13 - A VOLTA DE GURÃ
— Gurã — gritou Kit, olhando inclinado para fora da janela.
O anãozinho correspondeu com um sinal afirmativo, todo contente por ter batido no lugar certo. Kit
estava para lhe pedir que esperasse que ele desceria, mas Gurã não quis esperar. No muro havia um cano
de água e ele subiu até à janela de Kit. Entrou no quarto e os dois se encararam.
Dez anos haviam passado desde que se viram pela última vez. Toda uma dezena de anos. Gurã,
agora com trinta e dois anos (Kit calculava rápido), parecia não ter mudado em nada, continuando aquela
figura corpulenta e nanica cuja cabeça mal chegava até à altura da cintura de Kit. Gurã tinha que levantar
a cabeça quando falava com Kit. Quando voltara para a selva o deixara um garoto magrinho e no entanto
agora estava frente a um gigante jovem e possante. Entreolharam-se de maneira até meio cômica. O
primeiro impulso de Kit foi de abraçar seu velho amigo. Mas Gurã parecia teso e formal e, ato continuo,
mudou de fisionomia. Nos breves momentos antes que Gurã falasse Kit teve um sentimento deprimente de
apreensão. Por que estava ele aqui?
— Trago-lhe uma mensagem da Floresta Negra — disse Gurã em sua linguagem simples de pigmeu.
— Seu pai pede que regresse imediatamente.
— Está doente? — perguntou Kit, tentando ler aquele rosto impassível.
— Ele está à morte — respondeu Gurã. Como todas as pessoas do seu povo, não usou de rodeios,
mas foi direto ao âmago da questão. Morrendo? Seu pai, o Vigésimo? Tão forte como um carvalho e
sólido como granito? Não podia ser. As pernas.de Kit começaram subitamente a fraquejar. Sentou-se
numa cadeira.
— Morrendo? Voltar já? — perguntou ele.
— Sim, imediatamente. Está esperando por você — disse Gurã.
— O que houve? Doença? Acidente?
— Ferimento com faca — disse Gurã. — Bandidos.
Agora não havia mais tempo para mais detalhes. Isto viria depois. Kit tinha que partir
imediatamente. E era neste instante.
— Agora mesmo?
Para o anão Gurã a palavra "Agora" não significava amanhã, nem dentro de quatro horas ou dez
minutos. Agora era agora mesmo.
A mente de Kit trabalhou rápida. Amanhã — O Dia de Kit Walker. Exames. Colação de Grau.
Diana. O pai morrendo. Agora.
E era agora porque um pequeno avião especialmente fretado estava esperando no aeroporto local.
Era preciso tomar o avião imediatamente para alcançar o vôo de linha do grande avião transoceânico que
fazia viagem direta até Bengala. Se perdessem aquele vôo, outro direto somente dentro de uma semana e
isto podia ser muito tarde.
Naquele momento Kit estava muito confuso para se dar ao trabalho de pensar como é que Gurã tinha
conseguido todos aqueles arranjos. Mais tarde ficou sabendo que todas estas providências haviam sido
tomadas pelo velho Dr. Axel, que havia sido chamado à Caverna da Caveira, vindo diretamente de seu
Hospital da Selva. Kit apanhou seus objetos pessoais de limpeza, enfiou-os numa velha maleta de felpo.
No momento não lhe ocorreu que era a mesma que havia trazido para a América. Deu uma olhada em seu
armário cheio de roupas, calças, suéteres, uniformes de times; sua cômoda cheia de camisas, meias e
mais uma infinidade de coisas; prateleiras entupidas de livros, cadernos e fotos. Em cima de sua
escrivaninha, um retrato grande de Diana, num quadro. Enfiou-o em sua maleta. Tudo o mais não teria
nenhuma serventia para ele na Floresta Negra. Relanceou pela última vez um olhar pelo seu quarto.
Encaminhou-se para a porta, mas logo parou. No salão havia amigos conversando. Ninguém podia vê-lo.
Então se dirigiu para a janela e resvalou pelo cano de água por onde Gurã subira. Agora Gurã descia
atrás dele.
