio aos ágeis trinados que seus dedos bordavam nas teclas do piano, uma palavra àqueles mais próximos a ela, a cada travessia, a cada corrente de damas, a cada troca de lado. Nesse momento, Nodier desaparecia, completamente eclipsado, pois não era um desses donos de casa absolutistas e resmungões cuja presença sentimos e aproximação adivinhamos. Era o anfitrião da Antiguidade, que se ofusca para dar lugar àquele a quem recebe, contentando-se em ser gracioso, fraco, quase feminino. Nodier, por sinal, após ofuscar-se um pouco, logo desaparecia completamente. Nodier deitava cedo, ou melhor, deitavam Nodier cedo. Era a sra. Nodier que se incumbia desse desvelo. No inverno, era a primeira a deixar o salão, depois, às vezes, quando as brasas morriam na cozinha, via-se um braseiro passar, se encher e entrar no quarto. Nodier seguia o braseiro e estava tudo dito. Dez minutos depois, a sra. Nodier reaparecia. Nodier estava deitado e dormia ao som das melodias de sua filha e ao ruído dos passos e risos dos dançarinos. Um dia encontramos Nodier muito mais humilde que o normal. Dessa vez, parecia encabulado, envergonhado. Preocupados, perguntamos o que tinha. Nodier acabava de ser eleito para a Academia. Pediu-nos suas mais humildes desculpas, a Hugo e a mim. Mas não era culpa sua, a Academia nomeara-o quando ele menos esperava. É que Nodier, cuja erudição valia a de todos os acadêmicos juntos, andava demolindo o dicionário da Academia, pedra por pedra. Contava que o “imortal” encarregado de elaborar o verbete Lagostim um dia lhe mostrara esse verbete, pedindo sua opinião. O texto fora concebido nos seguintes termos: Lagostim, peixe pequeno e vermelho que anda para trás. — Vejo apenas um errinho em sua definição — respondeu Nodier —, é que o lagostim não é peixe, o lagostim não é vermelho, o lagostim não anda para trás. O resto está certo. Esqueço-me de dizer que, nesse ínterim, Marie Nodier se casara, tornando-se sra. Mennessier, mas tal casamento em nada alterara a vida no Arsenal. Jules era amigo de todos: se há muito tempo o víamos chegar à casa, passou a estar lá em vez de chegar, só isso. Engano meu, consumou-se um grande sacrifício: Nodier vendeu sua biblioteca. Nodier amava seus livros, mas adorava Marie. Cumpre acrescentar que ninguém como Nodier sabia criar a reputação de um livro. Quisesse vender ou mandar vender um livro, glorificava-o com um artigo. Com o que descobria dentro dele, transformava-o num exemplar único. Lembro-me da história de um volume intitulado O Zumbi das terras peruanas,78 que Nodier declarou ter sido impresso nas colônias e cuja edição ele destruiu com sua autoridade particular; o livro valia cinco francos, subiu para cem escudos. Embora tenha vendido seus livros em quatro lotes, Nodier continuava a manter um pequeno acervo, um núcleo precioso, a partir do qual, no fim de dois ou três anos, reconstruíra sua biblioteca. Um dia, todas essas encantadoras festas foram canceladas. No último mês ou dois, Nodier andava mais indisposto, mais resmungão. Em todo caso, acostumados a ouvi-lo resmungando, não lhe demos a devida atenção. Isso porque, em virtude de seu temperamento, era muito difícil separar a enfermidade real dos sofrimentos quiméricos. Dessa vez, contudo, era clara sua decadência. Acabaram-se os passeios pelos cais, os passeios pelos bulevares, dando lugar apenas a passeios vagarosos, quando o céu cinzento era atravessado por um último raio do sol de outono, num lento caminhar até Saint-Mandé. O destino da caminhada era uma sórdida pensão, onde, em seus belos dias de saúde, Nodier se regalava com pão preto; em