segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 429 : A LENDA DO FANTASMA

6 - RUMO À AMÉRICA 


Já há muitos anos Kit ouvia falar que um dia iria visitar seus tios na América. Para ele era um
assunto vago que nada significava. Mas agora já se tornara uma notícia que o deixava alarmado. Viajar?
Quando? Dentro de um mês. E para quê? Para receber uma formação adequada. Porque já lhe ensinei
tudo o que está a meu alcance. Você precisa ter uma instrução mais aprimorada. Por que tem que ser na
América? Porque sua tia, que é minha irmã, reside lá.
As diversas gerações do Fantasma desposaram senhoras de várias nações. Algumas eram oriundas
da parte norte e ocidental da Europa; outras, do Oriente Médio e países do Mediterrâneo; umas da Ásia e
da África, enquanto que outros foram encontrar suas consortes nas Américas, do norte e do sul, e alguns
nas ilhas espalhadas nos oceanos. E, seguindo uma tradição, o filho homem era enviado à nação de sua
mãe para receber uma educação mais aprimorada, se nela existissem meios para isso, ou então à nação
mais próxima que pudesse proporcionar tais possibilidades. A mãe de Kit criara-se na América e sua
irmã residia lá, numa pequena cidade situada no Médio Oeste; e era para lá que ele iria para continuar a
sua formação e educação.
Kit era de um temperamento calmo, mas às vezes ficava cismado e de mau humor. O que era a
América? Um lugar estranho, apavorante. Não queria ir para lá. Estava pensando em fugir de casa e
confidenciou seus planos a Gurã, que o dissuadiu da ideia. Com todos aqueles canibais e caçadores de
cabeça à solta ele não podia afastar-se até muito longe na selva. Ademais, estava certo de que seu pai o
localizaria, por mais longe que fosse. Mas em tudo isto havia um detalhe feliz: Gurã iria juntamente com
ele para a América. Atualmente Gurã era um rapagão bem crescido com seus vinte e dois anos, um anão
parrudo e forte, uns quinze centímetros mais baixo do que o garoto Kit que tinha doze anos de idade.
Kit recebeu uma infinidade de recomendações antes de partir: sobre a viagem, sobre as pessoas com
quem iria conviver e sobre o comportamento que devia ter longe de seus pais. Havia o problema da
maneira de vestir das cidade e — pior de tudo — os sapatos. Tanto Gurã como Kit, nenhum dos dois
jamais tinha calçado alguma proteção para os pés. Depois de algumas tentativas, Gurã simplesmente se
recusou a calçar sapatos e o máximo que aceitou foram umas alpargatas. Calças e camisas eram coisas
que o enfastiavam, mas deu a entender que as aceitaria, jurando consigo mesmo que as mandaria às favas
na primeira oportunidade. Kit estava numa situação menos felizarda, pois ele teria que se acostumar a
calçar sapatos, embora fossem para ele um verdadeiro suplício. Ás roupas eram menos caceteantes,
muito embora esperasse vestir um traje colado ao corpo e uma máscara iguais às do seu pai. Ficou
sabendo que os homens na América não se vestiam daquele jeito.
Finalmente chegou o dia da partida. Todos os pigmeus de Bandar estavam a postos para assistir à
partida de Kit e Gurã, filho do chefe. Kit dirigiu-se rapidamente para o interior da Caverna, lançando um
derradeiro e rápido olhar na Cripta, nos livros das Crônicas, nos trajes e nos quartos dos tesouros.
Depois, já na saída da Caverna, mal conteve as lágrimas ao jogar seu beijo de despedida à sua adorável
mãe e bom pai. Levava consigo uma pequena maleta felpuda onde estavam seus poucos pertences
pessoais. Na América teria tudo o que fosse preciso. Na maleta felpuda estavam também suas roupas e
sapatos. Gurã levava somente um alforje apertado com seu arco, flechas e lança. Tanto ele como Kit
atravessariam a selva em suas tangas costumeiras. O pai entregou a Kit um pequeno saquitel de couro,
recomendando-lhe que o conservasse dentro da maleta de felpo.
— E dinheiro para a sua manutenção e educação. Quando chegar lá, entregue-o a seu tio — disse
ele.
A bondosa mãe permaneceu em pé na sombra da Caverna. Não conseguia conter as lágrimas.
— Adeus, querido — murmurou ela, beijando-o de novo. Para que conservasse uma boa recordação

dos últimos momentos, tentou sorrir, postada na entrada da Caverna ao lado do pai que estava também
perto, sobressaindo por cima dela em altura. Ele nunca mais a veria.
Acompanhados por um séquito de doze anões, puseram-se a caminho num andaço lento, sem olhar
para trás, atravessando as águas estrugentes da cachoeira e assim deixando longe a Floresta Negra. Nos
anos vindouros as palavras do seu pai, suas últimas recomendações iriam permanecer gravadas
nitidamente na lembrança do filho. "Lembre-se de tudo o que lhe ensinamos, meu filho Kit. Nós o
amamos e sentimos orgulho de você. Escreva-nos. Lembre-se sempre de nós".
Lembrar-se sempre deles? E como poderia ele esquecê-los? como poderia deixar de lembrar-se da
Caverna, dos animais, da Praia Dourada, da Ilha de Éden e da selva?
Conforme havia sido combinado previamente, estavam a meio dia de distância da Floresta Negra,
em plena selva, onde deram com uma formação de cem guerreiros "Wambesis que os aguardavam. Não
sabiam quem era o garoto; a única coisa que sabiam é que haviam recebido instruções emanadas da
Caverna da Caveira, solicitando a escolta. Os Wambesis se uniram ao grupo, mas estavam de olho atento
na escolta formada pelos pigmeus de Bandar. Como todos os habitantes da selva, respeitavam e temiam
esse povo pequeno e envenenado. Mais adiante esperava-os outro grupo composto de uma centena de
guerreiros Llongos. Uniram-se ao séquito. Quando a longa coluna ia atravessando a selva, mais tribos
enviavam seus guerreiros. Quando a procissão chegou à pacata capital portuária já tinha uma formação
de um milhar de guerreiros fortes oriundos dos confins da selva, com suas penas vistosas, com seus
ornamentos e tatuagens festivas, com sinetas estridentes presas nos tornozelos, rindo e divertindo-se em
altas vozes, provocando uma algazarra que mais se parecia com uma tormenta que se avizinha. Alguns
deles nunca haviam saído da selva e estavam maravilhados ao presenciarem as belezas da civilização.
Por sua vez, os nativos da civilização estavam também pasmados e até aterrorizados com o que viam. A
coluna se parecia com um exército invasor. Chamados telefônicos de alarme chegaram aos quartéis
centrais da Patrulha da Selva. Mas a Patrulha da Selva havia sido prevenida. À frente da coluna seguiam
dois carros da patrulha, conduzindo-a em direção ao cais. Encabeçando a coluna, andando a passos
lentos, estavam Kit e Gurã.
Kit fizera uma parada na entrada da cidade para ajeitar as suas roupas e calçar os sapatos
procurando esconder uma manqueira provocada por eles, quando passava pelas multidões que os
observavam nas calçadas. Gurã estava de alpargatas, mas recusou-se a andar mais. Os anões eram as
grandes vedetes. Ninguém da cidade jamais vira um anão de Bandar, embora todos tivessem ouvido falar
deles e de suas armas mortíferas. Olhares cautelosos e apreensivos eram lançados às flechas que
balançavam em cada um dos pequenos ombros e às lanças curtas que cada um levava consigo. Toda a
cidade comentava o acontecimento. Por que estavam eles ali? Quem era afinal o garoto?
No cais estava ancorado um grande navio de turistas. Centenas de passageiros postaram-se na
balaustrada para apreciar a colorida parada. Alguns pensaram que estivessem desfilando em homenagem
a eles. Mas quando Kit subiu a escada de embarque e se despediu acenando com as mãos, um grito
selvagem prorrompeu das mil gargantas da selva que ali estavam. Foi então que tanto os habitantes da
cidade como os turistas se perguntavam curiosos quem seria esse garoto. Seria ele um príncipe? Seria
filho de algum rei? De algum presidente? Quem poderia imaginar que ele era a vigésima primeira
geração do Fantasma!? E quem iria lhes dizer isto? Não havia de ser Kit e tampouco Gurã, que esboçava
um sorriso, sempre ao lado de Kit, meio assustadiço. Este que ali estava não era nada menos do que Kit
'Walker', a caminho da América para ser educado.
Os dois permaneceram em pé na balaustrada do navio, apreciando a pequena cidade, a floresta e as
montanhas lá no fundo. A escolta da selva estava se afastando do cais de volta para suas casas. O barulho
estridente do apito do navio deixou momentaneamente os guerreiros em pânico, até que enfim perceberam
o que era. Em seguida, gritando e rindo à vontade, afastaram-se rapidamente da cidade. Enquanto o
enorme navio se movimentava lentamente para dentro da baía, Kit e Gurã acompanhavam com a vista os

guerreiros. Os dois evitavam entreolhar-se, porque ambos tinham os olhos marejados de lágrimas. Sim.
Adeus Bengala!
 

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