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Hoje , resolvi verificar , assim que acordei , o valor de minha conta mensal na Light . E , para minha surpresa , o valor foi menor do que o esperado 😀💲, considerando os valores exorbitantes que vinham nos meses anteriores . Eu nem acreditei ! Mas , parece que a empresa Light consertou os abusos cobrados por elas em uma conta de gastos mínimos .
Espero que os valores cobrados sejam justos daqui por diante . 🔌😀💲
terça-feira, 31 de outubro de 2017
T2 N° 442
segunda-feira, 30 de outubro de 2017
T2 N° 440 : A LENDA DO FANTASMA
17 - MUITOS ANOS DE VIDA PARA O
FANTASMA
Quando se encaminhou em direção à luz das tochas, um bramido de vozes surgiu dos pigmeus. Todos
os homens, mulheres e crianças estavam ali reunidos.
— O Fantasma morreu. Muitos anos de vida para o Fantasma — usando o velho refrão que um
Fantasma morto há muito tempo lhes ensinara. Esse povo miúdo e sorridente estava reunido em volta dele
para tocá-lo. Todos adoravam seu pai. Mas agora não havia mais motivo para tristezas. Este povo da
selva vivia perto da terra e dos eternos ciclos da vida e da morte bem como da renovação da vida em
todas as coisas viventes. Por isso é que não conhecia mais tristezas, neste momento. Seu velho amigo
tinha falecido, mas agora voltava novamente, jovem e forte. Agora percebeu Kit a sabedoria e a
importância do traje do Fantasma. Foi recebido sem reservas, sendo cumulado de todos os aplausos e
honorificências que os seus ancestrais conquistaram antes dele.
Com aquele povo anão apinhando-se em volta, dirigiu-se ao Trono da Caveira. Para eles a vida
voltara ao normal. O Fantasma estava de volta. Sentou-se no trono de pedra com sua caveira de pedra
esculpida em ambos os lados. Este trono simbolizava o seu papel de Guardião da Paz que teria que
desempenhar na selva. E casualmente, quando os chefes tribais o procurassem, seria neste trono que se
colocariam para discutir seus problemas e dirimir contendas. Mas nenhum Fantasma jamais teve a
pretensão de querer dominar e não era encarado como dominador por nenhum dos povos da selva. Ele
era seu velho amigo, cuja única missão era colaborar para levar a paz às tribos que viviam sempre em
brigas e ajudar a castigar os malfeitores.
— Fantasma, Fantasma — gritavam os habitantes de Bandar, enquanto preparavam uma grande festa
na clareira que havia diante do trono. Seus gritos de alegria eram ouvidos até além do barulho da
cachoeira.
Enquanto observava esses preparativos da festa — que incluíam a carcaça de um pequeno elefante
no qual andaria montado durante uma semana —> em sua mente desfilavam céleres imageny de velhas
lembranças. Clarksville, Harrison, Diana. O Dia de Kit Walker. O que havia acontecido no estádio?
Algum dia perguntaria a Diana, pois tinha a intenção de vê-la de novo logo que pudesse. Mas não como
Kit Walker.
Agora que estava sentado no Trono da Caveira, esse assento dos seus antepassados, com os gritos
dos filhos de Bandar de "Fantasma, Fantasma" soando-lhe aos ouvidos, ele já não era mais Kit Walker, o
fenômeno de Harrison. Aquele Kit Walker tinha sumido, estava morto. Agora se tornara anônimo ou então
um ente que tinha muitos nomes para ele em suas próprias línguas, algumas das quais que nem se
poderiam imprimir. Ele se movimentaria nas sombras, na escuridão, tendo uma face que não seria jamais
vista por ninguém, exceto por sua esposa e filhos de seu sangue. Levaria uma vida de mistério e perigos.
Seria o terror dos malfeitores e a felicidade para os povos de boa vontade. Ele atuaria sempre sozinho,
porque seria um Fantasma autêntico. O Espírito-Que-Anda. O Homem-Que-Não-Pode-Morrer.
Uma dúzia de mãozinhas puxaram-no do trono para o local dos festejos. E que festejos! Os pigmeus
tinham trabalhado neles incansavelmente e dispendido as energias de toda a tribo para prepará-los.
Havia animais, peixes e galináceos: uns cozidos, outros crus, outros sem pele, outros com pele, outras
com penas, outros ainda intactos com escamas. Legumes, verduras, nozes e cerejas em abundância. Na
frente de Kit, um pedaço descomunal de carne de elefante. Para este povo nanico tinha sido um dos
maiores triunfos poder matar este monstro e constituía uma deferência especial para este seu hóspede de
honra.
Ele olhou para a montanha de carne que havia em sua frente. Não havia como escapar. Os olhares de
todos estavam voltados para ele. Não havia facas nem garfos. Apanhou depressa um pedaço de carne
gordurosa. Os presentes esperaram. Olhou em volta para as fileiras de pequenos rostos ansiosos. Em
grupos espalhados por todos os lados estavam aguardando o sinal de partida dado por ele.
"É agora", pensou ele consigo e, prendendo a respiração, começou a mastigar.
Aquilo foi o sinal verde para que entre os de Bandar se formasse um verdadeiro pandemônio.
Começaram a dançar e gritar.
— Fantasma. Fantasma. Que o Fantasma tenha vida longa, muitos anos de vida!
"Mas não será por muitos anos, se eu continuar comendo deste jeito", pensou ele. Deve haver
algumas mudanças nos cardápios da Floresta Negra.
As últimas palavras do seu pai foram: "Terá dias felizes e dias maus".
"Gostaria de saber se a isto ele chamaria de dias felizes ou maus", pensou ele, sorrindo. Mas,
quando olhou em volta para aqueles rostos amigos, tão felizes porque lhe estavam proporcionando
momentos de alegria e tão contentes por estarem com ele, então soube a razão de toda aquela explosão de
contentamento: Estava de novo entre eles.
FIM
FANTASMA
Quando se encaminhou em direção à luz das tochas, um bramido de vozes surgiu dos pigmeus. Todos
os homens, mulheres e crianças estavam ali reunidos.
— O Fantasma morreu. Muitos anos de vida para o Fantasma — usando o velho refrão que um
Fantasma morto há muito tempo lhes ensinara. Esse povo miúdo e sorridente estava reunido em volta dele
para tocá-lo. Todos adoravam seu pai. Mas agora não havia mais motivo para tristezas. Este povo da
selva vivia perto da terra e dos eternos ciclos da vida e da morte bem como da renovação da vida em
todas as coisas viventes. Por isso é que não conhecia mais tristezas, neste momento. Seu velho amigo
tinha falecido, mas agora voltava novamente, jovem e forte. Agora percebeu Kit a sabedoria e a
importância do traje do Fantasma. Foi recebido sem reservas, sendo cumulado de todos os aplausos e
honorificências que os seus ancestrais conquistaram antes dele.
Com aquele povo anão apinhando-se em volta, dirigiu-se ao Trono da Caveira. Para eles a vida
voltara ao normal. O Fantasma estava de volta. Sentou-se no trono de pedra com sua caveira de pedra
esculpida em ambos os lados. Este trono simbolizava o seu papel de Guardião da Paz que teria que
desempenhar na selva. E casualmente, quando os chefes tribais o procurassem, seria neste trono que se
colocariam para discutir seus problemas e dirimir contendas. Mas nenhum Fantasma jamais teve a
pretensão de querer dominar e não era encarado como dominador por nenhum dos povos da selva. Ele
era seu velho amigo, cuja única missão era colaborar para levar a paz às tribos que viviam sempre em
brigas e ajudar a castigar os malfeitores.
— Fantasma, Fantasma — gritavam os habitantes de Bandar, enquanto preparavam uma grande festa
na clareira que havia diante do trono. Seus gritos de alegria eram ouvidos até além do barulho da
cachoeira.
Enquanto observava esses preparativos da festa — que incluíam a carcaça de um pequeno elefante
no qual andaria montado durante uma semana —> em sua mente desfilavam céleres imageny de velhas
lembranças. Clarksville, Harrison, Diana. O Dia de Kit Walker. O que havia acontecido no estádio?
Algum dia perguntaria a Diana, pois tinha a intenção de vê-la de novo logo que pudesse. Mas não como
Kit Walker.
Agora que estava sentado no Trono da Caveira, esse assento dos seus antepassados, com os gritos
dos filhos de Bandar de "Fantasma, Fantasma" soando-lhe aos ouvidos, ele já não era mais Kit Walker, o
fenômeno de Harrison. Aquele Kit Walker tinha sumido, estava morto. Agora se tornara anônimo ou então
um ente que tinha muitos nomes para ele em suas próprias línguas, algumas das quais que nem se
poderiam imprimir. Ele se movimentaria nas sombras, na escuridão, tendo uma face que não seria jamais
vista por ninguém, exceto por sua esposa e filhos de seu sangue. Levaria uma vida de mistério e perigos.
Seria o terror dos malfeitores e a felicidade para os povos de boa vontade. Ele atuaria sempre sozinho,
porque seria um Fantasma autêntico. O Espírito-Que-Anda. O Homem-Que-Não-Pode-Morrer.
Uma dúzia de mãozinhas puxaram-no do trono para o local dos festejos. E que festejos! Os pigmeus
tinham trabalhado neles incansavelmente e dispendido as energias de toda a tribo para prepará-los.
Havia animais, peixes e galináceos: uns cozidos, outros crus, outros sem pele, outros com pele, outras
com penas, outros ainda intactos com escamas. Legumes, verduras, nozes e cerejas em abundância. Na
frente de Kit, um pedaço descomunal de carne de elefante. Para este povo nanico tinha sido um dos
maiores triunfos poder matar este monstro e constituía uma deferência especial para este seu hóspede de
honra.
Ele olhou para a montanha de carne que havia em sua frente. Não havia como escapar. Os olhares de
todos estavam voltados para ele. Não havia facas nem garfos. Apanhou depressa um pedaço de carne
gordurosa. Os presentes esperaram. Olhou em volta para as fileiras de pequenos rostos ansiosos. Em
grupos espalhados por todos os lados estavam aguardando o sinal de partida dado por ele.
"É agora", pensou ele consigo e, prendendo a respiração, começou a mastigar.
Aquilo foi o sinal verde para que entre os de Bandar se formasse um verdadeiro pandemônio.
Começaram a dançar e gritar.
— Fantasma. Fantasma. Que o Fantasma tenha vida longa, muitos anos de vida!
"Mas não será por muitos anos, se eu continuar comendo deste jeito", pensou ele. Deve haver
algumas mudanças nos cardápios da Floresta Negra.
As últimas palavras do seu pai foram: "Terá dias felizes e dias maus".
"Gostaria de saber se a isto ele chamaria de dias felizes ou maus", pensou ele, sorrindo. Mas,
quando olhou em volta para aqueles rostos amigos, tão felizes porque lhe estavam proporcionando
momentos de alegria e tão contentes por estarem com ele, então soube a razão de toda aquela explosão de
contentamento: Estava de novo entre eles.
FIM
T2 N° 439 : A LENDA DO FANTASMA
16 - A CRIPTA
Quando entrou na caverna instintivamente procurou pela bondosa mãe. Quantas vezes tinha ela
estado esperando por ele, justamente na entrada da caverna, fora do sol quente.
Com sentimentos de dor percebeu que ela não estava mais ali. Há quanto tempo estava ela morta? Há
cinco, seis anos? Tinha havido aquela carta. Saiu correndo, passou pelo quarto dos trajes e o Aposento
das Crônicas, pelo quarto maior e pelo menor que continham os tesouros com suas pedras preciosas
cintilantes, chegando ao enorme quarto de chão duro onde seu pai jazia deitado num montão de peles de
animal, tendo ao lado dois pigmeus sentados. Quando Kit entrou os dois se levantaram e saíram depressa.
Seu pai vestia apenas tangas. Tinha peito, pernas, braços, ombro e testa enfaixados em ataduras,
cobrindo mais de uma dúzia de ferimentos. Quando Kit se aproximou seus olhos estavam fechados.
— Papai — chamou Kit.
O Vigésimo abriu os olhos. Não ficou surpreso porque estava certo de que seu filho chegaria. Olhou
para o filho, sorrindo brevemente, e com uma voz suave pronunciou palavras que todos os pais dizem em
todos os tempos e idades:
— Como ficou grande, meu filho.
Kit evocou a lembrança do vigoroso corpo do seu pai naqueles dias em que nadava nas águas das
praias de Keela-Wee e Éden. E ainda os mergulhos nos pequenos lagos da selva. Agora a refrega
causada por suas lutas mortíferas era evidente. Tinha perdido peso e o movimento de sua mão era lento e
fraco. Kit sentou-se ao seu lado.
— Papai, o Sr. vai melhorar — disse ele. Seu pai sacudiu a cabeça. Sua voz era fraca e Kit teve que
se inclinar para poder ouvir melhor.
— Eu estou vivendo de teimoso. Alex predisse que meus dias estão contados. Eu disse que ele era
tolo, que estava dizendo bobagens —. Nisto riu suavemente, esforço que lhe provocou um acesso de
tosse.
— Kit, vou morrer. Fiquei vivo só para poder ver você. Não me sobra muito tempo. Está lembrado
do Juramento? Kit fez sinal que sim, apertando a mão de seu pai.
— Sim, lembro-me.
O pai começou a citar o Juramento da Caveira, fazendo pausa depois de cada frase, para que Kit a
repetisse.
"Juro que dedicarei toda a minha vida à tarefa de destruir a pirataria, a ganância, a crueldade e a
injustiça e meus filhos e os filhos de meus filhos me perpetuarão".
Repetido o juramento, o Vigésimo levantou fracamente a sua mão esquerda.
— Os anéis. Kit.
Kit hesitou.
— O Sr. está certo disto, pai? — perguntou ele. Os anéis eram o final de tudo.
— Os anéis — repetiu o pai com uma voz mais premente e apressada.
Kit retirou o anel da mão esquerda e entregou-o ao pai. Com mão trêmula, o pai colocou-o no dedo
anular da mão esquerda de Kit.
— Para que sirva de proteção a gente de bem — murmurou ele, ofegante. — A outra mão.
Já não conseguia mais levantar as suas mãos. Kit retirou o anel da mão direita. Era o anel da cabeça
da morte, que trazia uma caveira, o antigo símbolo do Fantasma que era conhecido de todos os que
habitavam a selva, dos piratas dos sete mares e dos malfeitores dos quatro pontos do mundo.
Com a ajuda de Kit o pai introduziu o anel da caveira em sua mão direita.
— Kit, o anel do Juramento. Seja-lhe fiel.
— Serei fiel a ele.
— "Você conhece o resto — a máscara — começou seu pai a falar.
Kit se inclinou, falando perto do ouvido do pai. — A máscara para disfarce — respondeu ele.
— O tesouro.
— O tesouro, que só deve ser usado para fazer o bem — respondeu o filho.
— As Crônicas.
— Serão escritas.
Kit estava repetindo as palavras que havia aprendido em criança, quando a mão do pai agarrou
depressa, desesperadamente, as do filho.
— Kit, quantas vezes sua mãe sentia saudades de você — queria revê-lo mais uma vez — agora tem
que esperar — agora.
Debatia-se para dizer alguma coisa mais. Seu corpo tremia com o esforço que fazia e seu cochicho
rouquenho e áspero era tão suave que Kit mal podia entender.
— Kit, terá dias felizes — e dias maus.
Com os ouvidos colados aos lábios do pai, Kit esperava que o pai falasse mais alguma coisa, mas
nenhuma palavra se desprendeu de sua boca. Um suspiro profundo, e sua mão desfaleceu. A respiração
parou. Acabava de morrer.
Kit abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Gurã havia dito, "ele disse que iria esperá-lo. Ele o
desejava".
E ele estava com a razão. Esta era a tempera deste admirável homem. Por força de algo de
misterioso que havia nele, conseguira manter a morte esperando o tempo suficiente para tornar a ver seu
filho.
Kit permaneceu sentado, por algum tempo, meditando, perto do corpo do seu pai, iluminado pela luz
cintilante das tochas colocadas nas paredes nuas. Pois, conforme lembrou pelos treinos dos seus
primeiros anos, sabia o que era preciso fazer. Apanhou o corpo do seu pai e carregou-o para aquele
aposento mofado e frio chamado a Cripta. Teve que executar esta tarefa sozinho, porque assim
determinava a tradição dos seus antepassados. No aposento estavam enfileirados os ataúdes, desde o
Fantasma Primeiro até o Dezenove. Perto do último estava a tabuleta sem data, o lugar do Vigésimo.
Perto dali, no chão, havia uma caixa de pedra com velhas ferramentas. Com as ferramentas retirou a
tabuleta sem data. Atrás desta tabuleta, se via um ataúde de metal. Quando foi que seu pai o conseguira.
Cada Fantasma tinha a mórbida tarefa de preparar seu próprio caixão mortuário. Kit retirou o ataúde e
com cuidado colocou o pai dentro dele. Curvou-se para dentro do ataúde, beijando a face ainda quente do
defunto. A lembrança deste paciente e generoso pai inundou de lágrimas os olhos do filho.
— Adeus, papai — murmurou ele.
Recolocou a cobertura de metal e lentamente pôs o capacete em seu nicho na parede. Então, a
próxima tarefa. Entre os instrumentos de ferro havia um martelo e um cinzel. Isto também era uma sua
tarefa, já que ninguém a não ser o Fantasma ou sua família podia entrar na Cripta. Depois de marcar
números sobre a tabuleta com um creiom também encontrado na caixa de pedra, começou a cinzelar lenta
e cuidadosamente, em cima o Vigésimo, os anos de seu nascimento e morte. Isto posto martelou a tabuleta
no devido lugar. Após ter varrido o solo e recolocado os instrumentos nos lugares, exaustivamente
examinou seu trabalho. Agora, a antiga linha estendia-se do Primeiro ao Vigésimo. Vinte gerações de
homens valentes e altruístas, que tinham dedicado suas vidas à luta contra o mal e à promoção do bem,
agora que conhecia o mundo lá de fora e tinha estudado o passado, compreendeu que esta linhagem dos
Fantasmas era única e sem paralelo em qualquer parte e em qualquer etapa da história da humanidade.
Sua tristeza foi substituída pelo orgulho à medida que olhava para as abóbodas. — Minha família, pensou
— sou um deles.
Olhou de novo para a placa recentemente cinzelada que cobria a cripta de seu pai. Nas cercanias
dela estava outra placa destituída de data, esta seria a sua um dia. O Vigésimo primeiro. Estranho
pensamento. Mas não o perturbava. Para a juventude, tanto como para os soldados a caminho da batalha,
a morte é sempre para os outros.
Feito isto, saiu da cripta e dirigiu-se ao quarto dos trajes. Ali, sobre um banco de pedra, havia um
traje esperando por ele, máscara, capuz, cintos, coldre, armas. Há quanto tempo estava isto tudo
esperando por ele? Ao vestir aquelas roupas e acessórios teve vontade de sorrir. Enquanto estava na
América, os seus pais sempre lhe escreviam, pedindo que lhes dissesse que altura tinha e quanto pesava e
assim eles puderam acompanhar de longe o crescimento do seu filho ausente. O traje assentou muito bem.
Frequentemente cismava acerca deste traje particular. Não parecia talhado para a selva. Seu pai
explicara. O Primeiro havia criado o traje para fixar a imagem que gerasse superstição de um certo
espírito de vingança em que o povo da selva o da costa acreditava naquela época. O medo que sua
aparição criava o ajudava em sua batalha contra o barbarismo violento e a selvageria de seu tempo. Seu
filho e aqueles que se seguissem continuariam usando a mesma roupa e a lenda da imortalidade iniciada e
segundo a qual sempre o mesmo homem se manteria. Aquele também era uma grande ajuda na luta
encarniçada contra o mal.
Com a luz da tocha acesa se olhou no espelho que fora de sua mãe. Seu aspecto quase .o chocou e
surpreendeu ao mesmo tempo. Olhando de perto, ele parecia-se exatamente como seu pai. Apanhou as
duas armas que haviam pertencido a seu pai. Estavam bem lustradas. Que armas mortíferas!
Tão logo tivesse que usá-las, o que imaginaria? Um pensamento fugaz atravessou sua mente. Aqueles
bandidos que haviam atacado a escola de missionários do padre Morra — a batalha que causara a morte
de seu pai — seis haviam sido apanhados, mas seis haviam escapado penetrando na selva. Deviam ser
encontrados e levados à justiça. Colocou os revólveres nos coldres e então sacou rapidamente, tal como
havia praticado tantas vezes. Sabia que sua vida poderia depender da rapidez daquele movimento.
Recolocando as armas no lugar, Kit dirigiu-se ao quarto das Crônicas, que estava iluminado por tochas.
Um volume grande e novo estava colocado no pódio perto das estantes com os volumes contendo todas as
façanhas de vinte Fantasmas. Abriu o volume novo. As páginas estavam em branco. Havia uma pena de
asa de galinha e um pequeno recipiente de tinta feita de cerejas silvestres. Escreveu a data no cabeçalho
da página e começou a registrar a sua primeira crônica:
"17 de junho: Hoje meu pai faleceu em consequência de ferimentos recebidos nas mãos dos
bandidos que atacaram o hospital missionário do padre Morra. Matou ou feriu seis. Outros seis fugiram.
É minha firme determinação capturar esses seis quanto antes possível e tudo fazer para que sejam
punidos de acordo com a lei".
Caminhou lentamente através das salas do tesouro. A sala menor do tesouro estava repleta com joias
e ouro. Como o tio Efraim adoraria ver isto! Em seguida a sala maior do tesouro apresentava-se com seus
objetos antigos que não tinham preço. Pegou a pesada taça reluzente de Alexandre, talhada num único e
gigantesco diamante. Sorriu, lembrando-se de como a tinha deixado cair e da zanga de seu pai; e também
da descrição de Alexandre dada por seu pai. "Alguns o chamam Grande." Tinha estado naquela sala mil
vezes, mas agora tudo parecia diferente. A responsabilidade por tudo aquilo, cabia-lhe agora.
Kit sabia que os pigmeus de Bandar estavam esperando por ele no lado de fora. Atravessou de volta
a vasta caverna, parando mais uma vez na Cripta. Permaneceu em silêncio. Por um rápido momento teve
a estranha impressão de que um punhado de faces mascaradas e sorridentes estavam olhando para ele lá
de cima daquelas paredes e teto. Parecia-lhe que deles emanava um sussurro que ecoava e reboava no
quarto de rocha.
"Seja bem-vindo. Confiamos em você".
Sentiu um calafrio pelo corpo. Os rostos haviam desaparecido. A imaginação é uma coisa realmente
estranha. Mas ele olhou orgulhosamente para a fileira de ataúdes, desde o Primeiro até o Vigésimo.
— Eu farei o melhor — disse ele.
E com isto Kit saiu lentamente da caverna onde cem tochas ardiam, encaminhando-se para o lugar
onde os pigmeus de Bandar o aguardavam.
Quando entrou na caverna instintivamente procurou pela bondosa mãe. Quantas vezes tinha ela
estado esperando por ele, justamente na entrada da caverna, fora do sol quente.
Com sentimentos de dor percebeu que ela não estava mais ali. Há quanto tempo estava ela morta? Há
cinco, seis anos? Tinha havido aquela carta. Saiu correndo, passou pelo quarto dos trajes e o Aposento
das Crônicas, pelo quarto maior e pelo menor que continham os tesouros com suas pedras preciosas
cintilantes, chegando ao enorme quarto de chão duro onde seu pai jazia deitado num montão de peles de
animal, tendo ao lado dois pigmeus sentados. Quando Kit entrou os dois se levantaram e saíram depressa.
Seu pai vestia apenas tangas. Tinha peito, pernas, braços, ombro e testa enfaixados em ataduras,
cobrindo mais de uma dúzia de ferimentos. Quando Kit se aproximou seus olhos estavam fechados.
— Papai — chamou Kit.
O Vigésimo abriu os olhos. Não ficou surpreso porque estava certo de que seu filho chegaria. Olhou
para o filho, sorrindo brevemente, e com uma voz suave pronunciou palavras que todos os pais dizem em
todos os tempos e idades:
— Como ficou grande, meu filho.
Kit evocou a lembrança do vigoroso corpo do seu pai naqueles dias em que nadava nas águas das
praias de Keela-Wee e Éden. E ainda os mergulhos nos pequenos lagos da selva. Agora a refrega
causada por suas lutas mortíferas era evidente. Tinha perdido peso e o movimento de sua mão era lento e
fraco. Kit sentou-se ao seu lado.
— Papai, o Sr. vai melhorar — disse ele. Seu pai sacudiu a cabeça. Sua voz era fraca e Kit teve que
se inclinar para poder ouvir melhor.
— Eu estou vivendo de teimoso. Alex predisse que meus dias estão contados. Eu disse que ele era
tolo, que estava dizendo bobagens —. Nisto riu suavemente, esforço que lhe provocou um acesso de
tosse.
