segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 426 : A LENDA DO FANTASMA

O Povo das Cordas  

Chegou-nos a notícia de que um homem branco e sua filha estavam perdidos perto do mato com
árvores altas. Diziam que estavam à procura da cidade perdida de Fênix, o que era uma tarefa sem
nenhuma esperança de consecução, porquanto todos sabem que esta cidade depravada foi destruída pelos
deuses e enterrada bem fundo sem poder ser vista pelos homens, de modo que a lembrança daquele povo
perverso desaparecesse para sempre da face da terra. (Kit olhou furtivamente para Gurã; a cidade
perdida de Fênix? Isto era algo de que gostaria também de ouvir falar a respeito).
Assim é que o Fantasma partiu deste lugar para ir ao encontro dos dois perdidos na mata e conseguiu
salvá-los dos horrores que rondam na selva. E, montando seu fogoso cavalo chamado Relâmpago ("O
senhor do Trovão", disse o pai a Kit, fazendo uma ligeira interrupção), dirigiu-se para o local das
Árvores Elevadas ("Kit, esta parte da selva me era desconhecida", disse o pai. "As árvores de lá são
gigantescas. Elas quase tocam o céu").
O Velho Moze parecia não se importar com as interrupções. Ele simplesmente parava de contar
como quando se levanta a agulha de um tocadisco; e quando o aparte já tinha terminado, então ele,
semelhante a uma agulha que volta a sulcar o disco, continuava calmamente a narrativa como se não
tivesse havido nenhuma pausa.
Cavalgou entre as árvores altas da região e imediatamente deu com seus rastros e não teve nenhuma
dificuldade em seguir-lhes a pista, pois era um caçador experimentado. Finalmente encontrou-os diante
de uma pequena fogueira igual a esta aqui. Eram um senhor idoso com sua linda e jovem filha de cabelos
dourados (a esta altura o Velho Moze fez um sinal com a cabeça para a mãe de Kit, permitindo-se um
leve sorriso, que se parecia com um tinido lento em velha porcelana. A graciosa mãe correspondeu ao
cumprimento). Não nos esqueçamos de dizer que ficaram surpresos e espantados ao verem esse estranho
enorme coberto com uma máscara, (a linda mãe fez um sinal afirmativo, de maneira resoluta).
Mas ele cumprimentou-os com sua voz suave e tranquilizou-os, dizendo-lhes que era seu amigo e que
havia vindo para ajudá-los. Tranquilizaram-se e sentiram-se imensamente felizes, pois tinham tido muito
medo durante a noite na selva. E foi muita sorte que não sofreram nenhum ferimento e não foram vitimas
fatais dos engodos da selva. Os carregadores de sua bagagem haviam desertado alguns dias antes, pois

tiveram medo de penetrar nesta parte desconhecida da selva.
Então aconteceu uma coisa curiosa, completamente inesperada. De repente começaram a descer
sobre eles cordas com roldanas nas pontas, as quais partiam do alto das árvores altas que havia, iam
deslizando tão suavemente e com tanto cuidado em volta dos seus ombros e braços e, sem que ninguém
percebesse puxaram para cima o ancião e sua filha. Em cima do Fantasma não havia sido baixada
nenhuma corda, mas ele deu um pulo e agarrou-se à corda da garota e assim foi guindado no ar juntamente
com ela. ("Foram momentos de angústia, mas emocionantes", observou a sua mãe, rindo. "Puxa vida,
mamãe". Por que vem a Sra. interromper a história?!" disse Kit em tom chateado).
