domingo, 3 de dezembro de 2017

T2 N° 765 : O castelo dos Brancovan


O castelo dos Brancovan

Kostaki deixou que eu escorregasse de seus braços para o solo e, quase simultaneamente, apeou ao meu lado, mas, por mais rápido que houvesse executado seu movimento, ele apenas imitara o de Gregoriska. Como dissera Gregoriska, no castelo ele era de fato o senhor. Vendo chegar os dois rapazes e a forasteira que traziam, os criados acorreram, mas, embora as atenções fossem divididas entre Kostaki e Gregoriska, era visível que as maiores solicitudes e os respeitos mais profundos iam para este último. Duas mulheres se aproximaram. Gregoriska deu-lhes uma ordem em língua moldávia e me fez um sinal com a mão para que as seguisse. Havia tanta autoridade no olhar que acompanhava aquele sinal que não hesitei. Cinco minutos depois, estava num quarto que, embora pudesse parecer precário e inabitável para o homem menos perspicaz, era sem dúvida o mais bonito do castelo. Era um grande aposento quadrado, com uma espécie de divã de sarja verde: assento de dia, cama à noite. Cinco ou seis grandes poltronas de carvalho, um amplo baú e, num dos cantos do quarto, um pálio esculpido em madeira, que lembrava uma grande e magnífica estala de igreja. Cortinas nas janelas, cortinas na cama nem haviam sido cogitadas. Subia-se a esse quarto por uma escada ao longo da qual, em nichos, viam-se de pé, maiores que o tamanho natural, três estátuas dos Brancovan. As bagagens, em meio às quais estavam meus baús, logo chegaram a esse quarto. As mulheres ofereceram-me seus préstimos. Porém, enquanto eu reparava os estragos que os últimos acontecimentos haviam provocado em minha toalete, conservei minha roupa de montaria, traje mais afinado com o de meus anfitriões do que qualquer outro que pudesse escolher. Tomadas essas pequenas providências, ouvi baterem de leve na porta. — Entre — eu disse, naturalmente em francês, pois o francês é para nós, poloneses, como os senhores sabem, uma língua quase materna. Gregoriska entrou. — Ah, senhorita, fico feliz que fale francês. — Eu também, senhor — respondi-lhe —, alegra-me falar essa língua, uma vez que pude, graças a esse dom, apreciar sua generosa conduta para comigo. Foi nessa língua que me defendeu contra os desígnios de seu irmão, é nessa língua que lhe ofereço a expressão de meu mais sincero agradecimento. — Obrigado, senhorita. Era mais que natural que eu me interessasse por uma mulher em sua situação. Estava caçando na montanha quando ouvi detonações irregulares e contínuas. Compreendi que se tratava de algum ataque à mão armada e fui em direção ao fogo, como dizemos em termos militares. Cheguei a tempo, mas permita-me saber o que leva uma mulher distinta como a senhorita a se aventurar por nossas montanhas? — Sou polonesa, senhor — respondi —, meus dois irmãos acabam de ser mortos na guerra contra a Rússia. Meu pai, que deixei a postos para defender nosso castelo contra o inimigo, sem dúvida juntou-se a eles a essa hora. Eu, por ordens dele, fugindo de todos os massacres, vim procurar refúgio no mosteiro de Sarrastro, onde minha mãe, em sua juventude e em circunstâncias similares, encontrou proteção. — É inimiga dos russos? Melhor ainda! — exclamou o rapaz. — Esse fato será um trunfo poderoso no castelo e precisamos de todas as nossas forças para travar a luta que se prepara. Em primeiro lugar, agora que já sei quem é a senhorita, saiba quem somos: o nome Brancovan não deve ser estranho aos seus ouvidos… Eu assenti. — Minha mãe é a última princesa do nome, a última descendente do ilustre chefe que matou os Cantemir, os miseráveis cortesãos de Pedro I.115 Minha mãe casou-se em primeiras núpcias com meu pai, Serban Waivady, príncipe como ela, porém de linhagem menos ilustre. Meu pai foi criado em Viena. Lá, pôde apreciar as vantagens da civilização e resolveu fazer de mim um europeu. Viajamos pela França, Itália, Espanha e Alemanha. Não cabe a um filho, bem sei, expor o que vou lhe contar, mas como, para a nossa segurança, é preciso que nos conheça direito, a senhorita entenderá os motivos dessa revelação. Minha mãe, durante as primeiras viagens de meu pai, quando eu ainda era menino, tivera relações escusas com um chefe de insurgentes, é assim — acrescentou Gregoriska sorrindo — que chamamos neste país os homens que a atacaram. Então, como eu dizia, minha mãe, que tivera relações condenáveis com um certo conde Giordaki Koproli, meio grego, meio moldávio, escreveu a meu pai para lhe contar tudo e pedir o divórcio, baseandose, para essa demanda, no fato de que não queria, ela, uma Brancovan, continuar mulher de um homem que se tornava a cada dia mais alheio ao seu país. Ai de mim! Meu pai não precisou dar seu consentimento a tal pedido, que pode lhe parecer estranho, mas que, para nós, é a coisa mais comum e natural. Meu pai acabava de morrer de um aneurisma crônico e fui eu quem recebeu a carta. Não me restava outra coisa a fazer a não ser desejar sinceros votos de felicidade a minha mãe. Esses votos foram transmitidos numa carta na qual eu lhe participava sua recente viuvez. Nessa mesma carta eu lhe pedia autorização para continuar minhas viagens, autorização que me foi concedida. Com a firme intenção de não me ver perante um homem que me detestava e que eu não podia amar, isto é, o marido de minha mãe, eu pretendia me estabelecer na França ou na Alemanha. Então, subitamente, chegou a notícia de que o conde Giordaki Koproli acabara de ser assassinado, segundo os boatos, pelos antigos cossacos de meu pai. Voltei às pressas, pois amava minha mãe. Compreendia seu isolamento, sua necessidade de ter junto a si, naquela hora, pessoas confiáveis. Embora ela nunca houvesse demonstrado grande afeição por mim, eu era seu filho. Certa manhã, retornei inesperadamente ao castelo de nossos antepassados. Lá, encontrei um rapaz que a princípio tomei por estrangeiro e que, em seguida, soube ser meu irmão. Era Kostaki, filho do adultério, que um segundo casamento legitimara. Kostaki, a criatura indomável que a senhorita conheceu, cuja única lei são as paixões, que nada considera sagrado neste mundo a não ser sua mãe, a quem obedece como o tigre obedece ao braço que o domou, mas com um eterno rugido, alimentado pela vaga esperança de um dia me devorar. No interior do castelo, na morada dos Brancovan e dos Waivady, continuo soberano, mas, fora dessas dependências, em campo aberto, ele volta a ser a criança selvagem dos bosques e montes, que deseja subjugar tudo à sua vontade de ferro. Por que hoje ele teria cedido, por que seus homens cederam? Não faço ideia: um velho hábito, um resquício de respeito. Mas não pretendo me arriscar a nova catástrofe. Se permanecer aqui, nos limites desse quarto, desse pátio, no perímetro dos muros, em suma, eu garanto sua segurança; dê um passo fora do castelo, não garanto mais nada a não ser me deixar matar em sua defesa. — Não poderei então, de acordo com os desejos de meu pai, seguir viagem para o convento de Sarrastro? — Faça, tente, ordene, conte comigo; mas eu ficarei na estrada e a senhorita, bem… a senhorita não chegará a seu destino.