— Kit, vou morrer. Fiquei vivo só para poder ver você. Não me sobra muito tempo. Está lembrado
do Juramento? Kit fez sinal que sim, apertando a mão de seu pai.
— Sim, lembro-me.
O pai começou a citar o Juramento da Caveira, fazendo pausa depois de cada frase, para que Kit a
repetisse.
"Juro que dedicarei toda a minha vida à tarefa de destruir a pirataria, a ganância, a crueldade e a
injustiça e meus filhos e os filhos de meus filhos me perpetuarão".
Repetido o juramento, o Vigésimo levantou fracamente a sua mão esquerda.
— Os anéis. Kit.
Kit hesitou.
— O Sr. está certo disto, pai? — perguntou ele. Os anéis eram o final de tudo.
— Os anéis — repetiu o pai com uma voz mais premente e apressada.
Kit retirou o anel da mão esquerda e entregou-o ao pai. Com mão trêmula, o pai colocou-o no dedo
anular da mão esquerda de Kit.
— Para que sirva de proteção a gente de bem — murmurou ele, ofegante. — A outra mão.
Já não conseguia mais levantar as suas mãos. Kit retirou o anel da mão direita. Era o anel da cabeça
da morte, que trazia uma caveira, o antigo símbolo do Fantasma que era conhecido de todos os que
habitavam a selva, dos piratas dos sete mares e dos malfeitores dos quatro pontos do mundo.
Com a ajuda de Kit o pai introduziu o anel da caveira em sua mão direita.
— Kit, o anel do Juramento. Seja-lhe fiel.
— Serei fiel a ele.
— "Você conhece o resto — a máscara — começou seu pai a falar.
Kit se inclinou, falando perto do ouvido do pai. — A máscara para disfarce — respondeu ele.
— O tesouro.
— O tesouro, que só deve ser usado para fazer o bem — respondeu o filho.
— As Crônicas.
— Serão escritas.
Kit estava repetindo as palavras que havia aprendido em criança, quando a mão do pai agarrou
depressa, desesperadamente, as do filho.
— Kit, quantas vezes sua mãe sentia saudades de você — queria revê-lo mais uma vez — agora tem
que esperar — agora.
Debatia-se para dizer alguma coisa mais. Seu corpo tremia com o esforço que fazia e seu cochicho
rouquenho e áspero era tão suave que Kit mal podia entender.
— Kit, terá dias felizes — e dias maus.
Com os ouvidos colados aos lábios do pai, Kit esperava que o pai falasse mais alguma coisa, mas
nenhuma palavra se desprendeu de sua boca. Um suspiro profundo, e sua mão desfaleceu. A respiração
parou. Acabava de morrer.
Kit abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Gurã havia dito, "ele disse que iria esperá-lo. Ele o
desejava".
E ele estava com a razão. Esta era a tempera deste admirável homem. Por força de algo de
misterioso que havia nele, conseguira manter a morte esperando o tempo suficiente para tornar a ver seu
filho.
Kit permaneceu sentado, por algum tempo, meditando, perto do corpo do seu pai, iluminado pela luz
cintilante das tochas colocadas nas paredes nuas. Pois, conforme lembrou pelos treinos dos seus
primeiros anos, sabia o que era preciso fazer. Apanhou o corpo do seu pai e carregou-o para aquele
aposento mofado e frio chamado a Cripta. Teve que executar esta tarefa sozinho, porque assim
determinava a tradição dos seus antepassados. No aposento estavam enfileirados os ataúdes, desde o
Fantasma Primeiro até o Dezenove. Perto do último estava a tabuleta sem data, o lugar do Vigésimo.
Perto dali, no chão, havia uma caixa de pedra com velhas ferramentas. Com as ferramentas retirou a
tabuleta sem data. Atrás desta tabuleta, se via um ataúde de metal. Quando foi que seu pai o conseguira.
Cada Fantasma tinha a mórbida tarefa de preparar seu próprio caixão mortuário. Kit retirou o ataúde e
com cuidado colocou o pai dentro dele. Curvou-se para dentro do ataúde, beijando a face ainda quente do
defunto. A lembrança deste paciente e generoso pai inundou de lágrimas os olhos do filho.
— Adeus, papai — murmurou ele.
Recolocou a cobertura de metal e lentamente pôs o capacete em seu nicho na parede. Então, a
próxima tarefa. Entre os instrumentos de ferro havia um martelo e um cinzel. Isto também era uma sua
tarefa, já que ninguém a não ser o Fantasma ou sua família podia entrar na Cripta. Depois de marcar
números sobre a tabuleta com um creiom também encontrado na caixa de pedra, começou a cinzelar lenta
e cuidadosamente, em cima o Vigésimo, os anos de seu nascimento e morte. Isto posto martelou a tabuleta
no devido lugar. Após ter varrido o solo e recolocado os instrumentos nos lugares, exaustivamente
examinou seu trabalho. Agora, a antiga linha estendia-se do Primeiro ao Vigésimo. Vinte gerações de
homens valentes e altruístas, que tinham dedicado suas vidas à luta contra o mal e à promoção do bem,
agora que conhecia o mundo lá de fora e tinha estudado o passado, compreendeu que esta linhagem dos
Fantasmas era única e sem paralelo em qualquer parte e em qualquer etapa da história da humanidade.
Sua tristeza foi substituída pelo orgulho à medida que olhava para as abóbodas. — Minha família, pensou
— sou um deles.
Olhou de novo para a placa recentemente cinzelada que cobria a cripta de seu pai. Nas cercanias
dela estava outra placa destituída de data, esta seria a sua um dia. O Vigésimo primeiro. Estranho
pensamento. Mas não o perturbava. Para a juventude, tanto como para os soldados a caminho da batalha,
a morte é sempre para os outros.
Feito isto, saiu da cripta e dirigiu-se ao quarto dos trajes. Ali, sobre um banco de pedra, havia um
traje esperando por ele, máscara, capuz, cintos, coldre, armas. Há quanto tempo estava isto tudo
esperando por ele? Ao vestir aquelas roupas e acessórios teve vontade de sorrir. Enquanto estava na
América, os seus pais sempre lhe escreviam, pedindo que lhes dissesse que altura tinha e quanto pesava e
assim eles puderam acompanhar de longe o crescimento do seu filho ausente. O traje assentou muito bem.
Frequentemente cismava acerca deste traje particular. Não parecia talhado para a selva. Seu pai
explicara. O Primeiro havia criado o traje para fixar a imagem que gerasse superstição de um certo
espírito de vingança em que o povo da selva o da costa acreditava naquela época. O medo que sua
aparição criava o ajudava em sua batalha contra o barbarismo violento e a selvageria de seu tempo. Seu
filho e aqueles que se seguissem continuariam usando a mesma roupa e a lenda da imortalidade iniciada e
segundo a qual sempre o mesmo homem se manteria. Aquele também era uma grande ajuda na luta
encarniçada contra o mal.
Com a luz da tocha acesa se olhou no espelho que fora de sua mãe. Seu aspecto quase .o chocou e
surpreendeu ao mesmo tempo. Olhando de perto, ele parecia-se exatamente como seu pai. Apanhou as
duas armas que haviam pertencido a seu pai. Estavam bem lustradas. Que armas mortíferas!
Tão logo tivesse que usá-las, o que imaginaria? Um pensamento fugaz atravessou sua mente. Aqueles
bandidos que haviam atacado a escola de missionários do padre Morra — a batalha que causara a morte
de seu pai — seis haviam sido apanhados, mas seis haviam escapado penetrando na selva. Deviam ser
encontrados e levados à justiça. Colocou os revólveres nos coldres e então sacou rapidamente, tal como
havia praticado tantas vezes. Sabia que sua vida poderia depender da rapidez daquele movimento.
Recolocando as armas no lugar, Kit dirigiu-se ao quarto das Crônicas, que estava iluminado por tochas.
Um volume grande e novo estava colocado no pódio perto das estantes com os volumes contendo todas as
façanhas de vinte Fantasmas. Abriu o volume novo. As páginas estavam em branco. Havia uma pena de
asa de galinha e um pequeno recipiente de tinta feita de cerejas silvestres. Escreveu a data no cabeçalho
da página e começou a registrar a sua primeira crônica:
"17 de junho: Hoje meu pai faleceu em consequência de ferimentos recebidos nas mãos dos
bandidos que atacaram o hospital missionário do padre Morra. Matou ou feriu seis. Outros seis fugiram.
É minha firme determinação capturar esses seis quanto antes possível e tudo fazer para que sejam
punidos de acordo com a lei".
Caminhou lentamente através das salas do tesouro. A sala menor do tesouro estava repleta com joias
e ouro. Como o tio Efraim adoraria ver isto! Em seguida a sala maior do tesouro apresentava-se com seus
objetos antigos que não tinham preço. Pegou a pesada taça reluzente de Alexandre, talhada num único e
gigantesco diamante. Sorriu, lembrando-se de como a tinha deixado cair e da zanga de seu pai; e também
da descrição de Alexandre dada por seu pai. "Alguns o chamam Grande." Tinha estado naquela sala mil
vezes, mas agora tudo parecia diferente. A responsabilidade por tudo aquilo, cabia-lhe agora.
Kit sabia que os pigmeus de Bandar estavam esperando por ele no lado de fora. Atravessou de volta
a vasta caverna, parando mais uma vez na Cripta. Permaneceu em silêncio. Por um rápido momento teve
a estranha impressão de que um punhado de faces mascaradas e sorridentes estavam olhando para ele lá
de cima daquelas paredes e teto. Parecia-lhe que deles emanava um sussurro que ecoava e reboava no
quarto de rocha.
"Seja bem-vindo. Confiamos em você".
Sentiu um calafrio pelo corpo. Os rostos haviam desaparecido. A imaginação é uma coisa realmente
estranha. Mas ele olhou orgulhosamente para a fileira de ataúdes, desde o Primeiro até o Vigésimo.
— Eu farei o melhor — disse ele.
E com isto Kit saiu lentamente da caverna onde cem tochas ardiam, encaminhando-se para o lugar
onde os pigmeus de Bandar o aguardavam.
T2 N° 438 : A LENDA DO FANTASMA
15 - O REGRESSO DO NATIVO
Naquela noite, quando deixaram a praça de esportes, um táxi estava esperando por Kit e Gurã. Kit
estava resolvido a não deixar nenhum vestígio de sua partida. Gurã entrou no táxi que havia alugado
enquanto Kit ficou esperando escondido na escuridão. Por não saber falar inglês, Gurã deu ao chofer
instruções escritas para que o levasse até o aeroporto. Quando o táxi se pôs em movimento, Kit saiu
depressa da sombra e pendurou-se na roda de reserva que estava atrás do carro, sem ser visto. Ao se
aproximarem do aeroporto Kit se soltou, aproveitando a marcha lenta do carro e foi juntar-se a Gurã no
campo. Já era tarde e os poucos funcionários nem ligavam para o pequeno avião fretado que estava na
pista. Com o auxílio de óculos para sol e um gorro puxado bem em cima da face, Kit conservava o rosto
escondido do piloto.
Chegaram ao aeroporto metropolitano somente com alguns minutos de antecedência, mas ficaram
sabendo que a partida do avião transoceânico havia sofrido um atraso. A esta hora o grande terminal esta
em grande parte deserto, havendo somente um punhado de pessoas sonolentas sentadas nos bancos. Kit
manteve-se afastado de Gurã, porque o anão chamaria a atenção dos presentes. Quando ia passeando pela
sala de espera, um artigo num balcão de novidades despertou a atenção de Kit. Bigodes falsos para
crianças. Comprou-o, entrou no banheiro dos homens e colocou-o em si mesmo.
Agora, com os óculos de sol, gorro e os bigodes não havia quem o reconhecesse.
Não demorou muito que lá estavam eles no ar, voando rumo a Bengala. O avião ia somente com meia
lotação. Embora seu rosto pudesse ser reconhecido na maioria das ruas americanas, para estes viajantes
de Bengala não passava ele de um estranho e por isso não precisaria dos bigodes. Mas, por medida de
precaução ficou com eles. Podia ser que a bordo houvesse alguém que conhecesse a sua fisionomia. A
discrição e anonimato em que Kit se embuçara tão depressa era fruto de seu treinamento na meninice.
Sem que ninguém lho dissesse, ele agiu da maneira esperada. Esperada por quem? Pela linhagem dos
Fantasmas, do Primeiro ao Vigésimo. E que será que aconteceu ao Vigésimo?
Enquanto tiravam uns cochilos e tomavam as refeições a bordo do avião, atravessando o oceano,
Gurã contou o que se passou com seu pai. Bandidos atacaram a escola missionária do padre Morra em
plena selva. O jovem sacerdote, alguns auxiliares de mais idade e cinquenta jovens nativas não tinham
armas para se defender. Os celerados atacaram a escola, pilharam os mantimentos e o pequeno dinheiro
que havia e começaram a infernizar as moças, quando o Vigésimo chegou. Sinais de tambores haviam
transmitido a ele a notícia desta incursão. Ele investiu contra os velhacos como um anjo vingador,
comentou mais tarde o padre Morra, e completamente sozinho deu cabo de meia dúzia deles. Os outros
seis bandidos se embrenharam na mata, num salve-se-quem-puder. Mas nessa luta furiosa, o Vigésimo foi
gravemente ferido. Padre Morra cuidou dos ferimentos mas ele se recusou a permanecer na escola. Disse
que tinha que voltar e não houve quem o convencesse do contrário. Diante do, espanto e admiração do
sacerdote, montou o seu garanhão preto, sucessor de Trovão, e desapareceu. Padre Morra disse que
nunca conseguiu saber como é que pôde montar a cavalo, ficar em cima dele e andar, pois seus
ferimentos eram graves. Mas enquanto um Fantasma pode se movimentar, ele tem que voltar à Floresta
Negra ou então ser carregado para lá.
Ao chegar à Floresta Negra, o Vigésimo caiu do cavalo, desmaiando fatalmente. O pai de Gurã, o
velho chefe, sabia que seu grande amigo estava gravemente ferido e que havia perigo de morte. Perdera
muito sangue com os ferimentos e o estado dele estava além das possibilidades da assistência que os
pigmeus podiam prestar. Deitaram-no no leito de peles de animal que havia na Caverna da Caveira. O
pai de Gurã lembrou o Dr. Axel, pois ele próprio havia sido um dos guerreiros que tinham ido buscar o
Dr. Axel e o haviam levado à Floresta Negra para assistir ao nascimento de Kit. Agora o Dr. Axel tinha
seu Hospital da Selva, que ficava a um dia de viagem. Gurã e mais alguns pigmeus foram enviados a ele.
Quando os pigmeus chegaram o Dr. Axel já imaginou que alguma coisa de grave devia estar se passando,
pois já tinha vinte e dois anos de vivência na selva e conhecia os costumes e tradições que reinavam
nestas bandas. Assim é que, passada uma geração, voltou à Floresta Negra. Mais uma vez foram-lhe
vendados os olhos quando teve que atravessar a cachoeira. Mas desta vez não estava com medo.
Havia visto seu grande amigo mascarado uma ou duas vezes durante esses anos. Tinha havido outros
ferimentos que precisaram de tratamento e uma vez o hospital teve que se valer da proteção do Fantasma,
conforme lhe havia sido prometida, caso dela necessitasse. Mas desta vez ficou desanimado quando viu
seu amigo. Empregou todo tipo de remédio que julgou apto e fez o que pôde. Conseguiu fazê-lo voltar à
consciência, mas teve que lhe dizer a verdade nua e crua: não viveria mais do que alguns dias apenas.
Mas quanto a isto estava equivocado, pois o Vigésimo não pretendia de modo algum morrer sem ver seu
filho. Gurâ, que era o único pigmeu que conhecia terras estrangeiras — o que o tornou célebre entre os
seus —> foi imediatamente enviado. Foi assim que naquela noite ele apareceu debaixo da janela de Kit
na Universidade de Harrison.
De semblante sombrio e tristonho, Kit ouviu a história. Se o Dr. Axel não estava enganado, a esta
altura seu pai já devia estar morto. Ao pensar nesta possibilidade Gurã abanou a cabeça. — Ele disse
que esperaria até que você chegasse. Sei que vai esperar — disse o anãozinho com ar sério. Nunca
voltara atrás em sua palavra e não seria agora que iria faltar com a mesma. Embora entristecido por esta
viagem, Kit se sentia emocionado pela confiança que seu pai inspirava nesse povo e assim a antiga
admiração do garotinho pelo pai voltou à tona com intensidade.
Durante esta viagem a reserva entre Kit e Gurã dissipou-se em parte. Kit lhe falou das peripécias
que tivera na América e fez muitas perguntas sobre seus amigos na Floresta Negra e assim os dois
passaram a viagem rindo e brincando como nos velhos tempos. Isto porque, apesar da seriedade da
missão que estava sendo executada, a vida continua e a juventude é um manancial de fortaleza e
esperança. A reserva entre os dois desaparecera apenas em parte, não completamente, porquanto os dois
tinham ficado mais maduros e Kit percebeu que Gurã o vinha_encarando de outro modo. Debaixo de toda
aquela camaradagem, nos modos de Gurã se escondia um novo tipo de distância respeitosa, uma nova
deferência que Kit ainda não conseguira entender.
Quando chegaram ao aeroporto de Mawitã, a pacata capital portuária de Bengala, a viagem começou
a tornar-se real para Kit. O ar, as montanhas distantes, os sons e cheiro, os rostos negros sorrindo, os
acentos melodiosos, os trajes vistosos, tudo isto era como que uma volta a um velho sonho. Esta sensação
se intensificaria cada passo que desse rumo à Floresta Negra.
Ao deixarem ao aeroporto tomaram uma carruagem que os levou até à entrada da selva. Mal tinham
andado uma pequena distância, quando deram com um grupo de guerreiros Wambesis, dez ao todo, que
lhes tinham vindo ao encontro. Olharam curiosos para Kit, perguntando-se quem era. Haviam recebido
ordens para escoltarem o estranho que chegaria em companhia de Gurã, príncipe de Bandar. É provável
que alguns deles tenham estado com os mil guerreiros valentes que o tinham levado para a cidade, há dez
anos. Se assim fosse, certamente ninguém iria reconhecer aquele garotinho neste jovem bronzeado que
parecia um gigante.
Logo que se viram bem no coração da selva, tanto Kit como Gurã começaram a desfazer-se das suas
roupas de cima. Gurã mandou tudo às favas: sapatos, meias, casaco, calças, camisa! De suas calças Kit
fez umas tangas, enquanto que Gurã tinha as suas próprias. E foram andando no seu passo cadenciado,
acompanhando os Wambesis. Em pouco tempo os anos de Clarksville e Harrison já estavam dormindo o
sono de paz. Um guerreiro entregou a Kit uma lança. Kit parou e logo arremessoua contra uma árvore que
estava longe, indo enterrar-se uns quatro centímetros no tronco da mesma, vibrando com o impacto.
Peritos lanceiros que eram, os guerreiros aplaudiram o estranho. Logo nos próximos dias ficaram
sabendo que ele não era nenhum novato nessa selva. Ele caçava junto com eles para providenciar
alimentos e apanhava raízes comíveis e cerejas. E para sua admiração, ele falava fluentemente a língua
deles. A meio caminho da viagem, mais uma escolta de Llongos que os aguardavam. Os Wambesis se
despediram, levando boas recordações deste amigo do Fantasma. Kit conversava amigavelmente com os
Llongos em seu próprio dialeto, granjeando assim imediatamente a sua amizade. Ninguém suspeitava de
sua verdadeira identidade. Isto porque para os Llongos, os Wambesis e para todos os habitantes da selva,
o Fantasma era o Espírito-Que-Anda, o Homem-Que-Não-Pode-Morrer. Daí a conclusão lógica para eles
de que o Fantasma não podia ter nem filho nem herdeiros. Dentre todos os habitantes da selva, os únicos
que sabiam da verdade eram os pigmeus de Bandar.
A esta altura da viagem a selva estava se tornando mais cerrada, mais misteriosa e densa. Os
Llongos começaram a ficar nervosos. Encontravam-se além de suas fronteiras, na terra de ninguém, um
lugar de caçadores de cabeças e canibais. O pequeno Gurã descobriu na densa mata picadas e aberturas
que ninguém tinha visto. Os Llongos pararam. Tinham ido longe demais. Se alguém atilasse os ouvidos,
poderia ouvir o bramido das águas de uma cachoeira. Indubitalvelmente estavam em terra proibida. E
para confirmar a suspeita, um pigmeu se ergueu de dentro da mata, de flecha pronta no arco. Mais outro
apareceu numa árvore, com flecha incestada contra eles. Em seguida mais outro, e mais outro. Gurã
levantou seus braços em sinal de saudação. Mas as flechas continuaram prontas nos arcos. Kit agradeceu
os serviços prestados pelos Llongos, quando iam se retirando. Foi só virarem as costas que começaram a
sair correndo. Os Llongos eram valentes, mas as armas envenenadas dos pigmeus eram muito famosas e
conhecidas. Uma simples picada era morte certa — pelo menos era o que se dizia — e ninguém desejava
tirar a dúvida. Dentro de momentos, já tinham sumido.
Os anões começaram a encarar Kit com curiosidade. Ninguém conseguia ver nele o garotinho que os
havia deixado há tanto tempo. Gurã explicou-lhes então tudo, nos modos e jeitos característicos de sua
língua. Kit os saudou na maneira deles. Então saíram da mata, desceram das árvores e abraçaram-no
como o amigo que há tanto tempo andava perdido por este mundo afora. Alguns deles haviam sido
meninos junto com ele.
Mas todo este regozijo na saudação estava impregnado de tristeza.
— Meu pai está ainda vivo? — perguntou-lhes Kit.
— Sim, está ainda vivo — responderam eles, mas num tom de voz que não denotava nenhuma
alegria. Nisto Kit se pôs a acelerar o passo em direção à cachoeira, tomado de ansiedade e maus
pressentimentos. Outros anões saíram do mato para cumprimentá-lo. Mais adiante estava a cachoeira
ruidosa e espumante, a entrada secreta para a Floresta Negra. Cercado pelos pigmeus, Kit atravessou
correndo a torrente. Ficou ensopado com as frias águas da montanha, que lhe lavaram a poeira de dias de
viagem e lhe incutiram mais forças no corpo cansado.
Quando saiu da cachoeira, deu com todos os habitantes da aldeia esperando por ele. Os homens e
mulheres nanicos e as crianças estavam em pé, em silêncio, observando-o. Então aquele enorme varão
bronzeado era o pequeno Kit!? Alguns sorriam furtivamente, mas este não era um regresso feliz.
A respiração de Kit se acelerou. Lá estava a Trono da Caveira e também a Caverna como os tinha
visto centenas de vezes em seus sonhos e devaneios. O velho chefe, pai de Gurã, adiantou-se. — Seja
bem-vindo, Kit — disse ele com solene dignidade. — Voltou em boa hora. Seu pai o está aguardando.
Nisto Kit correu em desabalada para dentro da caverna.
Naquela noite, quando deixaram a praça de esportes, um táxi estava esperando por Kit e Gurã. Kit
estava resolvido a não deixar nenhum vestígio de sua partida. Gurã entrou no táxi que havia alugado
enquanto Kit ficou esperando escondido na escuridão. Por não saber falar inglês, Gurã deu ao chofer
instruções escritas para que o levasse até o aeroporto. Quando o táxi se pôs em movimento, Kit saiu
depressa da sombra e pendurou-se na roda de reserva que estava atrás do carro, sem ser visto. Ao se
aproximarem do aeroporto Kit se soltou, aproveitando a marcha lenta do carro e foi juntar-se a Gurã no
campo. Já era tarde e os poucos funcionários nem ligavam para o pequeno avião fretado que estava na
pista. Com o auxílio de óculos para sol e um gorro puxado bem em cima da face, Kit conservava o rosto
escondido do piloto.
Chegaram ao aeroporto metropolitano somente com alguns minutos de antecedência, mas ficaram
sabendo que a partida do avião transoceânico havia sofrido um atraso. A esta hora o grande terminal esta
em grande parte deserto, havendo somente um punhado de pessoas sonolentas sentadas nos bancos. Kit
manteve-se afastado de Gurã, porque o anão chamaria a atenção dos presentes. Quando ia passeando pela
sala de espera, um artigo num balcão de novidades despertou a atenção de Kit. Bigodes falsos para
crianças. Comprou-o, entrou no banheiro dos homens e colocou-o em si mesmo.
Agora, com os óculos de sol, gorro e os bigodes não havia quem o reconhecesse.
Não demorou muito que lá estavam eles no ar, voando rumo a Bengala. O avião ia somente com meia
lotação. Embora seu rosto pudesse ser reconhecido na maioria das ruas americanas, para estes viajantes
de Bengala não passava ele de um estranho e por isso não precisaria dos bigodes. Mas, por medida de
precaução ficou com eles. Podia ser que a bordo houvesse alguém que conhecesse a sua fisionomia. A
discrição e anonimato em que Kit se embuçara tão depressa era fruto de seu treinamento na meninice.