Eles foram alçados tão altos, bem longe do chão de maneira que a sua fogueira embaixo se parecia
com um pontinho bruxuleante, igual a uma estrela. Foram subindo, subindo e subindo, entrando pela
frondosa ramagem das árvores que davam a impressão de roçar o céu lá em cima. (O Velho Moze
assumiu um tom verdadeiramente dramático quando contou esta história. Seus olhos brilhavam e suas
mãos gesticulavam como se fossem as de um ator). Quando chegaram bem lá em cima. das árvores
depararam com uma aldeia estranha. E o que havia naquelas alturas' era exatamente uma aldeia igualzinha
a muitas outras, com exceção que era construída sobre plataformas suspensas em pesadas cordas presas
nos altos galhos. Sim, lá em cima havia verdadeiras cabanas bem como um espaço livre onde as mulheres
trituravam as nozes das quais faziam pão e onde trinchavam a carne. Com receio de destruir as árvores,
naquele lugar não se usava fogo e a carne era servida crua. Não faltavam as crianças e as babás. As
plataformas eram ligadas entre si por meio de cordas e as pessoas andavam por essas cordas de maneira
espantosa e sem medo nenhum. Se acontecesse de alguém cair, embaixo havia cordas para o apararem.
Como era divertido ver homens, senhoras e crianças empoleirados como pássaros naquelas cordas
espichadas lá no ar. No momento em que os cativos chegaram um garoto resvalou e caiu no ar. Sozinho se
agarrou a uma corda que havia embaixo e deu uma risada; ninguém se preocupou em olhar para ele, com
exceção dos prisioneiros.
Enquanto balançava ainda no ar presa à corda da garota, outras cordas foram arremessadas em
direção ao Fantasma, amarrando-o seguramente, de modo a não poder usar suas armas. Quando chegou no
alto tiraram-lhe as armas da cintura. Os cativos foram levados ã presença do chefe, o qual lhes disse que
os forasteiros não tinham permissão de penetrar nesta região do Povo das Cordas e que os transgressores
eram mortos, sendo lançados dessa enorme altura até o chão. Uma morte realmente rápida, como se fosse
jogado da altura das nuvens. Mas tanto o chefe como todos os guerreiros olharam para o Fantasma com
curiosidade aguçada e com suspeita.
— Se não me engano, pelo traje que veste, você pretende ser o Fantasma em pessoa — disse o
chefe, para espanto do Fantasma que nunca ouvira falar do Povo das Cordas.
— Eu não pretendo ser o Fantasma, sou ele em pessoa — respondeu.
— Como pretende ser, se confessa desconhecer a nossa existência e o nosso modo de vida? Se você
fosse realmente o Fantasma deveria forçosamente saber da nossa existência.
Isto deixou o Vigésimo confuso, mas não demonstrou nenhum embaraço. Aqui havia algum mistério,
que não demorou a ser explicado. O chefe e os demais líderes o levaram até uma cabana ampla. Ali, nas
paredes, via-se uma série de desenhos toscamente feitos como se tivessem sido garatujados por uma
criança, em nada semelhantes a trabalhos de bons artistas. Mas o Vigésimo reconheceu claramente as
figuras ali representadas. Havia quatro desenhos representando o Fantasma. No primeiro, estava ele em
pé no lombo de um elefante; estava precariamente desenhado. No segundo, segurava uma pedra grande
por cima da cabeça. No terceiro era representado correndo e sendo perseguido por guerreiros com lanças
nas mãos. E no quarto estava enfrentando um homem que era duas vezes o seu tamanho, um verdadeiro
gigante.
— Pois bem — disse o chefe do Povo das Cordas — se você é mesmo o Fantasma conforme está
dizendo, então há de reconhecer as façanhas que realizou quando anteriormente esteve entre nós. No

primeiro quadro você é visto agarrando um elefante com suas próprias mãos, sem armas. No segundo,
está removendo uma pedra enorme. No terceiro, evitou ser aprisionado por nossos caçadores armados,
driblando-os durante um dia inteiro. E no quarto derrotou o campeão da selva numa batalha de morte.
O Vigésimo estava desconcertado e aturdido, pois anteriormente nunca tinha visto este Povo das
Cordas e nem tinha' ele realizado aquelas proezas. Mas intuiu logo na verdade.
