segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 433 : A LENDA DO FANTASMA

10 - O ALUNO PRODÍGIO 


Já não tendo mais Gurã em casa esperando por ele, Kit passou a se demorar na academia depois das
aulas para assistir aos ensaios dos times de jogos. Os times de atletismo e futebol faziam seus ensaios
nos campos de jogos fora. Os times de boxe e esgrima ensaiavam no campo de esportes. Assistia aos
ensaios de todos, comparando suas técnicas com aquelas que havia aprendido na Floresta Negra.
Mas Kit não fazia parte de nenhum time, porque não tinha certeza se seria bem aceito pelos seus
colegas. Uma tarde ficou encantado com uma aula de arremesso de arco que estava sendo ministrada nos
gramados da escola. Era uma turma de maiores e quem estava dando a aula era o Sr. Hobbes, professor
de literatura inglesa da classe de Kit e ao mesmo tempo professor de ginástica do colégio. O Sr. Hobbes
era um apaixonado do arco e flecha e durante as férias de verão se embrenhava nas matas do norte na
região montanhosa do leste para caçar, munido de arco e flecha.
Kit estava sentado na grama, observando. Estava surpreendido com o comprimento dos arcos e a
ponta fina de aço das flechas. Completamente diferentes das armas dos pigmeus com que estava
acostumado. Divertia-se em ver o embaraço daqueles garotões e com sua falta de habilidade. Mas
ocultava esse seu sentimento de gozação debaixo de uma expressão de impassividade. Na opinião de Kit
o Sr. Hobbes em suas demonstrações não era dos piores, embora achasse que não aguentaria muito tempo
nas selvas. Achava que era muito lento e inexato. Naquela noite Kit ficou namorando em sua mente
aqueles arcos e flechas compridos e sentiu desejo de experimentar um deles. Na tarde do dia seguinte
voltou a assistir aos ensaios. O Sr. Hobbes notara a sua presença e estava todo satisfeito com isto. Tinha
uma curiosidade incontida em torno desse rapazinho sombrio da distante selva, que durante a sua aula
raramente abria a boca e no entanto aprendia as lições com rapidez e facilidade.
Quando a aula de arco e flecha estava por terminar, o Sr. Hobbes chamou Kit, perguntando-lhe se
não gostaria de tentar uma jogada de arco e flecha. Kit hesitou. Os mais velhos, todos dos seus dezessete
e dezoito anos de idade, olharam para ele com interesse sem nenhum espírito de hostilidade. Já tinham
ouvido falar desse garoto estranho, mas como pertenciam a turmas superiores não tinham nenhum contato
com ele. A avidez e ansiedade por agarrar o arco venceu a sua timidez e ele pegou-o com evidente
contentamento. Oxalá Gurã estivesse presente para ver este lindo arco! Era duas vezes mais comprido do
que o arco que ele usara. Estava bem esticado, mas também o dos pigmeus era assim.
— Quem sabe se não é muito pesado para você — observou o Sr. Hobbes.
— Não. Está bem assim — respondeu Kit, usando de uma expressão que tinha ouvido no pátio da
escola.
Dobrou o arco diversas vezes, depois examinou a flecha, segurando-a horizontalmente estendida em
frente à sua vista para se certificar da sua exatidão, ótimo. O Sr. Hobbes observava-o atentamente. Como
arqueiro, reconheceu o senso experiente que Kit estava demonstrando.
— Se quiser pode chegar mais perto — sugeriu o Sr. Hobbes.
— Aqui está bem — respondeu Kit.
Dobrou o arco tanto quanto pôde. O Sr. Hobbes e os mais velhos olhavam atentamente, pois sabiam
que o arco era de material duro e difícil de dobrar. Mas esse magrelo do décimo sétimo grau era mais
forte do que parecia. Então Kit soltou a flecha que foi atingir o lado externo do centro do alvo. Todos
aplaudiram, mas ele voltou chateado e pediu ao Sr. Hobbes:
— Posso tentar outra? Não estou acostumado com este tipo de arco.