Sem que ninguém lho dissesse, ele agiu da maneira esperada. Esperada por quem? Pela linhagem dos
Fantasmas, do Primeiro ao Vigésimo. E que será que aconteceu ao Vigésimo?
Enquanto tiravam uns cochilos e tomavam as refeições a bordo do avião, atravessando o oceano,
Gurã contou o que se passou com seu pai. Bandidos atacaram a escola missionária do padre Morra em
plena selva. O jovem sacerdote, alguns auxiliares de mais idade e cinquenta jovens nativas não tinham
armas para se defender. Os celerados atacaram a escola, pilharam os mantimentos e o pequeno dinheiro
que havia e começaram a infernizar as moças, quando o Vigésimo chegou. Sinais de tambores haviam
transmitido a ele a notícia desta incursão. Ele investiu contra os velhacos como um anjo vingador,
comentou mais tarde o padre Morra, e completamente sozinho deu cabo de meia dúzia deles. Os outros
seis bandidos se embrenharam na mata, num salve-se-quem-puder. Mas nessa luta furiosa, o Vigésimo foi
gravemente ferido. Padre Morra cuidou dos ferimentos mas ele se recusou a permanecer na escola. Disse
que tinha que voltar e não houve quem o convencesse do contrário. Diante do, espanto e admiração do
sacerdote, montou o seu garanhão preto, sucessor de Trovão, e desapareceu. Padre Morra disse que
nunca conseguiu saber como é que pôde montar a cavalo, ficar em cima dele e andar, pois seus
ferimentos eram graves. Mas enquanto um Fantasma pode se movimentar, ele tem que voltar à Floresta
Negra ou então ser carregado para lá.
Ao chegar à Floresta Negra, o Vigésimo caiu do cavalo, desmaiando fatalmente. O pai de Gurã, o
velho chefe, sabia que seu grande amigo estava gravemente ferido e que havia perigo de morte. Perdera
muito sangue com os ferimentos e o estado dele estava além das possibilidades da assistência que os
pigmeus podiam prestar. Deitaram-no no leito de peles de animal que havia na Caverna da Caveira. O
pai de Gurã lembrou o Dr. Axel, pois ele próprio havia sido um dos guerreiros que tinham ido buscar o
Dr. Axel e o haviam levado à Floresta Negra para assistir ao nascimento de Kit. Agora o Dr. Axel tinha
seu Hospital da Selva, que ficava a um dia de viagem. Gurã e mais alguns pigmeus foram enviados a ele.
Quando os pigmeus chegaram o Dr. Axel já imaginou que alguma coisa de grave devia estar se passando,
pois já tinha vinte e dois anos de vivência na selva e conhecia os costumes e tradições que reinavam
nestas bandas. Assim é que, passada uma geração, voltou à Floresta Negra. Mais uma vez foram-lhe
vendados os olhos quando teve que atravessar a cachoeira. Mas desta vez não estava com medo.
Havia visto seu grande amigo mascarado uma ou duas vezes durante esses anos. Tinha havido outros
ferimentos que precisaram de tratamento e uma vez o hospital teve que se valer da proteção do Fantasma,
conforme lhe havia sido prometida, caso dela necessitasse. Mas desta vez ficou desanimado quando viu
seu amigo. Empregou todo tipo de remédio que julgou apto e fez o que pôde. Conseguiu fazê-lo voltar à
consciência, mas teve que lhe dizer a verdade nua e crua: não viveria mais do que alguns dias apenas.
Mas quanto a isto estava equivocado, pois o Vigésimo não pretendia de modo algum morrer sem ver seu
filho. Gurâ, que era o único pigmeu que conhecia terras estrangeiras — o que o tornou célebre entre os
seus —> foi imediatamente enviado. Foi assim que naquela noite ele apareceu debaixo da janela de Kit
na Universidade de Harrison.
De semblante sombrio e tristonho, Kit ouviu a história. Se o Dr. Axel não estava enganado, a esta
altura seu pai já devia estar morto. Ao pensar nesta possibilidade Gurã abanou a cabeça. — Ele disse
que esperaria até que você chegasse. Sei que vai esperar — disse o anãozinho com ar sério. Nunca
voltara atrás em sua palavra e não seria agora que iria faltar com a mesma. Embora entristecido por esta
viagem, Kit se sentia emocionado pela confiança que seu pai inspirava nesse povo e assim a antiga
admiração do garotinho pelo pai voltou à tona com intensidade.
Durante esta viagem a reserva entre Kit e Gurã dissipou-se em parte. Kit lhe falou das peripécias
que tivera na América e fez muitas perguntas sobre seus amigos na Floresta Negra e assim os dois
passaram a viagem rindo e brincando como nos velhos tempos. Isto porque, apesar da seriedade da
missão que estava sendo executada, a vida continua e a juventude é um manancial de fortaleza e
esperança. A reserva entre os dois desaparecera apenas em parte, não completamente, porquanto os dois
tinham ficado mais maduros e Kit percebeu que Gurã o vinha_encarando de outro modo. Debaixo de toda
aquela camaradagem, nos modos de Gurã se escondia um novo tipo de distância respeitosa, uma nova
deferência que Kit ainda não conseguira entender.
Quando chegaram ao aeroporto de Mawitã, a pacata capital portuária de Bengala, a viagem começou
a tornar-se real para Kit. O ar, as montanhas distantes, os sons e cheiro, os rostos negros sorrindo, os
acentos melodiosos, os trajes vistosos, tudo isto era como que uma volta a um velho sonho. Esta sensação
se intensificaria cada passo que desse rumo à Floresta Negra.
Ao deixarem ao aeroporto tomaram uma carruagem que os levou até à entrada da selva. Mal tinham
andado uma pequena distância, quando deram com um grupo de guerreiros Wambesis, dez ao todo, que
lhes tinham vindo ao encontro. Olharam curiosos para Kit, perguntando-se quem era. Haviam recebido
ordens para escoltarem o estranho que chegaria em companhia de Gurã, príncipe de Bandar. É provável
que alguns deles tenham estado com os mil guerreiros valentes que o tinham levado para a cidade, há dez
anos. Se assim fosse, certamente ninguém iria reconhecer aquele garotinho neste jovem bronzeado que
parecia um gigante.
Logo que se viram bem no coração da selva, tanto Kit como Gurã começaram a desfazer-se das suas
roupas de cima. Gurã mandou tudo às favas: sapatos, meias, casaco, calças, camisa! De suas calças Kit
fez umas tangas, enquanto que Gurã tinha as suas próprias. E foram andando no seu passo cadenciado,
acompanhando os Wambesis. Em pouco tempo os anos de Clarksville e Harrison já estavam dormindo o
sono de paz. Um guerreiro entregou a Kit uma lança. Kit parou e logo arremessoua contra uma árvore que
estava longe, indo enterrar-se uns quatro centímetros no tronco da mesma, vibrando com o impacto.
Peritos lanceiros que eram, os guerreiros aplaudiram o estranho. Logo nos próximos dias ficaram
sabendo que ele não era nenhum novato nessa selva. Ele caçava junto com eles para providenciar
alimentos e apanhava raízes comíveis e cerejas. E para sua admiração, ele falava fluentemente a língua
deles. A meio caminho da viagem, mais uma escolta de Llongos que os aguardavam. Os Wambesis se
despediram, levando boas recordações deste amigo do Fantasma. Kit conversava amigavelmente com os
Llongos em seu próprio dialeto, granjeando assim imediatamente a sua amizade. Ninguém suspeitava de
sua verdadeira identidade. Isto porque para os Llongos, os Wambesis e para todos os habitantes da selva,
o Fantasma era o Espírito-Que-Anda, o Homem-Que-Não-Pode-Morrer. Daí a conclusão lógica para eles
de que o Fantasma não podia ter nem filho nem herdeiros. Dentre todos os habitantes da selva, os únicos
que sabiam da verdade eram os pigmeus de Bandar.
A esta altura da viagem a selva estava se tornando mais cerrada, mais misteriosa e densa. Os
Llongos começaram a ficar nervosos. Encontravam-se além de suas fronteiras, na terra de ninguém, um
lugar de caçadores de cabeças e canibais. O pequeno Gurã descobriu na densa mata picadas e aberturas
que ninguém tinha visto. Os Llongos pararam. Tinham ido longe demais. Se alguém atilasse os ouvidos,
poderia ouvir o bramido das águas de uma cachoeira. Indubitalvelmente estavam em terra proibida. E
para confirmar a suspeita, um pigmeu se ergueu de dentro da mata, de flecha pronta no arco. Mais outro
apareceu numa árvore, com flecha incestada contra eles. Em seguida mais outro, e mais outro. Gurã
levantou seus braços em sinal de saudação. Mas as flechas continuaram prontas nos arcos. Kit agradeceu
os serviços prestados pelos Llongos, quando iam se retirando. Foi só virarem as costas que começaram a
sair correndo. Os Llongos eram valentes, mas as armas envenenadas dos pigmeus eram muito famosas e
conhecidas. Uma simples picada era morte certa — pelo menos era o que se dizia — e ninguém desejava
tirar a dúvida. Dentro de momentos, já tinham sumido.
Os anões começaram a encarar Kit com curiosidade. Ninguém conseguia ver nele o garotinho que os
havia deixado há tanto tempo. Gurã explicou-lhes então tudo, nos modos e jeitos característicos de sua
língua. Kit os saudou na maneira deles. Então saíram da mata, desceram das árvores e abraçaram-no
como o amigo que há tanto tempo andava perdido por este mundo afora. Alguns deles haviam sido
meninos junto com ele.
Mas todo este regozijo na saudação estava impregnado de tristeza.
— Meu pai está ainda vivo? — perguntou-lhes Kit.
— Sim, está ainda vivo — responderam eles, mas num tom de voz que não denotava nenhuma
alegria. Nisto Kit se pôs a acelerar o passo em direção à cachoeira, tomado de ansiedade e maus
pressentimentos. Outros anões saíram do mato para cumprimentá-lo. Mais adiante estava a cachoeira
ruidosa e espumante, a entrada secreta para a Floresta Negra. Cercado pelos pigmeus, Kit atravessou
correndo a torrente. Ficou ensopado com as frias águas da montanha, que lhe lavaram a poeira de dias de
viagem e lhe incutiram mais forças no corpo cansado.
Quando saiu da cachoeira, deu com todos os habitantes da aldeia esperando por ele. Os homens e
mulheres nanicos e as crianças estavam em pé, em silêncio, observando-o. Então aquele enorme varão
bronzeado era o pequeno Kit!? Alguns sorriam furtivamente, mas este não era um regresso feliz.
A respiração de Kit se acelerou. Lá estava a Trono da Caveira e também a Caverna como os tinha
visto centenas de vezes em seus sonhos e devaneios. O velho chefe, pai de Gurã, adiantou-se. — Seja
bem-vindo, Kit — disse ele com solene dignidade. — Voltou em boa hora. Seu pai o está aguardando.
Nisto Kit correu em desabalada para dentro da caverna.
T2 N° 437 : A LENDA DO FANTASMA
14 - O DESAPARECIMENTO DE KIT
WALKER
O dia amanheceu límpido, fresco e lindo. Tempo excelente para o grande acontecimento. A nova
praça de esportes fervia de gente; as doze bandas marciais das escolas superiores a postos; atletas,
cantores, senadores, deputados, prefeitos e altos dignitários e os cinquenta mil amigos e parentes. Era o
Dia ãe Kit Walker. Bandeiras por cima da avenida. Bandeiras e mais bandeiras em dezenas de caminhões
fretados trazendo gente de todas as partes do estado estacionados em filas no lado de fora da praça de
esportes. Tia Bessie e tio Efraim na tribuna de honra reservada para Kit, esperando o homenageado.
Diana chegaria em companhia dele. Mas Diana não veio. Nem Kit apareceu.
Bandas e convidados, senadores e deputados, prefeitos e todos os amigos, fãs e parentes: esperando.
Todos os olhares centrados na tribuna de honra. Tia Bessie estava preocupada. Tio Efraim ia se
impacientando cada vez mais à medida em que o tempo corria. — Será que fugiu de novo? — perguntou
baixinho. Efraim nem podia imaginar que tivera um palpite certo. Foram feitas ligações telefônicas,
seguidas de buscas dos estudantes em seu quarto. Todas as suas roupas e livros estavam lá, tudo muito
bem arrumado. Alguém pensou em inquirir Diana. Chegara a informação de que ela estava com dor de
cabeça e que não poderia receber ninguém. Não, ela não sabia nada a respeito do seu querido Kit
Walker.
A esta altura a impaciência se transformou em alarme. Que lhe teria acontecido? Telefonaram para
os hospitais; deram alarme à polícia; telegrafaram e irradiaram boletins informativos. Mas, onde anda Kit
Walker? Acidente? Será que gangsters o sequestraram? Centenas de pessoas o tinham visto passeando na
noite anterior. Muitos o viram quando acompanhou Diana ao retirar-se para o seu dormitório. Amigos
viram quando ele entrou no seu quarto naquela noite. O Dia de Kit Walker estava sendo um fiasco.
Bessie e Efraim resolveram sair para dar buscas do sobrinho. A comissão de festejos decidiu que as
comemorações deviam continuar, a fim de não decepcionar os visitantes. Por isso as bandas tocaram e
marcharam, os políticos deitaram falação e todos continuavam com a atenção voltada para a tribuna de
honra enfeitada com bandeiras e bandeirolas. Mas pairava um ar de vazio, tão vazio como a própria
tribuna de honra. Sim, o herói tinha sumido.
As investigações intensificadas. A caladona Diana foi submetida a interrogatório, mas nada de
concreto puderam saber. Estações de estradas de ferro e aeroportos foram colocados de sobreaviso.
Escafandristas vasculharam lagos e rios próximos de Clarksville. O desaparecimento de Kit se
transformou um assunto de repercussão nacional, que ocupou as manchetes nos sete dias da semana. Um
dos maiores atletas da história dos esportes intercolegiais tinha simplesmente sumido na véspera da
maior homenagem que lhe era prestada. Em todos os jornais e lares da América o mistério era
comentado, esmiuçado e arguido. O passado de Kit era vasculhado, na esperança de se encontrar uma
pista. Bengala ficava distante, numa região longínqua. Os correspondentes naquelas bandas nunca tinham
ouvido falar dele nem de alguma família chamada Walker. Era realmente um mistério espetacular. A
metade das garotas da América estavam vidradas neste herói desportista, cuja foto enfeitava as paredes
dos seus quartos de dormir. Então, sumir e justamente numa época destas! Isto já era demais! Parecia até
que a terra o tinha tragado.
Diana manteve sua promessa a Kit e nada revelou. Mas o desespero de tia Bessie e de tio Efraim
fizeram com que uma noite ela se abrisse com eles.
— Se eu lhes disser alguma coisa a respeito de Kit, vocês me prometem que não vão dizer nada a
ninguém? — perguntou a eles. Ansiosos que estavam, prometeram. — Jurem então que preferem morrer
fulminados a revelar alguma coisa, — insistiu Diana, usando uma fórmula que aprendera em sua
meninince. Depois de prometerem solenemente, Diana começou: — Kit está bem. Ele foi embora. Vocês
podem muito bem imaginar onde ele está. — Os sorrisos dos tios regados pelas lágrimas recompensaram
Diana. Kit jamais teria imaginado isto.
A imprensa mundial perguntava onde estaria Kit Walker, intrigada pelo desaparecimento de um
ídolo nacional do esporte. Mas não havia nenhuma resposta. O interesse geral pelo caso finalmente foi
morrendo, mas permaneceu um mistério que a gente comentaria nos anos vindouros, como sendo um dos
célebres casos de desaparecimentos. De quando em vez um ou outro articulista de revista tornaria a
ventilar o assunto, trazendo ao público fotos do famoso atleta, reprisando a velha pergunta: 'Será que a
terra engoliu Kit Walker?"
Sim, a terra engoliu Kit Walker. Não haveria mais Kit Walker, porque ele se perdeu nas malhas de
um mistério.
WALKER
O dia amanheceu límpido, fresco e lindo. Tempo excelente para o grande acontecimento. A nova
praça de esportes fervia de gente; as doze bandas marciais das escolas superiores a postos; atletas,
cantores, senadores, deputados, prefeitos e altos dignitários e os cinquenta mil amigos e parentes. Era o
Dia ãe Kit Walker. Bandeiras por cima da avenida. Bandeiras e mais bandeiras em dezenas de caminhões
fretados trazendo gente de todas as partes do estado estacionados em filas no lado de fora da praça de
esportes. Tia Bessie e tio Efraim na tribuna de honra reservada para Kit, esperando o homenageado.
Diana chegaria em companhia dele. Mas Diana não veio. Nem Kit apareceu.
Bandas e convidados, senadores e deputados, prefeitos e todos os amigos, fãs e parentes: esperando.
Todos os olhares centrados na tribuna de honra. Tia Bessie estava preocupada. Tio Efraim ia se
impacientando cada vez mais à medida em que o tempo corria. — Será que fugiu de novo? — perguntou
baixinho. Efraim nem podia imaginar que tivera um palpite certo. Foram feitas ligações telefônicas,
seguidas de buscas dos estudantes em seu quarto. Todas as suas roupas e livros estavam lá, tudo muito
bem arrumado. Alguém pensou em inquirir Diana. Chegara a informação de que ela estava com dor de
cabeça e que não poderia receber ninguém. Não, ela não sabia nada a respeito do seu querido Kit
Walker.
A esta altura a impaciência se transformou em alarme. Que lhe teria acontecido? Telefonaram para
os hospitais; deram alarme à polícia; telegrafaram e irradiaram boletins informativos. Mas, onde anda Kit
Walker? Acidente? Será que gangsters o sequestraram? Centenas de pessoas o tinham visto passeando na
noite anterior. Muitos o viram quando acompanhou Diana ao retirar-se para o seu dormitório. Amigos
viram quando ele entrou no seu quarto naquela noite. O Dia de Kit Walker estava sendo um fiasco.
Bessie e Efraim resolveram sair para dar buscas do sobrinho. A comissão de festejos decidiu que as
comemorações deviam continuar, a fim de não decepcionar os visitantes. Por isso as bandas tocaram e
marcharam, os políticos deitaram falação e todos continuavam com a atenção voltada para a tribuna de
honra enfeitada com bandeiras e bandeirolas. Mas pairava um ar de vazio, tão vazio como a própria
tribuna de honra. Sim, o herói tinha sumido.
As investigações intensificadas. A caladona Diana foi submetida a interrogatório, mas nada de
concreto puderam saber. Estações de estradas de ferro e aeroportos foram colocados de sobreaviso.
Escafandristas vasculharam lagos e rios próximos de Clarksville. O desaparecimento de Kit se
transformou um assunto de repercussão nacional, que ocupou as manchetes nos sete dias da semana. Um
dos maiores atletas da história dos esportes intercolegiais tinha simplesmente sumido na véspera da
maior homenagem que lhe era prestada. Em todos os jornais e lares da América o mistério era
comentado, esmiuçado e arguido. O passado de Kit era vasculhado, na esperança de se encontrar uma
pista. Bengala ficava distante, numa região longínqua. Os correspondentes naquelas bandas nunca tinham
ouvido falar dele nem de alguma família chamada Walker. Era realmente um mistério espetacular. A
metade das garotas da América estavam vidradas neste herói desportista, cuja foto enfeitava as paredes
dos seus quartos de dormir. Então, sumir e justamente numa época destas! Isto já era demais! Parecia até
que a terra o tinha tragado.
Diana manteve sua promessa a Kit e nada revelou. Mas o desespero de tia Bessie e de tio Efraim
fizeram com que uma noite ela se abrisse com eles.
— Se eu lhes disser alguma coisa a respeito de Kit, vocês me prometem que não vão dizer nada a
ninguém? — perguntou a eles. Ansiosos que estavam, prometeram. — Jurem então que preferem morrer
fulminados a revelar alguma coisa, — insistiu Diana, usando uma fórmula que aprendera em sua
meninince. Depois de prometerem solenemente, Diana começou: — Kit está bem. Ele foi embora. Vocês
podem muito bem imaginar onde ele está. — Os sorrisos dos tios regados pelas lágrimas recompensaram
Diana. Kit jamais teria imaginado isto.
A imprensa mundial perguntava onde estaria Kit Walker, intrigada pelo desaparecimento de um
ídolo nacional do esporte. Mas não havia nenhuma resposta. O interesse geral pelo caso finalmente foi
morrendo, mas permaneceu um mistério que a gente comentaria nos anos vindouros, como sendo um dos
célebres casos de desaparecimentos. De quando em vez um ou outro articulista de revista tornaria a
ventilar o assunto, trazendo ao público fotos do famoso atleta, reprisando a velha pergunta: 'Será que a
terra engoliu Kit Walker?"
Sim, a terra engoliu Kit Walker. Não haveria mais Kit Walker, porque ele se perdeu nas malhas de
um mistério.
T2 N° 436 : A LENDA DO FANTASMA
13 - A VOLTA DE GURÃ
— Gurã — gritou Kit, olhando inclinado para fora da janela.
O anãozinho correspondeu com um sinal afirmativo, todo contente por ter batido no lugar certo. Kit
estava para lhe pedir que esperasse que ele desceria, mas Gurã não quis esperar. No muro havia um cano
de água e ele subiu até à janela de Kit. Entrou no quarto e os dois se encararam.
Dez anos haviam passado desde que se viram pela última vez. Toda uma dezena de anos. Gurã,
agora com trinta e dois anos (Kit calculava rápido), parecia não ter mudado em nada, continuando aquela
figura corpulenta e nanica cuja cabeça mal chegava até à altura da cintura de Kit. Gurã tinha que levantar
a cabeça quando falava com Kit. Quando voltara para a selva o deixara um garoto magrinho e no entanto
agora estava frente a um gigante jovem e possante. Entreolharam-se de maneira até meio cômica. O
primeiro impulso de Kit foi de abraçar seu velho amigo. Mas Gurã parecia teso e formal e, ato continuo,
mudou de fisionomia. Nos breves momentos antes que Gurã falasse Kit teve um sentimento deprimente de
apreensão. Por que estava ele aqui?
— Trago-lhe uma mensagem da Floresta Negra — disse Gurã em sua linguagem simples de pigmeu.
— Seu pai pede que regresse imediatamente.
— Está doente? — perguntou Kit, tentando ler aquele rosto impassível.
— Ele está à morte — respondeu Gurã. Como todas as pessoas do seu povo, não usou de rodeios,
mas foi direto ao âmago da questão. Morrendo? Seu pai, o Vigésimo? Tão forte como um carvalho e
sólido como granito? Não podia ser. As pernas.de Kit começaram subitamente a fraquejar. Sentou-se
numa cadeira.
— Morrendo? Voltar já? — perguntou ele.
— Sim, imediatamente. Está esperando por você — disse Gurã.
— O que houve? Doença? Acidente?
— Ferimento com faca — disse Gurã. — Bandidos.
Agora não havia mais tempo para mais detalhes. Isto viria depois. Kit tinha que partir
imediatamente. E era neste instante.
— Agora mesmo?
Para o anão Gurã a palavra "Agora" não significava amanhã, nem dentro de quatro horas ou dez
minutos. Agora era agora mesmo.
A mente de Kit trabalhou rápida. Amanhã — O Dia de Kit Walker. Exames. Colação de Grau.
Diana. O pai morrendo. Agora.
E era agora porque um pequeno avião especialmente fretado estava esperando no aeroporto local.
Era preciso tomar o avião imediatamente para alcançar o vôo de linha do grande avião transoceânico que
fazia viagem direta até Bengala. Se perdessem aquele vôo, outro direto somente dentro de uma semana e
isto podia ser muito tarde.
Naquele momento Kit estava muito confuso para se dar ao trabalho de pensar como é que Gurã tinha
conseguido todos aqueles arranjos. Mais tarde ficou sabendo que todas estas providências haviam sido
tomadas pelo velho Dr. Axel, que havia sido chamado à Caverna da Caveira, vindo diretamente de seu
Hospital da Selva. Kit apanhou seus objetos pessoais de limpeza, enfiou-os numa velha maleta de felpo.
No momento não lhe ocorreu que era a mesma que havia trazido para a América. Deu uma olhada em seu
armário cheio de roupas, calças, suéteres, uniformes de times; sua cômoda cheia de camisas, meias e
mais uma infinidade de coisas; prateleiras entupidas de livros, cadernos e fotos. Em cima de sua
escrivaninha, um retrato grande de Diana, num quadro. Enfiou-o em sua maleta. Tudo o mais não teria
nenhuma serventia para ele na Floresta Negra. Relanceou pela última vez um olhar pelo seu quarto.
Encaminhou-se para a porta, mas logo parou. No salão havia amigos conversando. Ninguém podia vê-lo.
Então se dirigiu para a janela e resvalou pelo cano de água por onde Gurã subira. Agora Gurã descia
atrás dele.
Era alta hora da noite e na rua havia pouca gente, pois a maioria estava dormindo. Kit e Gurã se
meteram rapidamente por uma moita de arbustos.
— Espere aqui — disse ele.
— Tem que sair já — disse Gurã taxativamente.
— Tenho que fazer uma coisa. Espere — repetiu Kit. Deixou a maleta com Gurã e atravessou o
gramado do campo de jogos, deslocando-se escondido atrás de árvores e arbustos para não ser visto
pelos poucos casais que ainda estavam gozando das delícias duma fresca noite de primavera. Chegou ao
dormitório das senhoras. Sabia em que quarto Diana dormia. Não havia nenhum cano de água à mão, mas
os grandes blocos de granito lhe ofereciam um apoio e assim subiu trepando até o terceiro andar. A
janela do quarto de Diana estava aberta e o quarto, escuro.
— Diana — chamou ele, murmurando. — Diana.
No quarto escuro se ouviu uma respiração assustada, uma pausa, depois uma voz baixa e suave.
— É você, Kit?
— Sim. Preciso falar com você.
Um rumorejar de seda e ei-la na janela, com seus cabelos caindo-lhe pelos ombros.
— Mas o que há, Kit? — perguntou alarmada. — Você não devia ter subido. Entre, vamos, senão vai
cair.
— Não tenho tempo, minha querida Diana. Tenho que me despedir.
Despedir-se? Estava ela sonhando? Ou será que Kit ficara louco? Ou estava ele bêbado? Mas ele
nunca tomava bebida alcoólica de espécie alguma.
— Despedir-se? — perguntou ela desanimada.
— Não posso explicar. Algum dia explicarei. Tenho que voltar para casa e já. Meu pai está
morrendo.
Seu pai morrendo? Um lado do mistério que ele nunca revelaria. Agora todo aquele mistério se
transformava em pura realidade, uma realidade chocante que se interpunha entre os dois.
— Lamento muito — disse ela, não sabendo mais o que acrescentar. — Se é que é assim, quando vai
voltar?
— Não sei. Mas vou escrever.
— O Dia de Kit Walker! — exclamou ela, lembrando-se imediatamente.
— Não posso esperar. Diana, peço por favor que não lhes diga nada. Esta noite você não me viu.
Depois vou escrever a tio Efraim e titia Bessie. Mas não quero que nenhum deles saiba.
— Mas o que vão eles pensar? — perguntou.
Ele estava sentado no peitoril da janela, encarando a escuridão da noite. A lua minguante estava
perto do horizonte e o rosto encantador de Diana era branco à luz da lua.
— Não sei o que poderão pensar, mas já estou atrasado. Eu não podia deixar de despedir-me de
você.
Ela colocou seus braços nos ombros dele, sentindo um repentino frenesi diante de sua partida.
— Como ficou sabendo da doença do seu pai? O que aconteceu? — perguntou ela.
— Mandaram um mensageiro, que está esperando. Não posso demorar-me mais — cochichou ele. —
Diana. Eu a amo. — Beijou-a suavemente aos lábios e depois na testa.
— Adeus...
— Oh, Kit...
Ela nem conseguiu terminar o pensamento, porque ele já ia descendo. Lá de baixo, no gramado
escuro, ele acenou-lhe e em seguida sumiu. Ela ficou perscrutando atentamente na escuridão,
acompanhando com o olhar aquela cxiatura que ia se afastando.
Desapareceu entre alguns arbustos. Em seguida viu quando sua figura desapareceu na noite, seguida
de uma figura pequena. Será que a figura menor era uma criança? Sua mente retrocedeu uma década,
Lembrou-se de Kit e o pigmeu Gurã sentados ao lado do banhado. Era ele o mensageiro? Observou a lua
mover-se atrás de nuvens escuras e em seguida estendeu-se na cama, enfiou a cabeça no travesseiro e
chorou. Tudo lhe parecia tão irreal. Não seria um sonho, um pesadelo? Quando ela acordasse de manhã
ele certamente estaria esperando ao pé da grande escadaria. Mas um sentimento de vazio que lhe ia no
íntimo lhe dizia que não era nenhum sonho .
— Gurã — gritou Kit, olhando inclinado para fora da janela.
O anãozinho correspondeu com um sinal afirmativo, todo contente por ter batido no lugar certo. Kit
estava para lhe pedir que esperasse que ele desceria, mas Gurã não quis esperar. No muro havia um cano
de água e ele subiu até à janela de Kit. Entrou no quarto e os dois se encararam.
Dez anos haviam passado desde que se viram pela última vez. Toda uma dezena de anos. Gurã,
agora com trinta e dois anos (Kit calculava rápido), parecia não ter mudado em nada, continuando aquela
figura corpulenta e nanica cuja cabeça mal chegava até à altura da cintura de Kit. Gurã tinha que levantar
a cabeça quando falava com Kit. Quando voltara para a selva o deixara um garoto magrinho e no entanto
agora estava frente a um gigante jovem e possante. Entreolharam-se de maneira até meio cômica. O
primeiro impulso de Kit foi de abraçar seu velho amigo. Mas Gurã parecia teso e formal e, ato continuo,
mudou de fisionomia. Nos breves momentos antes que Gurã falasse Kit teve um sentimento deprimente de
apreensão. Por que estava ele aqui?
— Trago-lhe uma mensagem da Floresta Negra — disse Gurã em sua linguagem simples de pigmeu.
— Seu pai pede que regresse imediatamente.
— Está doente? — perguntou Kit, tentando ler aquele rosto impassível.
— Ele está à morte — respondeu Gurã. Como todas as pessoas do seu povo, não usou de rodeios,
mas foi direto ao âmago da questão. Morrendo? Seu pai, o Vigésimo? Tão forte como um carvalho e
sólido como granito? Não podia ser. As pernas.de Kit começaram subitamente a fraquejar. Sentou-se
numa cadeira.
— Morrendo? Voltar já? — perguntou ele.
— Sim, imediatamente. Está esperando por você — disse Gurã.
— O que houve? Doença? Acidente?
— Ferimento com faca — disse Gurã. — Bandidos.
Agora não havia mais tempo para mais detalhes. Isto viria depois. Kit tinha que partir
imediatamente. E era neste instante.
— Agora mesmo?
Para o anão Gurã a palavra "Agora" não significava amanhã, nem dentro de quatro horas ou dez
minutos. Agora era agora mesmo.
A mente de Kit trabalhou rápida. Amanhã — O Dia de Kit Walker. Exames. Colação de Grau.
Diana. O pai morrendo. Agora.
E era agora porque um pequeno avião especialmente fretado estava esperando no aeroporto local.
Era preciso tomar o avião imediatamente para alcançar o vôo de linha do grande avião transoceânico que
fazia viagem direta até Bengala. Se perdessem aquele vôo, outro direto somente dentro de uma semana e
isto podia ser muito tarde.
Naquele momento Kit estava muito confuso para se dar ao trabalho de pensar como é que Gurã tinha
conseguido todos aqueles arranjos. Mais tarde ficou sabendo que todas estas providências haviam sido
tomadas pelo velho Dr. Axel, que havia sido chamado à Caverna da Caveira, vindo diretamente de seu
Hospital da Selva. Kit apanhou seus objetos pessoais de limpeza, enfiou-os numa velha maleta de felpo.
No momento não lhe ocorreu que era a mesma que havia trazido para a América. Deu uma olhada em seu
armário cheio de roupas, calças, suéteres, uniformes de times; sua cômoda cheia de camisas, meias e
mais uma infinidade de coisas; prateleiras entupidas de livros, cadernos e fotos. Em cima de sua
escrivaninha, um retrato grande de Diana, num quadro. Enfiou-o em sua maleta. Tudo o mais não teria
nenhuma serventia para ele na Floresta Negra. Relanceou pela última vez um olhar pelo seu quarto.
Encaminhou-se para a porta, mas logo parou. No salão havia amigos conversando. Ninguém podia vê-lo.
Então se dirigiu para a janela e resvalou pelo cano de água por onde Gurã subira. Agora Gurã descia
atrás dele.
Era alta hora da noite e na rua havia pouca gente, pois a maioria estava dormindo. Kit e Gurã se
meteram rapidamente por uma moita de arbustos.
— Espere aqui — disse ele.
— Tem que sair já — disse Gurã taxativamente.
— Tenho que fazer uma coisa. Espere — repetiu Kit. Deixou a maleta com Gurã e atravessou o
gramado do campo de jogos, deslocando-se escondido atrás de árvores e arbustos para não ser visto
pelos poucos casais que ainda estavam gozando das delícias duma fresca noite de primavera. Chegou ao
dormitório das senhoras. Sabia em que quarto Diana dormia. Não havia nenhum cano de água à mão, mas
os grandes blocos de granito lhe ofereciam um apoio e assim subiu trepando até o terceiro andar. A
janela do quarto de Diana estava aberta e o quarto, escuro.
— Diana — chamou ele, murmurando. — Diana.
No quarto escuro se ouviu uma respiração assustada, uma pausa, depois uma voz baixa e suave.
— É você, Kit?
— Sim. Preciso falar com você.
Um rumorejar de seda e ei-la na janela, com seus cabelos caindo-lhe pelos ombros.
— Mas o que há, Kit? — perguntou alarmada. — Você não devia ter subido. Entre, vamos, senão vai
cair.
— Não tenho tempo, minha querida Diana. Tenho que me despedir.
Despedir-se? Estava ela sonhando? Ou será que Kit ficara louco? Ou estava ele bêbado? Mas ele
nunca tomava bebida alcoólica de espécie alguma.
— Despedir-se? — perguntou ela desanimada.
— Não posso explicar. Algum dia explicarei. Tenho que voltar para casa e já. Meu pai está
morrendo.
Seu pai morrendo? Um lado do mistério que ele nunca revelaria. Agora todo aquele mistério se
transformava em pura realidade, uma realidade chocante que se interpunha entre os dois.
— Lamento muito — disse ela, não sabendo mais o que acrescentar. — Se é que é assim, quando vai
voltar?
— Não sei. Mas vou escrever.
— O Dia de Kit Walker! — exclamou ela, lembrando-se imediatamente.
— Não posso esperar. Diana, peço por favor que não lhes diga nada. Esta noite você não me viu.
Depois vou escrever a tio Efraim e titia Bessie. Mas não quero que nenhum deles saiba.
— Mas o que vão eles pensar? — perguntou.
Ele estava sentado no peitoril da janela, encarando a escuridão da noite. A lua minguante estava
perto do horizonte e o rosto encantador de Diana era branco à luz da lua.
— Não sei o que poderão pensar, mas já estou atrasado. Eu não podia deixar de despedir-me de
você.
Ela colocou seus braços nos ombros dele, sentindo um repentino frenesi diante de sua partida.
— Como ficou sabendo da doença do seu pai? O que aconteceu? — perguntou ela.
— Mandaram um mensageiro, que está esperando. Não posso demorar-me mais — cochichou ele. —
Diana. Eu a amo. — Beijou-a suavemente aos lábios e depois na testa.
— Adeus...
— Oh, Kit...
Ela nem conseguiu terminar o pensamento, porque ele já ia descendo. Lá de baixo, no gramado
escuro, ele acenou-lhe e em seguida sumiu. Ela ficou perscrutando atentamente na escuridão,
acompanhando com o olhar aquela cxiatura que ia se afastando.
Desapareceu entre alguns arbustos. Em seguida viu quando sua figura desapareceu na noite, seguida
de uma figura pequena. Será que a figura menor era uma criança? Sua mente retrocedeu uma década,
Lembrou-se de Kit e o pigmeu Gurã sentados ao lado do banhado. Era ele o mensageiro? Observou a lua
mover-se atrás de nuvens escuras e em seguida estendeu-se na cama, enfiou a cabeça no travesseiro e
chorou. Tudo lhe parecia tão irreal. Não seria um sonho, um pesadelo? Quando ela acordasse de manhã
ele certamente estaria esperando ao pé da grande escadaria. Mas um sentimento de vazio que lhe ia no
íntimo lhe dizia que não era nenhum sonho .
T2 N° 435 : A LENDA DO FANTASMA
12 - O DIA DE KIT WALKER
Praticamente em todas as partes do mundo a primavera é uma estação linda. Mas este ano a
primavera se revestia de uma beleza especial para Kit. Era o tempo dos bailes de primavera, a ocasião
própria para jovens casais de namorados passearem de mãos dada nas sombras amenas dos bosques da
universidade. Diana continuava frequentando a escola no oeste, mas várias vezes ia a Harrison para
visitar Kit. Tinha nesta época quase dezoito anos de idade e se via que as promessas alvissareiras de
beleza que a sua juventude prometia não haviam falhado. Tornara-se uma jovem senhora de porte
magnífico, com seus cabelos que mais se pareciam com uma nuvem escura. E como gostava desse jovem
herói de Harrison. E Kit era apaixonado por Diana. Tinha ainda quatro anos pela frente para completar
seus estudos, mas quando tocava de leve no futuro, como toda garota que tem namorado faz, Kit ficava
embaraçado e procurpva desconversar.
Na qualidade de filho do Fantasma, ele não podia fazer nenhum plano concreto para o futuro. Às
vezes devaneava sobre o assunto. Diana na Caverna da Caveira — não, isto lhe parecia impossível:
aquela garota de família rica, de lindos vestidos, com educação feita em escolas particulares, que nas
férias costumava viajar pelas capitais da Europa, aficionada de concertos de ópera, que gostava de
teatro, que cobiçava para si um lugar de destaque no mundo dos desportos como uma mergulhadora de
competições em Olimpíadas — Diana na Caverna da Caveira? Não só impossível, mas até ridículo. Por
isso nunca lhe falou a respeito da caverna, limitando-se a descrever os particulares da selva. Seus modos
reticentes a deixavam encabulada, mas acreditava nele. Deve ter uma razão plausível para isto, pensava
ela.
Mas a primavera estava proporcionando a Kit mais coisas além da formatura e dos passeios. A
enorme quadra de esportes que havia sido construída perto do campus da universidade, em grande parte
graças ao renome que ele levara para Harrison, estava agora concluída.
Tanto o corpo docente da universidade como os estudantes anunciaram planos para homenagear o
seu campeão americano, com um Dia de Kit Walker em suas programações de festejos anuais.
Constariam da lista hóspedes convidados: senadores e deputados; doze bandas marciais das escolas
superiores; prefeitos, juizes e outras altas personalidades, além de cinquenta mil amigos e parentes. O
grande dia das comemorações seria uma semana antes que se iniciassem os exames finais e seria o
coroamento de sua carreira de quatro anos em Harrison. Diana se deslocou do oeste e de Clarksville
chegaram tia Bessie, tio Efraim e um contingente de amigos; presentes estavam também antigos colegas
de turma de Clark, inclusive o próprio Jackson; afinal todo mundo que estivera com esse extraordinário
garoto das selvas de Bengala fez questão de estar presente.
A esta altura dos acontecimentos tio Efraim se prosava tanto do seu Kit como se fosse seu próprio
filho. E Diana morria de ciúmes. Tinha a impressão de que todas as garotas do mundo andavam vidradas
no seu herói. Quanto ao que aconteceria depois deste mês, era coisa que só vagamente passava pela
cabeça de Kit; mesmo assim tratou de alijar estes pensamentos de sua cabeça. Diana estava com ele, e
isto era o que realmente interessava. Em si não era unicamente isto o que lhe interessava. Naturalmente
que os festejos em homenagem a ele o empolgavam e eram motivo de satisfação, se é que era mesmo
verdade o que andavam dizendo. Tentara dissuadir os encarregados a cancelar aquelas comemorações,
mas fizeram ouvidos moucos aos seus apelos. A Universidade de Harrison, já com suas visões mais
ampliadas, estava no firme propósito de homenagear seu filho favorito.
Na noite anterior ao grande dia, Kit estava passeando com Diana, que flutuava feito um sonho pelo
chão lustroso do salão de bailes, envolta em seu vestido de seda fina. Isto foi no ginásio da universidade,
agora decorado com flores e flâmulas, onde Kit arrancara o campeonato de pesos pesados. Aquele dia
tinha sido tremendo. A cidade regorgitava de forasteiros; os hotéis não tinham mais acomodações e
recusavam as pessoas, as quais iam hospedar-se em casas particulares. Havia gente dormindo nos carros,
nos ônibus ou até mesmo na grama. Na pequena cidade não se encontrava mais nenhuma acomodação
para a multidão que acorrera para homenagear Kit Walker.
Depois de jantar no hotel em companhia de Diana, tia Bessie e tio Efraim e dado o passeio com
Diana, que o tio e a tia ficaram corujando de longe, despediu-se de todos. É que tinha que enfrentar um
dia daqueles. Levou Diana ao dormitório das senhoras, passando pela ala calma do campus; desejou-lhe
boa noite, beijando-a não somente uma vez, mas muitas vezes, e encaminhou-se rapidamente de volta ao
seu quarto, com a sua cabeça inebriada pelo perfume delicado que a lembrança de sua amada lhe trazia.
Sentou-se no seu quarto e ficou cismando com seus pensamentos, olhando para as paredes. Como numa
tela panorâmica, os anos desfilaram pela sua mente: o navio, Clark, Harrison, Diana. E agora, o quê?
Houve um ruído na sua janela do segundo andar. Em seguida outro. Baniu de si os devaneios e
encaminhou-se para a janela. Alguém estava atirando pedrinhas contra o vidro da janela. Seria um colega
de universidade? Uma fã? Deu uma olhada pela janela, no gramado lá embaixo uma criatura pequena
.estava olhando para cima, na direção dele. Seria uma criança? Não. Era um homem preto vestindo um
terno ridiculamente largo para ele — erguendo para o alto suas mãos e seus sapatos. Era Gurã, lá do
povo pigmeu envenenado.
Praticamente em todas as partes do mundo a primavera é uma estação linda. Mas este ano a
primavera se revestia de uma beleza especial para Kit. Era o tempo dos bailes de primavera, a ocasião
própria para jovens casais de namorados passearem de mãos dada nas sombras amenas dos bosques da
universidade. Diana continuava frequentando a escola no oeste, mas várias vezes ia a Harrison para
visitar Kit. Tinha nesta época quase dezoito anos de idade e se via que as promessas alvissareiras de
beleza que a sua juventude prometia não haviam falhado. Tornara-se uma jovem senhora de porte
magnífico, com seus cabelos que mais se pareciam com uma nuvem escura. E como gostava desse jovem
herói de Harrison. E Kit era apaixonado por Diana. Tinha ainda quatro anos pela frente para completar
seus estudos, mas quando tocava de leve no futuro, como toda garota que tem namorado faz, Kit ficava
embaraçado e procurpva desconversar.
Na qualidade de filho do Fantasma, ele não podia fazer nenhum plano concreto para o futuro. Às
vezes devaneava sobre o assunto. Diana na Caverna da Caveira — não, isto lhe parecia impossível:
aquela garota de família rica, de lindos vestidos, com educação feita em escolas particulares, que nas
férias costumava viajar pelas capitais da Europa, aficionada de concertos de ópera, que gostava de
teatro, que cobiçava para si um lugar de destaque no mundo dos desportos como uma mergulhadora de
competições em Olimpíadas — Diana na Caverna da Caveira? Não só impossível, mas até ridículo. Por
isso nunca lhe falou a respeito da caverna, limitando-se a descrever os particulares da selva. Seus modos
reticentes a deixavam encabulada, mas acreditava nele. Deve ter uma razão plausível para isto, pensava
ela.
Mas a primavera estava proporcionando a Kit mais coisas além da formatura e dos passeios. A
enorme quadra de esportes que havia sido construída perto do campus da universidade, em grande parte
graças ao renome que ele levara para Harrison, estava agora concluída.
Tanto o corpo docente da universidade como os estudantes anunciaram planos para homenagear o
seu campeão americano, com um Dia de Kit Walker em suas programações de festejos anuais.
Constariam da lista hóspedes convidados: senadores e deputados; doze bandas marciais das escolas
superiores; prefeitos, juizes e outras altas personalidades, além de cinquenta mil amigos e parentes. O
grande dia das comemorações seria uma semana antes que se iniciassem os exames finais e seria o
coroamento de sua carreira de quatro anos em Harrison. Diana se deslocou do oeste e de Clarksville
chegaram tia Bessie, tio Efraim e um contingente de amigos; presentes estavam também antigos colegas
de turma de Clark, inclusive o próprio Jackson; afinal todo mundo que estivera com esse extraordinário
garoto das selvas de Bengala fez questão de estar presente.
A esta altura dos acontecimentos tio Efraim se prosava tanto do seu Kit como se fosse seu próprio
filho. E Diana morria de ciúmes. Tinha a impressão de que todas as garotas do mundo andavam vidradas
no seu herói. Quanto ao que aconteceria depois deste mês, era coisa que só vagamente passava pela
cabeça de Kit; mesmo assim tratou de alijar estes pensamentos de sua cabeça. Diana estava com ele, e
isto era o que realmente interessava. Em si não era unicamente isto o que lhe interessava. Naturalmente
que os festejos em homenagem a ele o empolgavam e eram motivo de satisfação, se é que era mesmo
verdade o que andavam dizendo. Tentara dissuadir os encarregados a cancelar aquelas comemorações,
mas fizeram ouvidos moucos aos seus apelos. A Universidade de Harrison, já com suas visões mais
ampliadas, estava no firme propósito de homenagear seu filho favorito.
Na noite anterior ao grande dia, Kit estava passeando com Diana, que flutuava feito um sonho pelo
chão lustroso do salão de bailes, envolta em seu vestido de seda fina. Isto foi no ginásio da universidade,
agora decorado com flores e flâmulas, onde Kit arrancara o campeonato de pesos pesados. Aquele dia
tinha sido tremendo. A cidade regorgitava de forasteiros; os hotéis não tinham mais acomodações e
recusavam as pessoas, as quais iam hospedar-se em casas particulares. Havia gente dormindo nos carros,
nos ônibus ou até mesmo na grama. Na pequena cidade não se encontrava mais nenhuma acomodação
para a multidão que acorrera para homenagear Kit Walker.
Depois de jantar no hotel em companhia de Diana, tia Bessie e tio Efraim e dado o passeio com
Diana, que o tio e a tia ficaram corujando de longe, despediu-se de todos. É que tinha que enfrentar um
dia daqueles. Levou Diana ao dormitório das senhoras, passando pela ala calma do campus; desejou-lhe
boa noite, beijando-a não somente uma vez, mas muitas vezes, e encaminhou-se rapidamente de volta ao
seu quarto, com a sua cabeça inebriada pelo perfume delicado que a lembrança de sua amada lhe trazia.
Sentou-se no seu quarto e ficou cismando com seus pensamentos, olhando para as paredes. Como numa
tela panorâmica, os anos desfilaram pela sua mente: o navio, Clark, Harrison, Diana. E agora, o quê?
Houve um ruído na sua janela do segundo andar. Em seguida outro. Baniu de si os devaneios e
encaminhou-se para a janela. Alguém estava atirando pedrinhas contra o vidro da janela. Seria um colega
de universidade? Uma fã? Deu uma olhada pela janela, no gramado lá embaixo uma criatura pequena
.estava olhando para cima, na direção dele. Seria uma criança? Não. Era um homem preto vestindo um
terno ridiculamente largo para ele — erguendo para o alto suas mãos e seus sapatos. Era Gurã, lá do
povo pigmeu envenenado.
T2 N° 434 : A LENDA DO FANTASMA
11 - O CAMPEÃO
Kit esteve ocupado na Academia Clark, dividindo seu tempo entre estudos e esportes; assim quatro
anos se passaram. Kit cresceu nesse período, tanto física quanto mentalmente. Estava alcançando sua
estatura definitiva, suas espáduas cresciam e seus músculos se ressaltavam. Sua habilidade nos vários
esportes aumentava. A fama de "superaluno" aumentava. Ofertas de equipes atléticas universitárias
começaram a chegar das maiores faculdades e universidades. Escoteiros, bacharéis e técnicos
começaram a rondar os vestiários e até a casa de Carruthers, tentando descobrir seu preço. Sua tia Bessie
e seu tio Efraim gostaram disso. O severo homem estava orgulhoso de seu sobrinho e estava
presentemente aprendendo a sorrir. Kit rejeitou todas as ofertas. Viera à América principalmente para
obter educação. Esportes eram coisas secundárias. Ingressou numa faculdade pequena situada nas
proximidades da floresta do norte e que oferecia especializações em silvicultura, posto que seu interesse
natural se concentrava neste campo: ele se formou com as mais altas honras escolares na Academia Clark
e tanto corpo discente como docente da faculdade sentiram muito quando ele se foi. Ele tinha posto os
obscuros garotos da escola no mapa. A Universidade Harrison tinha que ter uma experiência similar.
Sua chegada à modestíssima Universidade foi anunciada pelo jornal do colégio e o jornal local da
cidade. Não passou muito tempo desde que o estranho garoto estrangeiro começasse na escola para que
sua fama logo o seguisse: "a maravilha da escola", detentor de uma dúzia de troféus escolares nas
competições, campeão de box e salto de obstáculo, astro do futebol. As notícias da seleção de Kit na
Universidade Harrison tinham influenciado outros atletas de ginásio a escolher a pequena escola. O
núcleo de um bom time chegou junto com ele numa escola cujos times tinham sido sempre obscuros e sem
importância.
Ele retomou onde havia parado em Clark. Sob sua jovem liderança, os times de Harrison liquidaram
seus tradicionais adversários — colégios menores como eles próprios — e seus pequenos estádios
ficavam inundados de pessoas e eram inadequados.
A televisão nacional e as equipes de rádio chegaram a difundir esses obscuros jogos, tudo por causa
do fenomenal Kit Walker, Horários foram apressadamente rearranjados. No espaço de um ano, os times
de Harrison foram convidados para os maiores estádios de costa a costa. Seus times entraram nos
encontros nacionais. Até as equipes de boxe das universidades maiores — normalmente esportes
menores relegados para um canto do ginásio — necessitaram quadras maiores para os fãs. Parecia que o
mundo inteiro queria ver Kit Walker.
Ele caminhava todo-poderoso pela nação e tornou-se o eleito do ano na América. Agora, membros
dos times profissionais de futebol frequentavam os quartos fechados, como os membros do colégio
haviam feito em Clark. Nos concursos, Kit começou a quebrar todos os recordes, em seguida recordes
nacionais e então recordes internacionais. Treinava para o grande concurso e era visto como o futuro
campeão. Um lutador de boxe pesos leves nos seus anos de calouro, ele passou para peso pesado logo no
ano ulterior e dominava todas as divisões, permanecendo invicto. Isto interessou promotores e
empresários profissionais. Eles lhe disseram que ele poderia ter um futuro no mundo do boxe. Como
havia feito com os empresários do futebol, livrou-se deles delicadamente.
Seus cursos, particularmente zoologia, e matérias como botânica, o fascinavam. Estava se
informando cientificamente a respeito das plantas e animais que conhecia há muito.
O colégio não era apenas estudos e esporte. Havia uma vida social ativa, como em todo campus. As
atividades de Kit o mantinham ocupado, mas ele ia a bailes e festas. As garotas se sentiam atraídas por
ele e ficavam surpresas por o encontrarem cheio de timidez e modéstia e nada fácil para elas. Não
entendia de garotas, nem as da selva, nem as da Academia Clark e nem as de Clarksville. Ele dispunha de
uma cortesia para com todos o que encantava as moças, porém não manterá quaisquer romances nesses
dois primeiros anos. Ocupado demais talvez; ou esperando por alguém. Quem? Ele não sabia.
Ele teve uma ideia de "quem era" durante as férias do Natal no seu terceiro ano. Por essa ocasião, as
revistas, a televisão, e os jornais haviam tornado seu rosto familiar. Viajando para casa de ônibus, ele
tentava dormir, mas os caçadores de autógrafos e os fãs tornaram tal coisa impossível. Quando chegou à
casa dos Carruthers, as crianças dos vizinhos encheram o quintal, esperando vê-lo. Bessie e Efraim
estavam tão orgulhosos quanto pavões. Houve um baile de véspera de Natal no clube de campo e eles
ficaram ansiosos para mostrarem seu famoso sobrinho. Ele hesitou. Esse lugar tinha estado fora dos seus
limites e cogitações nos primeiros meses por causa de Gurã e ele sempre se recusara a ir em busca dele.
Mas seu tio e sua tia estavam tão orgulhosos e felizes que ele sentiu que teria que ir agradá-los.
Uma multidão o cercou no bar enquanto ele tomava suco de frutas. O lugar era decorado com um
colorido de estação e pinheiros cobertos por lâmpadas pródigas de luz. A música vinha do cômodo ao
lado onde os casais estavam dançando. Kit estava entediado e precisava dormir, mas se mostrava cortês
e polido em relação a todas as perguntas. Uma esguia garota de cabelos negros foi trazida até ele pela
sorridente tia Bessie. Ela tinha dezesseis ou dezessete anos, vestia-se com simplicidade e mostrava um
sorriso tímido nos lábios perfeitos. Era a mais linda garota que Kit já vira.
— Sabe quem é ele? — perguntou tia Bessie com alegria, gritando sobre o ruído produzido pela
música e as vozes.
Kit olhou para ela com vontade. Tinha havido muitas garotas bonitas em todos os jogos e reuniões,
apresentações rápidas, danças curtas, multidões eternas de garotas bonitas, mas nenhuma como esta.
— Sinto muito — ele começou a dizer.
— Você parou de fugir de casa — ela disse. — Atingiu alguma outra coisa com seu arco e flecha. —
Sua voz era baixa e agradável e ela mostrou-se dona de um riso delicioso quando viu a confusão que
causava nele.
— Oh, garoto tolo, esta é Diana Palmer, não se lembra? — disse tia Bessie.
A garotinha com os dois dentes faltando na frente. Uma grande fita vermelha no cabelo. A pantera
negra. Ela morava na cidade ao lado, mas ele não a tinha visto desde aquele dia.
— Como você cresceu — ele disse.
— Você também — ela disse, olhando para o jovem gigante.
Ela tinha apenas oito anos quanto ele a salvara naquela tarde dramática. O choque do acontecimento
o havia bloqueado em grande parte na mente dela, assim a moça se lembrava muito pouco. O que ela
realmente lembrava era o que ouviu dos pais e outras pessoas e a partir do que leu mais tarde no velho
jornal que sua mãe havia guardado. De tempos a tempos, ela relancearia Kit na rua ou num cinema, mas
ele nunca a notara. Afinal, ele era um sujeito grande, e cumpria sua carreira de esportes avidamente
enquanto se encontrava em Clark e depois em Harrison. Ela ficava emocionada toda vez que via
fotografias dele no jornal ou ouvia as pessoas discutirem sobre ele. Sem compreendê-lo, estivera
apaixonada por ele por todo o tempo que podia lembrar. Ele era seu Príncipe Encantado, embora de certa
forma nunca esperara encontrá-lo de novo.
Mas dado ao sucesso nos esportes, ela própria se tornou interessada. Tornou-se hábil montando
cavalos e em tênis, e logo teria um breve. E acima de tudo, gostava de nadar. Na sua escola, natação e
mergulho eram uma especialidade porque tinham já abiscoitado um recorde olímpico. A partir dos doze
anos, Diana ficou sob tutela. Logo mostrou-se excelente em corrida, incentivada pela constante
publicidade de Kit. Mas sua especialidade era mergulho. Sua escola reconhecia sua habilidade e prazer
que tinha em mergulhar — os dois ingredientes necessários — e devotava muito tempo a ela. Ela
começou a ganhar faixas e troféus e foi designada para a competição olímpica para um dia do futuro
próximo, quando ela obteria uma medalha de ouro de campeã.
Kitj se lembrava da menininha que se tinha dirigido a ele e Gurã no banco de areia. — Estavam os
dois completamente nus — ela disse, com seu riso delicioso. Ele também se lembrava dolorosamente da
garotinha soluçando e ficando sufocada, arrastando-se de joelhos para longe da aterradora pantera. A
menina nos seus braços tomada por soluços. Agora ela estava em seus braços de novo à medida que
dançavam nesta noite de Natal, e seu lindo corpo estava trêmulo de novo, desta vez pelo riso enquanto
lembrava como ele e Gurã "se vestiam" com panos sobre os lombos.
Kit não estava mais entediado e com sono. Dançaram e comeram juntos e ele a viu todas as noites
durante aquelas férias. No fim dessa época, ela sabia tão pouco a respeito do seu passado quanto no
começo, pois ele falava muito pouco sobre sua terra natal. Apenas mencionou rapidamente que sua mãe
tinha morrido e seu pai vivia ainda sozinho em alguma parte. Mas aprendeu muito a respeito dele mesmo,
sua modéstia, talento e cortesia. Percebia muito naquele jovem, um caráter de aço que ela respeitava e
admirava e agora sabia que o havia amado desde o primeiro momento em que tinham se encontrado.
Quanto a Kit, ele estava esperando por alguém. E a encontrara. Diana.
Ela estava no seu último ano do curso secundário, numa escola feminina, de modo que se viram
muito pouco durante os meses seguintes. Mas ela continuou acompanhando a carreira dele atentamente
nos jornais. Naquele verão, passaram algumas semanas juntos antes que Diana fosse para a Europa com
sua mãe. Passaram esses cálidos dias de Junho nadando e passeando de canoa num lago próximo e
fizeram piqueniques ocasionais com amigos de escola às margens do Mississippi. Havia uma piscina
olímpica num pequeno colégio perto de Clarksville e eles foram até lá para praticar mergulho do
trampolim mais alto. Kit era muito bom nisso, tendo recebido lições do seu pai. Mas Diana estava
próxima da perfeição. Dispunha de todo o estilo e controle de um ganhador da medalha de ouro olímpica,
o que ela brevemente se tornaria. Se sua forma em mergulho era quase perfeita, suas formas num biquíni
eram absoluta perfeição, seu talhe era aquele sonhado por todos os homens. Sendo jovem, sonhava com
Diana, mas o sonho era sempre perturbado pela incerteza e mistério de seu próprio futuro.
Ela se foi, prometendo vê-lo tão logo voltasse no outono, deixando um vazio em sua vida. Ele foi
então para as florestas do norte para um emprego de verão assegurado através do Serviço Florestal. Foi a
primeira chance que teve de voltar à glória da floresta. Vida silvestre, dias a cavalo, noites à Fogueira,
dormindo ao relento. Reminiscencias da vida na selva retornaram fortemente neste verão. Mas voltou
para Harrison para praticar futebol sendo que seu último ano havia começado.
Agora, como Kit havia competido por todas as pistas do país, alcançou o status de um ídolo
desportivo nacional. Seu rosto aparecia em capas de revista e seu nome era corrente em qualquer lugar
onde houvesse aficcionados do esporte. Algumas dessas notícias alcançaram a Floresta Negra, fazendo-o
receber uma carta de seu pai que simplesmente repetia; "Não esqueça seus livros." Aquele mundo
longínquo estava semi-esquecido agora. Estava tão ligado ao presente. Graças a Kit e seus colegas as
matrículas na Universidade de Harrison triplicaram. Um vasto programa de expansão da universidade
estava em projeto, e um gigantesco estádio era erguido nos arredores da cidade.
Uma coisa fantástica aconteceu um dia, no início da primavera. O campeão mundial de pesos
pesados estava de passagem pela cidade a caminho de uma grande luta. Pelo seu itinerário, seus
empresários planejaram uma parada na cidade e um treino no ginásio de Harrison. Junto com o famoso
campeão havia diversos sparrings. Mas o empresário e sua equipe ouviram falar sobre o grande atleta
Kit Walker, que entre outras coisas era detentor do título de campeão intercolegial de pesos pesados. Kit
era celebrado como verdadeiro campeão e o empresário decidiu que era boa publicidade se seu atleta
pudesse lutar um round com o menino prodígio.
Kit não estava propenso a isso, que significava perder uma aula prática de Botânica, mas concordou
quando os promotores lhe pediam que o fizesse como um favor à escola. A noticia se espalhou pela
universidade. B chegou até o rádio a televisão e os jornais, e o ginásio ficou lotado. E o que era
supostamente um treino transformou-se num acontecimento excitante.
O campeão se divertia com toda a excitação e seu empresário estava deliciado. O motivo foi
publicidade. Percebeu câmaras de televisão, microfones, flashes — satisfeito. A luta vindoura
necessitava de publicidade. Este era o ponto. — Vá com calma com o rapazola — disse ele ao campeão.
O campeão consentiu sorrindo. Estudante ou não, pretendia fazer bonito frente à multidão e câmaras.
O tablado foi montado no centro do ginásio. Havia arquibancadas provisórias nos quatro lados. O
grande ginásio, usado para basquetebol e outros esportes, comportava cinco mil pessoas, sendo que
estava completamente lotado. Toda a escola e a cidade estavam lá. O primeiro a subir no tablado foi o
campeão, recebido com muitos aplausos da platéia. Esperava pacientemente com seu empresário e seus
segundos. Onde estava Kit? Não se faz o campeão esperar. Estava com medo? A multidão murmurava.
Foi então que Kit entrou no ginásio e pulou as cordas. A multidão delirava. O campeão percebeu
chateado que este delírio foi muito maior que o que causara.
— Perdoe-me, disse Kit, tentando calçar suas luvas. — Tive um exame de Botânica. Vim o mais
rápido que pude.
— Botânica é algo sobre flores — explicava o empresário ao campeão.
— Vai precisar delas — grunhiu o campeão.
— Vá com calma — disse o empresário. — Isto é só um treino.
— É lógico, disse o campeão. Os modos gentis de Kit o haviam irritado. Não é todo dia que um
amador boxeia com o campeão mundial. Um garoto inteligente. Todos seus amigos gritando para que "ele
o derrubasse"! Estavam brincando?
O treinador de Kit ajudou-o com as luvas, um colega amarrou suas sapatilhas. Seu treinador de boxe
pediu silêncio e anunciou a luta pelo microfone. — Façamos de conta que estamos no Madison Square
Garden — disse ele e a multidão riu. — À minha direita o campeão mundial de pesos pesados.
— O campeão se abaixou para regozijo da multidão. Havia algumas vaias e o campeão ficou
zangado. — Neste lado, nosso Kit Walker. — A multidão explodiu numa tremenda ovação. O campeão
sorriu. Todos estavam torcendo para aquele estudante.
— Este é um treinamento para o campeão para sua próxima luta — disse o treinador. — Esperemos
que ele tenha piedade de nosso Kit. Precisamos dele. — A multidão riu, os outros deixavam o tablado e
alguém tocava o gongo também causando riso.
O campeão olhou seu oponente com cuidado, era grande e forte, mas a maioria dos pesos pesados
era assim e ele se movimentava bem. Está bem, disse a si mesmo. Vamos em frente. Trocaram os
primeiros golpes. Kit não tinha intenção de lutar para valer. Aquilo era um favor, um trabalho para um
lutador profissional. As câmaras estavam presentes. O campeão notou isso à medida que rodeava Kit.
Subitamente desferiu um golpe que Kit bloqueou apenas parcialmente. Depois um outro, jogando-o contra
as cordas: O empresário mastigava seu charuto nervosamente. O que o campeão esperava provar
esmurrando o estudante? A multidão observava, não tomando ainda esta luta por verdadeira: Kit também
não tinha certeza acerca disto. Num clinch, o campeão atingiu-o bem abaixo da cintura e murmurou: —
Vamos lá, estudante.
Kit reagiu imediatamente. Recuou e começou a saltitar em redor do campeão, aparou os golpes do
campeão e atingiu-o duramente. O campeão sacudiu a cabeça e sorriu. — Isto é tudo que pode fazer
estudante? — balbuciou e acertou Kit violentamente mandando-o novamente contra as cordas. Kit dançou
novamente. Este homem era mais duro que qualquer outro que ele tinha enfrentado. O campeão mundial.
Mas tinha a impressão que o assustava, sentia que podia cuidar dele: Devolveu os golpes. E começaram
a se estudar. A multidão começou a vibrar. O empresário gritava. Mas nada deteria o campeão.
Compreendera agora que este estudante não era presa fácil.
Era maciço, forte, habilidoso. E o campeão era precisamente isto, também. Acercou-se de Kit
novamente e durante um clinch rápido murmurou um palavrão em seu ouvido. Este tinha algo a ver com
sua mãe. Kit permaneceu calmo. Poderia controlar o assassino que estava dentro dele, agora. Mas seus
punhos explodiram no maxilar do campeão e este já cambaleava dobrando seus joelhos. O empresário
tentava pular as cordas a fim de pará-los, vários colegiais barravam o caminho. — Ele quer uma luta —
gritavam. — Deixe-os lutar.
Era raro para aquele campeão ter mesmo um só joelho no chão e o fato foi fartamente registrado pela
televisão e os repórteres dos jornais. Mas isto não foi tudo. Tentava manter-se em pé, decidido a acabar
com o astro em potencial. Kit atingiu-o duramente no estômago, um tremendo golpe que poderia ser
ouvido até no laboratório de Botânica. A multidão vibrou. Quando o campeão se curvou tomado pela dor,
Kit o acertou três vezes no maxilar. Seus punhos movimentando-se como martelos. O campeão caiu como
um daqueles velhos carvalhos que Kit havia cortado no verão anterior. Atingiu a lona produzindo um som
cavo. Silêncio no grande ginásio. Ninguém tivera nocauteado o campeão, muito menos daquela forma e
ele estava fora de combate mesmo: Kit ajudou o empresário desesperado e os outros a carregá-lo por
sobre as cordas do tablado. Em seguida esperou enquanto o médico do campus examinava o campeão
inconsciente. Este abriu os olhos e grunhiu alguma coisa. O médico disse-lhe que o campeão estava tonto,
mas em boas condições. Kit, esperando impacientemente junto das cordas, sorria daquilo. A multidão que
observava abria caminho agora. Foi como o estrondejar de vagas na praia. Urravam e gritavam feito
loucos e conseguiam rir também. O seu Kit havia derrotado o campeão mundial de maneira admirável.
Os espectadores de televisão de todo o país tinham observado o curto embate em sessenta milhões
de salas de estar aquela noite. A imprensa mundial noticiava o acontecimento, com páginas completas
com fotografias que gravaram a ação no tablado.
Quanto Kit deixou o chuveiro no vestiário, o empresário estava esperando por ele com um contrato,
o combate vindouro do campeão tinha sido adiado até que se recobrasse do castigo infligido a ele.
Quanto a Kit, o céu era o limite — o empresário lhe assegurou. Podia fazer milhões. Kit lhe agradeceu,
mas disse que não estava interessado em carreira profissional daquela espécie. Antes que o campeão
deixasse o ginásio ainda insistiu em ver Kit. Dizia que todos esperavam aquele encontro com
sofreguidão. Kit estava enrolado numa toalha e os fotógrafos à sua volta registravam todos seus
movimentos. Microfones o cercavam. A cara do campeão estava seriamente estragada e seu maxilar
deslocado.
— Sam disse que você recusou sua oferta. — Disse olhando para o empresário nervoso a seu lado.
— Não sei porque mas fico feliz por isto: Você é demais! — disse sorrindo e estendendo a mão. Kit
sorriu e apertou sua mão. A multidão gritou concorde.
A publicidade em torno da luta preocupou Kit. Esperava que não alcançasse seu pai na Floresta
Negra, e desse ao Vigésimo a ideia de que estava esquecendo seus livros.
Kit esteve ocupado na Academia Clark, dividindo seu tempo entre estudos e esportes; assim quatro
anos se passaram. Kit cresceu nesse período, tanto física quanto mentalmente. Estava alcançando sua
estatura definitiva, suas espáduas cresciam e seus músculos se ressaltavam. Sua habilidade nos vários
esportes aumentava. A fama de "superaluno" aumentava. Ofertas de equipes atléticas universitárias
começaram a chegar das maiores faculdades e universidades. Escoteiros, bacharéis e técnicos
começaram a rondar os vestiários e até a casa de Carruthers, tentando descobrir seu preço. Sua tia Bessie
e seu tio Efraim gostaram disso. O severo homem estava orgulhoso de seu sobrinho e estava
presentemente aprendendo a sorrir. Kit rejeitou todas as ofertas. Viera à América principalmente para
obter educação. Esportes eram coisas secundárias. Ingressou numa faculdade pequena situada nas
proximidades da floresta do norte e que oferecia especializações em silvicultura, posto que seu interesse
natural se concentrava neste campo: ele se formou com as mais altas honras escolares na Academia Clark
e tanto corpo discente como docente da faculdade sentiram muito quando ele se foi. Ele tinha posto os
obscuros garotos da escola no mapa. A Universidade Harrison tinha que ter uma experiência similar.
Sua chegada à modestíssima Universidade foi anunciada pelo jornal do colégio e o jornal local da
cidade. Não passou muito tempo desde que o estranho garoto estrangeiro começasse na escola para que
sua fama logo o seguisse: "a maravilha da escola", detentor de uma dúzia de troféus escolares nas
competições, campeão de box e salto de obstáculo, astro do futebol. As notícias da seleção de Kit na
Universidade Harrison tinham influenciado outros atletas de ginásio a escolher a pequena escola. O
núcleo de um bom time chegou junto com ele numa escola cujos times tinham sido sempre obscuros e sem
importância.
Ele retomou onde havia parado em Clark. Sob sua jovem liderança, os times de Harrison liquidaram
seus tradicionais adversários — colégios menores como eles próprios — e seus pequenos estádios
ficavam inundados de pessoas e eram inadequados.
A televisão nacional e as equipes de rádio chegaram a difundir esses obscuros jogos, tudo por causa
do fenomenal Kit Walker, Horários foram apressadamente rearranjados. No espaço de um ano, os times
de Harrison foram convidados para os maiores estádios de costa a costa. Seus times entraram nos
encontros nacionais. Até as equipes de boxe das universidades maiores — normalmente esportes
menores relegados para um canto do ginásio — necessitaram quadras maiores para os fãs. Parecia que o
mundo inteiro queria ver Kit Walker.
Ele caminhava todo-poderoso pela nação e tornou-se o eleito do ano na América. Agora, membros
dos times profissionais de futebol frequentavam os quartos fechados, como os membros do colégio
haviam feito em Clark. Nos concursos, Kit começou a quebrar todos os recordes, em seguida recordes
nacionais e então recordes internacionais. Treinava para o grande concurso e era visto como o futuro
campeão. Um lutador de boxe pesos leves nos seus anos de calouro, ele passou para peso pesado logo no
ano ulterior e dominava todas as divisões, permanecendo invicto. Isto interessou promotores e
empresários profissionais. Eles lhe disseram que ele poderia ter um futuro no mundo do boxe. Como
havia feito com os empresários do futebol, livrou-se deles delicadamente.
Seus cursos, particularmente zoologia, e matérias como botânica, o fascinavam. Estava se
informando cientificamente a respeito das plantas e animais que conhecia há muito.
O colégio não era apenas estudos e esporte. Havia uma vida social ativa, como em todo campus. As
atividades de Kit o mantinham ocupado, mas ele ia a bailes e festas. As garotas se sentiam atraídas por
ele e ficavam surpresas por o encontrarem cheio de timidez e modéstia e nada fácil para elas. Não
entendia de garotas, nem as da selva, nem as da Academia Clark e nem as de Clarksville. Ele dispunha de
uma cortesia para com todos o que encantava as moças, porém não manterá quaisquer romances nesses
dois primeiros anos. Ocupado demais talvez; ou esperando por alguém. Quem? Ele não sabia.
Ele teve uma ideia de "quem era" durante as férias do Natal no seu terceiro ano. Por essa ocasião, as
revistas, a televisão, e os jornais haviam tornado seu rosto familiar. Viajando para casa de ônibus, ele
tentava dormir, mas os caçadores de autógrafos e os fãs tornaram tal coisa impossível. Quando chegou à
casa dos Carruthers, as crianças dos vizinhos encheram o quintal, esperando vê-lo. Bessie e Efraim
estavam tão orgulhosos quanto pavões. Houve um baile de véspera de Natal no clube de campo e eles
ficaram ansiosos para mostrarem seu famoso sobrinho. Ele hesitou. Esse lugar tinha estado fora dos seus
limites e cogitações nos primeiros meses por causa de Gurã e ele sempre se recusara a ir em busca dele.
Mas seu tio e sua tia estavam tão orgulhosos e felizes que ele sentiu que teria que ir agradá-los.
Uma multidão o cercou no bar enquanto ele tomava suco de frutas. O lugar era decorado com um
colorido de estação e pinheiros cobertos por lâmpadas pródigas de luz. A música vinha do cômodo ao
lado onde os casais estavam dançando. Kit estava entediado e precisava dormir, mas se mostrava cortês
e polido em relação a todas as perguntas. Uma esguia garota de cabelos negros foi trazida até ele pela
sorridente tia Bessie. Ela tinha dezesseis ou dezessete anos, vestia-se com simplicidade e mostrava um
sorriso tímido nos lábios perfeitos. Era a mais linda garota que Kit já vira.
— Sabe quem é ele? — perguntou tia Bessie com alegria, gritando sobre o ruído produzido pela
música e as vozes.
Kit olhou para ela com vontade. Tinha havido muitas garotas bonitas em todos os jogos e reuniões,
apresentações rápidas, danças curtas, multidões eternas de garotas bonitas, mas nenhuma como esta.
— Sinto muito — ele começou a dizer.
— Você parou de fugir de casa — ela disse. — Atingiu alguma outra coisa com seu arco e flecha. —
Sua voz era baixa e agradável e ela mostrou-se dona de um riso delicioso quando viu a confusão que
causava nele.