geral, toda a família o acompanhava nessas incursões, exceto Jules, preso no escritório: a sra. Nodier, Marie e as duas crianças, Charles e Georgette. Ninguém queria mais largar o marido, o pai e o avô. Sentiam que dispunham de pouco tempo em sua companhia, e não o desperdiçavam. Até o último momento, Nodier insistiu na continuação dos domingos. Mais tarde, acabamos nos dando conta de que o barulho e o movimento no salão eram insuportáveis para o doente em seu quarto. Um dia, Marie nos anunciou tristemente que, no domingo seguinte, o Arsenal seria fechado, mas, bem baixinho, para os íntimos, disse: “Não deixem de vir, conversaremos.” Por fim, Nodier guardou o leito, para não mais levantar. Fui visitá-lo. — Oh, meu querido Dumas — ele disse, estendendo os braços tão logo me viu —, na época em que eu estava em forma, você tinha em mim apenas um amigo; agora, que estou doente, tem em mim um homem grato. Não consigo mais trabalhar, mas ainda consigo ler e, como vê, leio-o e, quando estou cansado, chamo minha filha e ela o lê para mim. E, com efeito, Nodier me mostrou meus livros espalhados sobre sua cama e sua mesa. Foi um de meus momentos de autêntico orgulho. Nodier, isolado do mundo, incapacitado para o trabalho, Nodier, esse espírito imenso, que sabia tudo, me lia e se divertia ao me ler. Tomei-lhe as mãos, tive vontade de beijá-las, tão grato me sentia. Eu, por minha vez lera na véspera uma coisa de sua autoria, uma novela recém-publicada em dois números da Revue des Deux Mondes.79 Era Inès de las Sierras. Eu estava maravilhado. A novela, uma das últimas publicações de Charles, tinha tanto frescor, tanto pitoresco, que mais parecia uma obra de juventude que Nodier desencavara e trouxera à luz no outro horizonte de sua vida. A história de Inès falava da aparição de espectros e fantasmas, porém todo o fantástico da primeira parte deixava de sê-lo na segunda; o fim explicava o início. Queixei-me amargamente daquela explicação a Nodier: — É verdade — ele me disse — errei. — Mas tenho outra história, e essa eu não vou estragar, não se preocupe. — Virá em boa hora, e quando pretende se dedicar a essa obra? Nodier tomou minhas mãos. — Essa eu não vou estragar porque não serei eu a escrevê-la — declarou. — E quem o fará? — Você. — Eu, meu bom Charles? Mas nem conheço a trama. — Vou lhe contar. Oh! Essa eu havia guardado para mim, ou melhor, para você. — Meu bom Charles, é você quem irá contá-la, escrevê-la e publicá-la. Nodier sacudiu a cabeça. — Vou contá-la, mas para você — ele insistiu. — Caso eu mude de ideia, você me devolve. — Espere minha próxima visita. Temos tempo. — Meu amigo, repito o que eu dizia a um credor quando lhe pagava uma parcela: aceite sempre. E ele começou. Jamais Nodier narrara de maneira tão encantadora. Oh, se eu tivesse uma pena, se eu tivesse papel, se eu pudesse escrever tão depressa quanto as palavras eram ditas! A história era longa, fiquei para jantar. Depois do jantar, Nodier cochilou. Saí do Arsenal sem revê-lo. Jamais o vi novamente. Nodier, tido como alguém propenso às queixas, havia, ao contrário, escondido seus achaques da família até o último momento. Descoberta a doença, constatouse que era fatal. Nodier não era apenas cristão, era um católico praticante. Encarregara Marie de chamar um padre quando fosse a hora. No momento oportuno, Marie mandou chamarem o pároco da igreja de São Paulo. Nodier se confessou. Pobre Nodier. Se cometera muitos pecados em sua vida, com certeza não cometera um erro. Terminada a confissão, toda a família entrou. Nodier estava numa alcova escura de onde estendia os braços para a