Admirado, o Sr. Hobbes entregou-lhe outra flecha. Mais uma vez esticou o arco e lá voou a flecha,
atingindo exatamente no olho do alvo.
Mais aplausos.

— Fantástico! — exclamou o Sr. Hobbes. — Pode repetir o feito?
Kit concordou e repetiu o arremesso mais cinco vezes, sempre acertando em cheio no alvo, deixando
as flechas amontoadas num canto.
— É a jogada mais perfeita que já vi na minha vida! — exclamou o Sr. Hobbes entusiasticamente. —
É formidável!
— Nem tanto assim — observou Kit pensativo. — Tenho usado arco desde que aprendi a andar,
quando tinha dois ou três anos.
Todos sentaram-se na grama.
— Que arremessos você tem feito? Conte-nos — pediu o Sr. Hobbes. Contou-lhes então que o maior
animal que já tinha matado em sua vida tinha sido um javali selvagem que quis avançar sobre eles, saindo
de um matagal, quando estava caçando em companhia de Gurã. Disse ainda que já havia matado animais
menores — acrescentando rapidamente que só para comer, pois na selva não se matam animais por
esporte. O Sr. Hobbes e os rapazes estavam encantados e queriam que Kit continuasse a contar mais
coisas. Mas Kit já havia falado o suficiente para aquele dia e desculpou-se, dizendo que tinha que voltar
para casa para fazer seus deveres de escola — como literatura inglesa... — observou ele maliciosamente,
sorrindo para o Sr. Hobbes.
Naquela tarde chegou, a vez de Kit. Espalhou-se a fama da agilidade e destreza de Kit e a
assistência por parte dos estudantes aumentava cada dia — entre eles, os seus colegas de aula.
Observavam sua maneira espantosa de atirar e a camaradagem que tinha com os mais velhos e o Sr.
Hobbes. Agora Kit já não ficava retraído, sozinho, no restaurante nem no pátio do colégio. Era procurado
por muitos rapazes também das outras turmas e disputavam amigavelmente quem é que teria o privilégio
de sentar-se perto desse garoto maravilhoso.
Kit havia dobrado o arco, mas na realidade ainda não tinha dobrado os seus músculos. Mas o
momento chegou também para ele, uma tarde em que estava andando pelo campo de jogos, observando os
times de atletismo e futebol fazendo seus ensaios. O Sr. Hobbes, o técnico, foi o primeiro a interessá-lo.
Convidou-o a tomar parte e juntar-se aos que disputavam corrida de velocidade de pouca distância e
também aos de longo percurso. Kit concordou e o Sr. Hobbes disse-lhe que poderia encontrar alguns
sapatos e roupa de ginástica no quarto dos armários.
Kit se desfez apenas do paletó, da camisa, das meias e sapatos, correndo descalço na pista de
corrida especial. Naquele seu primeiro dia correu como se fosse um corcel em disparada. Até os
jogadores de futebol que estavam no centro do campo pararam para observá-lo.
Naquele dia os corredores com tempo marcado estavam em forma e Kit se juntou a eles, percorrendo
oito vezes a pista oval. O técnico cronometrava o tempo da corrida. O tempo era um fator muito
importante. O treino tinha apenas começado. Mas quando Kit passou pelos outros na altura do marco na
metade da pista e continuou correndo, com seus cabelos compridos esvoaçando feito crinas de cavalo, os
outros corredores e jogadores de futebol se amontoaram em volta do técnico e do seu cronômetro.
Começaram a aplaudir e animar Kit quando passava por eles. Quando acabou de dar as voltas e andou
calmamente em direção ao grupo, sem demonstrar cansaço e respirando normalmente, todos olharam
admirados para ele.
— Este cronômetro deve estar quebrado — comentou o Sr. Hobbes. Kit examinou-o com interesse e
curiosidade.
— Quer dizer que o Sr. estava marcando meu tempo. Se soubesse disso teria corrido ainda mais
depressa.
Mais tarde o cronômetro foi testado e constatou-se que estava perfeito, sem nenhum defeito.
Com os olhos ligeiramente ardidos, o técnico comentou: — Dava até a impressão que este rapazinho
de escola estava correndo um segundo mais lento do que o recorde mundial. E conforme ele disse, era
apenas um ligeiro ensaio.

A notícia se espalhou. No dia seguinte já havia uma multidão que queria ver Kit correr. Mas
acontece que Kit estava assistindo os exercícios de arremesso de dardo. Perguntou se lhe permitiam
experimentar. Ele já conhecia este jogo. Deram-lhe o dardo e, num lance, arremessou o dardo além do
alvo. Mais longe ninguém da Academia Clark havia lançado. Em seguida ensaiou tudo o que lhe
ofereceram: disco, pulo ao alto, pulo à distância e corridas de velocidade. Era o melhor em tudo.
Obviamente, o rapaz era um atleta fenomenal.
O técnico de futebol, Sr. Hackley, procurou-o. Kit não estava familiarizado com o jogo, mas depois
de observar algumas partidas se juntou ao time, descalço. Recebendo a bola, disparou em direção à
trave, sem que ninguém conseguisse meter a mão nele. Na segunda tentativa, chutou direto para dentro da
linha, onde supôs que devia haver um espaço vazio. Mas não havia nada disto. Mas isto não o desanimou.
Movimentava-se como um tanque em disparada, passando por cima de colegas de time e adversários e
marcou mais um ponto. Voltou a passo de trote para junto do técnico, sorrindo, pois gostava deste jogo de
acrobacias.
— Aquilo estava certo? — perguntou ele.
Kit ficou agregado ao time de futebol, mas tomava um tempinho também para o boxe e atletismo,
dois esportes que conhecia e que o divertiam muito. Na escola ninguém conhecia judô ou caratê e por
isso passou a dar-lhes aulas destes dois esportes. A bravura que demonstrava nos esportes aumentou a
sua popularidade entre os colegas, o que o tornou mais contente e ajudou a amenizar a solidão que sentia.
Não tinha esquecido a Floresta Negra e todas as semanas escrevia aos seus pais. Não lhes escreveu nada
sobre sua aventura da fuga. Por que deixá-los preocupados, agora que tudo estava andando às mil
maravilhas. Contou-lhes como se divertia com os jogos e claro que a carta-resposta do pai não podia ser
outra, quando leu o seguinte: "Meu filho, não se esqueça dos livros". As cartas que recebia deixavam tia
Bessie e tio Efraim intrigados bem como seus colegas de escola, alguns dos quais eram filatelistas. Os
selos das cartas eram esquisitos. Kit não lhes disse que as cartas de casa eram escritas à luz de tocha na
caverna e que depois eram levadas por corredores que se revezavam, até o porto marítimo. Seria muito
acreditarem nisto. Kit não esqueceu nunca o aviso do pai e por isso se dedicava tanto aos seus livros
como aos seus times de esporte.
Quando os períodos preparatórios terminaram e os jogos de verdade e torneios começaram, a
Academia Clark ficou logo afamada pelo atleta espetacular que tinha e que apelidaram de "O Aluno
Prodígio". De pé no chão, corria feito um vendava! em redemoinho entre os times da escola. Visto que o
chão estava ficando mais duro e mais frio, o Sr. Hackley convenceu-o a usar sapatos, Kit preferiu tênis.
Nos torneios de atletismo que naquele inverno foram disputados dentro do colégio, Kit levantou uma
porção de recordes entre os mais velhos, vencendo-os em corridas de velocidade de curto e longo
percurso bem como em diversos outros esportes como dardo, pulo à distância, pulo de altura e disco. Em
sua divisão, em boxe e atletismo ele era imbatível.
E não é de causar muita surpresa se Kit sobressaía em todos estes esportes. Desde que começou a
dar os primeiros passos na Floresta Negra, tivera ele treinos diários de educação física ao estilo da
selva, de modo que aprendeu a desenvolver e coordenar estupendamente os movimentos do seu corpo.
Em se tratando de boxe e atletismo, estava naquilo que Kit adorava. Aqui na escola aprendeu a lutar mais
por esporte do que por questão de sobrevivência. Achava graça quando a coluna de esportes do
jornalzinho do colégio o descrevia como um indivíduo com "instinto de matar". Ele nunca mais tentou
matar, mas somente vencer, seguindo o conselho que o comandante de navio lhe havia dado há muito
tempo.
Certo dia do fim de outono aconteceu algo de terrível no zoo de Clarksville. A pantera negra
avançara no guarda, dilacerando-o e desfigurando-o e depois fugindo da jaula. Kit se lembrou daquele
animal que vira em suas primeiras visitas ao zoo, com os olhos amarelos cintilantes, sempre rondando
impaciente em sua jaula e espreitando todos os que passavam por perto. Vieram-lhe à lembrança também

as próprias palavras do guarda: "Veja aqueles olhos! Cruzes! É um animal sanguinário. Gosta de matar.
Nunca lhe vire as costas". Evidentemente, o guarda devia ter esquecido seu próprio aviso. O fato é que
lhe havia virado as costas por um instante enquanto estava limpando a jaula e o animal aproveitou o
momento para pular em cima dele. Fora levado ao hospital em estado grave e o assassino andava às
soltas pela cidade, sem ninguém saber onde estava escondido. .
A notícia suscitou um alvoroço repentino em Clarksville. As escolas estavam sem saber o que fazer:
se reter, os alunos ou mandá-los para casa. Algumas escolas acharam melhor mandá-los para casa, mas
recomendaram-lhes que não parassem em parte alguma. As crianças não precisaram ser avisadas mais do
que uma vez^ Muitas delas tinham visto a pantera em sua jaula e por isso naquele dia não se formou
nenhuma rodinha ou grupinho de bate-papo na casa de doces que havia na esquina.
A polícia e os bombeiros se espalharam pela cidade à procura do animal feroz. As ruas estavam
desertas pois os comerciantes haviam fechado suas lojas e as pessoas que tinham carro se dirigiram para
suas garages. O povo montava guarda ansiosamente nos seus pátios, com espingardas de caça, rifles e
armas de fogo que haviam tirado dos seus armários. Era pavoroso ter uma criatura destas solta pela
cidade.
Vários cães no parque perto do zoo foram as primeiras vítimas do animal. Coitados dos animais
foram atrás do enorme felídeo preto, decerto sem imaginar que era diferente dos gatos que costumavam
perseguir. Afinal de contas, parecia-se com um gato e tinha o mesmo cheiro. Dois cães foram mortos
imediatamente. Um terceiro conseguiu escapulir, totalmente malhado. Depois disto o negro animal
desapareceu por entre os arbustos fechados.
Juntamente com os guardas, a polícia deu buscas rigorosas pela área. Carregavam grossas redes e
armas de fogo, mas o guarda avisara que atirassem logo que vissem o animal. Seria muito difícil pegar
vivo este enorme felídeo.
Kit ficou sabendo do que estava se passando quando estava a caminho da escola, onde iria ter uma
aula de arco e flecha com o Sr. Hobbes. Na escola todos haviam sido dispensados e informados que
deviam ir para casa imediatamente. Kit saiu com o arco e com uma aljava cheia de flechas com ponteira
de aço, carregando tudo nos ombros. Na balbúrdia que se criara na escola, ninguém notara isto. Sozinho,
Kit começou a rondar as ruas vazias. As portas das casas estavam fechadas com toda segurança e rostos
apavorados observavam atentamente pelas janelas. De vez em quando um adulto ou criança chegava
ofegante a uma casa e entrava nela em disparada. Um policial gritou para Kit, mandando que fosse para
casa. Ele concordou com a ordem, mas continuou andando calmamente, chegando finalmente ao parque.
Kit encontrou lá os cães que a pantera havia morto, com o que não se alterou. Antes já tinha presenciado
matanças na selva. Olhou rapidamente em volta, procurando descobrir a direção que a pantera teria
tomado. Em dois lados do parque havia arbustos espessoas que a polícia estava vasculhando. Num
terceiro lado, um muro baixo com arbustos e logo além um gramado. Era uma escola para meninas.
Ajoelhou-se perto dos animais abatidos, que distavam poucos metros um do outro. Entre o pedregulho
havia pequenas manchas de sangue, que mal podiam ser notadas. Em sua fantasia imaginou as gotas de
sangue pingando dos dentes ou garras da pantera e ela correndo em disparada. Inclinando-se bem perto
das pegadas, seguiu a direção das manchas, que levaram diretamente ao muro. No muro encontrou uma
nódoa meio apagada. A pantera pulara por cima do muro, tocando-o de leve. Relanceou a vista em redor
à procura dos guardas e da polícia, mas já haviam desaparecido entre os arbustos.
Trepou no muro e examinou cuidadosamente o chão além. Era um gramado, com alguns pontos
cheios de sujeira ou poeira. Kit não teve dificuldade em seguir o rastro da pantera, pois suas garras
deixaram pequenos buracos na grama e espalharam sujeira ao fugir pelo gramado livre. O rastro levava a
uma colina em direção a uma moita de arbustos e árvores que ficavam perto de um grupo de prédios de
tijolo. Era uma escola de meninas e quando se dirigiu cautelosamente para lá ficou espantado ao perceber
que todas as portas estavam abertas e as garotinhas fugindo. Foi uma das escolas que não dispensara os

alunos, mas que tinha julgado estarem mais a salvo se ficassem na escola. Mas foram tantos os
telefonemas que recebeu dos pais das crianças que finalmente resolveram dispensar os alunos, dandolhes ordens estritas para que fossem diretamente para casa.
Kit dirigiu-se para elas correndo. Certo instinto natural resultante de seus treinos lhe dizia que a
presa devia estar perto. Percebia isto por um como que retesamento dos músculos que lhe vinha do
subconsciente, um súbito aumento do sentido de alerta, um aceleramento da respiração e da pulsação do
coração como se houvesse um bombeamento de suas adrenalinas para dentro da corrente sanguínea. Era
uma sensação conhecida, que dá tanto nos caçadores como na presa em plena selva.
Ouviam-se gritos das crianças. Algumas delas estavam correndo debaixo de um enorme pé de
carvalho. Olhavam para cima, berrando e correndo. Algumas caíam no chão. Acima delas, num galho
grande, parcialmente vedada pelas folhas marrons do outono, achava-se a pantera negra. Estava
agachada, pronta para dar o pulo.
Nas escadas, portas e janelas, professores e estudantes gritando de pavor. Meninas de saia azulescuro e blusa branca, corriam para todas as direções, com suas trancas voando. Papéis e livros caindo
pelo chão, quando em seu pânico se davam trombadas. Talvez não estejamos enganados se dissermos que
em todo este pandemônio e naquele momento só havia uma cabeça fria: a cabeça da pantera.
Num movimento tão rápido como um relâmpago, Kit arrancou uma flecha da aljava e ajustou-a no
arco. Imediatamente a pantera pulou, soltando um rosnado sedento de sangue e com suas fauces
escancaradas.
O arco comprido estava esticado ao máximo. E logo... Twang! A flecha com ponta de aço atingiu o
lado da pantera, no momento em que vinha caindo. O animal se arrebentou no chão a apenas alguns
passos de várias meninas que haviam tombado, no meio da balbúrdia. Mas ainda não estava morto.
Enfurecido, rodou no chão, procurando abocanhar a flecha com suas dentuças. Durante estes instantes
relâmpagos a pantera conseguiu agarrar a flecha com os dentes e começou a sacudi-la, para enfim jogá-la
fora. A menina que se achava mais perto do animal, caída ao chão, começou a se retirar, nervosamente,
engatinhando. A pantera se agachou, ofegante, deixando sair uma espuma vermelha de suas fauces.
Aqueles olhos amarelos corriam de todos os lados, com as meninas gritando, correndo e se arrastando
para fugir. A situação era crítica, chegara-se ao ponto culminante: um animal ferido e acuado. Não muito
longe do animal, uma garota estava tendo dificuldades em se mexer, pois tinha torcido o tornozelo e
chorava de dor ao tentar andar num só pé, com um só joelho e de quatro. Bem que poderia ter sido a
primeira vítima deste animal que entre crianças se movimenta que nem um tornado, destruindo uma
quantidade enorme em questão de instantes. E justamente neste momento a pantera fez menção de avançar
na menina que mancava. A garota soltou um grito de terror, mas de repente entre ela e a pantera surgiu
uma figura, que retesou fortemente o arco. Aqueles olhos cintilantes de fúria enfocaram a pessoa em pé,
as fauces se abriram e, com um bramido sedento de sangue, saltaram em cima dela. Twang! E o pau de
ponta de aço entrou uns trinta centímetros no corpo do animal, varou o coração para se localizar e cortar
a espinha. A pantera tombou que nem uma pedra, fulminada.
Por uns momentos que pareciam uma eternidade, toda a multidão de espectadores, moças e
professores, permaneceram em silêncio, estatelados pelo completo e total terror da cena. Foi durante
estes instantes de silêncio que Kit só ergueu a garotinha que se sacudia toda de tanto solução:
— Está tudo bem. Não chore. Ela não pode mais fazer mal — consolou-a ele.
Carregando a garotinha no colo, voltou-se para a multidão.
— A pantera está morta. — De todos os lados partiram gritos de alívio. Ainda sob o impacto do
acontecimento, algumas estudantes choravam. Mas tanto alunas como professores, todos se aglomeram
em redor de Kit, evitando com todo cuidado passar perto do animal tombado. Algumas senhoras pegaram
a criança que chorava e que estava sendo carregada por Kit e uma mulher gorda com uma coifa grande de
cabelos, óculos pincenez de prata e com um peito bem avantajado, foi abraçar efusivamente o menino.

— Oh, que garoto maravilhoso! Você é mesmo fantástico! — exclamava ela, ao mesmo tempo que
ria e soluçava. Era a diretora da escola. Outras professoras cercaram o menino, batendo-lhe nas costas,
pegando-o ou cobrindo-o de beijos. Aguentou tudo isto estoicamente, não conseguindo ele próprio falar.
Tensão e medo assaltaram-no violentamente e agora que tudo tinha terminado, seu corpo tremia.
Esperava que ninguém estivesse notando.
Os professores chamaram as alunas de volta para o prédio da escola. Não havia mais motivo para ir
para casa. A diretora convidou Kit para tomar chá junto com ele em seu escritório. Fez sinal afirmativo,
dizendo que dentro de alguns minutos estaria em seu gabinete. Dirigiu-se para a pantera morta. Algumas
crianças da escola e umas professoras observavam-no das escadarias e das janelas.
O animal jazia numa poça produzida por seu próprio sangue, com os beiços recurvados e puxados
por cima dos dentes brancos, com aqueles olhos amarelos. Kit sabia que este tipo de felídio nunca foi de
muitas amizades, mas o que teria feito com que se tornasse tão estranhamente violento, desconfiado,
evasivo, tocaiador?... Devia ter sido alguém, um caçador de peles, um comerciante, ou quem sabe se um
guarda não o teria maltratado de tal maneira quando ainda pequeno, a ponto de temer todos os seres que
fossem portadores de algum cheiro humano? Puxou a flecha, mas não queria sair. A primeira flecha, que
se havia partido ao meio, estava ainda enfiada no seu lado. Esta situação o deixou muito chateado. Ele
havia apanhado o equipamento sem permissão e então se perguntava se o Sr. Hobbes iria brigar com ele.
Sabia que os apetrechos de arqueiro eram particulares do Sr. Hobbes e não pertenciam à escola. Está
bem, tranquilizou-se assim mesmo, enquanto ia se afastando da pantera: flechas não custam tanto assim e
posso substituí-las.
Recusou o chá que a diretora lhe oferecera, mas aceitou um copo de leite. Ela queria que ele fosse
ao salão de festas do colégio onde o corpo docente e discente do colégio aguardavam por ele, para
agradecer-lhe o feito. Mas ele não conseguiria enfrentar esta demonstração e desculpou-se, dizendo que
tinha que voltar para a escola. Passou por filas de professores e alunas que o admiravam e depois se pôs
a correr escadas abaixo. Um caminhão de lixo estava no caminho e os lixeiros estavam levantando a
pantera para levá-la embora.
— Barbaridade, como é pesada. Quanto acha você que ela pesa?
— No mínimo uma tonelada e meia — observou o outro.
— E disseram que foi um garotinho que a matou com aquela flecha.
— Barbaridade.
Jogaram o corpo do animal no caminhão. Kit foi correndo a trote atrás do caminhão, até à altura dos
portões da escola. Sentia remorsos por ver o animal jogando bem em cima do montão de lixo do
caminhão. Não resta dúvida que era um fim ignóbil para uma pobre criatura.
— Sr. Hobbes, acho que o Sr. não se importa que eu tomei emprestado o seu arco. Duas flechas se
perderam, mas vou pagar o custo de duas novas.
— Duas flechas... se perderam. — Hobbes fingiu chorar.
— Eu tive que usá-las — respondeu ele. — Quanto custam?
Amanhã eu trago o dinheiro.
Hobbes passou os braços em volta de Kit, dizendo: — Meu filho, meu filho. E não conseguiu dizer
mais nenhuma palavra de tão emocionado que estava.
Quando Kit chegou em casa deparou com toda a vizinhança reunida, jornalistas, fotógrafos e
microfones na porta de entrada. Dentro de casa o telefone não parava de tocar e tia Bessie e tio Efraim
inflavam de orgulho e de empolgamento. Quando os jornalistas e locutores de rádio correram para o lado
do menino, os tios o abraçaram. Ele respondeu as perguntas brevemente, posou junto com tio Efraim e tia
Bessie e logo disparou para o seu quarto de dormir, caindo nos lençóis que se achavam no chão duro,
totalmente esgotado. Adormeceu imediatamente e dormiu um sono pesado durante muitas horas.
Acordou quando já era noite e ficou admirado por ter dormido tanto tempo. Não sabia que estava tão

cansado, pois a tensão e o medo o deixaram extenuado. A lembrança daquele medo que experimentara o
atormentava. Com exceção de uma ocasião em que matou um javali selvagem — e Gurã e outros estavam
com ele — antes nunca se vira tão perto da morte. E anteriormente nunca chegou a experimentar
realmente medo. Será que no fundo era um covarde? Será que seu pai já sentira medo? Ficou aclarando
as ideias sobre este particular e acabou escrevendo ao pai a respeito de suas preocupações.
Seu pai lhe escreveu, dizendo que ele sempre sentira medo quando tinha que enfrentar um perigo de
verdade e que o mesmo acontece com todos os homens, a não ser que estejam bêbados como um porco ou
que estejam mentindo e que o medo fazia parte do instinto de sobrevivência do homem. "O medo e a
raiva correm nas mesmas veias em seu corpo", escreveu ele, "e em toda a experiência de minha vida, os
seres inteligentes dotados de vida experimentam estes sentimentos. Medo diante da luta, raiva diante do
ataque, e muitas vezes uma combinação de ambas as coisas. Sim, meu filho Kit, todos os homens
conhecem o medo. Muitas vezes eu também já tive medo. Há pessoas que são pueris, por demais tolas
por não quererem admitir esta verdade. Não há motivo nenhum por que devamos nos envergonhar disto.