— Oh, garoto tolo, esta é Diana Palmer, não se lembra? — disse tia Bessie.
A garotinha com os dois dentes faltando na frente. Uma grande fita vermelha no cabelo. A pantera
negra. Ela morava na cidade ao lado, mas ele não a tinha visto desde aquele dia.
— Como você cresceu — ele disse.
— Você também — ela disse, olhando para o jovem gigante.
Ela tinha apenas oito anos quanto ele a salvara naquela tarde dramática. O choque do acontecimento
o havia bloqueado em grande parte na mente dela, assim a moça se lembrava muito pouco. O que ela
realmente lembrava era o que ouviu dos pais e outras pessoas e a partir do que leu mais tarde no velho
jornal que sua mãe havia guardado. De tempos a tempos, ela relancearia Kit na rua ou num cinema, mas
ele nunca a notara. Afinal, ele era um sujeito grande, e cumpria sua carreira de esportes avidamente
enquanto se encontrava em Clark e depois em Harrison. Ela ficava emocionada toda vez que via
fotografias dele no jornal ou ouvia as pessoas discutirem sobre ele. Sem compreendê-lo, estivera
apaixonada por ele por todo o tempo que podia lembrar. Ele era seu Príncipe Encantado, embora de certa
forma nunca esperara encontrá-lo de novo.
Mas dado ao sucesso nos esportes, ela própria se tornou interessada. Tornou-se hábil montando
cavalos e em tênis, e logo teria um breve. E acima de tudo, gostava de nadar. Na sua escola, natação e
mergulho eram uma especialidade porque tinham já abiscoitado um recorde olímpico. A partir dos doze
anos, Diana ficou sob tutela. Logo mostrou-se excelente em corrida, incentivada pela constante
publicidade de Kit. Mas sua especialidade era mergulho. Sua escola reconhecia sua habilidade e prazer
que tinha em mergulhar — os dois ingredientes necessários — e devotava muito tempo a ela. Ela
começou a ganhar faixas e troféus e foi designada para a competição olímpica para um dia do futuro
próximo, quando ela obteria uma medalha de ouro de campeã.
Kitj se lembrava da menininha que se tinha dirigido a ele e Gurã no banco de areia. — Estavam os
dois completamente nus — ela disse, com seu riso delicioso. Ele também se lembrava dolorosamente da
garotinha soluçando e ficando sufocada, arrastando-se de joelhos para longe da aterradora pantera. A
menina nos seus braços tomada por soluços. Agora ela estava em seus braços de novo à medida que
dançavam nesta noite de Natal, e seu lindo corpo estava trêmulo de novo, desta vez pelo riso enquanto
lembrava como ele e Gurã "se vestiam" com panos sobre os lombos.
Kit não estava mais entediado e com sono. Dançaram e comeram juntos e ele a viu todas as noites
durante aquelas férias. No fim dessa época, ela sabia tão pouco a respeito do seu passado quanto no
começo, pois ele falava muito pouco sobre sua terra natal. Apenas mencionou rapidamente que sua mãe
tinha morrido e seu pai vivia ainda sozinho em alguma parte. Mas aprendeu muito a respeito dele mesmo,
sua modéstia, talento e cortesia. Percebia muito naquele jovem, um caráter de aço que ela respeitava e
admirava e agora sabia que o havia amado desde o primeiro momento em que tinham se encontrado.
Quanto a Kit, ele estava esperando por alguém. E a encontrara. Diana.
Ela estava no seu último ano do curso secundário, numa escola feminina, de modo que se viram
muito pouco durante os meses seguintes. Mas ela continuou acompanhando a carreira dele atentamente
nos jornais. Naquele verão, passaram algumas semanas juntos antes que Diana fosse para a Europa com
sua mãe. Passaram esses cálidos dias de Junho nadando e passeando de canoa num lago próximo e
fizeram piqueniques ocasionais com amigos de escola às margens do Mississippi. Havia uma piscina
olímpica num pequeno colégio perto de Clarksville e eles foram até lá para praticar mergulho do
trampolim mais alto. Kit era muito bom nisso, tendo recebido lições do seu pai. Mas Diana estava
próxima da perfeição. Dispunha de todo o estilo e controle de um ganhador da medalha de ouro olímpica,
o que ela brevemente se tornaria. Se sua forma em mergulho era quase perfeita, suas formas num biquíni
eram absoluta perfeição, seu talhe era aquele sonhado por todos os homens. Sendo jovem, sonhava com
Diana, mas o sonho era sempre perturbado pela incerteza e mistério de seu próprio futuro.
Ela se foi, prometendo vê-lo tão logo voltasse no outono, deixando um vazio em sua vida. Ele foi
então para as florestas do norte para um emprego de verão assegurado através do Serviço Florestal. Foi a
primeira chance que teve de voltar à glória da floresta. Vida silvestre, dias a cavalo, noites à Fogueira,
dormindo ao relento. Reminiscencias da vida na selva retornaram fortemente neste verão. Mas voltou
para Harrison para praticar futebol sendo que seu último ano havia começado.
Agora, como Kit havia competido por todas as pistas do país, alcançou o status de um ídolo
desportivo nacional. Seu rosto aparecia em capas de revista e seu nome era corrente em qualquer lugar
onde houvesse aficcionados do esporte. Algumas dessas notícias alcançaram a Floresta Negra, fazendo-o
receber uma carta de seu pai que simplesmente repetia; "Não esqueça seus livros." Aquele mundo
longínquo estava semi-esquecido agora. Estava tão ligado ao presente. Graças a Kit e seus colegas as
matrículas na Universidade de Harrison triplicaram. Um vasto programa de expansão da universidade
estava em projeto, e um gigantesco estádio era erguido nos arredores da cidade.
Uma coisa fantástica aconteceu um dia, no início da primavera. O campeão mundial de pesos
pesados estava de passagem pela cidade a caminho de uma grande luta. Pelo seu itinerário, seus
empresários planejaram uma parada na cidade e um treino no ginásio de Harrison. Junto com o famoso
campeão havia diversos sparrings. Mas o empresário e sua equipe ouviram falar sobre o grande atleta
Kit Walker, que entre outras coisas era detentor do título de campeão intercolegial de pesos pesados. Kit
era celebrado como verdadeiro campeão e o empresário decidiu que era boa publicidade se seu atleta
pudesse lutar um round com o menino prodígio.
Kit não estava propenso a isso, que significava perder uma aula prática de Botânica, mas concordou
quando os promotores lhe pediam que o fizesse como um favor à escola. A noticia se espalhou pela
universidade. B chegou até o rádio a televisão e os jornais, e o ginásio ficou lotado. E o que era
supostamente um treino transformou-se num acontecimento excitante.
O campeão se divertia com toda a excitação e seu empresário estava deliciado. O motivo foi
publicidade. Percebeu câmaras de televisão, microfones, flashes — satisfeito. A luta vindoura
necessitava de publicidade. Este era o ponto. — Vá com calma com o rapazola — disse ele ao campeão.
O campeão consentiu sorrindo. Estudante ou não, pretendia fazer bonito frente à multidão e câmaras.
O tablado foi montado no centro do ginásio. Havia arquibancadas provisórias nos quatro lados. O
grande ginásio, usado para basquetebol e outros esportes, comportava cinco mil pessoas, sendo que
estava completamente lotado. Toda a escola e a cidade estavam lá. O primeiro a subir no tablado foi o
campeão, recebido com muitos aplausos da platéia. Esperava pacientemente com seu empresário e seus
segundos. Onde estava Kit? Não se faz o campeão esperar. Estava com medo? A multidão murmurava.
Foi então que Kit entrou no ginásio e pulou as cordas. A multidão delirava. O campeão percebeu
chateado que este delírio foi muito maior que o que causara.
— Perdoe-me, disse Kit, tentando calçar suas luvas. — Tive um exame de Botânica. Vim o mais
rápido que pude.
— Botânica é algo sobre flores — explicava o empresário ao campeão.
— Vai precisar delas — grunhiu o campeão.
— Vá com calma — disse o empresário. — Isto é só um treino.
— É lógico, disse o campeão. Os modos gentis de Kit o haviam irritado. Não é todo dia que um
amador boxeia com o campeão mundial. Um garoto inteligente. Todos seus amigos gritando para que "ele
o derrubasse"! Estavam brincando?
O treinador de Kit ajudou-o com as luvas, um colega amarrou suas sapatilhas. Seu treinador de boxe
pediu silêncio e anunciou a luta pelo microfone. — Façamos de conta que estamos no Madison Square
Garden — disse ele e a multidão riu. — À minha direita o campeão mundial de pesos pesados.
— O campeão se abaixou para regozijo da multidão. Havia algumas vaias e o campeão ficou
zangado. — Neste lado, nosso Kit Walker. — A multidão explodiu numa tremenda ovação. O campeão
sorriu. Todos estavam torcendo para aquele estudante.
— Este é um treinamento para o campeão para sua próxima luta — disse o treinador. — Esperemos
que ele tenha piedade de nosso Kit. Precisamos dele. — A multidão riu, os outros deixavam o tablado e
alguém tocava o gongo também causando riso.
O campeão olhou seu oponente com cuidado, era grande e forte, mas a maioria dos pesos pesados
era assim e ele se movimentava bem. Está bem, disse a si mesmo. Vamos em frente. Trocaram os
primeiros golpes. Kit não tinha intenção de lutar para valer. Aquilo era um favor, um trabalho para um
lutador profissional. As câmaras estavam presentes. O campeão notou isso à medida que rodeava Kit.
Subitamente desferiu um golpe que Kit bloqueou apenas parcialmente. Depois um outro, jogando-o contra
as cordas: O empresário mastigava seu charuto nervosamente. O que o campeão esperava provar
esmurrando o estudante? A multidão observava, não tomando ainda esta luta por verdadeira: Kit também
não tinha certeza acerca disto. Num clinch, o campeão atingiu-o bem abaixo da cintura e murmurou: —
Vamos lá, estudante.
Kit reagiu imediatamente. Recuou e começou a saltitar em redor do campeão, aparou os golpes do
campeão e atingiu-o duramente. O campeão sacudiu a cabeça e sorriu. — Isto é tudo que pode fazer
estudante? — balbuciou e acertou Kit violentamente mandando-o novamente contra as cordas. Kit dançou
novamente. Este homem era mais duro que qualquer outro que ele tinha enfrentado. O campeão mundial.
Mas tinha a impressão que o assustava, sentia que podia cuidar dele: Devolveu os golpes. E começaram
a se estudar. A multidão começou a vibrar. O empresário gritava. Mas nada deteria o campeão.
Compreendera agora que este estudante não era presa fácil.
Era maciço, forte, habilidoso. E o campeão era precisamente isto, também. Acercou-se de Kit
novamente e durante um clinch rápido murmurou um palavrão em seu ouvido. Este tinha algo a ver com
sua mãe. Kit permaneceu calmo. Poderia controlar o assassino que estava dentro dele, agora. Mas seus
punhos explodiram no maxilar do campeão e este já cambaleava dobrando seus joelhos. O empresário
tentava pular as cordas a fim de pará-los, vários colegiais barravam o caminho. — Ele quer uma luta —
gritavam. — Deixe-os lutar.
Era raro para aquele campeão ter mesmo um só joelho no chão e o fato foi fartamente registrado pela
televisão e os repórteres dos jornais. Mas isto não foi tudo. Tentava manter-se em pé, decidido a acabar
com o astro em potencial. Kit atingiu-o duramente no estômago, um tremendo golpe que poderia ser
ouvido até no laboratório de Botânica. A multidão vibrou. Quando o campeão se curvou tomado pela dor,
Kit o acertou três vezes no maxilar. Seus punhos movimentando-se como martelos. O campeão caiu como
um daqueles velhos carvalhos que Kit havia cortado no verão anterior. Atingiu a lona produzindo um som
cavo. Silêncio no grande ginásio. Ninguém tivera nocauteado o campeão, muito menos daquela forma e
ele estava fora de combate mesmo: Kit ajudou o empresário desesperado e os outros a carregá-lo por
sobre as cordas do tablado. Em seguida esperou enquanto o médico do campus examinava o campeão
inconsciente. Este abriu os olhos e grunhiu alguma coisa. O médico disse-lhe que o campeão estava tonto,
mas em boas condições. Kit, esperando impacientemente junto das cordas, sorria daquilo. A multidão que
observava abria caminho agora. Foi como o estrondejar de vagas na praia. Urravam e gritavam feito
loucos e conseguiam rir também. O seu Kit havia derrotado o campeão mundial de maneira admirável.
Os espectadores de televisão de todo o país tinham observado o curto embate em sessenta milhões
de salas de estar aquela noite. A imprensa mundial noticiava o acontecimento, com páginas completas
com fotografias que gravaram a ação no tablado.
Quanto Kit deixou o chuveiro no vestiário, o empresário estava esperando por ele com um contrato,
o combate vindouro do campeão tinha sido adiado até que se recobrasse do castigo infligido a ele.
Quanto a Kit, o céu era o limite — o empresário lhe assegurou. Podia fazer milhões. Kit lhe agradeceu,
mas disse que não estava interessado em carreira profissional daquela espécie. Antes que o campeão
deixasse o ginásio ainda insistiu em ver Kit. Dizia que todos esperavam aquele encontro com
sofreguidão. Kit estava enrolado numa toalha e os fotógrafos à sua volta registravam todos seus
movimentos. Microfones o cercavam. A cara do campeão estava seriamente estragada e seu maxilar
deslocado.
— Sam disse que você recusou sua oferta. — Disse olhando para o empresário nervoso a seu lado.
— Não sei porque mas fico feliz por isto: Você é demais! — disse sorrindo e estendendo a mão. Kit
sorriu e apertou sua mão. A multidão gritou concorde.
A publicidade em torno da luta preocupou Kit. Esperava que não alcançasse seu pai na Floresta
Negra, e desse ao Vigésimo a ideia de que estava esquecendo seus livros.
T2 N° 433 : A LENDA DO FANTASMA
10 - O ALUNO PRODÍGIO
Já não tendo mais Gurã em casa esperando por ele, Kit passou a se demorar na academia depois das
aulas para assistir aos ensaios dos times de jogos. Os times de atletismo e futebol faziam seus ensaios
nos campos de jogos fora. Os times de boxe e esgrima ensaiavam no campo de esportes. Assistia aos
ensaios de todos, comparando suas técnicas com aquelas que havia aprendido na Floresta Negra.
Mas Kit não fazia parte de nenhum time, porque não tinha certeza se seria bem aceito pelos seus
colegas. Uma tarde ficou encantado com uma aula de arremesso de arco que estava sendo ministrada nos
gramados da escola. Era uma turma de maiores e quem estava dando a aula era o Sr. Hobbes, professor
de literatura inglesa da classe de Kit e ao mesmo tempo professor de ginástica do colégio. O Sr. Hobbes
era um apaixonado do arco e flecha e durante as férias de verão se embrenhava nas matas do norte na
região montanhosa do leste para caçar, munido de arco e flecha.
Kit estava sentado na grama, observando. Estava surpreendido com o comprimento dos arcos e a
ponta fina de aço das flechas. Completamente diferentes das armas dos pigmeus com que estava
acostumado. Divertia-se em ver o embaraço daqueles garotões e com sua falta de habilidade. Mas
ocultava esse seu sentimento de gozação debaixo de uma expressão de impassividade. Na opinião de Kit
o Sr. Hobbes em suas demonstrações não era dos piores, embora achasse que não aguentaria muito tempo
nas selvas. Achava que era muito lento e inexato. Naquela noite Kit ficou namorando em sua mente
aqueles arcos e flechas compridos e sentiu desejo de experimentar um deles. Na tarde do dia seguinte
voltou a assistir aos ensaios. O Sr. Hobbes notara a sua presença e estava todo satisfeito com isto. Tinha
uma curiosidade incontida em torno desse rapazinho sombrio da distante selva, que durante a sua aula
raramente abria a boca e no entanto aprendia as lições com rapidez e facilidade.
Quando a aula de arco e flecha estava por terminar, o Sr. Hobbes chamou Kit, perguntando-lhe se
não gostaria de tentar uma jogada de arco e flecha. Kit hesitou. Os mais velhos, todos dos seus dezessete
e dezoito anos de idade, olharam para ele com interesse sem nenhum espírito de hostilidade. Já tinham
ouvido falar desse garoto estranho, mas como pertenciam a turmas superiores não tinham nenhum contato
com ele. A avidez e ansiedade por agarrar o arco venceu a sua timidez e ele pegou-o com evidente
contentamento. Oxalá Gurã estivesse presente para ver este lindo arco! Era duas vezes mais comprido do
que o arco que ele usara. Estava bem esticado, mas também o dos pigmeus era assim.
— Quem sabe se não é muito pesado para você — observou o Sr. Hobbes.
— Não. Está bem assim — respondeu Kit, usando de uma expressão que tinha ouvido no pátio da
escola.
Dobrou o arco diversas vezes, depois examinou a flecha, segurando-a horizontalmente estendida em
frente à sua vista para se certificar da sua exatidão, ótimo. O Sr. Hobbes observava-o atentamente. Como
arqueiro, reconheceu o senso experiente que Kit estava demonstrando.
— Se quiser pode chegar mais perto — sugeriu o Sr. Hobbes.
— Aqui está bem — respondeu Kit.
Dobrou o arco tanto quanto pôde. O Sr. Hobbes e os mais velhos olhavam atentamente, pois sabiam
que o arco era de material duro e difícil de dobrar. Mas esse magrelo do décimo sétimo grau era mais
forte do que parecia. Então Kit soltou a flecha que foi atingir o lado externo do centro do alvo. Todos
aplaudiram, mas ele voltou chateado e pediu ao Sr. Hobbes:
— Posso tentar outra? Não estou acostumado com este tipo de arco.
Admirado, o Sr. Hobbes entregou-lhe outra flecha. Mais uma vez esticou o arco e lá voou a flecha,
atingindo exatamente no olho do alvo.
Mais aplausos.
— Fantástico! — exclamou o Sr. Hobbes. — Pode repetir o feito?
Kit concordou e repetiu o arremesso mais cinco vezes, sempre acertando em cheio no alvo, deixando
as flechas amontoadas num canto.
— É a jogada mais perfeita que já vi na minha vida! — exclamou o Sr. Hobbes entusiasticamente. —
É formidável!
— Nem tanto assim — observou Kit pensativo. — Tenho usado arco desde que aprendi a andar,
quando tinha dois ou três anos.
Todos sentaram-se na grama.
— Que arremessos você tem feito? Conte-nos — pediu o Sr. Hobbes. Contou-lhes então que o maior
animal que já tinha matado em sua vida tinha sido um javali selvagem que quis avançar sobre eles, saindo
de um matagal, quando estava caçando em companhia de Gurã. Disse ainda que já havia matado animais
menores — acrescentando rapidamente que só para comer, pois na selva não se matam animais por
esporte. O Sr. Hobbes e os rapazes estavam encantados e queriam que Kit continuasse a contar mais
coisas. Mas Kit já havia falado o suficiente para aquele dia e desculpou-se, dizendo que tinha que voltar
para casa para fazer seus deveres de escola — como literatura inglesa... — observou ele maliciosamente,
sorrindo para o Sr. Hobbes.
Naquela tarde chegou, a vez de Kit. Espalhou-se a fama da agilidade e destreza de Kit e a
assistência por parte dos estudantes aumentava cada dia — entre eles, os seus colegas de aula.
Observavam sua maneira espantosa de atirar e a camaradagem que tinha com os mais velhos e o Sr.
Hobbes. Agora Kit já não ficava retraído, sozinho, no restaurante nem no pátio do colégio. Era procurado
por muitos rapazes também das outras turmas e disputavam amigavelmente quem é que teria o privilégio
de sentar-se perto desse garoto maravilhoso.
Kit havia dobrado o arco, mas na realidade ainda não tinha dobrado os seus músculos. Mas o
momento chegou também para ele, uma tarde em que estava andando pelo campo de jogos, observando os
times de atletismo e futebol fazendo seus ensaios. O Sr. Hobbes, o técnico, foi o primeiro a interessá-lo.
Convidou-o a tomar parte e juntar-se aos que disputavam corrida de velocidade de pouca distância e
também aos de longo percurso. Kit concordou e o Sr. Hobbes disse-lhe que poderia encontrar alguns
sapatos e roupa de ginástica no quarto dos armários.
Kit se desfez apenas do paletó, da camisa, das meias e sapatos, correndo descalço na pista de
corrida especial. Naquele seu primeiro dia correu como se fosse um corcel em disparada. Até os
jogadores de futebol que estavam no centro do campo pararam para observá-lo.
Naquele dia os corredores com tempo marcado estavam em forma e Kit se juntou a eles, percorrendo
oito vezes a pista oval. O técnico cronometrava o tempo da corrida. O tempo era um fator muito
importante. O treino tinha apenas começado. Mas quando Kit passou pelos outros na altura do marco na
metade da pista e continuou correndo, com seus cabelos compridos esvoaçando feito crinas de cavalo, os
outros corredores e jogadores de futebol se amontoaram em volta do técnico e do seu cronômetro.
Começaram a aplaudir e animar Kit quando passava por eles. Quando acabou de dar as voltas e andou
calmamente em direção ao grupo, sem demonstrar cansaço e respirando normalmente, todos olharam
admirados para ele.
— Este cronômetro deve estar quebrado — comentou o Sr. Hobbes. Kit examinou-o com interesse e
curiosidade.
— Quer dizer que o Sr. estava marcando meu tempo. Se soubesse disso teria corrido ainda mais
depressa.
Mais tarde o cronômetro foi testado e constatou-se que estava perfeito, sem nenhum defeito.
Com os olhos ligeiramente ardidos, o técnico comentou: — Dava até a impressão que este rapazinho
de escola estava correndo um segundo mais lento do que o recorde mundial. E conforme ele disse, era
apenas um ligeiro ensaio.
A notícia se espalhou. No dia seguinte já havia uma multidão que queria ver Kit correr. Mas
acontece que Kit estava assistindo os exercícios de arremesso de dardo. Perguntou se lhe permitiam
experimentar. Ele já conhecia este jogo. Deram-lhe o dardo e, num lance, arremessou o dardo além do
alvo. Mais longe ninguém da Academia Clark havia lançado. Em seguida ensaiou tudo o que lhe
ofereceram: disco, pulo ao alto, pulo à distância e corridas de velocidade. Era o melhor em tudo.
Obviamente, o rapaz era um atleta fenomenal.
O técnico de futebol, Sr. Hackley, procurou-o. Kit não estava familiarizado com o jogo, mas depois
de observar algumas partidas se juntou ao time, descalço. Recebendo a bola, disparou em direção à
trave, sem que ninguém conseguisse meter a mão nele. Na segunda tentativa, chutou direto para dentro da
linha, onde supôs que devia haver um espaço vazio. Mas não havia nada disto. Mas isto não o desanimou.
Movimentava-se como um tanque em disparada, passando por cima de colegas de time e adversários e
marcou mais um ponto. Voltou a passo de trote para junto do técnico, sorrindo, pois gostava deste jogo de
acrobacias.
— Aquilo estava certo? — perguntou ele.
Kit ficou agregado ao time de futebol, mas tomava um tempinho também para o boxe e atletismo,
dois esportes que conhecia e que o divertiam muito. Na escola ninguém conhecia judô ou caratê e por
isso passou a dar-lhes aulas destes dois esportes. A bravura que demonstrava nos esportes aumentou a
sua popularidade entre os colegas, o que o tornou mais contente e ajudou a amenizar a solidão que sentia.
Não tinha esquecido a Floresta Negra e todas as semanas escrevia aos seus pais. Não lhes escreveu nada
sobre sua aventura da fuga. Por que deixá-los preocupados, agora que tudo estava andando às mil
maravilhas. Contou-lhes como se divertia com os jogos e claro que a carta-resposta do pai não podia ser
outra, quando leu o seguinte: "Meu filho, não se esqueça dos livros". As cartas que recebia deixavam tia
Bessie e tio Efraim intrigados bem como seus colegas de escola, alguns dos quais eram filatelistas. Os
selos das cartas eram esquisitos. Kit não lhes disse que as cartas de casa eram escritas à luz de tocha na
caverna e que depois eram levadas por corredores que se revezavam, até o porto marítimo. Seria muito
acreditarem nisto. Kit não esqueceu nunca o aviso do pai e por isso se dedicava tanto aos seus livros
como aos seus times de esporte.
Quando os períodos preparatórios terminaram e os jogos de verdade e torneios começaram, a
Academia Clark ficou logo afamada pelo atleta espetacular que tinha e que apelidaram de "O Aluno
Prodígio". De pé no chão, corria feito um vendava! em redemoinho entre os times da escola. Visto que o
chão estava ficando mais duro e mais frio, o Sr. Hackley convenceu-o a usar sapatos, Kit preferiu tênis.