mulher, a filha e os netos. Atrás da família, estavam os criados. Atrás dos criados, a biblioteca, isto é, amigos que não mudam nunca — os livros. O pároco disse em voz alta as orações, às quais Nodier, um íntimo da liturgia cristã, repetiu em voz alta. Em seguida, terminadas as preces, ele beijou e tranquilizou a todos a respeito de seu estado, afirmando ainda sentir-se apto a mais um ou dois dias de vida, sobretudo se o deixassem dormir algumas horas. Deixaram Nodier sozinho, e ele dormiu durante cinco horas. Na noite de 26 de janeiro, isto é, na véspera de sua morte, a febre subiu e produziu um pouco de delírio. Por volta da meia-noite, ele já não reconhecia ninguém e sua boca pronunciava palavras sem nexo, em meio às quais distinguimos os nomes de Tácito e Fénelon.80 Às duas horas, a morte se anunciou e Nodier foi sacudido por uma violenta crise. A filha estava debruçada em sua cabeceira e lhe estendia uma xícara de poção calmante. Ele abriu os olhos, olhou Marie e a reconheceu pelas lágrimas. Pegou então a xícara de suas mãos e sorveu avidamente a beberagem nela contida. — Estava bom? — perguntou Marie. — Oh, sim, minha criança, como tudo que vem de você. E a pobre Marie deixou sua cabeça cair sobre a cabeceira da cama, cobrindo com os cabelos a fronte úmida do moribundo. — Oh, se você ficasse nessa posição, eu não morreria nunca. Amorte sempre impressionava. As extremidades começavam a esfriar, mas, à medida que recuava, a vida ia se concentrando no cérebro, dando a Nodier uma inteligência mais lúcida do que ele jamais tivera. Ele então abençoou a mulher e os filhos, indagando em seguida o dia em que estavam. — 27 de janeiro — respondeu a sra. Nodier. — Vocês não esquecerão essa data, não é mesmo, meus amores? — disse Nodier. Depois, voltando-se para a janela, suspirou: — Eu gostaria muito de ver o dia mais uma vez. Em seguida, cochilou. Sua respiração começou a falhar. Por fim, quando o primeiro raio de sol bateu nos vidros, ele reabriu os olhos, fez um sinal de despedida com os lábios, com o olhar, e expirou. Junto com Nodier foi-se tudo do Arsenal, alegria, vida e luz. Foi um luto coletivo. Perdendo Nodier, cada um perdia um pedaço de si mesmo. Quanto a mim, não sei como dizer isso, mas carrego uma coisa morta dentro de mim desde que Nodier morreu. Essa coisa só vive quando falo de Nodier. Eis por que falo tanto sobre ele. A história que vamos ler agora é a que Nodier me contou.81 1. Marabuto: local sagrado muçulmano nos países da África do Norte. 2. Luís IX (1214-70), rei da França a partir de 1226 e canonizado em 1297, morreu vítima da peste em Túnis durante a oitava cruzada e foi enterrado em Cartago. 3. A saudação dirige-se a Marie Mennessier-Nodier (1811-93), filha de Charles Nodier. 4. Marco Atílio Régulo (?-c.250 a.C.): general e cônsul romano, feito prisioneiro pelos cartagineses durante a primeira guerra púnica, foi enviado a Roma pelos inimigos a fim de negociar a paz. Bem-sucedido em sua missão e fiel à palavra, retornou a Cartago, onde foi torturado e morto. Luís IX: ver nota 2. 5. Referência a santo Agostinho (354-430), que, antes de ser nomeado bispo de Hipona (hoje Anaba, na Argélia, ex-Bona), vivera uma juventude tempestuosa, como narra em suas Confissões (c.400). 6. Convidado pelo duque de Montpensier (1824-90) para o seu casamento com a infanta da Espanha em Madri, Dumas é igualmente encarregado pelo governo francês de uma “missão literária” na Argélia recém-colonizada. A viagem resulta num livro batizado com o nome do navio no qual viajou, O veloz (1847), destinado a divulgar esse país e suscitar vocações coloniais. 