O Tigre
Certo dia correu a notícia de que um tigre enorme e ferido estava espalhando o terror nos campos
dos Wambesis. Os Wambesis não possuíam armas para enfrentar o saqueador e por isso pediram ao
Fantasma que os ajudasse. A população sempre ficava surpresa ao ouvir falar que nessa selva viviam
tigres. Todos sabiam perfeitamente que leões e tigres não coabitam nas mesmas áreas e no entanto esta
selva de Bengala era habitada por ambos esses animais, que se evitavam sempre que possível. Durante
períodos imensamente longos os leões foram senhores desta selva, dominando com absoluta supremacia
leopardos, panteras e todos os demais animais. Quando os tigres apareceram os leões procuraram fazer
valer a sua autoridade e destruí-los, mas logo mudaram de tática. Notaram que um leão macho
plenamente desenvolvido dificilmente poderia levar vantagem sobre um tigre macho. As batalhas que se
travavam eram sangrentas, com o tigre levando a melhor. Diante disto os grandes felídeos acharam por
bem dividir os campos e assim passaram a entender-se. Mas, como se explica que os tigres chegaram a
Bengala? A resposta — conforme seu pai lhe explicou certo dia — é curiosa. Um navio carregado de
animais que se destinavam aos zoos da Europa foi destroçado por uma dessas tormentas que acossam a
costa rochosa de Bengala e foi a pique. Enquanto o navio se partia com a arrebentação violenta das
ondas, a maioria dos animais escapou para a terra. Antes deste acontecimento muitos deles nunca haviam
sido vistos em Bengala. Cangurus, elefantes indianos (com orelhas pequenas), ursos, lobos montanheses e
muitos outros, inclusive uma quantidade de tigres. Alguns foram dizimados por outros animais e
caçadores e outros sobreviveram e proliferaram. Entre estes últimos estavam os tigres. No espaço de
algumas curtas gerações tornaram-se nativos de Bengala.
Mas para os habitantes da selva o tigre era ainda um felídeo estranho e pavoroso. As notícias de que
um animal antropófago estava à solta gelava o sangue nas velas desta população. Fantasma!
Kit pediu para acompanhar o pai. Apesar das insistentes objeções de sua mãe, Kit seguiu o pai, o
qual prometera que em circunstância alguma permitiria que o filho se aproximasse do local da luta. Gurã
acompanhou-os também como medida de precaução, para qualquer eventualidade. Kit montava
garbosamente seu Peludo, o poneizinho, bem perto do seu pai, que ia no poderoso Trovão de cor preta.
Gurã seguia-os logo atrás, numa pequena égua de nome Natala, nome este em homenagem a uma rainha de
tempos idos. Quando iam se aproximando da aldeia dos Wambesis notaram vestígios e rastros claros do
tigre: alguns bois abatidos brutalmente e totalmente devorados. — Este tigre deve estar furioso —
comentou o pai. — Ao contrário de leopardos que matam pelo simples prazer de ver sangue, o tigre mata
para comer. Este é dos furiosos. — Os meninos tremeram de medo. Um tigre enfurecido!
Os Wambesis estavam esperando, postados atrás de entradas fechadas do local em que habitavam.
Não nos esqueçamos de que os Wambesis, velhos amigos do Fantasma, eram tidos como uns dos
guerreiros mais valentes da selva. De vez em quando apanhavam grandes felídeos com arapucas
especiais eu até mesmo com lanças atiradas em grande quantidade simultaneamente. Mas este tigre
enorme e furioso estava fora da conta. Levaram-no para o local onde ultimamente haviam visto o
monstro, acuando-o por entre plantações de cevada. O Fantasma levara consigo um pesado rifle que
podia acabar com a vida de um elefante, se acertado com precisão. Tinha também uma lança pesada e
duas pistolas dependuradas na cintura. Deu instruções a Kit e a Gurã para que permanecessem na aldeia.
Os Wambesis olhavam para Kit com curiosidade sem se preocuparem em saber quem ele era, pois no
momento estavam por demais alvoroçados. Kit estava desconsolado. Ele queria ir junto, mas seu pai
disse que não, usando de severidade e fazendo com que a discussão acabasse ali. Em seguida toda a
aldeia prorrompeu num brado alvoroçado.
Horrorizados, todos os que estavam atrás das entradas olharam para dentro do cercado. Uma visão
aterradora! Pulando por cima do paredão, o tigre penetrara na aldeia e estava tocaiando um grupo de
mulheres e crianças apavoradas que corriam em direção ao portão. Formou-se repentinamente um
pandemônio. Era gente se esparramando por todos os lados, espalhando-se aos gritos e berros. Sim,
todos, com exceção de Gurã, Kit e seu pai, que segurou com firmeza o ombro do garoto. — Fiquem aqui!
