segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 423 : A LENDA DO FANTASMA

4 - AS CRÔNICAS DO FANTASMA  

Kit sempre se mostrara muito curioso pelo Quarto das Crônicas na Caverna da Caveira. Era um
lugar com estantes compridas apinhadas de volumes enormes amarrados com couro. Seu pai nunca lhe,,
proibira entrar nesse compartimento, mas também nunca o encorajara a fazê-lo. Mas, quando Kit
começou a aprender a ler, a sua curiosidade se aguçou ainda mais. Certo dia entrou naquele quarto e
retirou um volume da estante. Era quatro vezes maior do que seus livros de história e tão pesado que a
muito custo conseguiu carregá-lo. Colocou-o com cuidado no chão duro e abriu-o. Com a luz de uma
tocha que estava ali perto, num encaixe da parede, começou a ler o que nele havia, mas ficou
desapontado. As letras não eram como aquelas impressas nos seus livros e sim uns rabiscos
desconhecidos. Ainda não lhe haviam ensinado o que era escrita cursiva. Seu pai entrou no quarto e
encontrou-o ocupado com o volume, sentado no chão, e então respondeu as perguntas que lhe eram feitas
a respeito dele.
— Este livro aí que você apanhou tem mais de trezentos anos e foi escrito por um dos seus avôs,
doze vezes mortos. — Kit ficou espantado. Significava que se tratava de seu duodécimo avô. — Puxa
vida! — disse ele. Todos estes livros são escritos por avôs? — perguntou ele.
Seu pai explicou que cada geração escrevia suas façanhas, experiências, planos e ideias nestes
livros de crônicas.
— Mas a escrita é tão gozada — observou Kit.
O pai explicou então qual a diferença entre a escrita impressa e a cursiva. Mostrou a Kit as Crônicas
do primeiro Fantasma, daquele que foi seu primitivo antepassado. Embora fosse conservado sempre
desempoeirado e espanado, o volume desprendia um odor seco, empoeirado e mofado de séculos, como
as paredes de antigos castelos. As páginas não eram feitas de papel, mas de pergaminho, uma finíssima
película de pele de cabrito. O primeiro apontamento que eles leram datava de 17 de fevereiro de 1536 e
dizia o seguinte: "Hoje fiz um solene juramento sobre a caveira do assassino do meu pai".
Kit esperava ansiosamente por mais coisas, mas seu pai sentou-se e permaneceu em silêncio por um
momento. Parecia ter-se emocionado com aquilo que acabava de ler. — E assim foi que começou toda a
história — disse ele em tom de voz suave.
— Começou o quê? Quem assassinou seu pai? O que é um juramento? — E as perguntas jorravam da
boca de Kit. Juramento é uma promessa que você faz a si mesmo — disse o pai.
— Um dia ainda lhe falarei mais a respeito de tudo isto. Por ora deixe que lhe fale algo mais a
respeito do primeiro Fantasma e de seu pai. — Kit tornou a sentar-se numa pele de animal que estava
estendida sobre o chão duro e esperou ansioso. Ele adorava as histórias que seu pai lhe contava. Nunca
eram histórias imaginadas, como as de Gurâ e de sua mãe.
Eram todas histórias vividas, verdadeiras.
— O pai de que você acaba de ouvir era um grande capitão do mar. Sua mãe lhe falou a respeito de
Cristóvão Colombo, não é?
— Sim, ele inventou o Novo Mundo! — disse Kit todo agitado.
— Ele não inventou, mas descobriu — retificou o pai, acrescentando logo uma explicação sobre
qual a diferença entre uma e outra coisa. — Quando era menino, meu pai acompanhou Colombo como seu
camaroteiro no navio Santa Mana, em sua primeira viagem ao Novo Mundo.
— É mesmo?! — perguntou Kit admirado.
— Quando Colombo voltou para a Espanha, deixou a criança na nova terra, na ilha que mais tarde se
chamou Cuba. Com o tempo a criança ficou impaciente. Em companhia de um índio amigo partiu ele às
escondidas para o continente, navegando numa pequena embarcação. Pelo que parece deve ter sido o