Nos torneios de atletismo que naquele inverno foram disputados dentro do colégio, Kit levantou uma
porção de recordes entre os mais velhos, vencendo-os em corridas de velocidade de curto e longo
percurso bem como em diversos outros esportes como dardo, pulo à distância, pulo de altura e disco. Em
sua divisão, em boxe e atletismo ele era imbatível.
E não é de causar muita surpresa se Kit sobressaía em todos estes esportes. Desde que começou a
dar os primeiros passos na Floresta Negra, tivera ele treinos diários de educação física ao estilo da
selva, de modo que aprendeu a desenvolver e coordenar estupendamente os movimentos do seu corpo.
Em se tratando de boxe e atletismo, estava naquilo que Kit adorava. Aqui na escola aprendeu a lutar mais
por esporte do que por questão de sobrevivência. Achava graça quando a coluna de esportes do
jornalzinho do colégio o descrevia como um indivíduo com "instinto de matar". Ele nunca mais tentou
matar, mas somente vencer, seguindo o conselho que o comandante de navio lhe havia dado há muito
tempo.
Certo dia do fim de outono aconteceu algo de terrível no zoo de Clarksville. A pantera negra
avançara no guarda, dilacerando-o e desfigurando-o e depois fugindo da jaula. Kit se lembrou daquele
animal que vira em suas primeiras visitas ao zoo, com os olhos amarelos cintilantes, sempre rondando
impaciente em sua jaula e espreitando todos os que passavam por perto. Vieram-lhe à lembrança também
as próprias palavras do guarda: "Veja aqueles olhos! Cruzes! É um animal sanguinário. Gosta de matar.
Nunca lhe vire as costas". Evidentemente, o guarda devia ter esquecido seu próprio aviso. O fato é que
lhe havia virado as costas por um instante enquanto estava limpando a jaula e o animal aproveitou o
momento para pular em cima dele. Fora levado ao hospital em estado grave e o assassino andava às
soltas pela cidade, sem ninguém saber onde estava escondido. .
A notícia suscitou um alvoroço repentino em Clarksville. As escolas estavam sem saber o que fazer:
se reter, os alunos ou mandá-los para casa. Algumas escolas acharam melhor mandá-los para casa, mas
recomendaram-lhes que não parassem em parte alguma. As crianças não precisaram ser avisadas mais do
que uma vez^ Muitas delas tinham visto a pantera em sua jaula e por isso naquele dia não se formou
nenhuma rodinha ou grupinho de bate-papo na casa de doces que havia na esquina.
A polícia e os bombeiros se espalharam pela cidade à procura do animal feroz. As ruas estavam
desertas pois os comerciantes haviam fechado suas lojas e as pessoas que tinham carro se dirigiram para
suas garages. O povo montava guarda ansiosamente nos seus pátios, com espingardas de caça, rifles e
armas de fogo que haviam tirado dos seus armários. Era pavoroso ter uma criatura destas solta pela
cidade.
Vários cães no parque perto do zoo foram as primeiras vítimas do animal. Coitados dos animais
foram atrás do enorme felídeo preto, decerto sem imaginar que era diferente dos gatos que costumavam
perseguir. Afinal de contas, parecia-se com um gato e tinha o mesmo cheiro. Dois cães foram mortos
imediatamente. Um terceiro conseguiu escapulir, totalmente malhado. Depois disto o negro animal
desapareceu por entre os arbustos fechados.
Juntamente com os guardas, a polícia deu buscas rigorosas pela área. Carregavam grossas redes e
armas de fogo, mas o guarda avisara que atirassem logo que vissem o animal. Seria muito difícil pegar
vivo este enorme felídeo.
Kit ficou sabendo do que estava se passando quando estava a caminho da escola, onde iria ter uma
aula de arco e flecha com o Sr. Hobbes. Na escola todos haviam sido dispensados e informados que
deviam ir para casa imediatamente. Kit saiu com o arco e com uma aljava cheia de flechas com ponteira
de aço, carregando tudo nos ombros. Na balbúrdia que se criara na escola, ninguém notara isto. Sozinho,
Kit começou a rondar as ruas vazias. As portas das casas estavam fechadas com toda segurança e rostos
apavorados observavam atentamente pelas janelas. De vez em quando um adulto ou criança chegava
ofegante a uma casa e entrava nela em disparada. Um policial gritou para Kit, mandando que fosse para
casa. Ele concordou com a ordem, mas continuou andando calmamente, chegando finalmente ao parque.
Kit encontrou lá os cães que a pantera havia morto, com o que não se alterou. Antes já tinha presenciado
matanças na selva. Olhou rapidamente em volta, procurando descobrir a direção que a pantera teria
tomado. Em dois lados do parque havia arbustos espessoas que a polícia estava vasculhando. Num
terceiro lado, um muro baixo com arbustos e logo além um gramado. Era uma escola para meninas.
Ajoelhou-se perto dos animais abatidos, que distavam poucos metros um do outro. Entre o pedregulho
havia pequenas manchas de sangue, que mal podiam ser notadas. Em sua fantasia imaginou as gotas de
sangue pingando dos dentes ou garras da pantera e ela correndo em disparada. Inclinando-se bem perto
das pegadas, seguiu a direção das manchas, que levaram diretamente ao muro. No muro encontrou uma
nódoa meio apagada. A pantera pulara por cima do muro, tocando-o de leve. Relanceou a vista em redor
à procura dos guardas e da polícia, mas já haviam desaparecido entre os arbustos.
Trepou no muro e examinou cuidadosamente o chão além. Era um gramado, com alguns pontos
cheios de sujeira ou poeira. Kit não teve dificuldade em seguir o rastro da pantera, pois suas garras
deixaram pequenos buracos na grama e espalharam sujeira ao fugir pelo gramado livre. O rastro levava a
uma colina em direção a uma moita de arbustos e árvores que ficavam perto de um grupo de prédios de
tijolo. Era uma escola de meninas e quando se dirigiu cautelosamente para lá ficou espantado ao perceber
que todas as portas estavam abertas e as garotinhas fugindo. Foi uma das escolas que não dispensara os
alunos, mas que tinha julgado estarem mais a salvo se ficassem na escola. Mas foram tantos os
telefonemas que recebeu dos pais das crianças que finalmente resolveram dispensar os alunos, dandolhes ordens estritas para que fossem diretamente para casa.
Kit dirigiu-se para elas correndo. Certo instinto natural resultante de seus treinos lhe dizia que a
presa devia estar perto. Percebia isto por um como que retesamento dos músculos que lhe vinha do
subconsciente, um súbito aumento do sentido de alerta, um aceleramento da respiração e da pulsação do
coração como se houvesse um bombeamento de suas adrenalinas para dentro da corrente sanguínea. Era
uma sensação conhecida, que dá tanto nos caçadores como na presa em plena selva.
Ouviam-se gritos das crianças. Algumas delas estavam correndo debaixo de um enorme pé de
carvalho. Olhavam para cima, berrando e correndo. Algumas caíam no chão. Acima delas, num galho
grande, parcialmente vedada pelas folhas marrons do outono, achava-se a pantera negra. Estava
agachada, pronta para dar o pulo.
Nas escadas, portas e janelas, professores e estudantes gritando de pavor. Meninas de saia azulescuro e blusa branca, corriam para todas as direções, com suas trancas voando. Papéis e livros caindo
pelo chão, quando em seu pânico se davam trombadas. Talvez não estejamos enganados se dissermos que
em todo este pandemônio e naquele momento só havia uma cabeça fria: a cabeça da pantera.
Num movimento tão rápido como um relâmpago, Kit arrancou uma flecha da aljava e ajustou-a no
arco. Imediatamente a pantera pulou, soltando um rosnado sedento de sangue e com suas fauces
escancaradas.
O arco comprido estava esticado ao máximo. E logo... Twang! A flecha com ponta de aço atingiu o
lado da pantera, no momento em que vinha caindo. O animal se arrebentou no chão a apenas alguns
passos de várias meninas que haviam tombado, no meio da balbúrdia. Mas ainda não estava morto.
Enfurecido, rodou no chão, procurando abocanhar a flecha com suas dentuças. Durante estes instantes
relâmpagos a pantera conseguiu agarrar a flecha com os dentes e começou a sacudi-la, para enfim jogá-la
fora. A menina que se achava mais perto do animal, caída ao chão, começou a se retirar, nervosamente,
engatinhando. A pantera se agachou, ofegante, deixando sair uma espuma vermelha de suas fauces.
Aqueles olhos amarelos corriam de todos os lados, com as meninas gritando, correndo e se arrastando
para fugir. A situação era crítica, chegara-se ao ponto culminante: um animal ferido e acuado. Não muito
longe do animal, uma garota estava tendo dificuldades em se mexer, pois tinha torcido o tornozelo e
chorava de dor ao tentar andar num só pé, com um só joelho e de quatro. Bem que poderia ter sido a
primeira vítima deste animal que entre crianças se movimenta que nem um tornado, destruindo uma
quantidade enorme em questão de instantes. E justamente neste momento a pantera fez menção de avançar
na menina que mancava. A garota soltou um grito de terror, mas de repente entre ela e a pantera surgiu
uma figura, que retesou fortemente o arco. Aqueles olhos cintilantes de fúria enfocaram a pessoa em pé,
as fauces se abriram e, com um bramido sedento de sangue, saltaram em cima dela. Twang! E o pau de
ponta de aço entrou uns trinta centímetros no corpo do animal, varou o coração para se localizar e cortar
a espinha. A pantera tombou que nem uma pedra, fulminada.
Por uns momentos que pareciam uma eternidade, toda a multidão de espectadores, moças e
professores, permaneceram em silêncio, estatelados pelo completo e total terror da cena. Foi durante
estes instantes de silêncio que Kit só ergueu a garotinha que se sacudia toda de tanto solução:
— Está tudo bem. Não chore. Ela não pode mais fazer mal — consolou-a ele.
Carregando a garotinha no colo, voltou-se para a multidão.
— A pantera está morta. — De todos os lados partiram gritos de alívio. Ainda sob o impacto do
acontecimento, algumas estudantes choravam. Mas tanto alunas como professores, todos se aglomeram
em redor de Kit, evitando com todo cuidado passar perto do animal tombado. Algumas senhoras pegaram
a criança que chorava e que estava sendo carregada por Kit e uma mulher gorda com uma coifa grande de
cabelos, óculos pincenez de prata e com um peito bem avantajado, foi abraçar efusivamente o menino.
— Oh, que garoto maravilhoso! Você é mesmo fantástico! — exclamava ela, ao mesmo tempo que
ria e soluçava. Era a diretora da escola. Outras professoras cercaram o menino, batendo-lhe nas costas,
pegando-o ou cobrindo-o de beijos. Aguentou tudo isto estoicamente, não conseguindo ele próprio falar.
Tensão e medo assaltaram-no violentamente e agora que tudo tinha terminado, seu corpo tremia.
Esperava que ninguém estivesse notando.
Os professores chamaram as alunas de volta para o prédio da escola. Não havia mais motivo para ir
para casa. A diretora convidou Kit para tomar chá junto com ele em seu escritório. Fez sinal afirmativo,
dizendo que dentro de alguns minutos estaria em seu gabinete. Dirigiu-se para a pantera morta. Algumas
crianças da escola e umas professoras observavam-no das escadarias e das janelas.
O animal jazia numa poça produzida por seu próprio sangue, com os beiços recurvados e puxados
por cima dos dentes brancos, com aqueles olhos amarelos. Kit sabia que este tipo de felídio nunca foi de
muitas amizades, mas o que teria feito com que se tornasse tão estranhamente violento, desconfiado,
evasivo, tocaiador?... Devia ter sido alguém, um caçador de peles, um comerciante, ou quem sabe se um
guarda não o teria maltratado de tal maneira quando ainda pequeno, a ponto de temer todos os seres que
fossem portadores de algum cheiro humano? Puxou a flecha, mas não queria sair. A primeira flecha, que
se havia partido ao meio, estava ainda enfiada no seu lado. Esta situação o deixou muito chateado. Ele
havia apanhado o equipamento sem permissão e então se perguntava se o Sr. Hobbes iria brigar com ele.
Sabia que os apetrechos de arqueiro eram particulares do Sr. Hobbes e não pertenciam à escola. Está
bem, tranquilizou-se assim mesmo, enquanto ia se afastando da pantera: flechas não custam tanto assim e
posso substituí-las.
Recusou o chá que a diretora lhe oferecera, mas aceitou um copo de leite. Ela queria que ele fosse
ao salão de festas do colégio onde o corpo docente e discente do colégio aguardavam por ele, para
agradecer-lhe o feito. Mas ele não conseguiria enfrentar esta demonstração e desculpou-se, dizendo que
tinha que voltar para a escola. Passou por filas de professores e alunas que o admiravam e depois se pôs
a correr escadas abaixo. Um caminhão de lixo estava no caminho e os lixeiros estavam levantando a
pantera para levá-la embora.
— Barbaridade, como é pesada. Quanto acha você que ela pesa?
— No mínimo uma tonelada e meia — observou o outro.
— E disseram que foi um garotinho que a matou com aquela flecha.
— Barbaridade.
Jogaram o corpo do animal no caminhão. Kit foi correndo a trote atrás do caminhão, até à altura dos
portões da escola. Sentia remorsos por ver o animal jogando bem em cima do montão de lixo do
caminhão. Não resta dúvida que era um fim ignóbil para uma pobre criatura.
— Sr. Hobbes, acho que o Sr. não se importa que eu tomei emprestado o seu arco. Duas flechas se
perderam, mas vou pagar o custo de duas novas.
— Duas flechas... se perderam. — Hobbes fingiu chorar.
— Eu tive que usá-las — respondeu ele. — Quanto custam?
Amanhã eu trago o dinheiro.
Hobbes passou os braços em volta de Kit, dizendo: — Meu filho, meu filho. E não conseguiu dizer
mais nenhuma palavra de tão emocionado que estava.
Quando Kit chegou em casa deparou com toda a vizinhança reunida, jornalistas, fotógrafos e
microfones na porta de entrada. Dentro de casa o telefone não parava de tocar e tia Bessie e tio Efraim
inflavam de orgulho e de empolgamento. Quando os jornalistas e locutores de rádio correram para o lado
do menino, os tios o abraçaram. Ele respondeu as perguntas brevemente, posou junto com tio Efraim e tia
Bessie e logo disparou para o seu quarto de dormir, caindo nos lençóis que se achavam no chão duro,
totalmente esgotado. Adormeceu imediatamente e dormiu um sono pesado durante muitas horas.
Acordou quando já era noite e ficou admirado por ter dormido tanto tempo. Não sabia que estava tão
cansado, pois a tensão e o medo o deixaram extenuado. A lembrança daquele medo que experimentara o
atormentava. Com exceção de uma ocasião em que matou um javali selvagem — e Gurã e outros estavam
com ele — antes nunca se vira tão perto da morte. E anteriormente nunca chegou a experimentar
realmente medo. Será que no fundo era um covarde? Será que seu pai já sentira medo? Ficou aclarando
as ideias sobre este particular e acabou escrevendo ao pai a respeito de suas preocupações.
Seu pai lhe escreveu, dizendo que ele sempre sentira medo quando tinha que enfrentar um perigo de
verdade e que o mesmo acontece com todos os homens, a não ser que estejam bêbados como um porco ou
que estejam mentindo e que o medo fazia parte do instinto de sobrevivência do homem. "O medo e a
raiva correm nas mesmas veias em seu corpo", escreveu ele, "e em toda a experiência de minha vida, os
seres inteligentes dotados de vida experimentam estes sentimentos. Medo diante da luta, raiva diante do
ataque, e muitas vezes uma combinação de ambas as coisas. Sim, meu filho Kit, todos os homens
conhecem o medo. Muitas vezes eu também já tive medo. Há pessoas que são pueris, por demais tolas
por não quererem admitir esta verdade. Não há motivo nenhum por que devamos nos envergonhar disto.
Tia Bessie nos escreveu a respeito de sua façanha de arqueiro. Sua mãe e eu sentimos orgulho por você,
embora sua mãe tenha ficado sobressaltada. Ela não podia conceber que nas margens do Mississippi
você fosse se enfiar quase debaixo de uma pantera negra, em plena Clarksville (tão pouco eu podia
imaginar uma coisa destas)". A carta trazia a assinatura do pai, com aquele seu "sinal de identidade" — o
símbolo do anel em sua mão esquerda — "mais perto do coração".
Mas aquela carta chegaria um pouco mais tarde. Naquela noite, quando acordou daquele seu sono de
cansaço extremo, o telefone continuava tocando e na porta de entrada havia ainda pessoas conversando.
Saiu de mansinho pela escadaria dos fundos e meteu-se na cozinha vazia, apanhando leite e frutas da
geladeira, pois não se aguentava mais de fome. Tia Bessie entrou, com os olhos brilhando de
contentamento.
— Você está acordado, meu filho. Como deve estar cansado. Oh, Kit, você nem pode imaginar quem
era aquela menina que você apanhou e que você salvou.
Ele sacudiu a cabeça, continuando a comer uma maçã ruidosamente.
— A mãe dela é uma grande amiga minha e ela disse que já conhecia você. Ela se chama Diana
Palmer.
Agora se lembrou: era aquela mesma menina que o encontrou juntamente com Gurã, quando estavam
tomando banho naquele pequeno buraco cheio dê água.
— Está passando bem? — perguntou ele.
— Foi só uma pequena torcedura no tornozelo — respondeu tia Bessie. — Oh, meu Kit, quanta gente
quer ver você. Estão todos esperando.
Durante semanas na cidade só se comentava o feito de Kit.
Quando retornou aos seus deveres rotineiros de aulas, esportes e deveres de casa a vida voltou ao
normal. Não resta dúvida que não era exatamente como antes. Tornara-se o herói da cidade e todo mundo
em Clarksville o conhecia. Quando passava pela rua todos o cumprimentavam e sorriam. Pessoas nas
cercas, ou aqueles que regavam os gramados e outras que cuidavam dos jardins não perdiam
oportunidade para saudar Kit e bater um ligeiro papo com ele. Era um excelente sentimento de dedicação
e carinho, como se tivesse nascido nesta cidade. No momento todas as suas ansiedades, temores e
solidão haviam desaparecido. Embora volta e meia sentisse uma dor aguda de saudades dos seus pais,
sentia-se feliz e contente em Clarksville.
Mas, eis que certo dia lhe chega uma carta da Floresta Negra. Muitas já tinham vindo de lá. A última
chegara fazia muitas semanas. Por isso que cada carta que recebia abria-a com avidez. Imediatamente
amassou-a e deixou-a cair ao chão e retirou-se para o seu quarto, onde permaneceu durante dias trancado,
recusando-se até a comer. Em sua carta o pai dizia simplesmente que sua mãe havia falecido
repentinamente, vítima de malária tropical. Morrera enquanto dormia. Não sentiu nenhuma dor. A carta
dizia que devia permanecer em Clarksville, visto que no momento não havia razão nenhuma para ele
regressar: Metido atrás da porta trancada do seu quarto, Kit chorava, já não mais aquele prodígio de
aluno, mas uma criança solitária e infeliz. Que rida mãezinha. Semelhante a um animalzinho que
engatinhava à procura de um esconderijo quando ferido, Kit tinha que permanecer sozinho, suportando a
sua dor. Quando finalmente saiu de seu quarto, magro e com os olhos vermelhos de tanto choro, aceitou
as condolências do tio e da tia em silêncio e nunca mais falou sobre o assunto da morte da mãe.
Já não tendo mais Gurã em casa esperando por ele, Kit passou a se demorar na academia depois das
aulas para assistir aos ensaios dos times de jogos. Os times de atletismo e futebol faziam seus ensaios
nos campos de jogos fora. Os times de boxe e esgrima ensaiavam no campo de esportes. Assistia aos
ensaios de todos, comparando suas técnicas com aquelas que havia aprendido na Floresta Negra.
Mas Kit não fazia parte de nenhum time, porque não tinha certeza se seria bem aceito pelos seus
colegas. Uma tarde ficou encantado com uma aula de arremesso de arco que estava sendo ministrada nos
gramados da escola. Era uma turma de maiores e quem estava dando a aula era o Sr. Hobbes, professor
de literatura inglesa da classe de Kit e ao mesmo tempo professor de ginástica do colégio. O Sr. Hobbes
era um apaixonado do arco e flecha e durante as férias de verão se embrenhava nas matas do norte na
região montanhosa do leste para caçar, munido de arco e flecha.
Kit estava sentado na grama, observando. Estava surpreendido com o comprimento dos arcos e a
ponta fina de aço das flechas. Completamente diferentes das armas dos pigmeus com que estava
acostumado. Divertia-se em ver o embaraço daqueles garotões e com sua falta de habilidade. Mas
ocultava esse seu sentimento de gozação debaixo de uma expressão de impassividade. Na opinião de Kit
o Sr. Hobbes em suas demonstrações não era dos piores, embora achasse que não aguentaria muito tempo
nas selvas. Achava que era muito lento e inexato. Naquela noite Kit ficou namorando em sua mente
aqueles arcos e flechas compridos e sentiu desejo de experimentar um deles. Na tarde do dia seguinte
voltou a assistir aos ensaios. O Sr. Hobbes notara a sua presença e estava todo satisfeito com isto. Tinha
uma curiosidade incontida em torno desse rapazinho sombrio da distante selva, que durante a sua aula
raramente abria a boca e no entanto aprendia as lições com rapidez e facilidade.
Quando a aula de arco e flecha estava por terminar, o Sr. Hobbes chamou Kit, perguntando-lhe se
não gostaria de tentar uma jogada de arco e flecha. Kit hesitou. Os mais velhos, todos dos seus dezessete
e dezoito anos de idade, olharam para ele com interesse sem nenhum espírito de hostilidade. Já tinham
ouvido falar desse garoto estranho, mas como pertenciam a turmas superiores não tinham nenhum contato
com ele. A avidez e ansiedade por agarrar o arco venceu a sua timidez e ele pegou-o com evidente
contentamento. Oxalá Gurã estivesse presente para ver este lindo arco! Era duas vezes mais comprido do
que o arco que ele usara. Estava bem esticado, mas também o dos pigmeus era assim.
— Quem sabe se não é muito pesado para você — observou o Sr. Hobbes.
— Não. Está bem assim — respondeu Kit, usando de uma expressão que tinha ouvido no pátio da
escola.
Dobrou o arco diversas vezes, depois examinou a flecha, segurando-a horizontalmente estendida em
frente à sua vista para se certificar da sua exatidão, ótimo. O Sr. Hobbes observava-o atentamente. Como
arqueiro, reconheceu o senso experiente que Kit estava demonstrando.
— Se quiser pode chegar mais perto — sugeriu o Sr. Hobbes.
— Aqui está bem — respondeu Kit.
Dobrou o arco tanto quanto pôde. O Sr. Hobbes e os mais velhos olhavam atentamente, pois sabiam
que o arco era de material duro e difícil de dobrar. Mas esse magrelo do décimo sétimo grau era mais
forte do que parecia. Então Kit soltou a flecha que foi atingir o lado externo do centro do alvo. Todos
aplaudiram, mas ele voltou chateado e pediu ao Sr. Hobbes:
— Posso tentar outra? Não estou acostumado com este tipo de arco.
Admirado, o Sr. Hobbes entregou-lhe outra flecha. Mais uma vez esticou o arco e lá voou a flecha,
atingindo exatamente no olho do alvo.
Mais aplausos.
— Fantástico! — exclamou o Sr. Hobbes. — Pode repetir o feito?
Kit concordou e repetiu o arremesso mais cinco vezes, sempre acertando em cheio no alvo, deixando
as flechas amontoadas num canto.
— É a jogada mais perfeita que já vi na minha vida! — exclamou o Sr. Hobbes entusiasticamente. —
É formidável!
— Nem tanto assim — observou Kit pensativo. — Tenho usado arco desde que aprendi a andar,
quando tinha dois ou três anos.
Todos sentaram-se na grama.
— Que arremessos você tem feito? Conte-nos — pediu o Sr. Hobbes. Contou-lhes então que o maior
animal que já tinha matado em sua vida tinha sido um javali selvagem que quis avançar sobre eles, saindo
de um matagal, quando estava caçando em companhia de Gurã. Disse ainda que já havia matado animais
menores — acrescentando rapidamente que só para comer, pois na selva não se matam animais por
esporte. O Sr. Hobbes e os rapazes estavam encantados e queriam que Kit continuasse a contar mais
coisas. Mas Kit já havia falado o suficiente para aquele dia e desculpou-se, dizendo que tinha que voltar
para casa para fazer seus deveres de escola — como literatura inglesa... — observou ele maliciosamente,
sorrindo para o Sr. Hobbes.
Naquela tarde chegou, a vez de Kit. Espalhou-se a fama da agilidade e destreza de Kit e a
assistência por parte dos estudantes aumentava cada dia — entre eles, os seus colegas de aula.