— ordenou ele, e correu para a frente com sua pesada lança. Deixou o rifle com os garotos. Com gente
correndo espavorida e confusa em todas as direções entre ele e o tigre ameaçador, nunca poderia atirar.
O alvoroço teve um bom resultado, pois com isto o tigre parou momentaneamente. Agachou-se perto
de uma cabana, rosnando e espreitando a multidão aterrorizada que vociferava e gritava, entrecruzandose, caindo, pulando e correndo em volta dele. Depois, quando a multidão se dispersou, formou-se um
espaço vazio. De lança na mão, o Fantasma encarou o monstro que estava abaixado. E que monstro era
ele! Jamais tinha visto tigre maior que esse que ali estava. Em toda a história nunca se ouviu falar que um
homem sozinho tivesse tido a coragem de enfrentar a fúria de um tigre de Bengala já adulto, somente com
uma lança. Sabia-se que um esquadrão inteiro de guerreiros já havia feito frente e arpoado um grande
felídeo mediante uma vintena de lanças, mas que um homem o tivesse feito sozinho, era coisa de espantar.
Jamais alguém chegara a isto.
Agora que os Wambesis estavam aterrorizados e olhavam de todos os lados, fez-se um silêncio
sepulcral. Lá no fundo, postados nas entradas, Kit e Gurã observavam. Todo tremendo, Gurã tocou o
ombro de Kit para confortá-lo. O pequeno rapaz parecia atento, mas completamente sem medo nenhum.
Talvez ignorasse o perigo em que seu pai estava. Para ele talvez isto não fosse nada mais do que mais
uma lição ilustrada.
Em volta, nenhum ruído, tudo silêncio. Até mesmo o farfalhar das folhas e o gorgeio das aves da
selva pareciam ter emudecido. Todos — as pessoas em terra, as aves e macacos nas árvores e os animais
peludos na mata — todos de olhares atentos, aguardando os acontecimentos. O Fantasma enristou a lança
com as duas mãos e apontou-a para o tigre agachado e estudou-lhe as intenções. Percebeu que de um lado
repontava um pedaço de lança quebrada. O animal certamente fora ferido por um lanceiro descuidado ou
apavorado. Era uma ferida profunda... razão porque estava furioso. O Fantasma conhecia perfeitamente o
comportamento de felídeos. Bem que gostaria de tê-lo ajudado fugir, mas já era muito tarde. O tigre
dardejara os olhares em cima dele, enfocando-o diretamente, tomando-o por seu inimigo. Sim, um homem
de lança na mão. Suas mandíbulas se alargaram e um forte bramido escapou-lhe das fauces, um bramido
que enregelaria toda pessoa ou animal que houvesse pela redondeza, num raio de uma milha. Em toda a
natureza não existe coisa mais apavorante do que o rugir do tigre quando quer atacar. Ato contínuo o
animal pulou em cima do homem, arremetendo-se com todo aquele corpo de seus três metros e meio de
comprimento e de um complexo muscular de aproximadamente meia tonelada, arreganhando dentes de
quase quinze centímetros. O bramido de fato paralisou a todos, deixando-os estatelados. O Fantasma
enfrentou o ímpeto, mergulhando a ponta de sua pesada lança no coração do tigre. O Fantasma retesou o
corpo, parou por um momento, que foi breve, mas de intensa expectativa, e por fim tombou sob o impulso
e peso do tigre. Todos olhavam sem se mexer. Um tigre por cima de um homem e este debaixo de uma
massa gigantesca do animal. Percebeu-se imediatamente o movimento de alguma coisa que procurava
safar-se de debaixo do tigre, aparecendo primeiro um braço... depois uma perna, à medida em que o
homem se esgueirava e fazia força para desfazer-se do animal. Ao cair por terra o tigre já estava morto.
O homem parou por um momento, olhando para o animal que jazia morto a seus pés. Nele não se
notava nenhum sentimento de triunfo, mas somente tristeza porque o desfecho não pudera ser diferente.
Ele gostava de todos os animais. Todos os presentes respeitaram este momento de silêncio. Em seguida
voltou-se lentamente e sorriu para Kit que se encontrava a seu lado, observando tudo. Kit soltou um grito
de alegria e correu em direção ao pai. Isto foi como que o sinal verde para todos. Houve verdadeiro
pandemônio na aldeia dos Wambesis. Centenas deles acorreram de todas as direções, dos campos e
colinas onde se haviam escondido. A selva revivesceu com o gorgeio e chilrear dos pássaros e aves, com
o guinchar dos macacos e o rugido dos animais: todos passavam adiante este acontecimento em sua
linguagem própria. Rufaram tambores, transmitindo o evento de vale em vale, pela selva e pelo deserto,
para que todos dele tomassem conhecimento.