primeiro homem branco a pisar na região que hoje em dia se chama América do Norte.
— Imagine! Ele e um índio amigo! Exatamente como eu e Gurã! — disse Kit, todo alvoroçado. — E
o que é que eles fizeram?
— Eles entraram por terras adentro, até bem longe. Encontraram os índios maias, que são pacíficos,
e observaram os sacrifícios humanos dos astecas, que os aprisionaram. Mas conseguiram fugir e se
dirigiram para o norte, rumo ao Grande Deserto...
— Papai, o que são sacrifícios humanos? — interrompeu Kit. O pai explicou que os astecas
matavam seus prisioneiros para honrar seus deuses.
— Como assim? — perguntou Kit, procurando saber o que significava isto.
— Arrancavam-lhes o coração com uma faca preta de pedra.
— Mas, meu bem — observou a linda mãe que ia passando pelo corredor — você acha que são
coisas que se contam â criança?
— Quando ele faz uma pergunta a gente deve responder, — respondeu o pai no tom suave que ele
usava para encerrar uma discussão. A mãe suspirou, sacudiu a cabeça e continuou andando. O pai
esboçou um sorriso.
— Você devia ter-se casado com aquele banqueiro e assim estaria vivendo numa linda casa braça,
cercada de estacas, conforme era desejo de sua mãe — acrescentou ele.
Ela riu-se e continuou andando, enquanto lhe jogava um beijo. Kit esperou pacientemente até que ela
se perdesse de vista.
— Arrancavam-lhes o coração com uma faca preta feita de pedra! — gritou o menino. — E doía?
— Acredito que não, porque as vítimas estavam inconscientes, pois os astecas faziam com que
adormecessem.
— Mas como assim?
— Meu filho, colocavam as vítimas com as costas em cima de uma pedra, deitadas, e quebravam-lhe
a espinha dorsal.
Quando o pai estava contando este detalhe, a mãe passou de volta para o seu quarto. Sacudiu a
cabeça e suspirou de novo, mas não quis entrar em discussão.
— Dias depois — continuou o pai — o camaroteiro e seu índio amigo, que se chamava Caribo,
encontraram um monte com o cume achatado rio meio do deserto, desses que se de nominam mesa. Bem
no alto desta mesa construíram uma moradia a que deram o nome de "Residência Celeste", porque é
muito alta e serve de ninho para as águias. Isto foi no ano de... 1497 — disse ele, dando uma olhadela
para o livro. — Nós possuímos ainda uma residência alta e algum dia você irá conhecê-la.
Ele continuou com a história. O camaroteiro retornou ao Velho Mundo e cresceu, tornando-se um
grande capitão de mar. Decorridos mais anos, continuou sua viagem e juntamente com ele estava também
seu filho já adulto de nome Kit. O navio foi atacado por piratas de Singg na baía de Bengala. Exceto Kit,
seu pai e toda a tripulação foram mortos. Todo ferido, Kit conseguiu escapar e alcançar a terra, onde foi
encontrado pelos pigmeus que cuidaram dele até recuperar-se.
— Ele também se chamava Kit? — perguntou Kit a seu pai, que respondeu afirmativamente.
— Ele tinha o mesmo nome que eu — disse o pai a Kit, que estava admirado, pois nunca lhe
ocorrera que seu pai tivesse outro nome além do costumeiro "querido", que sua mãe habitualmente usava.
— Então aquele Kit foi o primeiro Fantasma que fez um juramento solene sobre a caveira do
assassino do seu pai! — disse Kit todo excitado, agora que os mistérios estavam sendo explicados. —
Mas, como é que ele reconheceu o assassino?
— Acontece que o pirata morto foi levado pelas águas até à praia, não muito tempo depois do
ataque, muito provavelmente morto numa rixa. Kit vira quando ele apunhalou seu pai. E o pirata morto
vestira as roupas de seu pai.
Passaram-se dias no quarto das Crônicas. Enquanto Gurã e seus anões amigos esperavam em vão do

lado de fora da Caverna, Kit permanecia sentado lá dentro, embevecido com os feitos dos seus
ancestrais. Todo momento livre que seu pai tinha ia passá-lo naquele recinto. Logo que acordava Kit se
precipitava em cima do pai, depois das refeições arrastava-o da mesa e ficava acordado até à hora de
dormir, não parando nunca de pedir que contasse mais histórias. As histórias eram realmente
intermináveis, pois naquelas estantes estavam compiladas façanhas e proezas de quatrocentos anos,
vividas por uma série de vinte gerações de Fantasmas. E cada Fantasma tinha vivido uma vida repleta de aventuras.
 

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