7. Louis Boulanger (1806-67): pintor romântico, aluno de Eugène Devéria (1805- 65). Alexandre Dumas, filho (1824-95): romancista e dramaturgo como o pai, é conhecido sobretudo pela peça A dama das camélias (1848). Pierre-FrançoisEugène Giraud (1806-81): pintor e caricaturista amigo de Dumas. Auguste Maquet (1813-86): historiador por formação, será a partir de 1842 um dos principais colaboradores de Dumas (em especial na trilogia dos Mosqueteiros), até brigarem na justiça, por questões autorais, em 1857. Adolphe Desbarolles (1801-86): pintor e litógrafo. Ausone de Chancel (1808-78): poeta romântico que ingressou na administração colonial. 8. “nosso bem-amado Charles”: trata-se, naturalmente, de Charles Nodier (1780- 1844), autor fecundo, bibliotecário do Arsenal, pai da escola romântico-fantástica francesa. Ver também a Apresentação a este volume. 9. Saadi (c.1213-91), poeta persa. A alusão é aos seguintes versos, em tradução livre: “um perfumado pedaço de argila, um dia no banho/ Veio da mão de um ser amado para a minha./ Perguntei: ‘Você é almíscar ou âmbar cinza?/ Pois seu delicioso perfume intoxica-me.’/ E o objeto respondeu: ‘Eu era um desprezível naco de barro;/ Mas por algum tempo acompanhado de uma rosa./ A perfeição de quem me acompanhava tomou conta de mim.’” 10. Paul: Paul-Henri Foucher (1810-75), poeta dramático, cunhado de Victor Hugo (ver nota 15). Francisque Michel (1809-87): professor, especialista em história e literatura medievais. Lazzara: canção escrita sobre um poema de Victor Hugo de 1828. 11. Antoine Fontaney (1803-37): escritor e frequentador do Arsenal, apaixonado por Marie Nodier. Rapta Gabrielle Dorval, filha da atriz Marie Dorval, e foge com ela para Londres, antes de voltar para morrer de tuberculose em Paris. Alfred Johannot (1800-37): gravador e pintor de cenas históricas. Irmão de Charles (1798-1825), igualmente gravador, e de Tony (1803-52), um dos mais importantes ilustradores do livro romântico. 12. Isidore-Justin-Séverin, vulgo barão Tay lor (1789-1889), escritor e protetor dos escritores e artistas românticos, na época representante do rei junto ao Théâtre Français. Autor, em colaboração com Nodier, de uma série intitulada Viagens pitorescas e românticas pela antiga França, incentivou os escritores românticos e produziu a montagem de Hernani, de Victor Hugo, em 1830. 13. Alfred de Vigny (1797-1863), típico poeta romântico francês, sua obra caracteriza-se por um pessimismo radical, já contendo os germes da poesia de Baudelaire, Verlaine e Mallarmé. 14. Alphonse de Lamartine (1790-1869), poeta, romancista, dramaturgo e político, grande figura do romantismo francês. Assinou o decreto que abolia a escravatura, em 27 de abril de 1848. 15. Victor Hugo (1802-55): dramaturgo, romancista e poeta maior francês, que dominou a cena literária francesa ao longo do séc.XIX. Participou ativamente da vida política, sendo um defensor ferrenho da República e da abolição da pena de morte. Viveu no exílio, voluntário, os vinte anos do Segundo Império (1851-70), na ilha de Guernsey, entre a França e a Inglaterra, onde recebeu a visita do velho amigo Dumas. Após a derrota dos franceses diante dos prussianos na batalha de Sedan (1870) e a consequente proclamação da República, faz um retorno triunfal à França. Etéocles e Polinice: personagens de diversas tragédias gregas pertencentes ao ciclo tebano (por exemplo Sete contra Tebas, de Ésquilo, Antígona, de Sófocles), são irmãos de Antígona e Ismênia, todos eles filhos incestuosos de Jocasta com Édipo. Ao disputarem o trono de Tebas, após o exílio dos pais, matam-se um ao outro. Etéocles é enterrado dignamente, o que é negado aos despojos de Polinice, despertando a revolta de Antígona. 16. Adrien Dauzats (1804-68), pintor e cenarista, colaborou com Dumas em Quinze dias no Sinai (1838). 17. Antoine-Louis Barye (1795-1868), grande escultor e aquarelista francês romântico, especializado na escultura de animais. 18. Jean-Auguste Barre (1811-96): escultor francês. Jean-Jacques Pradier, vulgo James Pradier (1790-1852): escultor e pintor suíço. 19. Apelido do filho de Marie Mennessier-Nodier, Emmanuel (1836-96). 20. “Constantina, a velha Cirta”: fundada em 202 a.C., na região noroeste da atual Argélia, foi originariamente uma importante cidade fenícia. Destruída em 311, foi reconstruída pelo imperador romano Constantino I (272-337), que lhe deu o nome que perdura até hoje. Heródoto de Halicarnasso (c.484-c.420 a.C.): viajante e historiador grego, considerado o “pai da história”. François Levaillant (1753-1824): viajante e naturalista francês, autor de uma Viagem ao interior da África (1790). 21. Útica (em cartaginês, “cidade antiga”, em oposição a Cartago, “cidade nova”) refere-se a uma antiga vila portuária construída pelos fenícios, situada no norte da atual Tunísia, assim como Bizerta, ponto estratégico entre o Mediterrâneo e o lago de Bizerta. 22. Catão de Útica (95 a.C.-46 a.C.): bisneto de Catão o Antigo e adversário ferrenho de Cartago, suicidou-se com um punhal em Útica, após a derrota de Cipião em Tapso, ao sul de Sussa, atual Tunísia. Adepto do estoicismo, pouco antes de se matar teria lido o Fédon, diálogo em que Platão aborda a imortalidade da alma. 23. Adolphe de Saint-Valery (1796-1867), colaborador de La Muse Française, órgão oficial dos românticos franceses, e bibliotecário. Em sua autobiografia Minhas memórias, cap.121, Dumas descreve-o tendo “seis pés e uma polegada de altura”. 24. Jules Mennessier (1802-77), com quem Marie Nodier se casa em 1830. 25. Sobre Francisco I, ver nota 75 em 1001 fantasmas. 26. A cidade siciliana de Catânia estende-se no sopé do vulcão Etna, em cuja cratera, segundo a mitologia grega, Zeus e Palas-Atena enterraram vivo o gigante Encélado. 27. Comuna situada a 40 quilômetros do centro de Paris. 28. Carlos IX (1550-1574), rei da França entre 1560 e 1574. Durante seu reinado ocorreu a noite de São Bartolomeu (ver nota 65). 29. Jean Goujon (c.1510-?), arquiteto renascentista, considerado o Fídias francês. No que parece ser mais uma lenda a seu respeito, teria morrido assassinado no massacre de São Bartolomeu, isto é, na noite de 24 de agosto de 1572 (ver nota 65). 30. Sobre Henrique III, ver nota 36 em 1001 fantasmas. 31. Nicolau Bourbon (1503-49) e Jean Santeuil (1630-97), poetas franceses medievais. 32. Luís XIII: ver nota 68 em 1001 fantasmas; Maximilien de Béthune, duque de Sully (1559-1641): ministro do rei Henrique IV, embora protestante, persuadiu-o a se converter ao catolicismo. 33. Flâneur: do verbo francês flâner, “flanar”, caminhar sem destino ou preocupação. Fígaro: personagem de caráter indolente, criado por Beaumarchais (ver nota 20 em 1001 fantasmas). 34. Públio Terêncio Afro (c.190-59 a.C.): dramaturgo latino nascido em Cartago, autor da famosa réplica, a tantos atribuída: “Homo sum, humani nihil a me alienun puto” (Sou homem e nada do que seja humano me é estranho). 35. Thérèse Aubert, A fada dos farelos, Inès de la Sierra: novelas de sucesso de Nodier, datando respectivamente de 1819, 1832 e 1837. 36. Com uma dor de cabeça infernal, Zeus (Júpiter) pede a Hefaísto (Vulcano), deus da forja, que lhe abra o crânio com uma machadada para aliviá-lo, e dele nasce Palas-Atena (Minerva). 37. Pierre-Jean de Béranger (1780-1857), poeta popular e chansonnier. 38. François-Vincent Raspail (1794-1878), médico, químico e político francês, autor de um Ensaio de química microscópica. 39. Jacques-Joseph Techener (1802-73): livreiro e bibliófilo parisiense. Guillemot: livraria que data do séc.XVII. 40. René-Charles-Guilbert de Pixérécourt (1773-1844), mestre do melodrama, cujas obras são representadas nos teatros do bulevar du Temple, em Paris, o famoso “bulevar do crime”. Dentre suas mais de 150 peças, as mais conhecidas são Victor, o filho da floresta (1798) e Celina ou A filha do mistério (1800). Dono de uma fabulosa biblioteca de obras raras, com cerca de 4 mil volumes. 41. Pierre Corneille (1606-84), dramaturgo francês, autor de diversas tragédias e membro da Academia. 42. Chalabre e Labédoy ère: bibliófilos, amigos de Nodier. Auguste-Simon-Louis Bérard (1783-1859): político, adere à oposição liberal sob a Restauração e desempenha um grande papel na revolução de Julho (ver nota 15 de 1001 fantasmas). É um dos redatores de uma nova Carta (a “Carta Bérard”), versão amplamente modificada da Constituição de 1814, promulgada por Luís XVIII; bibliófilo, escreveu um Ensaio bibliográfico sobre as edições dos elzevires (1822). Elzevir: volume impresso por um membro da dinastia dos Elzevires, tipógrafos holandeses dos sécs.XVI e XVII. Bibliófilo Jacob: ver nota 32 de 1001 fantasmas. Charles Weiss (1779-1866): literato e bibliógrafo, amigo de infância de Charles Nodier. Étienne-Gabriel Peignot (1767-1849): bibliógrafo e filólogo francês, autor de importantes bibliografias. 43. Le Gascon, Du Seuil, Pasdeloup, Derome, Thouvenin, Bradel, Niedrée, Bauzonnet, Legrain: famosos encadernadores dos séculos XVII, XVIII e XIX. Le Gascon, em especial, encadernou a conhecida Guirlanda de Julie; Joseph Thouvenin (1790-1834), muito reputado, era o encadernador pessoal de LouisPhilippe Niedrée e disseminou o uso de dourado na área refilada das páginas. 44. Em latim, “Sobre todas as coisas conhecidas e outras mais”. Divisa do teólogo italiano Luigi Pico della Mirandola (1463-94), designando ironicamente um homem que se arvorava a saber tudo. 45. Jean-Gaspard Deburau (1796-1846), acrobata e mímico, grande intérprete de Pierrô no teatro dos Funambules. Charles Potier (1775-1838): ator do teatro da Porte Saint-Martin. François-Joseph Talma (1763-1826): um dos grandes atores da Comédie-Française. Após sua morte, Alexandre Dumas reuniu seus papéis e os publicou sob o título Memórias de J.-F. Talma escritas por ele mesmo (1850). 46. “Pantomima-arlequinada” escrita por Charles Nodier sob o pseudônimo Laurent Père. 47. Casada com o conde Esprit Victor Elisabeth Boniface, conde de Castellane (1762-1848), marechal e par de França, Louise Cordélia Eucharis Greffulhe (1796-1847) foi amante do escritor François-René de Chateaubriand (1768- 1848), um dos precursores do romantismo e marco na história da literatura francesa. Ainda hoje suas cartas para ela são objeto de cobiça em leilões de manuscritos. 48. Em latim, “Procura e acharás”. Evangelho de são Lucas, vulgata latina, 11, 9. 49. Anne-Françoise-Hippoly te Boutet, ou srta. Mars (1799-1847), uma das maiores atrizes francesas do período romântico, destacou-se na ComédieFrançaise. 50. Possivelmente o dono da livraria e tipografia J.S. Merlin, em Paris. 51. Engano de Dumas quanto às datas: a peça é da primavera de 1828. Além disso, em suas Memórias, Dumas diz ter conhecido Nodier em 1823, na apresentação de O vampiro. Sobre Christine, ver também nota 36 de 1001 fantasmas. 52. Em italiano, “Esses desafortunados que nunca foram vivos”, citação da Divina comédia, Inferno, canto III, verso 64. 53. Sobre o barão Tay lor, ver nota 12 de A mulher da gargantilha de veludo. 54. Louis-Benoît Picard (1769-1828), autor bem-sucedido de numerosos vaudevilles. 55. Assim era conhecido o ator francês J.B. François Becquerelle (1784-1859). 56. Herói desse vaudeville de Nicolas-Marie d’Alayrac (1753-1809). 57. Molière: pseudônimo de Jean-Marie Poquelin (1622-73), comediógrafo, ator e diretor teatral francês, autor de O doente imaginário, O avarento e O misantropo, entre várias outras obras. 58. Alexandre-Achille-Alphonse de Cailloux, vulgo Cailleux (1788-1876): pintor que colabora nas Viagens pitorescas e românticas na antiga França, junto com o barão Tay lor e Nodier (ver respectivamente notas 12 e 8 de A mulher da gargantilha de veludo). Francis Wey (1812-82): literato e jornalista, chegou a publicar uma Biografia de Charles Nodier, em 1844. 59. Sobre Walter Scott, ver nota 60 em 1001 fantasmas. Charles Perrault (1628- 1703): escritor francês, conhecido sobretudo por suas antologias de contos populares, dentre os quais A bela adormecida, Cinderela e Chapeuzinho Vermelho. 60. O Franche-Comté, região da França próxima à fronteira com a Alemanha e a Itália, preserva até hoje o uso de dialetos locais. 61. Em A maravilhosa história de Peter Schlemihl (1814), novela do escritor romântico alemão Adalbert von Chamisso (1781-1838), o protagonista vende sua sombra ao diabo em troca da “bolsa de Fortunato”, fonte inesgotável de ouro. 62. Sobre Danton, ver nota 46 de 1001 fantasmas. Charlotte Corday : ver o cap.5 de 1001 fantasmas. Gustavo III (1746-92): rei da Suécia, foi assassinado durante um baile de máscaras. Sobre o conde de Cagliostro, ver nota 17 em 1001 fantasmas. Papa Pio VI, Giannangelo Graschi (1717-99): foi feito prisioneiro em 1797, quando Napoleão Bonaparte anexou os Estados pontifícios. Morreu no cativeiro, em Valence, no sudeste da França. Catarina II a Grande (1729-96): czarina russa, mecenas das artes e amiga dos iluministas franceses, não hesitou em tentar impedir os avanços dos ares liberalizantes da Revolução Francesa. Frederico II o Grande (1712-86): imperador da Prússia, modelo do “déspota esclarecido”. 63. Sobre o conde de Saint-Germain, ver nota 17 em 1001 fantasmas. 64. Sobre o Jardim das Plantas, em Paris, ver nota 58 em 1001 fantasmas. Deucalião e Pirra: personagens da mitologia grega cujas peripécias são descritas no poema épico As metamorfoses, do poeta romano Ovídio (43 a.C.-?18 d.C). Após escapar do Dilúvio e refugiar-se no monte Parnasso, o casal repovoa a terra jogando para trás pedras que se transformam em seres humanos. Tiago de Molay (1243-1314): último grão-mestre da ordem dos templários, foi preso e queimado vivo a mando de Filipe o Belo (1268-1314), rei da França. 65. Sobre o Judeu Errante, ver nota 18 em 1001 fantasmas. Gregório VII (c.1015- 1085): papa a partir de 1073, foi o artífice do que ficaria conhecido como “reforma gregoriana”, que pretendia recuperar o prestígio da Igreja, coibindo os abusos por parte do clero. Noite de São Bartolomeu: noite de 24 de agosto de 1572, quando milhares de protestantes foram massacrados em Paris, numa fúria que se estendeu por vários dias e por toda a França. 66. Edgard Quinet (1803-75), escritor e historiador francês, autor do poema em prosa Ahas-verus (1833). 67. Sobre Heródoto, ver nota 2o. Plínio o Velho (séc.I): naturalista romano, autor de uma enciclopédica História natural. Marco Polo (1254-1324): mercador e aventureiro veneziano, empreendeu uma fabulosa viagem à China, onde permaneceu por 17 anos. Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-88) e Bernard Germain de Lacépède (1756-1825): dois renomados naturalistas franceses. 68. A aranha de Pélisson: o escritor e acadêmico francês Paul Pélisson (1624- 93), preso na Bastilha, teria levado meses domesticando uma aranha, posteriormente esmagada por seu carcereiro. Matusalém: personagem mais idoso do Antigo Testamento, tendo vivido 969 anos, segundo o Gênesis (5, 27). 69. Caronte: na mitologia grega, o barqueiro dos Infernos, que atravessa as almas para a outra margem do rio Aqueronte. Dante Alighieri (1265-1321) evoca-o na Divina comédia. 70. Tancredo: herói da Jerusalém libertada, do poeta italiano Torquato Tasso (1544-95). Sem reconhecê-la, ele mata a guerreira sarracena Clorinda em combate. É atormentado pelo remorso: ao enfrentar as árvores da floresta encantada, vê sangue escorrendo delas e ouve a voz da bem-amada. 71. Espécie de lamparina com uma placa móvel que permite dirigir e controlar o foco de luz, escamoteando, caso necessário, o seu portador. 72. Referência ao Livro de Tobias (Antigo Testamento), no qual o velho Tobias é curado da cegueira graças a um unguento fornecido por um anjo. 73. Jean-Baptiste Leprince (1734-81): pintor, gravurista e escultor francês. LouisAntoine-Prosper Hérissant (1745-69): bibliotecário, médico e botânico francês. 74. Sibarita: adjetivo que ganhou a conotação de “indivíduo sensual e ocioso”, numa referência aos habitantes da cidade de Síbaris, colônia grega no sul da Itália, conhecidos por tais características. 75. Auguste Jacques Régnier (1787-1860), pintor francês. 76. Sobre Dauzats, ver nota 16. Jacques-Alexandre Bixio (1806-65): médico por formação, depois político. Dumas conhece-o nas barricadas de 1830. 77. Longus (sécs.II-III): escritor grego, autor do romance bucólico Dafne e Cloé. Teócrito (séc.II): poeta pastoral grego de Siracusa. Batalha da Vendeia: ver nota 58 de 1001 fantasmas. Praça da Revolução: ver nota 97 de A mulher da gargantilha de veludo. “Cadoudal… Lahorie”: todos esses personagens históricos, que tentaram assassinar ou derrubar Napoleão, são evocados por Nodier em sua História das sociedades secretas dos exércitos (1815). Georges Cadoudal (1771- 1804): um dos líderes da revolta bretã, executado na esteira de uma conspiração frustrada. Jacques-Joseph Oudet (1773-1809): coronel republicano, filiado à loja maçônica dos Filadelfos, teria, segundo Nodier, sido assassinado em 1809 por ordens de Napoleão. Foi substituído à frente dos Filadelfos pelo general Malet, que fomentou a famosa conspiração de 1812. Victor-Claude-Alexandre Lahorie (1766-1812): implicado nessa conspiração de 1812, foi fuzilado em seguida. Frédéric Staps: jovem patriota alemão que, ao tentar assassinar Napoleão no palácio Schönbrun, em Viena, foi condenado à morte e fuzilado. 78. O Zumbi das terras peruanas, ou A princesa de Cocagne: romance de PierreCorneille Blessebois (1646-1700), publicado em Rouen em 1697. 79. Periódico literário mais antigo da França, em circulação desde 1829, já teve em suas páginas, entre outros, Dumas, Balzac, George Sand e Baudelaire. 80. Públio Cornélio Tácito (55-120): historiador romano, autor dos famosos Anais. François Salignac de la Mothe-Fénelon (1651-1715): eclesiástico e escritor francês, autor das Aventuras de Telêmaco, romance de formação inspirado na Odisseia, de Homero. 81. Na realidade, Dumas inspira-se num breve conto do escritor americano Washington Irving (1783-1859), intitulado A aventura do estudante alemão. 

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