"É mesmo", interrompeu o Vigésimo, quando ouviu o Velho Moze narrar esta passagem. "Percebi
que estavam falando do meu pai e não de mim. Ele é que fizera todas essas coisas. Pelo que tenho lido e
ouvido a respeito dos meus antepassados, quero crer que não estamos faltando com a verdade se
dissermos que meu pai era o mais possante de toda a linhagem de Fantasmas. Quando eu era ainda
criança, vi como um dia. levantou um cavalo tão grande como Trovão e o carregou através de um riacho.
Mas ele nunca me falou a respeito do Povo das Cordas ou das façanhas que lá realizou". Kit olhou para
Gurã, que confirmou as palavras do companheiro. Os homens Fantasmas não falavam dos seus feitos.
Limitavam-se a registrá-los nas Crônicas, deixando que seus descendentes os propagassem.
— Foi assim que se apercebeu que seu pai estivera entre eles e realizara essas proezas maravilhosas
— continuou o Velho Moze, como se não tivesse havido nenhuma interrupção.
— Mas — disse o chefe do Povo das Cordas — não podemos acreditar que você seja o Fantasma,
porque tudo isto se deu há muitos anos e hoje ele seria senhor idoso, e no entanto você é ainda jovem.
Depois que ele realizou estas façanhas fizemos um pacto de amizade com ele, enquanto que consigo não
temos nenhum pacto, porque não pode ser o Fantasma.
— Mas acontece que eu sou o Fantasma — disse o homem mascarado.
— Se assim for, terá que provar que é o Fantasma, se quer salvar a sua vida e as do homem e da
garota. Se não conseguir provar, vocês todos serão jogados lá embaixo, com morte certa. — E de lá até o
chão havia um trecho enorme, como das nuvens do céu.
— Que devo eu fazer para provar isto? — perguntou ele, ao que o chefe respondeu: — Deverá
repetir os feitos daquelas ocasiões. — E só lhe restava fazer aquelas proezas, porque do contrário o
ancião e a garota encontrariam morte certa, sem falar nele próprio. Por isso concordou.
"Como é que a gente consegue apanhar um elefante sem nenhuma arma e fazer todas aquelas outras
coisas?" gritou Kit, aflito e preocupado como se os acontecimentos não estivessem ainda realizados.
"Kit, eu mesmo fiquei preocupado com a situação. Estas coisas pareciam difíceis ou mesmo impossíveis.
Mas não havia outra saída", respondeu o pai).
Então desceram-no por uma corda até a terra lá embaixo. O pai e a garota permaneceram na aldeia,
encarapitados nas árvores. A sua primeira tarefa, que consistia em apanhar um elefante sem o auxílio de
armas, deveria realizar-se ao cair do sol, pois caso contrário os prisioneiros seriam despejados na terra
como que partindo de uma nuvem. Ele pensou e repensou, deu tratos à bola, até que enfim teve uma ideia.
Andou procurando algo entre as árvores e as macegas até encontrar aquilo de que precisava, um tipo
especial de trepadeira da selva chamada Banga. Achou também uma pedra bem pontuda — pois não tinha
nenhum outro instrumento — e com ela foi esfregando a trepadeira até cortá-la. Era um tipo de trepadeira
dos mais duros que existem em toda a selva. (Os anões que estavam acompanhando o relato da história
concordaram com este detalhe, porque conheciam esta trepadeira). Depois disto se pôs à procura do
rastro que os elefantes faziam quando iam ao seu aguadouro, até que finalmente o localizou.
Trepou numa árvore que se erguia na beira do caminho dos elefantes e ficou de tocaia. O tempo ia
passando. Lá de cima da sua aldeia o Povo das Cordas observava. A garota e o ancião aguardavam,
porque o trecho era muito comprido até o chão e eles morreriam se ele falhasse em sua tarefa.