Kit beijou e abraçou seu pai, pondo-se orgulhosamente a seu lado, enquanto os Wambesis se
aglomeravam em volta. Alguns garotos começaram a bulir com o tigre morto, futucando-o com paus e
atirando-lhe pedras. O Fantasma encaminhou-se em direção a eles, dizendo-lhe: — Parem com isto.
Tirem o couro do tigre, porque é muito valioso. Levem em seguida o corpo para o campo a fim de que os
gaviões se alimentem dele. Pois esta é a lei da selva. Mas não desonrem a vocês mesmos, maltratando o
animal morto. Ele apenas seguiu os impulsos da natureza, o seu instinto que é próprio dele.
Tímidos e envergonhados, os garotos fizeram conforme lhes havia sido ordenado e os Wambesis,
que eram entendidos nas maneiras de viver da selva, regozijaram-se e aplaudiram essa demonstração de
alta sabedoria. Kit olhou para seu pai, admirado. E como muitos garotos que admiram seus pais, naquele
dia Kit comentou:
"Quando crescer quero ser como ele". Contou tudo a Gurã, o qual concordou também que seria uma
coisa muito boa.
Seu pai nem sempre ficava na Floresta Negra. Vezes havia em que se ausentava dias e semanas e até
meses. A estas ausências ele chamava de "missões" e Kit não sabia exatamente o que elas significavam;
sabia apenas que seu pai estava ocupado em algum lugar, fazendo alguma coisa. Acontece que durante
essas missões as pessoas da convivência de Kit se mostravam tensas: os pigmeus montavam guarda nas
entradas secretas e todas as noites sua mãe ficava acordada até altas horas, sentada na entrada da
caverna. Às vezes ficava sentada em companhia de Kit até que ele adormecesse no monte de peles. Lia
para ele, mas às vezes não conseguia continuar a leitura de tão preocupada e nervosa que estava. Via de
regra da selva chegavam gritos, avisando que o Fantasma estava perto, quando então todos corriam para
o pátio em frente à caverna, a fim de aguardar a sua chegada. Em seguida se ouvia o ruído de cascos de
pata de animal, parecendo-se com uma tormenta que se aproxima, quando Trovão atravessava a
cachoeira correndo e trazendo a possante figura mascarada. Era chegado o momento de júbilo, de beijos
e abraços. Raramente dizia onde estivera ou o que fizera, mas sentia-se feliz em poder repousar diante de
um fogo, na companhia da esposa e filho, do seu pigmeu e dos animais amigos, compartilhando das
alegrias de todos pelo seu regresso.
Uma ou duas vezes voltou com feridas abertas, com um corte de faca em seu ombro, com ferimento a
bala que lhe passou raspando pelo braço. Imediatamente sua adorável mãe cuidava das feridas e punhalhes ataduras, enquanto ele a tranquilizava, dizendo que eram banais e não doíam. Uma vez, contudo, não
foram tão banais. Desta vez não houvera gritos distantes de boas-vindas dos pigmeus que estavam de
sentinela. Trovão atravessou em desabalada a cachoeira, com seu patrão agarrado ao seu pescoço.
Quando Trovão parou em frente à Caverna da Caveira, seu pai escorregou até o chão num desmaio fatal.
Os pigmeus carregaram a figura corpulenta, depositando-a em seu leito de peles de animal que havia
dentro da caverna. Desta vez estava gravemente ferido, com ferimentos produzidos por faca e balas.
Levou um mês para sair da caverna e mais outro para poder montar de novo o seu Trovão.
Contou a Kit e Gurã como foi que se dera. Estivera empenhado numa luta desesperada com piratas
que espalhavam o terror entre os povoados situados nas partes mais baixas dos campos. Embora ávidos
por conhecer mais detalhes da façanha, aos garotos disse apenas que subira no barco, que encontrou
alguns piratas, que se dirigira ao depósito de munições do navio, tacando-lhe fogo, com o que o navio
explodiu e afundou.
— Quantos eram os piratas? — perguntou Kit.
— Deviam ser umas dezenas. Não tive tempo de contá-los.
— E quando o navio afundou, o que aconteceu com todos eles?
— Os que sabiam e puderam nadar, dirigiram-se para a praia, onde o povo os esperava —
respondeu o pai.
Um dos que conseguiram chegar em terra foi seu pai, embora com muita dificuldade. Foi tudo o que
podia contar sobre o acontecimento, mas a notícia se espalhou pela selva, levada por mensageiros, pelo
rufar dos tambores e por viajantes. Sem ajuda de ninguém vencera uma porção de bandidos armados e
depravados e explodira o navio, dispersando as restantes duas dezenas de bandidos e entregando-os à
condoída piedade dos crocodilos do rio ou à santa misericórdia dos guerreiros que estavam aguardando
na margem do rio. Na selva não se conhecia serviço policial. Não havia lei. O supremo árbitro era o
Fantasma. Mas no futuro Kit aprenderia mais coisas a respeito disto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário