segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 430 : A LENDA DO FANTASMA

7 - EM ALTO MAR  

Nos primeiros dias de viagem em alto mar Kit não conseguiu convencer Gurã a sair do camarote. Os
habitantes de Bandar são um povo acanhado e tímido, não afeitos a forasteiros, suspeitos de estrangeiros
e só se sentem à vontade na quietude da sua selva ensombreada. Para abandonar a Floresta Negra Gurã
teve que fazer um enorme esforço de vontade. Somente a dedicação e lealdade para com Kit e seu pai o
induziram a tomar esta resolução. A curiosidade dos guerreiros dos Wambesis, que têm estatura normal,
bem como dos Llongos, para os quais um pigmeu se constituía uma verdadeira raridade, era uma nota
suficientemente desagradável. Os olhares e comentários do povo civilizado por quem passou na cidade
portuária foram ainda piores. Mas lá ao menos ele podia movimentar-se, enquanto que aqui estava num
alçapão dentro dum navio entre centenas de pessoas estranhas de cor branca. Por isto permanecia no
camarote, a quem Kit se juntava para as refeições e para dormir.
Kit não tinha tal inibição. Ele se pôs a verificar e examinar todos os convéses, desde a casa de
máquinas até a ponte, e conversava ligeiramente com todos quantos lhe dirigiam a palavra. Era natural
que passageiros e membros da tripulação se mostrassem curiosos com eles. Ele havia chegado ao cais
escoltado por mil guerreiros da selva além de ter um. Guarda-costas na pessoa de um indivíduo baixo e
musculoso que todos haviam sido informados tratar-se de um verdadeiro anão selvagem. Durante toda a
viagem Kit e Gurã se tornaram o assunto obrigatório em todas as rodas de conversas. O nome "Kit
Walker" pouco dizia. No entanto o comissário de bordo encarregado dos assuntos financeiros espalhou a
notícia de que o camarote real em que o garoto viajava havia sido comprado com um diamante enorme.
Depois de avaliar a gema, o escritório de passagens tivera que levantar um empréstimo bancário a fim de
cambiá-la em moeda corrente e poder devolver a diferença entre o valor do diamante e da passagem.
Não havia dúvida de que Kit devia ser o herdeiro de algum potentado ou milionário desconhecido.
Afinal, quem era ele? Os passageiros no convés perseguiam-no com perguntas quanto ele passava por
perto, passeando calmamente.
Ele era educado, mas respondia com poucas palavras, não dando muita informação detalhada a seu
respeito. Sua mãe o havia prevenido sobre conversas com pessoas estranhas, mas ele também mostravase curioso a respeito dessas pessoas. Assim mais perguntava do que respondia. Havia duas coisas na
criança que deixava os estrangeiros maravilhados: era muito mais alto e mais corpulento do que a média
das pessoas de sua idade e tinha maneiras graves e de pessoa madura, o que ia além das possibilidades
de sua tenra idade. Assim é que ele parecia a todos os demais. No seu íntimo, sentia-se totalmente
empolgado com o novo mundo que o cercava. A outra coisa que deixava os passageiros intrigados era a
facilidade como dominava as línguas. A bordo havia pessoas de muitas nacionalidades e parecia falar
com facilidade com todos, passando de uma língua a outra sem precisar pensar.
Quando tomavam as refeições juntos no camarote Kit contava a Gurã o que tinha visto no navio e as
conversas que mantivera com os passageiros. E a curiosidade do anãozinho finalmente acabou vencendo
o seu acanhamento. Mas havia o problema da roupa. Havia-se desfeito do enxoval que lhe tinham dado
durante a longa viagem através da selva, conservando somente as tangas e as alpargatas. Kit deu-lhe uma
camisa para vestir, que caía em Gurã até os joelhos, como se fosse um vestido. Mas estava folgada e ele
gostou.
Os dois chegaram ao convés como um pequeno estouro da boiada. Logo de início deixaram
petrificados os passageiros que estavam no convés, reclinados em cadeiras-espreguiçadeiras, quando
passaram por perto, andando lentamente bem na parte de cima da balaustrada do navio. Até às águas
revoltas do oceano ali embaixo havia uma altura de uns vinte metros. Os passageiros chamaram a toda
pressa um camaroteiro para que impedisse aquela brincadeira suicida, conforme a impressão que

estavam tendo. Antes que ele os alcançasse, já haviam trepado pelo corrimão da gigantesca chaminé do
navio e estavam lá pendurados e segurando-se somente com uma mão, a uns quinze metros acima do
convés, gritando e rindo.
Todos os passageiros a bordo e a tripulação estavam no convés, olhando atônitos, quando o
comandante, também estupefato, gritou para os dois através do megafone, ordenando-lhes que
descessem. Voltaram, calmamente, como se ninguém lhes tivesse dito coisa alguma, com Kit descendo na
frente pelo corrimão de ferro. Quando os dois chegaram ao convés o comandante estava encolerizado e
uma passageira precisou cheirar sais calmantes. — Vocês podiam ter morrido — bramiu o comandante.
— Como assim? — perguntou Kit, pois queria saber o motivo disso.
— E ainda pergunta como? — gritou o comandante. — Vocês podiam ter caído ao mar ou então no
convés e quebrado o pescoço.
Kit traduziu as palavras do comandante a Gurã e os dois trocaram um sorriso.
— Não havia nenhum perigo, meu senhor — respondeu Kit polidamente.
O comandante se acalmou. Havia algo na voz calma do garoto e naqueles seus olhos cinzentos que
inspirava confiança. Fez com que prometessem que não repetiriam aquelas atitudes cômicas e
imprudentes. Kit traduziu as palavras do comandante e ambos concordaram em atender o seu pedido. Kit
gostava do comandante de porte alto. A autoridade que transparecia em sua voz e a suavidade de seus
gestos lembravam-lhe seu pai.
A próxima prova foi quando entraram pela primeira vez no salão de jantar do navio. O comissário
chefe fez uma tentativa de manter do lado de fora Gurã e encaminhá-lo à sala de jantar dos subalternos do
navio. Kit recusou, dizendo que Gurã teria que ficar na companhia dele. O comissário chefe ficou firme
em sua resolução. Normas eram normas e ele sabia perfeitamente que "tipo" de pessoa é um nativo. Kit
hesitou diante das ponderações. Seu pai e sua mãe lhe haviam dito que devia respeitar as leis e normas,
aonde quer que fossem. Mas esta norma não era do seu agrado. Será que não estava errada? Percebeu que
o comandante estava observando de uma mesa ali perto e então se encaminhou para ele. Explicou ao
comandante que ninguém no navio conseguiria entender a língua de Gurã e que portanto deveria
acompanhar Kit. De mais a mais, era muito acanhado para ficar sem Kit. Ademais, disse que Gurã não
era nenhum empregado do navio. O comandante verificou a lista de passageiros e notou que o camarote
havia sido reservado para duas pessoas: Kit Walker e o Príncipe Gurã. Isto foi o suficiente para resolver
o problema. Um príncipe era logicamente bem-vindo ao salão de jantar dos passageiros de primeira
classe. Os passageiros sorriram quando viram Gurã entrar com. aquela sua camisa que lhe caía até os
joelhos e Gurã retribuiu também com um sorriso, quando se sentou à mesa ao lado de Kit.
Acontece, porém, que vários passageiros não sorriram. Não queriam jantar no mesmo recinto com
um "nativo", protestando em altas vozes junto ao comandante. Kit ficou sentado calmamente, escutando a
gritaria desses passageiros. Gurã não entendia patavina do que estavam berrando. Mas o comandante
amigo ficou firme e os passageiros foram se retirando, jurando que iriam relatar esta afronta à chefia da
companhia. Kit ficou perplexo com este incidente. Ele não desconhecia que neste novo mundo as coisas
seriam diferentes. Mas os seus pais se haviam esquecido de falar-lhe a respeito do fanatismo e
intolerância, talvez porque eles mesmos nem pudessem imaginar tal coisa.
Kit mandou vir o prato que havia escolhido para o jantar. Ele não sabia que a gente tinha que
escolher entre os pratos principais, como bife à milanesa, frango e pato e, para espanto do garção,
mandou que trouxesse todos os pratos. Os olhares de todos no salão se voltaram para eles, quando
começaram a, comer, com a mesa atolada de comida. Mas os olhares logo se viraram, como que
enojados. Embora Kit tivesse tido algumas aulas sobre como manusear a faca e o garfo, quando estava na
Floresta Negra, este contudo não era a maneira costumeira. Seu pai costumava dizer que "os dedos foram
inventados antes do garfo e da faca" e embora sua mãe tivesse sempre tido o máximo cuidado em ensinarlhe as boas maneiras à mesa, naturalmente Kit puxou pelo seu pai. Quanto a Gurã, este nunca tinha visto

um garfo em sua vida. Os vizinhos mais próximos à mesa não puderam aguentar vê-los beber sopa de uma
terrina que segurava na boca com as mãos, sem auxílio de talher. Estes vizinhos — duas senhoras
magricelas — pararam e queixaram-se junto ao comandante, saindo imediatamente do salão. O
comandante estudou a situação, acabando por convidar Kit e Gurã a jantar na companhia dele. Devagar e
com paciência sugeriu-lhes que usassem facas e garfos. Corando, Kit se lembrou das lições de boas
maneiras de sua mãe e apressou-se em traduzir as palavras do comandante a Gurã. Gurã divertia-se com
os apetrechos, segurando-os firmes em seus punhos à maneira de quem investe com faca. O comandante
era uma criatura adorável e boa e achou isto divertido pelo que não quis corrigir Gurã.
Mas nem todos acharam isso divertido. O primeiro que manifestou seu desagrado foi o comissário
chefe. Estava ofendido porque o "nativo" tivera permissão para jantar em sua sala de jantar e também
irritado com os modos animalescos como os dois comiam e ao mesmo tempo enfurecido e despeitado
porque os dois gozavam da simpatia e preferências do comandante. Por muitas razões — provavelmente
datando ainda de uma educação deficiente recebida de berço — o comissário chefe era um homem
mesquinho. Os outros membros da tripulação tinham tido oportunidade de aprender que deviam temer
seus repentes temperamentais e seus socos. Ele gostava de lutar. Quanto mais pensava nesse garoto
arrogante que havia chegado ao cais com uma escolta de mil "nativos" e que se pavoneava como se fosse
um príncipe dono do navio, tanto mais furioso e despeitado ficava ele. O comandante havia revogado
suas próprias instruções e humilhara-o na presença de todos os demais colegas de trabalho e passageiros.
Assim é que ele clareava as ideias, sentado em frente a uma garrafa de aguardente em sua própria cabine.
Saiu da sua cabine com os olhos espumej ando sangue, ávido por encontrar o garoto. Acabou
encontrando-o em companhia de Gurã, na proa do navio no segundo convés. O rapaz e Gurã estavam
apreciando o embalo do navio. Quando ele se aproximou os dois se viraram. Treinados que estavam a
adivinhar os perigos da selva, perceberam que em seus modos se escondia uma ameaça e por isso o
observaram com cuidado. Encarou Kit e lançou-lhe no rosto uma enxurrada de palavrões violentos e de
baixo calão. Kit não conhecia nenhum daqueles palavrões assim que para ele nada significavam. Ele
permaneceu calmamente em pé, o que enraiveceu ainda mais o comissário chefe. "Este sujeito que está
ali é seu irmão?" perguntou ele a Kit. Kit ficou surpreso com a pergunta, porque qualquer pessoa podia
ver que Gurã não era seu irmão. Sorriu, perplexo, e sacudiu a cabeça. O comissário não conseguiu obter
uma reação normal à atitude de Kit e por isso entendeu de largar-lhe um bofetão com a palma da mão,
bem em cheio no rosto de Kit.
— Seu fedelho, está com medo de brigar? — gritou ele. Ao ouvirem a briga que estava para se criar,
dois membros da tripulação que estavam na balaustrada se encaminharam em direção a eles. Também
Gurã se movimentou em direção ao comissário chefe, mas Kit o segurou pelo braço.
— Não tenho nenhum desejo de brigar com o senhor — disse Kit calmamente. — Mas fique sabendo
que não tenho medo. — O comissário estava louco de raiva. A ponta da cabeça de Gurã mal chegava na
altura do peito do comissário. Mas o senhor encolerizado tacou-lhe uma bofetada, jogando-o de encontro
à amurada. A reação de Kit foi quase instantânea, "como a de um felídeo da selva", conforme comentou
mais tarde um membro da tripulação. Saltou violentamente em cima do comissário. Com um rápido golpe
de caratê deixou o homenzarrão esticado no chão do convés, com Kit empoleirado em cima do seu corpo
e apertando a garganta do comissário com suas mãos vigorosas. Toda a fúria do comissário de repente
desapareceu, sendo substituída pelo medo, pois o rosto que via em cima de si era mortífero e té tricô e as
mãos estavam espremendo a alma para fora do seu corpo. O comissário se debatia e procurava passar
por cima, mas não conseguia de jeito nenhum. Os dois membros da tripulação chegaram e tentaram
arrancar Kit de cima do homem. Não conseguiram tirá-lo. Os olhos do comissário estavam se
arregalando e sua fisionomia ficou vermelha, quando Kit lhe socou a cabeça de encontro ao convés. Os
gritos dos dois tripulantes fez com que outros aparecessem e foi preciso uma dúzia deles para tirarem à
força Kit de cima do comissário. "Foi como se estivéssemos segurando um gato selvagem", disseram

eles. Caíram de joelhos e se debatiam com o rapaz que forcejava. Gurã saiu correndo para o meio deles e
murmurou alguma coisa a Kit, que logo soltou o adversário. O comissário estava estendido no chão todo
encurvado, gemendo e com o rosto cheio de sangue. "Se esperássemos mais um minuto Kit o teria
deixado sem vida", comentaram eles mais tarde. Kit se pôs em pé, descansado, satisfeito.
— Lamento muito, disse ele. — Mas acontece que ele bateu em Gurã, sem nenhuma razão. Perdi o
controle. Não gostei disto.
— Você podia tê-lo matado — observou um dos tripulantes, ajoelhando-se ao lado do comissário
que gemia.
— Sei disso — respondeu Kit calmamente.
Todos olharam para ele.
— E você queria matá-lo?
— Não! — respondeu Kit. — Mas quando alguém briga, é pra valer. Do contrário, não deve brigar.
Constataram que o comissário não tinha nenhum osso quebrado. O comandante ficou sabendo de
todos os detalhes do acontecimento através dos tripulantes que haviam presenciado a briga e mandou
colocar o comissário no camarote. Em seguida ficou pensando o que deveria fazer com o seu estranho
passageiro Kit Walker. A notícia da briga correu célere entre os passageiros e os membros da tripulação.
Alguns dos homens a bordo tentaram dar os parabéns a Kit, mas estavam intrigados e um pouco
temerosos com este rapazinho cativante. Comentava-se que havia derrotado um senhor adulto e que,
conforme diziam, quase acabara com a vida dele. E realmente o teria deixado morto, se aquela porção de
tripulantes não o tivesse retirado. Quando ele e Gurã passeavam pelo convés ou entravam no salão de
jantar, todos os observavam em silêncio. O comandante levou Kit e Gurã para o seu camarote.
— Já sei que foi ele quem começou a briga e por isso recebeu o que merecia, mas disseram-me que
você queria e tentou matá-lo. Você seria capaz disto, sem arma na mão? — perguntou o comandante.
— Talvez sim — respondeu Kit.
— Você seria mesmo capaz disto?
— Mas não agora, porque tudo acabou — tornou Kit.
— Quer dizer que você teria sido capaz disso, se não o tivessem impedido? — insistiu o
comandante.
— Claro que sim — respondeu Kit. — Quando uma pessoa briga com o Sr. ela quer matá-lo e neste
caso o Sr. deve matá-la para salvar a sua vida.
O comandante examinou bem o garoto sério que ali estava e a fisionomia grave de Gurã que estava
escutando sem entender nenhuma palavra.
Sem exatamente saber por que razão ou por que detalhes, imaginou logo que estes dois só podiam
ser oriundos de outro mundo, da selva.
— Kit — disse ele — em nosso mundo os homens brigam com raiva para acertar alguma coisa QU
para ir ã desforra por algum ressentimento. É uma maneira estúpida de agir, mas às vezes agem assim.
Normalmente é o bastante dar uma surra no adversário, vencê-lo, para resolver a pendência. Mas nunca
matar. Entendeu o que disse?
— Estou ouvindo-o — disse Kit. Levaria muito tempo para ele compreender isto.
  

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