Eis que um grande elefante macho se movimentou lentamente entre os arbustos, tomando o caminho
da picada, abocanhando de vez em quando um punhado de grama fresca e atufando-a em sua boca
vermelha. Segurando com suas mãos a trepadeira comprida, o Fantasma ficou na tocaia. Quando o
elefante ia passando justamente embaixo dele, deu um salto e pulou em cima de seu lombo. O

paquidérmico animal empinou-se nas patas traseiras e barriu toda a sua fúria, procurando alcançar as
suas costas com a tromba. Mas o Fantasma deslocou-se rapidamente em cima do lombo largo e desviouse da tromba que o procurava e que o teria cuspido ao chão, embaixo de suas enormes patas. O elefante
fez tudo o que podia para alijar de suas costas esta carga. Deitou-se no chão e rolou-se pela grama. E o
Fantasma pulava em cima e descia rapidamente, agindo com destreza com seus pés. E quando julgou
chegado o momento oportuno, na primeira chance que teve, laçou as mandíbulas enormes do animal com
a trepadeira e puxou de modo que ficou segura dentro da bocarra do bicho e deu três voltas para que não
pudesse ser arrancada. Em seguida agarrou as pontas soltas e amarrou-as com toda rapidez em volta de
uma enorme árvore e, sem tir-te nem guarte, o elefante estava preso! Visto que a boca deste grande
animal era tão delicada como a de uma criancinha, quando ele puxou com força a trepadeira tosca feriu a
carne macia e assim o elefante se viu completamente impotente.
Então o Fantasma olhou para o alto, lá em cima das árvores de onde os guerreiros presenciavam,
gritando-lhes: — Já cumpri minha tarefa. Apanhei o elefante sem auxílio de armas. — Lá do alto
responderam, dizendo que estava tudo certo. Ato contínuo os guerreiros do Povo das Cordas deslizaram
até a terra, carregando suas lanças, pois apreciavam muito a carne de elefante e não era sempre que
podiam saciar a sua fome. Agora iriam matá-lo e comer-lhe a carne. Mas antes que eles alcançassem o
animal, o Fantasma afrouxou o laço da trepadeira e o animal desabalou em direção ao mato. O Povo das
Cordas gritou enfurecido contra ele. — Por que você fez isto? Por que soltou o elefante que queríamos
matar e comer?
— Eu concordei em apanhá-lo e não concordei em matá-lo — disse o Fantasma. E mesmo
enraivecidos como estavam, tiveram que concordar.
Agora levaram-no para realizar a segunda tarefa. Numa pequena elevação havia uma pedra enorme e
parte enterrada no chão. Chegando ao local, os guerreiros disseram: — Se você é o Fantasma, poderá
arrancá-la conforme fez anteriormente. — Ele estava perplexo porque na realidade era uma pedra e tanto.
("Era do tamanho de uma casinha", disse o Vigésimo, vendo que Kit olhava para ele com os olhos
escancarados. "Eu fiquei apavorado. Sabia que meu pai era um homem de uma força fora do comum.
Mas, como é que ele conseguira arrancar aquela pedra", perguntei-me).
Desconcertado e aturdido, estudou bem a pedra enorme e viu que realmente era tão grande que um
homem ou mesmo dez homens não conseguiriam levantá-la. A garota e seu pai estavam observando lá do
alto do céu e não se aguentavam de medo pois de lá até o chão o tombo seria alto. Os guerreiros
observavam e entreolhavam-se, sorrindo e mostrando os seus dentes. Estavam curtindo uma verdadeira
situação de gozação porque se ele falhasse jamais seria o Fantasma que ele apregoava ser e sim um
trapaceiro. Enquanto estava estudando e examinando a pedra, surgiu-lhe uma ideia. Começou a cavoucar
a terra em redor da pedra. Estava bem enterrada no chão, mas foi escavando tanto com as mãos feito um
tatu num formigueiro. As horas iam passando. Havia pedras menores atravancando e fazendo pressão
contra aquela que tinha que arrancar. Removeu-as e cavou mais fundo, afastando a terra em ambos os
lados até que a pedra ficou a descoberto. Em seguida colocou-se atrás dela e empurrou. Mas, embora a
pedra estivesse no declive da elevação, não se mexeu. E o prazo que lhe havia sido dado ia ficando
escasso. Então deitou-se de costas e encostou os pés na pedra, empurrando. Foi empurrando,
empurrando... até que a pedra se mexeu... um pouquinho, mais um pouquinho, um pouco mais, até que
rolou colina abaixo, batendo numa grande árvore e levando-a de roldão.