Era alta hora da noite e na rua havia pouca gente, pois a maioria estava dormindo. Kit e Gurã se
meteram rapidamente por uma moita de arbustos.
— Espere aqui — disse ele.
— Tem que sair já — disse Gurã taxativamente.
— Tenho que fazer uma coisa. Espere — repetiu Kit. Deixou a maleta com Gurã e atravessou o
gramado do campo de jogos, deslocando-se escondido atrás de árvores e arbustos para não ser visto
pelos poucos casais que ainda estavam gozando das delícias duma fresca noite de primavera. Chegou ao
dormitório das senhoras. Sabia em que quarto Diana dormia. Não havia nenhum cano de água à mão, mas
os grandes blocos de granito lhe ofereciam um apoio e assim subiu trepando até o terceiro andar. A
janela do quarto de Diana estava aberta e o quarto, escuro.
— Diana — chamou ele, murmurando. — Diana.
No quarto escuro se ouviu uma respiração assustada, uma pausa, depois uma voz baixa e suave.
— É você, Kit?
— Sim. Preciso falar com você.
Um rumorejar de seda e ei-la na janela, com seus cabelos caindo-lhe pelos ombros.
— Mas o que há, Kit? — perguntou alarmada. — Você não devia ter subido. Entre, vamos, senão vai
cair.
— Não tenho tempo, minha querida Diana. Tenho que me despedir.
Despedir-se? Estava ela sonhando? Ou será que Kit ficara louco? Ou estava ele bêbado? Mas ele
nunca tomava bebida alcoólica de espécie alguma.
— Despedir-se? — perguntou ela desanimada.
— Não posso explicar. Algum dia explicarei. Tenho que voltar para casa e já. Meu pai está
morrendo.
Seu pai morrendo? Um lado do mistério que ele nunca revelaria. Agora todo aquele mistério se
transformava em pura realidade, uma realidade chocante que se interpunha entre os dois.
— Lamento muito — disse ela, não sabendo mais o que acrescentar. — Se é que é assim, quando vai
voltar?
— Não sei. Mas vou escrever.
— O Dia de Kit Walker! — exclamou ela, lembrando-se imediatamente.
— Não posso esperar. Diana, peço por favor que não lhes diga nada. Esta noite você não me viu.
Depois vou escrever a tio Efraim e titia Bessie. Mas não quero que nenhum deles saiba.
— Mas o que vão eles pensar? — perguntou.
Ele estava sentado no peitoril da janela, encarando a escuridão da noite. A lua minguante estava
perto do horizonte e o rosto encantador de Diana era branco à luz da lua.
— Não sei o que poderão pensar, mas já estou atrasado. Eu não podia deixar de despedir-me de
você.
Ela colocou seus braços nos ombros dele, sentindo um repentino frenesi diante de sua partida.
— Como ficou sabendo da doença do seu pai? O que aconteceu? — perguntou ela.
— Mandaram um mensageiro, que está esperando. Não posso demorar-me mais — cochichou ele. —
Diana. Eu a amo. — Beijou-a suavemente aos lábios e depois na testa.
— Adeus...
— Oh, Kit...
Ela nem conseguiu terminar o pensamento, porque ele já ia descendo. Lá de baixo, no gramado
escuro, ele acenou-lhe e em seguida sumiu. Ela ficou perscrutando atentamente na escuridão,
acompanhando com o olhar aquela cxiatura que ia se afastando.
Desapareceu entre alguns arbustos. Em seguida viu quando sua figura desapareceu na noite, seguida
de uma figura pequena. Será que a figura menor era uma criança? Sua mente retrocedeu uma década,
Lembrou-se de Kit e o pigmeu Gurã sentados ao lado do banhado. Era ele o mensageiro? Observou a lua
mover-se atrás de nuvens escuras e em seguida estendeu-se na cama, enfiou a cabeça no travesseiro e
chorou. Tudo lhe parecia tão irreal. Não seria um sonho, um pesadelo? Quando ela acordasse de manhã
ele certamente estaria esperando ao pé da grande escadaria. Mas um sentimento de vazio que lhe ia no
íntimo lhe dizia que não era nenhum sonho .
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