Tia Bessie nos escreveu a respeito de sua façanha de arqueiro. Sua mãe e eu sentimos orgulho por você,
embora sua mãe tenha ficado sobressaltada. Ela não podia conceber que nas margens do Mississippi
você fosse se enfiar quase debaixo de uma pantera negra, em plena Clarksville (tão pouco eu podia
imaginar uma coisa destas)". A carta trazia a assinatura do pai, com aquele seu "sinal de identidade" — o
símbolo do anel em sua mão esquerda — "mais perto do coração".
Mas aquela carta chegaria um pouco mais tarde. Naquela noite, quando acordou daquele seu sono de
cansaço extremo, o telefone continuava tocando e na porta de entrada havia ainda pessoas conversando.
Saiu de mansinho pela escadaria dos fundos e meteu-se na cozinha vazia, apanhando leite e frutas da
geladeira, pois não se aguentava mais de fome. Tia Bessie entrou, com os olhos brilhando de
contentamento.
— Você está acordado, meu filho. Como deve estar cansado. Oh, Kit, você nem pode imaginar quem
era aquela menina que você apanhou e que você salvou.
Ele sacudiu a cabeça, continuando a comer uma maçã ruidosamente.
— A mãe dela é uma grande amiga minha e ela disse que já conhecia você. Ela se chama Diana
Palmer.
Agora se lembrou: era aquela mesma menina que o encontrou juntamente com Gurã, quando estavam
tomando banho naquele pequeno buraco cheio dê água.
— Está passando bem? — perguntou ele.
— Foi só uma pequena torcedura no tornozelo — respondeu tia Bessie. — Oh, meu Kit, quanta gente
quer ver você. Estão todos esperando.
Durante semanas na cidade só se comentava o feito de Kit.
Quando retornou aos seus deveres rotineiros de aulas, esportes e deveres de casa a vida voltou ao
normal. Não resta dúvida que não era exatamente como antes. Tornara-se o herói da cidade e todo mundo
em Clarksville o conhecia. Quando passava pela rua todos o cumprimentavam e sorriam. Pessoas nas
cercas, ou aqueles que regavam os gramados e outras que cuidavam dos jardins não perdiam
oportunidade para saudar Kit e bater um ligeiro papo com ele. Era um excelente sentimento de dedicação
e carinho, como se tivesse nascido nesta cidade. No momento todas as suas ansiedades, temores e
solidão haviam desaparecido. Embora volta e meia sentisse uma dor aguda de saudades dos seus pais,
sentia-se feliz e contente em Clarksville.
Mas, eis que certo dia lhe chega uma carta da Floresta Negra. Muitas já tinham vindo de lá. A última
chegara fazia muitas semanas. Por isso que cada carta que recebia abria-a com avidez. Imediatamente
amassou-a e deixou-a cair ao chão e retirou-se para o seu quarto, onde permaneceu durante dias trancado,
recusando-se até a comer. Em sua carta o pai dizia simplesmente que sua mãe havia falecido
repentinamente, vítima de malária tropical. Morrera enquanto dormia. Não sentiu nenhuma dor. A carta

dizia que devia permanecer em Clarksville, visto que no momento não havia razão nenhuma para ele
regressar: Metido atrás da porta trancada do seu quarto, Kit chorava, já não mais aquele prodígio de
aluno, mas uma criança solitária e infeliz. Que rida mãezinha. Semelhante a um animalzinho que
engatinhava à procura de um esconderijo quando ferido, Kit tinha que permanecer sozinho, suportando a
sua dor. Quando finalmente saiu de seu quarto, magro e com os olhos vermelhos de tanto choro, aceitou
as condolências do tio e da tia em silêncio e nunca mais falou sobre o assunto da morte da mãe.
  

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