segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 428 : A LENDA DO FANTASMA

O Fantasma Feminino 


O Décimo Sétimo Fantasma (bisavô do pai de Kit) nascera gêmeo de uma irmã. Irmão e irmã foram
criados na Floresta Negra e sua vida nada tinha de diferente daquela que Kit levava. De geração para
geração as mudanças que havia quase não se notavam. Tanto o irmão como a irmã aprenderam a andar a
cavalo, nadar e caçar juntos. Aprenderam as tradições e costumes da selva e quando atingiram a idade de
doze anos foram enviados a Roma para serem educados. Durante os anos que passaram na Cidade Eterna
o notável par foi motivo de admiração para os romanos; o rapaz com seus dotes físicos e a menina, de
nome Júlia, com sua beleza.
Quando já adulto chegou o dia em que o irmão foi chamado de volta para assumir o seu lugar no

Trono da Caveira. Abrindo mão do oferecimento de casamento feito por quatro condes, três duques e por
um príncipe da família real, Júlia voltou em companhia de seu irmão. Para ele esta decisão da irmã foi
uma surpresa. Ele julgou que ela devia permanecer e fazer carreira no mundo civilizado. Acontece que
ela achou a vida e o povo do continente muito exaustivo e dissolutos e desejava ardentemente voltar para
a selva. Assim retornaram eles à Caverna da Caveira, assumindo ele o lugar e funções de seu falecido
pai que tivera morte violenta: a sorte costumeira do homem que usava o Anel da Caveira.
Passados alguns meses, Júlia começou a pensar se não teria dado um passo errado. Ela gostava da
Floresta Negra, mas agora se sentia solitária, de vez que seu irmão gêmeo estava frequentemente ausente
em suas missões. Tivera ele algumas refregas violentas, mas até aqui sempre voltara sem ferimentos.
Quando ele estava em casa costumavam cavalgar, caçar e nadar juntos. Júlia em seu sarongue e seu mano
vestindo agora seu garboso traje do Fantasma.
Certa noite chegou ao Trono da Caveira um pedido urgente de ajuda. Bandidos haviam interceptado
uma rica caravana na entrada da selva, roubando e matando. A Patrulha da Selva chegara no local tarde
demais e seguiu a pista dos bandidos até um lago. Os bandidos haviam tomado à força uma embarcação
grande que servia de habitação e estava ancorada nas águas infestadas de crocodilos. Tinham levado
como refém um jovem missionário que viajava com os caravaneiros e ameaçavam matá-lo caso a
patrulha tentasse atacá-los. O novo Décimo-Sétimo Fantasma — gêmeo de Júlia, em seu posto de
comandante da patrulha — ordenou que se retirassem. Em seguida saiu para resgatar pessoalmente o
missionário. Mas não foi sozinho, pois Julia fez pé firme e quis acompanhá-lo. Os salteadores eram uns
sujeitos cruéis e perigosos. Os riscos eram graves, mas ela sabia atirar tão bem quanto seu irmão e por
isso insistiu em acompanhá-lo. O tempo urgia e não se podia demorar com argumentos contra uma gêmea
feminina que persuadiu-se daquilo e então ela cavalgou junto, depois de prometer que obedeceria às suas
ordens.
Quando chegaram ao lago, Júlia se escondeu nos bambus que havia na praia e ficou observando com
binóculos como seu irmão se aproximava calmamente da embarcação. Júlia viu o missionário prisioneiro
que estava amarrado a um poste. Era jovem e de boa aparência e percebia-se que estava cansado e
faminto, além de necessitar de banho. As ataduras que tinha na cabeça e no braço eram prova de que não
foi feito prisioneiro sem uma luta corpo a corpo. O coração de Júlia sentiu-se atraído por ele. Não se
podia supor que missionários soubessem lutar, mesmo que jovens e de aparência agradável.
Entrementes seu irmão encaminhava-se em direção à embarcação passando por aquelas águas
eivadas de perigos. O coração de Júlia sentiu um colapso momentâneo quando ela percebeu o focinho de
um crocodilo aparecendo perto do irmão. As mandíbulas trincavam os dentes e avançavam para
abocanhar, mas falharam porque o Décimo Sétimo deu um mergulho, e mudou de rumo. Por um ligeiro
movimento dos binóculos Júlia se certificou de que o irmão estava salvo e que ninguém a bordo havia
notado, Agora, na penumbra do crepúsculo, chegou até à beira do convés e, aguardando uma chance,
subiu nele. Os bandidos estavam embaixo, comendo e bebendo ruidosamente. O jovem missionário olhou
espantado quando o estranho mascarado trepou no convés. Pela maneira furtiva como se aproximava
imaginou que devia tratar-se de alguma pessoa amiga, de um libertador, apesar de sua aparência estranha.
Mas, apesar de todas as precauções que tomara, o> Décimo Sétimo não conseguira subir a bordo
totalmente despercebido. Uma sentinela postada em local escondido ficou observando e esperou para ver
o que o forasteiro iria fazer. Quando viu que o homem mascarado começou a cortar os laços do
prisioneiro, apertou o gatilho de sua espingarda. O Décimo Sétimo caiu ao solo, no convés, e os
bandidos que estavam farreando subiram correndo ao ouvirem o tiro. Em terra Júlia estava observando,
apavorada diante da sorte do irmão gêmeo.
Estava gravemente ferido e os bandidos olhavam para ele cheios de curiosidade. Reconheceram-no
pelo traje que vestia e pela fama que corria a seu respeito. Um bandido levava ainda um sinal da caveira
em seu maxilar, de uma refrega que tivera com ele anos antes. Devia ter sido na luta com o pai dos

gêmeos; mas para estes desordeiros o Fantasma era o Fantasma.
O desordeiro com o sinal da caveira deu uns pontapés no homem mascarado que estava caído e
depois pisou em cima dele. Em terra Júlia estava presenciando tudo e tremia de medo, sentindo em si
mesma as dores do maltrato infligido ao irmão.
— Esperei vinte anos para ajustar contas contigo — gritou o bandido, xingando e dizendo palavras
obscenas ao pobre homem que jazia impotente.
— Calem a boca com essas imoralidades, seus covardes — gritou o jovem missionário,
contorcendo-se nas cordas que o mantinham amarrado. Um bandido desferiu-lhe um tremendo bofetão no
rosto para que se calasse.
O chefe dos bandidos era um sujeito desordeiro de porte enorme, gordo e barbudo. Soltou uma
gargalhada na cara do missionário.
— Algum herói por aí... tentou salvar a sua vida... e nem conseguiu salvar a sua pele. Fantasma,
Espirito-Que-Anda! Homem-Que-Não-Pode-Morrer!
O bandido com o sinal da caveira no maxilar apontou a sua pistola para a cabeça do Fantasma, que
estava inconsciente.
— Não pode morrer? Então vejamos se é verdade!
O líder ordenou-lhe que não fizesse isto.
— Seu estúpido, claro que isto não é verdade — disse ele.
— Desta maneira é muito fácil ele morrer. Amarrem-lhe as mãos e as pernas!
Depois de fazerem o que lhes havia sido ordenado, os bandidos olharam para o chefe. E agora?
— Deixemos que os crocodilos saboreiem este espírito, este Homem-Que-Não-Pode-Morrer. — Os
bandidos vociferaram, em sinal de aprovação. Então, entre gritos e risadas, suspenderam o homem
inconsciente, prontos para o atirarem ao mar.
— Esperem! Ainda não — gritou o chefe; mas já era muito tarde. A pobre criatura desapareceu
debaixo da superfície das águas. O chefe tinha a intenção de retardar esta providência até o dia clarear
para que pudessem presenciar a cena, visto que agora era noite. Ficaram observando por algum tempo.
Alguns crocodilos se movimentaram na água para depois mergulhar. A maioria dos bandidos voltou para
a pagodeira, mas alguns permaneceram no convés junto com o chefe, olhando atentamente para a
escuridão, na esperança de perceber algum movimento na água.
No momento em que o irmão foi jogado de bordo Júlia lançou-se nas águas escuras do lago. Num
cinto que tinha amarrado em sua cintura trazia uma faca comprida, sua única arma. Os dois gêmeos
nadavam que nem peixes e ela movimentava-se com rapidez nas águas do lago, subindo à tona por breves
instantes para aspirar e depois voltando novamente debaixo da superfície.
Alcançou com rapidez o irmão perto do fundo do lago, onde seus fracos movimentos lhe indicaram
que ainda estava vivo. Arrastou-o numa boa distância, a fim de afastá-lo da embarcação, e em seguida o
trouxe à tona com cuidado. Estava semi-consciente e arfava, procurando respirar. Os bandidos no convés
esticaram os olhares. O que teria acontecido no fundo das águas? Será, que os crocodilos já haviam
festejado e saboreado o novo bocado? Na realidade um deles por pouco que não agarra o homem
mascarado. Seu focinho frio roçou pela perna de Júlia, escancarando as enormes mandíbulas. Por um
instante Júlia soltou o irmão, agarrou a faca e mergulhou por baixo do sáurio de aproximadamente cinco
metros de comprimento. Em tempos passados os dois gêmeos já haviam caçado crocodilos, porque os
anões consideravam a sua carne um ótimo prato e Júlia sabia o que iria fazer com aquele animal. Enfiou a
faca na parte do ventre que fica do lado debaixo, que é muito macia, enterrando-a até o coração. O
crocodilo debateu-se e esbateu a água, provocando um redemoinho e levantando borbulhas, quando então
os bandidos no convés começaram a rir, mostrando as suas dentuças. Os crocodilos tentavam saborear a
carne do Fantasma.
Júlia arrastou o irmão até à praia, abrigando-o entre os bambus e, ajeitando-o numa rampa, levou ar

aos seus pulmões, usando o método de ressuscitar boca-a-boca conforme seu pai lhe havia ensinado. Ele
quase morrera. Faltou pouco. Em suas costas havia uma ferida produzida por bala, seu corpo todo
machucado e esfolado pelos coices e pisoteamento que recebera. Júlia chorava e tremia de raiva, ao
debruçar-se sobre o irmão muito amado. Estava ainda inconsciente, mas seu coração pulsava ainda forte.
Rasgou quase todo o seu sarongue ensopado para improvisar ataduras para as costas dele. Relanceou um
olhar para o barco ancorado no lago. Gargalhadas e orgia soavam pelas águas escuras e, na tênue luz de
lâmpada, mal conseguiu divisar a silhueta do jovem missionário, caído pesadamente em suas cordas e
ainda amarrado ao poste.
Em seguida puxou devagar seu irmão pela grama até alcançar as árvores em que seus cavalos
estavam amarrados pelo cabresto. Júlia era magra e forte, mas seu irmão era um senhor jovem muito
grande e pesado, como todos os de sua raça. Teve que usar todas as suas forças para colocá-lo em cima
do seu cavalo, de modo que ficou atravessado na sela. Em seguida montou a sua égua e levou-o de volta à
Floresta Negra, andando muito devagar.
Os pigmeus receberam-nos em profundo silêncio. Um Fantasma voltar neste estado já era coisa
tradicional entre eles. Alguns voltavam com vida, outros já mortos. Sempre haveria outro Fantasma. Mas
desta vez só havia os gêmeos. Carregaram o irmão para dentro da caverna e examinaram-lhe o ferimento.
A bala não atingira a espinha, nem tocado o coração ou pulmões. Sobreviveria e se recuperaria. Mas esta
recuperação levaria muito tempo, muito tempo mesmo.
Levaria muito tempo? Júlia pensava no jovem missionário. Quem poderia socorrê-lo nestas
circunstâncias? Não haveria de ser seu irmão. Nem a Patrulha da Selva. Tomou uma decisão rápida. Ela
sabia atirar e cavalgar tão bem quanto o irmão. Eles julgavam que seu irmão estava morto, devorado
pelos crocodilos. Ela então retornaria para o cenário da luta como se fosse o Fantasma. A toda pressa
preparou um traje de um tecido que tinha no armário, apanhou as armas e a máscara do irmão e,
completamente vestida, partiu da caverna. Os pigmeus estavam maravilhados, pois conheciam Júlia
desde criancinha de berço. Tentaram convencê-la a não ir, mas ela fez pé firme. Eles queriam
acompanhá-la, mas ela estava com pressa e seu andar lento feito de gato demorava muito. Mas, eles
podiam fazer alguma coisa para ela: tocar os tambores e enviar uma mensagem aos patrulheiros da selva
para que se dirigissem à praia do lago.
Quando ela se pôs em desabalada, atravessando a cachoeira e embrenhando-se na selva, os tambores
começaram a rufar, levando a mensagem pelos vales e colinas, pegando-a e passando-a adiante de tribo
em tribo. Patrulha — Para o Lago Escuro.
Depois de dois dias e uma noite Júlia chegou ao lago. Será que já estava atrasada? Não. O barco
estava ainda lá. Os bandidos continuavam com a sua bebedeira festiva. A patrulha não tinha ainda
chegado. Podia ser que nunca chegasse e por isso ela não podia ficar ali esperando, presenciando tudo
aquilo. Ela sentiu medo, mas a lembrança do tratamento que infligiram ao seu irmão a deixou furiosa de
modo que não vacilou e mergulhou nas águas escuras. Desta vez não deu com nenhum crocodilo no
caminho e alcançou o barco sã e salva. Quando ela subiu até o convés, bem perto do missionário,
deparou com um bandido que oferecia um copo de vinho ao prisioneiro exausto. O missionário recusou o
vinho e por isso o celerado jogou-lhe o vinho no rosto. Neste momento ele se virou para ver a figura
mascarada que pulava dentro do convés. Esbugalhou os olhos. Ao invés de sacar a pistola, virou-se e
fugiu correndo. O missionário olhou para ela completamente atordoado. Sim, mascarada, como antes,
mas de maneira diferente. Empunhava a faca e às pressas começou a cortar as cordas quando três
bandidos subiram correndo ao convés, acudindo aos gritos do seu colega. Eles também olharam
espantados para a figura que julgavam morta no fundo do lago. O convés estava escuro e por isso não a
tinham visto claramente. Em seguida correram para apanhar seus rifles, postando-se na beirada. Quando
eles voltaram em direção a ela, com os rifles na mão, ela atirou friamente para eles. Um, dois, três e eis
que tombaram no convés quase juntos. O gordão do bandido chefe precipitou-se no convés. Estava

acompanhado do bandido que tinha o sinal da caveira e que havia pisoteado e maltratado o seu irmão. Os
dois estavam armados. Estes homens haviam chacinado uma infinidade de homens, senhoras e crianças da
caravana, conforme ela se lembrava. Quando ergueram suas armas para atirar, ela acertou uma bala no
homem marcado com o sinal da caveira, bem entre os dois olhos. Um segundo tiro, menos letal, fez o
bandido chefe tombar no convés. Tem-se espalhado a fama de que a "a mulher da genealogia é mais
mortal do que o homem". E Júlia estava dando provas disto. Sob suas ordens e orientação o jovem
missionário confuso e aturdido apanhou um rifle e apontou-o contra a meia dúzia de bandidos que ainda
restavam, que estavam acuados numa balbúrdia infernal perto da proa.
— Se alguém tentar mexer-se, atire bem na cabeça — ordenou ela.
— Onde? Na cabeça? — perguntou o jovem missionário numa voz sumida.
— Sim, na cabeça, já lhe disse! — gritou ela.
Estupefatos e confusos diante do aparecimento do homem que julgavam morto, os bandidos a esta
altura olhavam atentamente para a semiescuridão. — É mulher! — gritou um deles.
— Uma mulher? — vociferou outro, investindo com uma faca contra a figura esguia e mascarada.
Júlia lançou um olhar rápido em direção ao jovem missionário. Lá estava ele em pé, com seu rifle, sem
se mexer, não afeito que estava a este tipo de violência. Júlia disparou, derrubando o portador da faca no
chão do convés.
Ouviram-se gritos vindos da praia. Era a Patrulha da Selva. — Parem onde estão — gritou ela, ao
que os patrulheiros em terra se entreolharam, perguntando-se:
— Não ê uma voz de mulher a que ouvimos?
— Apanhem aqueles paus ali e empurrem-nos até a praia — ordenou Júlia aos bandidos que haviam
sobrado. Obedeceram às suas ordens, usando os paus de cerca de cinco metros para empurrar a
embarcação pelas águas rasas. Quando iam chegando à praia, voltou-se ela para o missionário que estava
encostado à parede da cabine, exausto pela prova por que passara.
— Tem forças suficientes para segurar aquele rifle apontado para eles? — perguntou ela. O
missionário respondeu afirmativamente, fazendo uma cara de desconsolado.
— Quem é você? — perguntou ele.
— Sou uma pessoa amiga — disse ela e quando o barco ia tocando os juncos ela saltou. Patrulheiros
estavam esperando ali perto e subiram céleres a bordo, de armas nas mãos.
— Você aí! Pare! — gritou um dos patrulheiros para uma figura pequena que se mexia entre os
juncos. — Pare senão eu atiro!
— Não faça isto! — gritou o missionário. — Ela me salvou.
— Quem? Ela? — perguntou o patrulheiro. Mas neste meio tempo a figura tinha desaparecido. Foi
assim que Júlia voltou à Floresta Negra, cavalgando. Agora que tudo tinha acabado, ela deixou-se invadir
de medo e cansaço. Quando chegou à caverna seu irmão estava ainda dormindo. Dirigiu-se ao seu quarto
e atirou-se num montão de peles que havia, caindo num sono ferrado.
— Mas não pode ser somente isto! — exclamou Kit. —Por acaso isto não se parece com o final de
uma história? — perguntou seu pai, sorrindo.
— Não faça gracinha — observou a mãe de Kit. — Você sabe muito bem que há mais coisas nisto
tudo. E o que aconteceu a Júlia?
— Sim, há mais coisas, mas vocês não acham melhor a gente" ir jantar antes?
— Não, quero agora e já — disse o jovem Kit.
— Então está bem — disse o pai, abrindo o livro. E leu a seguinte passagem das Crônicas do
Décimo Sétimo: "Minha muito amada irmã Júlia cuidou de mim e assistiu-me, mas notava que andava
esquisitamente silenciosa e irritadiça, contrariamente ao seu costumeiro bom humor".
O seu irmão gêmeo estava intrigado com o comportamento dela, mas julgou que devia ser uma
reação à violência de que fora vítima na embarcação. Quando ele recobrou a saúde e as forças, ela se

recusou a cavalgar na companhia dele, permanecendo na caverna ou então fazendo sozinha longos
passeios na floresta.
— Júlia, o que está se passando? — perguntou ele finalmente.
— Estou cansada de viver esta vida. Quero de novo vestir roupas de verdade e ser uma mulher.
— Ser uma mulher? — perguntou ele assombrado. — Mas você é uma mulher!
— Bobalhão! — disse-lhe ela bruscamente, afastando-se a passos largos.
Não era nenhum bobalhão e conhecia muito bem sua irmã. Lembrava-se perfeitamente dos anos
vividos em Roma quando fora cortejada pelos rapazes solteiros mais seletos que havia por lá. E no
entanto elá não mostrara nenhum interesse por quem quer que fosse. Mas agora certamente devia estar
apaixonada por algum homem. Quem podia ser? Na Floresta Negra não havia muito que escolher. Correu,
ao encalço dela, alcançando-a na altura do Trono da Caveira.
— Júlia, você está apaixonada por alguém?
Os olhos dela cintilaram em cima dele, virando-lhe as costas sem dar nenhuma resposta.
— Já vi tudo: é aquele jovem missionário na embarcação! — exclamou ele.
Ela sentou-se no estrado e sorriu desesperançada.
— Não acha que é uma bobagem o que está dizendo? — comentou ela. — Depois de todos os
homens que temos conhecido. Ademais, mal tive oportunidade de falar com ele. Ele estava tão exausto
que a muito custo ficou sabendo que eu estava lá. De mais a mais eu estava mascarada, trajando aquele...
aquele uniforme.
Seu irmão não pôde conter uma risada.
— Bem que você estava de olho grande em cima dele. Se ele tivesse percebido decerto que não se
esqueceria — comentou o irmão.
— Imagine só eu apaixonada por ele! — disse Júlia, afastando-se dengosamente. Seu irmão
acompanhou-a com olhar pensativo, e nos dias seguintes fez algumas perguntas a respeito do missionário
que agora estava salvo em sua nova residência numa aldeia que ficava à beira do mar. Dias depois
conseguiu convencer Júlia a pôr um dos seus vestidos mais lindos que trouxera de Roma para dar um giro
até à cidade. Cavalgaram pela floresta, com Júlia montada de lado na sela, feminina, trajando um vestido
noturno no estilo que estava na moda. Ela achava uma graça enorme em andar com este vestido formal
pela selva. Não demorou muito que chegaram à costa do mar, dirigindo-se rumo a uma aldeia de
pescadores que havia nas redondezas. Andaram cavalgando através de praias inabitadas.
— Pensei que você me levasse à cidade, até Mavitã — disse ela, citando o nome da pacata capital
que estava adormecida.
— É esta cidade — observou o irmão.
— Mas você não pode entrar na cidade vestido desse jeito
— disse ela, apontando para o seu traje.
— Acontece que eu não vou entrar assim — respondeu ele,
parando perto de um bangalô. Nossa viagem termina aqui.
Espere.
Admirada Júlia observou o irmão entrando no bangalô e depois aparecer na varanda junto com um
senhor jovem. Ficou espantada quando reconheceu o missionário. Avançou sorrateiramente em direção à
mata que havia perto da varanda para ouvir o que estavam falando.
— O Sr. é o homem mascarado que esteve na embarcação e tentou salvar-me — observou o
missionário. — Mas... eles o mataram.
— Sim, eles tentaram — respondeu o Décimo Sétimo.
— Mas depois, quem era a garota que esteve lá?...
— Foi minha irmã Júlia — respondeu o irmão.
— Júlia! Que nome lindo! Tenho pensado muito nela. procurando imaginar como se chamaria e na

esperança de poder revê-la.
— Pois bem, ela se apaixonou pelo Sr. e quer também vê-lo — respondeu o Décimo Sétimo,
contente por ver o rumo que as coisas tomavam,
Escondida na mata, o coração de Júlia batia. Em seguida ela se virou e correu em direção ao seu
cavalo. Os homens a viram partir.
— Júlia! — chamou o irmão.
Mas ela estava já montada em seu cavalo e desaparecera.
— É possível que esteja acanhada — comentou o jovem missionário, que era tão bobo no trato com
mulheres como o Décimo Sétimo. — Vou estar com ela e verificar — comentou o irmão.
— Posso ir consigo? — perguntou o jovem missionário.
Enquanto iam cavalgando juntos o missionário não parou um instante de falar de Júlia. A figura
magra tomara conta de sua cabeça durante todos os dias e só sonhava com ela todas as noites.
— Não tenho conseguido trabalhar direito. Perdi a vontade de comer. Não sei o que está
acontecendo comigo.
O Décimo Sétimo olhou atentamente para o missionário. Era um senhor de bons modos, forte e
jovem, inteligente e sério, mas tão inocente a respeito do mundo e seus segredos como uma criança.