“Certa manhã, retornei inesperadamente ao castelo de nossos antepassados.” — O que fazer então? — Permanecer aqui, esperar, aconselhar-se com os fatos, tirar proveito das circunstâncias. Imagine que caiu num covil de bandidos e que sua coragem é seu último recurso, que seu sangue-frio é sua tábua de salvação. Minha mãe, apesar de sua preferência por Kostaki, filho de seu amor, é boa e generosa. Além do mais, é uma Brancovan, isto é, uma princesa de verdade. Irá conhecê-la. Ela a defenderá das paixões brutais de Kostaki. Busque sua proteção, a senhorita é bela, ela a estimará. Aliás — e ele fitou-me com uma expressão indefinível —, quem poderia vê-la e não amá-la? Vamos agora à sala de jantar, onde ela nos espera. Não mostre acanhamento nem desconfiança, fale em polonês: ninguém conhece essa língua por aqui. Traduzirei suas palavras para minha mãe e, não se preocupe, só direi o que for conveniente dizer. Sobretudo, nenhuma palavra sobre o que acabo de lhe revelar, ninguém deve suspeitar de nosso entendimento. A senhorita ainda ignora a astúcia e a dissimulação do mais sincero de nós. Venha. Segui-o pela escada, à luz de tochas de resina fervente, assentadas em mãos de ferro que saíam das paredes. Era evidente que, por minha causa, haviam instalado aquela iluminação pouco usual. Chegamos à sala de jantar. Tão logo Gregoriska abriu a porta e pronunciou, em moldávio, uma palavra que eu soube depois significar “estrangeira”, uma mulher alta avançou em nossa direção. Era a princesa Brancovan. Ela usava seus cabelos brancos numa trança, cingindo-lhe a cabeça, e uma touquinha de marta-zibelina adornada pela plumagem símbolo de sua origem real. Vestia uma espécie de túnica bordada com fios de ouro, cuja parte superior era cravejada de pedras preciosas, sobre um longo vestido de tecido turco, forrado com uma pele igual à da touca. Rolava nervosamente entre os dedos um terço de contas de âmbar. Ao seu lado estava Kostaki, usando a esplêndida e majestosa indumentária magiar, traje no qual me pareceu ainda mais estranho. O traje consistia numa bata de veludo verde, com mangas largas, caindo abaixo do joelho, calças de caxemira vermelha, chinelas de marroquim bordadas a ouro. Não usava chapéu, e seus longos cabelos, azuis de tão pretos, caíam-lhe sobre o pescoço, apenas sugerido pelo sutil pespontado branco de uma camisa de seda. Cumprimentou-me de um modo canhestro e pronunciou algumas palavras em moldávio que soaram ininteligíveis para mim. — Pode falar francês, meu irmão — disse Gregoriska —, a dama é polonesa e entende essa língua. Kostaki então pronunciou em francês algumas palavras quase tão ininteligíveis para mim quanto as que pronunciara em moldávio, mas sua mãe, estendendo gravemente o braço, interrompeu-os. Estava claro para mim que declarava a ambos que era a ela que cabia me receber. Então iniciou um discurso de boas-vindas em moldávio, cujo sentido sua fisionomia tornava fácil compreender. Em seguida, apontou a mesa, ofereceu- me um assento ao seu lado, designou com um gesto a casa inteira, como se para me dizer que era minha e, instalando-se com uma dignidade benevolente, fez um sinal da cruz e começou uma oração.