Observavam sua maneira espantosa de atirar e a camaradagem que tinha com os mais velhos e o Sr.
Hobbes. Agora Kit já não ficava retraído, sozinho, no restaurante nem no pátio do colégio. Era procurado
por muitos rapazes também das outras turmas e disputavam amigavelmente quem é que teria o privilégio
de sentar-se perto desse garoto maravilhoso.
Kit havia dobrado o arco, mas na realidade ainda não tinha dobrado os seus músculos. Mas o
momento chegou também para ele, uma tarde em que estava andando pelo campo de jogos, observando os
times de atletismo e futebol fazendo seus ensaios. O Sr. Hobbes, o técnico, foi o primeiro a interessá-lo.
Convidou-o a tomar parte e juntar-se aos que disputavam corrida de velocidade de pouca distância e
também aos de longo percurso. Kit concordou e o Sr. Hobbes disse-lhe que poderia encontrar alguns
sapatos e roupa de ginástica no quarto dos armários.
Kit se desfez apenas do paletó, da camisa, das meias e sapatos, correndo descalço na pista de
corrida especial. Naquele seu primeiro dia correu como se fosse um corcel em disparada. Até os
jogadores de futebol que estavam no centro do campo pararam para observá-lo.
Naquele dia os corredores com tempo marcado estavam em forma e Kit se juntou a eles, percorrendo
oito vezes a pista oval. O técnico cronometrava o tempo da corrida. O tempo era um fator muito
importante. O treino tinha apenas começado. Mas quando Kit passou pelos outros na altura do marco na
metade da pista e continuou correndo, com seus cabelos compridos esvoaçando feito crinas de cavalo, os
outros corredores e jogadores de futebol se amontoaram em volta do técnico e do seu cronômetro.
Começaram a aplaudir e animar Kit quando passava por eles. Quando acabou de dar as voltas e andou
calmamente em direção ao grupo, sem demonstrar cansaço e respirando normalmente, todos olharam
admirados para ele.
— Este cronômetro deve estar quebrado — comentou o Sr. Hobbes. Kit examinou-o com interesse e
curiosidade.
— Quer dizer que o Sr. estava marcando meu tempo. Se soubesse disso teria corrido ainda mais
depressa.
Mais tarde o cronômetro foi testado e constatou-se que estava perfeito, sem nenhum defeito.
Com os olhos ligeiramente ardidos, o técnico comentou: — Dava até a impressão que este rapazinho
de escola estava correndo um segundo mais lento do que o recorde mundial. E conforme ele disse, era
apenas um ligeiro ensaio.
A notícia se espalhou. No dia seguinte já havia uma multidão que queria ver Kit correr. Mas
acontece que Kit estava assistindo os exercícios de arremesso de dardo. Perguntou se lhe permitiam
experimentar. Ele já conhecia este jogo. Deram-lhe o dardo e, num lance, arremessou o dardo além do
alvo. Mais longe ninguém da Academia Clark havia lançado. Em seguida ensaiou tudo o que lhe
ofereceram: disco, pulo ao alto, pulo à distância e corridas de velocidade. Era o melhor em tudo.
Obviamente, o rapaz era um atleta fenomenal.
O técnico de futebol, Sr. Hackley, procurou-o. Kit não estava familiarizado com o jogo, mas depois
de observar algumas partidas se juntou ao time, descalço. Recebendo a bola, disparou em direção à
trave, sem que ninguém conseguisse meter a mão nele. Na segunda tentativa, chutou direto para dentro da
linha, onde supôs que devia haver um espaço vazio. Mas não havia nada disto. Mas isto não o desanimou.
Movimentava-se como um tanque em disparada, passando por cima de colegas de time e adversários e
marcou mais um ponto. Voltou a passo de trote para junto do técnico, sorrindo, pois gostava deste jogo de
acrobacias.
— Aquilo estava certo? — perguntou ele.
Kit ficou agregado ao time de futebol, mas tomava um tempinho também para o boxe e atletismo,
dois esportes que conhecia e que o divertiam muito. Na escola ninguém conhecia judô ou caratê e por
isso passou a dar-lhes aulas destes dois esportes. A bravura que demonstrava nos esportes aumentou a
sua popularidade entre os colegas, o que o tornou mais contente e ajudou a amenizar a solidão que sentia.
Não tinha esquecido a Floresta Negra e todas as semanas escrevia aos seus pais. Não lhes escreveu nada
sobre sua aventura da fuga. Por que deixá-los preocupados, agora que tudo estava andando às mil
maravilhas. Contou-lhes como se divertia com os jogos e claro que a carta-resposta do pai não podia ser
outra, quando leu o seguinte: "Meu filho, não se esqueça dos livros". As cartas que recebia deixavam tia
Bessie e tio Efraim intrigados bem como seus colegas de escola, alguns dos quais eram filatelistas. Os
selos das cartas eram esquisitos. Kit não lhes disse que as cartas de casa eram escritas à luz de tocha na
caverna e que depois eram levadas por corredores que se revezavam, até o porto marítimo. Seria muito
acreditarem nisto. Kit não esqueceu nunca o aviso do pai e por isso se dedicava tanto aos seus livros
como aos seus times de esporte.
Quando os períodos preparatórios terminaram e os jogos de verdade e torneios começaram, a
Academia Clark ficou logo afamada pelo atleta espetacular que tinha e que apelidaram de "O Aluno
Prodígio". De pé no chão, corria feito um vendava! em redemoinho entre os times da escola. Visto que o
chão estava ficando mais duro e mais frio, o Sr. Hackley convenceu-o a usar sapatos, Kit preferiu tênis.
Nos torneios de atletismo que naquele inverno foram disputados dentro do colégio, Kit levantou uma
porção de recordes entre os mais velhos, vencendo-os em corridas de velocidade de curto e longo
percurso bem como em diversos outros esportes como dardo, pulo à distância, pulo de altura e disco. Em
sua divisão, em boxe e atletismo ele era imbatível.
E não é de causar muita surpresa se Kit sobressaía em todos estes esportes. Desde que começou a
dar os primeiros passos na Floresta Negra, tivera ele treinos diários de educação física ao estilo da
selva, de modo que aprendeu a desenvolver e coordenar estupendamente os movimentos do seu corpo.
Em se tratando de boxe e atletismo, estava naquilo que Kit adorava. Aqui na escola aprendeu a lutar mais
por esporte do que por questão de sobrevivência. Achava graça quando a coluna de esportes do
jornalzinho do colégio o descrevia como um indivíduo com "instinto de matar". Ele nunca mais tentou
matar, mas somente vencer, seguindo o conselho que o comandante de navio lhe havia dado há muito
tempo.
Certo dia do fim de outono aconteceu algo de terrível no zoo de Clarksville. A pantera negra
avançara no guarda, dilacerando-o e desfigurando-o e depois fugindo da jaula. Kit se lembrou daquele
animal que vira em suas primeiras visitas ao zoo, com os olhos amarelos cintilantes, sempre rondando
impaciente em sua jaula e espreitando todos os que passavam por perto. Vieram-lhe à lembrança também
as próprias palavras do guarda: "Veja aqueles olhos! Cruzes! É um animal sanguinário. Gosta de matar.
Nunca lhe vire as costas". Evidentemente, o guarda devia ter esquecido seu próprio aviso. O fato é que
lhe havia virado as costas por um instante enquanto estava limpando a jaula e o animal aproveitou o
momento para pular em cima dele. Fora levado ao hospital em estado grave e o assassino andava às
soltas pela cidade, sem ninguém saber onde estava escondido. .
A notícia suscitou um alvoroço repentino em Clarksville. As escolas estavam sem saber o que fazer:
se reter, os alunos ou mandá-los para casa. Algumas escolas acharam melhor mandá-los para casa, mas
recomendaram-lhes que não parassem em parte alguma. As crianças não precisaram ser avisadas mais do
que uma vez^ Muitas delas tinham visto a pantera em sua jaula e por isso naquele dia não se formou
nenhuma rodinha ou grupinho de bate-papo na casa de doces que havia na esquina.
A polícia e os bombeiros se espalharam pela cidade à procura do animal feroz. As ruas estavam
desertas pois os comerciantes haviam fechado suas lojas e as pessoas que tinham carro se dirigiram para
suas garages. O povo montava guarda ansiosamente nos seus pátios, com espingardas de caça, rifles e
armas de fogo que haviam tirado dos seus armários. Era pavoroso ter uma criatura destas solta pela
cidade.
Vários cães no parque perto do zoo foram as primeiras vítimas do animal. Coitados dos animais
foram atrás do enorme felídeo preto, decerto sem imaginar que era diferente dos gatos que costumavam
perseguir. Afinal de contas, parecia-se com um gato e tinha o mesmo cheiro. Dois cães foram mortos
imediatamente. Um terceiro conseguiu escapulir, totalmente malhado. Depois disto o negro animal
desapareceu por entre os arbustos fechados.
Juntamente com os guardas, a polícia deu buscas rigorosas pela área. Carregavam grossas redes e
armas de fogo, mas o guarda avisara que atirassem logo que vissem o animal. Seria muito difícil pegar
vivo este enorme felídeo.
Kit ficou sabendo do que estava se passando quando estava a caminho da escola, onde iria ter uma
aula de arco e flecha com o Sr. Hobbes. Na escola todos haviam sido dispensados e informados que
deviam ir para casa imediatamente. Kit saiu com o arco e com uma aljava cheia de flechas com ponteira
de aço, carregando tudo nos ombros. Na balbúrdia que se criara na escola, ninguém notara isto. Sozinho,
Kit começou a rondar as ruas vazias. As portas das casas estavam fechadas com toda segurança e rostos
apavorados observavam atentamente pelas janelas. De vez em quando um adulto ou criança chegava
ofegante a uma casa e entrava nela em disparada. Um policial gritou para Kit, mandando que fosse para
casa. Ele concordou com a ordem, mas continuou andando calmamente, chegando finalmente ao parque.
Kit encontrou lá os cães que a pantera havia morto, com o que não se alterou. Antes já tinha presenciado
matanças na selva. Olhou rapidamente em volta, procurando descobrir a direção que a pantera teria
tomado. Em dois lados do parque havia arbustos espessoas que a polícia estava vasculhando. Num
terceiro lado, um muro baixo com arbustos e logo além um gramado. Era uma escola para meninas.
Ajoelhou-se perto dos animais abatidos, que distavam poucos metros um do outro. Entre o pedregulho
havia pequenas manchas de sangue, que mal podiam ser notadas. Em sua fantasia imaginou as gotas de
sangue pingando dos dentes ou garras da pantera e ela correndo em disparada. Inclinando-se bem perto
das pegadas, seguiu a direção das manchas, que levaram diretamente ao muro. No muro encontrou uma
nódoa meio apagada. A pantera pulara por cima do muro, tocando-o de leve. Relanceou a vista em redor
à procura dos guardas e da polícia, mas já haviam desaparecido entre os arbustos.
Trepou no muro e examinou cuidadosamente o chão além. Era um gramado, com alguns pontos
cheios de sujeira ou poeira. Kit não teve dificuldade em seguir o rastro da pantera, pois suas garras
deixaram pequenos buracos na grama e espalharam sujeira ao fugir pelo gramado livre. O rastro levava a
uma colina em direção a uma moita de arbustos e árvores que ficavam perto de um grupo de prédios de
tijolo. Era uma escola de meninas e quando se dirigiu cautelosamente para lá ficou espantado ao perceber
que todas as portas estavam abertas e as garotinhas fugindo. Foi uma das escolas que não dispensara os
alunos, mas que tinha julgado estarem mais a salvo se ficassem na escola. Mas foram tantos os
telefonemas que recebeu dos pais das crianças que finalmente resolveram dispensar os alunos, dandolhes ordens estritas para que fossem diretamente para casa.
Kit dirigiu-se para elas correndo. Certo instinto natural resultante de seus treinos lhe dizia que a
presa devia estar perto. Percebia isto por um como que retesamento dos músculos que lhe vinha do
subconsciente, um súbito aumento do sentido de alerta, um aceleramento da respiração e da pulsação do
coração como se houvesse um bombeamento de suas adrenalinas para dentro da corrente sanguínea. Era
uma sensação conhecida, que dá tanto nos caçadores como na presa em plena selva.
Ouviam-se gritos das crianças. Algumas delas estavam correndo debaixo de um enorme pé de
carvalho. Olhavam para cima, berrando e correndo. Algumas caíam no chão. Acima delas, num galho
grande, parcialmente vedada pelas folhas marrons do outono, achava-se a pantera negra. Estava
agachada, pronta para dar o pulo.
Nas escadas, portas e janelas, professores e estudantes gritando de pavor. Meninas de saia azulescuro e blusa branca, corriam para todas as direções, com suas trancas voando. Papéis e livros caindo
pelo chão, quando em seu pânico se davam trombadas. Talvez não estejamos enganados se dissermos que
em todo este pandemônio e naquele momento só havia uma cabeça fria: a cabeça da pantera.
Num movimento tão rápido como um relâmpago, Kit arrancou uma flecha da aljava e ajustou-a no
arco. Imediatamente a pantera pulou, soltando um rosnado sedento de sangue e com suas fauces
escancaradas.
O arco comprido estava esticado ao máximo. E logo... Twang! A flecha com ponta de aço atingiu o
lado da pantera, no momento em que vinha caindo. O animal se arrebentou no chão a apenas alguns
passos de várias meninas que haviam tombado, no meio da balbúrdia. Mas ainda não estava morto.
Enfurecido, rodou no chão, procurando abocanhar a flecha com suas dentuças. Durante estes instantes
relâmpagos a pantera conseguiu agarrar a flecha com os dentes e começou a sacudi-la, para enfim jogá-la
fora. A menina que se achava mais perto do animal, caída ao chão, começou a se retirar, nervosamente,
engatinhando. A pantera se agachou, ofegante, deixando sair uma espuma vermelha de suas fauces.
Aqueles olhos amarelos corriam de todos os lados, com as meninas gritando, correndo e se arrastando
para fugir. A situação era crítica, chegara-se ao ponto culminante: um animal ferido e acuado. Não muito
longe do animal, uma garota estava tendo dificuldades em se mexer, pois tinha torcido o tornozelo e
chorava de dor ao tentar andar num só pé, com um só joelho e de quatro. Bem que poderia ter sido a
primeira vítima deste animal que entre crianças se movimenta que nem um tornado, destruindo uma
quantidade enorme em questão de instantes. E justamente neste momento a pantera fez menção de avançar
na menina que mancava. A garota soltou um grito de terror, mas de repente entre ela e a pantera surgiu
uma figura, que retesou fortemente o arco. Aqueles olhos cintilantes de fúria enfocaram a pessoa em pé,
as fauces se abriram e, com um bramido sedento de sangue, saltaram em cima dela. Twang! E o pau de
ponta de aço entrou uns trinta centímetros no corpo do animal, varou o coração para se localizar e cortar
a espinha. A pantera tombou que nem uma pedra, fulminada.
Por uns momentos que pareciam uma eternidade, toda a multidão de espectadores, moças e
professores, permaneceram em silêncio, estatelados pelo completo e total terror da cena. Foi durante
estes instantes de silêncio que Kit só ergueu a garotinha que se sacudia toda de tanto solução:
— Está tudo bem. Não chore. Ela não pode mais fazer mal — consolou-a ele.
Carregando a garotinha no colo, voltou-se para a multidão.
— A pantera está morta. — De todos os lados partiram gritos de alívio. Ainda sob o impacto do
acontecimento, algumas estudantes choravam. Mas tanto alunas como professores, todos se aglomeram
em redor de Kit, evitando com todo cuidado passar perto do animal tombado. Algumas senhoras pegaram
a criança que chorava e que estava sendo carregada por Kit e uma mulher gorda com uma coifa grande de
cabelos, óculos pincenez de prata e com um peito bem avantajado, foi abraçar efusivamente o menino.
— Oh, que garoto maravilhoso! Você é mesmo fantástico! — exclamava ela, ao mesmo tempo que
ria e soluçava. Era a diretora da escola. Outras professoras cercaram o menino, batendo-lhe nas costas,
pegando-o ou cobrindo-o de beijos. Aguentou tudo isto estoicamente, não conseguindo ele próprio falar.
Tensão e medo assaltaram-no violentamente e agora que tudo tinha terminado, seu corpo tremia.
Esperava que ninguém estivesse notando.
Os professores chamaram as alunas de volta para o prédio da escola. Não havia mais motivo para ir
para casa. A diretora convidou Kit para tomar chá junto com ele em seu escritório. Fez sinal afirmativo,
dizendo que dentro de alguns minutos estaria em seu gabinete. Dirigiu-se para a pantera morta. Algumas
crianças da escola e umas professoras observavam-no das escadarias e das janelas.
O animal jazia numa poça produzida por seu próprio sangue, com os beiços recurvados e puxados
por cima dos dentes brancos, com aqueles olhos amarelos. Kit sabia que este tipo de felídio nunca foi de
muitas amizades, mas o que teria feito com que se tornasse tão estranhamente violento, desconfiado,
evasivo, tocaiador?... Devia ter sido alguém, um caçador de peles, um comerciante, ou quem sabe se um
guarda não o teria maltratado de tal maneira quando ainda pequeno, a ponto de temer todos os seres que
fossem portadores de algum cheiro humano? Puxou a flecha, mas não queria sair. A primeira flecha, que
se havia partido ao meio, estava ainda enfiada no seu lado. Esta situação o deixou muito chateado. Ele
havia apanhado o equipamento sem permissão e então se perguntava se o Sr. Hobbes iria brigar com ele.
Sabia que os apetrechos de arqueiro eram particulares do Sr. Hobbes e não pertenciam à escola. Está
bem, tranquilizou-se assim mesmo, enquanto ia se afastando da pantera: flechas não custam tanto assim e
posso substituí-las.
Recusou o chá que a diretora lhe oferecera, mas aceitou um copo de leite. Ela queria que ele fosse
ao salão de festas do colégio onde o corpo docente e discente do colégio aguardavam por ele, para
agradecer-lhe o feito. Mas ele não conseguiria enfrentar esta demonstração e desculpou-se, dizendo que
tinha que voltar para a escola. Passou por filas de professores e alunas que o admiravam e depois se pôs
a correr escadas abaixo. Um caminhão de lixo estava no caminho e os lixeiros estavam levantando a
pantera para levá-la embora.
— Barbaridade, como é pesada. Quanto acha você que ela pesa?
— No mínimo uma tonelada e meia — observou o outro.
— E disseram que foi um garotinho que a matou com aquela flecha.
— Barbaridade.
Jogaram o corpo do animal no caminhão. Kit foi correndo a trote atrás do caminhão, até à altura dos
portões da escola. Sentia remorsos por ver o animal jogando bem em cima do montão de lixo do
caminhão. Não resta dúvida que era um fim ignóbil para uma pobre criatura.
— Sr. Hobbes, acho que o Sr. não se importa que eu tomei emprestado o seu arco. Duas flechas se
perderam, mas vou pagar o custo de duas novas.
— Duas flechas... se perderam. — Hobbes fingiu chorar.
— Eu tive que usá-las — respondeu ele. — Quanto custam?
Amanhã eu trago o dinheiro.
Hobbes passou os braços em volta de Kit, dizendo: — Meu filho, meu filho. E não conseguiu dizer
mais nenhuma palavra de tão emocionado que estava.
Quando Kit chegou em casa deparou com toda a vizinhança reunida, jornalistas, fotógrafos e
microfones na porta de entrada. Dentro de casa o telefone não parava de tocar e tia Bessie e tio Efraim
inflavam de orgulho e de empolgamento. Quando os jornalistas e locutores de rádio correram para o lado
do menino, os tios o abraçaram. Ele respondeu as perguntas brevemente, posou junto com tio Efraim e tia
Bessie e logo disparou para o seu quarto de dormir, caindo nos lençóis que se achavam no chão duro,
totalmente esgotado. Adormeceu imediatamente e dormiu um sono pesado durante muitas horas.
Acordou quando já era noite e ficou admirado por ter dormido tanto tempo. Não sabia que estava tão
cansado, pois a tensão e o medo o deixaram extenuado. A lembrança daquele medo que experimentara o
atormentava. Com exceção de uma ocasião em que matou um javali selvagem — e Gurã e outros estavam
com ele — antes nunca se vira tão perto da morte. E anteriormente nunca chegou a experimentar
realmente medo. Será que no fundo era um covarde? Será que seu pai já sentira medo? Ficou aclarando
as ideias sobre este particular e acabou escrevendo ao pai a respeito de suas preocupações.
Seu pai lhe escreveu, dizendo que ele sempre sentira medo quando tinha que enfrentar um perigo de
verdade e que o mesmo acontece com todos os homens, a não ser que estejam bêbados como um porco ou
que estejam mentindo e que o medo fazia parte do instinto de sobrevivência do homem. "O medo e a
raiva correm nas mesmas veias em seu corpo", escreveu ele, "e em toda a experiência de minha vida, os
seres inteligentes dotados de vida experimentam estes sentimentos. Medo diante da luta, raiva diante do
ataque, e muitas vezes uma combinação de ambas as coisas. Sim, meu filho Kit, todos os homens
conhecem o medo. Muitas vezes eu também já tive medo. Há pessoas que são pueris, por demais tolas
por não quererem admitir esta verdade. Não há motivo nenhum por que devamos nos envergonhar disto.
Tia Bessie nos escreveu a respeito de sua façanha de arqueiro. Sua mãe e eu sentimos orgulho por você,
embora sua mãe tenha ficado sobressaltada. Ela não podia conceber que nas margens do Mississippi
você fosse se enfiar quase debaixo de uma pantera negra, em plena Clarksville (tão pouco eu podia
imaginar uma coisa destas)". A carta trazia a assinatura do pai, com aquele seu "sinal de identidade" — o
símbolo do anel em sua mão esquerda — "mais perto do coração".
Mas aquela carta chegaria um pouco mais tarde. Naquela noite, quando acordou daquele seu sono de
cansaço extremo, o telefone continuava tocando e na porta de entrada havia ainda pessoas conversando.
Saiu de mansinho pela escadaria dos fundos e meteu-se na cozinha vazia, apanhando leite e frutas da
geladeira, pois não se aguentava mais de fome. Tia Bessie entrou, com os olhos brilhando de
contentamento.
— Você está acordado, meu filho. Como deve estar cansado. Oh, Kit, você nem pode imaginar quem
era aquela menina que você apanhou e que você salvou.
Ele sacudiu a cabeça, continuando a comer uma maçã ruidosamente.
— A mãe dela é uma grande amiga minha e ela disse que já conhecia você. Ela se chama Diana
Palmer.
Agora se lembrou: era aquela mesma menina que o encontrou juntamente com Gurã, quando estavam
tomando banho naquele pequeno buraco cheio dê água.
— Está passando bem? — perguntou ele.
— Foi só uma pequena torcedura no tornozelo — respondeu tia Bessie. — Oh, meu Kit, quanta gente
quer ver você. Estão todos esperando.
Durante semanas na cidade só se comentava o feito de Kit.
Quando retornou aos seus deveres rotineiros de aulas, esportes e deveres de casa a vida voltou ao
normal. Não resta dúvida que não era exatamente como antes. Tornara-se o herói da cidade e todo mundo
em Clarksville o conhecia. Quando passava pela rua todos o cumprimentavam e sorriam. Pessoas nas
cercas, ou aqueles que regavam os gramados e outras que cuidavam dos jardins não perdiam
oportunidade para saudar Kit e bater um ligeiro papo com ele. Era um excelente sentimento de dedicação
e carinho, como se tivesse nascido nesta cidade. No momento todas as suas ansiedades, temores e
solidão haviam desaparecido. Embora volta e meia sentisse uma dor aguda de saudades dos seus pais,
sentia-se feliz e contente em Clarksville.
Mas, eis que certo dia lhe chega uma carta da Floresta Negra. Muitas já tinham vindo de lá. A última
chegara fazia muitas semanas. Por isso que cada carta que recebia abria-a com avidez. Imediatamente
amassou-a e deixou-a cair ao chão e retirou-se para o seu quarto, onde permaneceu durante dias trancado,
recusando-se até a comer. Em sua carta o pai dizia simplesmente que sua mãe havia falecido
repentinamente, vítima de malária tropical. Morrera enquanto dormia. Não sentiu nenhuma dor. A carta
dizia que devia permanecer em Clarksville, visto que no momento não havia razão nenhuma para ele
regressar: Metido atrás da porta trancada do seu quarto, Kit chorava, já não mais aquele prodígio de
aluno, mas uma criança solitária e infeliz. Que rida mãezinha. Semelhante a um animalzinho que
engatinhava à procura de um esconderijo quando ferido, Kit tinha que permanecer sozinho, suportando a
sua dor. Quando finalmente saiu de seu quarto, magro e com os olhos vermelhos de tanto choro, aceitou
as condolências do tio e da tia em silêncio e nunca mais falou sobre o assunto da morte da mãe.
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