("Fique sabendo que ás pernas do homem têm mais força do que os braços", observou o pai a Kit,
que estava sentado completamente extasiado com a história).
Feito isto, voltou-se para os guerreiros que observavam e disse-lhes: — Como vêem, removi a
pedra. — E não tinham outra saída senão concordar. Agora chegara o momento da terceira prova. Foi
quando desceu uma infinidade de guerreiros pelas cordas compridas, carregando suas armas. Disseramlhe então: — Nosso pelotão de guerra lhe dará caça até o sol se pôr e você terá que escapar de suas

garras. Se o apanharmos será morto, porque estará sem armas. Agora você irá esconder-se enquanto
esperamos o sinal convencional dado pelo rufar dos tambores. Com o sinal dos tambores a nossa procura
tem início. — Eles viraram-se de costas e ele entrou na mata. Até parecia uma brincadeira de crianças,
esconde-esconde, mas para ele isto não era brincadeira, pois tudo poderia terminar com a sua morte. E o
ancião e a garota observavam lá do alto, cheios de medo.
Embrenhou-se por entre o mato até encontrar um riacho, o qual atravessou a fim de desfazer o seu
rastro, porquanto imaginava que o Povo das Cordas devia ser perito em localizar pegadas. (Os anões que
estavam escutando concordaram. Já conheciam este estratagema das selvas). Em seguida saiu do riacho e
subiu uma encosta até chegar a um lugar rochoso. E agora? Onde é que poderia esconder-se? Este Povo
das Cordas conhecia esta região que nem a palma de suas próprias mãos. Não estava acostumado a isto.
Olhou para as árvores, mas achou por bem não subir, porque aquela gente vivia nas árvores.
Imediatamente ouviu o som dos tambores e assim a busca havia começado. A floresta se encheu com a
gritaria dos guerreiros, quando deram a partida para a busca. E o ancião e a garota não se cansavam de
olhar para baixo, lá de dentro das árvores.
E o Fantasma começou a correr, a subir e trepar e a esconder-se. De vez em quando os guerreiros
conseguiam vê-lo e então gritavam, mas ele corria ainda mais e safava-se da vista. Por vezes chegavam
tão perto a ponto de poder desferir as lanças, mas ele se desviava, corria atrás de árvores e pedras e
sumia. Mas o Povo das Cordas era tido como bons caçadores e, com as horas que iam passando,
fecharam o cerco em volta dele por todos os lados. O sol já quase ia descendo e parecia que não havia
escapatória para ele, com os guerreiros armados apertando o cerco. Atrás dele havia uma caverna. Não
havia mais nenhum outro lugar e por isso ele enfiou-se dentro dela. Os guerreiros soltaram gargalhadas
porque sabiam que estava atocaiado dentro da caverna, donde não tinha nenhuma saída. Era uma caverna
com pontas de pedras feito lanças que saíam do teto e outras que repontavam do chão. Quando percebeu
que os guerreiros iam penetrando pela caverna com toda precaução, escondeu-se entre essas pontas de
pedra. Mas ele não estava sozinho dentro desta caverna. Naquele lugar escuro olhos pretos brilhavam.
Ouviu-se um rosnado forte de leão, um enorme leão macho que também procurara refúgio na caverna. E
agora já escutava a gritaria dos caçadores que se aproximavam e cheirava carne de homens; e com um
bramido forte investiu, primeiramente contra o Fantasma que enfrentou o animal. Mas quando o leão
estava bem perto, o Fantasma deu um pulo bem alto no ar, indo agarrar-se a uma ponta de pedra e
segurando-se firme nela de modo que o leão acabou avançando por baixo dele. Exatamente no momento
em que o primeiro guerreiro dava entrada na caverna o leão deu o avanço furioso, atirando-se no meio do
pelotão de guerra como uma tormenta, jogando-os por todos os lados como folhas atiradas por um
vendaval e aqueles que não foram destruídos pela fúria do leão trataram de correr a toda pressa para pôr
a sua pele a salvo. O leão foi perseguindo-os até que enfim conseguiram pôr-se a salvo na segurança que
as árvores lhes ofereciam. A esta altura já estava se formando o crepúsculo no céu, o que indicava que o
sol estava se pondo. Por isso o Fantasma saiu da caverna e gritou para as árvores: — Seu pelotão de
guerra me caçou, mas o sol já desceu e eu estou vivo. — E eles não tinham outro jeito senão concordar.
Finalmente chegou a última tarefa a cumprir. Teria que enfrentar o campeão das selvas, num duelo de
morte. O Povo das Cordas tinha escolhido o melhor dos seus campeões. Tratava-se de um gigante que
vivia numa grande cabana feita de pedras. Em torno da cabana estavam amontoados os ossos de todos os
homens que ele havia matado, da mesma maneira os ossos de todos os animais que abatera e cuja carne
comera. Corria o boato de que ele devorara também os homens, mas não há certeza sobre a veracidade.
Mas que era um brutamontes, isto não resta a mínima dúvida, e da altura daquela árvore lá (disse o Velho
Moze, apontando para uma árvore ali perto que devia ter uns três metros e meio de altura) e largo como
aquela entrada (apontando para a abertura da Caverna da Caveira que media cerca de dois metros). Com
suas próprias mãos e sem armas havia matado grandes felídeos e conseguia arrancar árvores inteiras com
um vigoroso abraço de seus braços possantes.

Numa clareira existente abaixo da aldeia do Povo das Cordas os guerreiros levaram o gigante para
enfrentar o Fantasma. Levava uma clava da altura de um homem num dos ombros com a qual podia
esmagar a cabeça de um elefante ou amassar o crânio de um rinoceronte que atacasse, o que aliás já tinha
feito. Quando se deparou com o homem que iria enfrentar não pôde deixar de soltar uma gargalhada,
porquanto o Povo das Cordas lhe havia prometido muita comida e bebida se ganhasse a luta. Sua
gargalhada se parecia com uma trovoada na escuridão de uma noite chuvosa.
Todo o Povo das Cordas se encarapitou nas árvores e a aldeia inteira com seus prisioneiros
presenciava a luta cá embaixo. O gigante arremessou sua enorme clava. O Fantasma tirou o corpo fora e a
clava foi atingir uma árvore grande, estourando o tronco. O gigante arremessou de novo a clava, mas o
Fantasma driblou novamente. A arma do gigante cravou-se no chão, abrindo um buraco que poderia muito
bem abrigar um garoto que quisesse esconder-se. (A esta altura os olhos de Kit se esbugalharam ainda
mais, pois já estavam escancarados de curiosidade). Quando levantou a clava pela terceira vez tornou a
rir. Isto porque o Fantasma estava com as costas coladas a um muro de pedras e não havia mais como
retroceder. Atirou a clava e o Fantasma esquivou-se com a ligeireza de um beija-flor e deu um mergulho
por entre as pernas massudas do homenzarrão de modo que imediatamente se pôs na traseira do gigante.
Acontece que o gigante jogara a clava que foi bater no muro de pedra, quebrando-se em suas mãos.
Bramindo como o rugido de leões, voltou-se para o Fantasma e investiu contra ele, mas o Fantasma
jogou-se com toda a força e foi atingir o gigante bem em cheio no abdome. O gigante — à semelhança de
muitas criaturas fortes com grandes músculos — tinha o abdome muito sensível e curvou-se de dor. Com
isto a sua mandíbula ficou numa posição mais baixa, numa altura ideal para o Fantasma alcançá-la e
aplicar-lhe uns bofetões. E foi o que ele fez, mas não somente um soco e sim um bom par de dúzias, um
atrás do outro e vibrando-os tão depressa como as ferroadas de uma nuvem de marimbondos com um
punho que se parecia a uma rocha. O gigante pôs-se de joelhos, agarrando o Fantasma coro seus braços
possantes que podiam quebrar e arrancar uma árvore enorme ou esmagar um leão. Mas o Fantasma não
esperou ser quebrado feito uma árvore ou esmagado como um leão. Com seu punho forte desferiu um
soco debaixo do queixo do gigante, depois mais e outros mais, seguidos de murros na barriga delicada,
voltando depois para os maxilares. Mas o ataque de socos e murros foi maior do que um gigante pode
aguentar e assim ele foi caindo lentamente no chão e ficou esticado de costas, olhando para o céu. Seus
lábios se mexiam mas não se ouvia som nenhum. Parecia-se com um animal totalmente esgotado que os
caçadores abateram no chão. Agora é que chegou o momento crítico para ele, porque pelas condições da
luta o gigante devia morrer, pois se tratava de um duelo de morte. Havia grandes pedras ao alcance da
mão com as quais se poderia esmagar o gigante bem como pedaços de pau para estraçalhá-lo.
Mas o Fantasma recuou e gritou para o Povo das Cordas empoleirado nas árvores lá em cima: —
Derrotei o campeão de vocês da selva. A tarefa está cumprida. — E o chefe gritou para baixo, de cima
da copa de uma árvore: — Você o derrotou e ele nada pode fazer contra si. Agora mate-o, pois é um
direito que tem. — Mas o Fantasma respondeu: — Não é meu desejo matá-lo, como não é desejo meu
matar nenhum homem. A esta altura dos acontecimentos o Povo das Cordas exultou de alegria, e formouse um vozerio infernal, descendo pela infinidade de cordas compridas, tanto homens como mulheres e
crianças, todos escorregando pelas cordas de todas as árvores em volta dele. Mas com eles trouxeram
também o ancião e a garota. O chefe pôs-se em frente ao Fantasma e entregou-lhes as armas, dizendo: —
Você é realmente o Fantasma, nosso amigo de tempos passados. Quando apanhou o elefante na armadilha
você provou ter coragem e esperteza; ao remover a pedra, provou sua sabedoria e bom senso; ao escapar
dos guerreiros armados do nosso povo, provou que conhece a selva; e ao derrotar o gigante campeão, deu
provas de sua força. Mas foi justamente quando se negou a matá-lo, com ele impotente jazendo deitado
em sua presença, que ficamos certos de que realmente é o Fantasma, o Espírito-Que-Anda, o Guardião da
Paz. Isto porque com a sua atitude mostrou usar de misericórdia, coisa que nesta selva é muito raro
encontrar.

Depois de uma grande festa de regozijo em que tomaram parte todos os habitantes do Povo das
Cordas e até mesmo o gigante (que lhe custou muito engolir!), o Fantasma juntamente com o ancião e a
garota estavam livres para ir-se embora; e assim fizeram. Foi assim que seu pai encontrou sua mãe e
assim termina a história, meu bom Kit — concluiu o Velho Moze.
Os anões estalaram os dedos em sinal de aprovação e Kit bateu palmas. — E quando foi que o Sr. se
casou com mamãe? perguntou Kit, gritando de contentamento com a história.
— Casamo-nos mais ou menos um ano depois disto — respondeu o pai, olhando para a corrente
pendurada no Trono da Caveira. — Ela fora levar seu pai para casa porque estava doente e depois voltou
para junto de mim.
Kit dirigiu-se para o seu pai, abraçando-o.
— Mas que história fantástica. O elefante e aquela bruta pedra, todos aqueles guerreiros e o gigante.
Por que o Sr. não me contou antes?
— Foi um cochilo de minha memória. Esquecera-me — respondeu o Vigésimo.
— Sabe, Kit — disse sua mãe, rindo e abraçando-o — não tenho a mínima dúvida de que ele
realmente se esqueceu.
  

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