Ao seu lado estava Kostaki, usando a esplêndida e majestosa indumentária magiar. Cada um tomou seu lugar, que fora determinado pela etiqueta: Gregoriska ao meu lado. Eu era a estrangeira e, por conseguinte, criava um lugar de honra para Kostaki, junto a Esmeranda. Era este o nome da princesa. Gregoriska também mudara de roupa. Como o irmão, usava uma túnica magiar, mas a sua era de veludo grená e as calças, de caxemira azul. Um magnífico adorno pendia em seu peito: era o Nichan do sultão Mahmud.116 O resto dos comensais do castelo fazia as refeições na mesma mesa, cada um no lugar que lhe conferia sua posição, entre os amigos ou entre os criados. O jantar foi triste. Kostaki não me dirigiu a palavra sequer uma vez, embora seu irmão tivesse sempre a amabilidade de se dirigir a mim em francês. Quanto a Esmeranda, ofereceu-me de tudo pessoalmente com o ar solene que nunca a abandonava. Gregoriska dissera a verdade, era uma verdadeira princesa. Após o jantar, Gregoriska dirigiu-lhe a palavra, explicando, em língua moldávia, a necessidade que eu devia sentir de ficar a sós e repousar após as emoções daquele dia. Esmeranda fez com a cabeça um sinal de aprovação, estendeu-me a mão, beijou-me a testa como teria feito com uma filha e me desejou uma boa noite em sua residência. Gregoriska não se enganara: eu ansiava por aquele momento de solidão. Portanto, agradeci à princesa, quando ela me acompanhou até a porta. Lá esperavam as duas mulheres que me haviam conduzido anteriormente até o quarto. Cumprimentei-a, bem como a seus dois filhos, e voltei para o mesmo aposento de onde eu saíra uma hora antes. O sofá transformara-se em cama. Foi a única mudança executada. Agradeci às mulheres. Fiz-lhes sinal de que me despiria sozinha. Saíram prontamente, demonstrando tanta subserviência que pareciam ter ordens para me obedecer em tudo. Naquele quarto imenso, minha lamparina, ao se deslocar, só iluminava a área que eu percorria, jamais o conjunto. Singular jogo de luz, que estabelecia uma luta entre o brilho da vela e os raios do luar que atravessavam minha janela sem cortinas. Além da porta pela qual eu entrara, e que dava na escada, outras duas se abriam para o meu quarto, mas enormes ferrolhos, instalados nessas portas e que corriam lateralmente, bastavam para me tranquilizar. Fui até a porta de entrada, que vistoriei e que, como as demais, tinha trancas poderosas. Abri minha janela: dava para um precipício. Compreendi que Gregoriska não escolhera à toa aquele quarto. Por fim, voltando ao divã, encontrei uma mesinha instalada à minha cabeceira e, sobre ela, um pequeno bilhete dobrado. Abri-o, e li em polonês: Durma tranquila, nada tem a temer enquanto permanecer no interior do castelo. GREGORISKA Segui o conselho recebido e, o cansaço vencendo minhas preocupações, deitei-me e dormi.

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