Depois de todos os brilhantes cortejadores de Roma, o que é que ela vira neste camarada? Os gostos das
mulheres são um mistério.
— Diga isto a Júlia - foi tudo o que ele respondeu.
Lá na praia Júlia estava andando, conduzindo o cavalo pelas rédeas.
— Espere aqui — pediu o Décimo Sétimo, enquanto se dirigia para ela.
— Júlia, por que você fez... — começou ele a dizer. Ela se voltou para ele, enfurecida.
— Como se atreveu você a dizer àquele forasteiro que eu estou apaixonada por ele. Foi a pior
asneira que você podia dizer...
— Júlia — disse o Décimo Sétimo calmamente — bem que você estava gostando dele. Eu o arranjei
para você. E por que então todo esse alvoroço?
Ela olhou para o seu irmão gêmeo e sorriu, embora estivesse mordendo-se de raiva. — Todos os
homens são uns bobocas — disse ela.
— De acordo — acrescentou o irmão. — E aqui você tem um que está chegando.
Quando o missionário se aproximou de Júlia e apeou do cavalo, o irmão se afastou lentamente em
seu cavalo.
— Senhorita Júlia... creio que já nos conhecemos... Não pode imaginar como desejei revê-la...
Pensei muito em você... porque queria externar meus agradecimentos...
Ele olhou fixamente para aquela garota radiante que se ruborizava com as palavras do missionário,
vestida que estava em seu traje da moda. Então era esta a linda criatura mascarada que abatera os
bandidos como um anjo vingador? Sim, era ela mesma.
Kit e sua mãe esperaram quase com a respiração suspensa quando o pai fechou o livro das Crônicas.
— E agora finalmente está na hora de jantar — avisou ele.
Kit soltou como que um esganiçado, perguntando alto:
— E o que aconteceu depois disto?
— Ah, sim. Eles se casaram e tiveram seis filhos e foi assim que terminaram os dias de Fantasma
mulher — disse ele, curvando-se para beijar sua esposa.
— Que encanto! — comentou ela. — Eram rapazes ou moças?
— Acho que foi uma mistura uniforme — respondeu o Vigésimo.
A par das histórias dos velhos tempos Kit continuou a aprender os segredos de como o Fantasma
vive e morre. O mais importante de todos era o do Juramento da Caveira, feito pelo Primeiro há mais de
quatrocentos anos, um juramento feito sobre a caveira do pirata que assassinou seu pai: "Juro que

dedicarei toda a minha vida à tarefa de destruir a pirataria, a ganância, a crueldade e a injustiça e meus
filhos e os filhos de meus filhos me perpetuarão.”
Kit aprendia de cor o juramento, repetindo-o para si mesmo interminavelmente. Portanto, isto é o
"que o Fantasma faz!” E é o que seu pai tem estado fazendo em suas misteriosas missões. Combatendo a
pirataria em suas multiformes maneiras como aparece no mar e em terra: combatendo a crueldade e a
injustiça.
Aprendeu também que durante longos tempos o Fantasma tinha sido o Guardião da Paz na selva. Era
um árbitro de disputa entre tribos, ajudando a harmonizar divergências sobre posse de terras, direitos de
caça e água, procurando sempre sustar lutas quando os ânimos se acirravam. E, embora nada seja perfeito
e sempre houvesse algumas tribos hostis e marginais da lei que vagueassem pela imensa selva, gozava-se
de um relativo estado de paz e segurança, talvez mais seguro do que em muitas cidades grandes. Graças à
paz proporcionada pelo Fantasma, dizem até que uma linda senhora adornada que estivesse de lindas
joias poderia andar em plena meia-noite pela selva sem ter medo de ser importunada. Naturalmente, isto
é um exagero. Sempre existem alguns criminosos à solta e os animais predatórios não têm conhecimento
da paz do Fantasma. Mas todo o povo reconhecia que a selva era um lugar mais tranquilo devido à
presença ali do Fantasma. Todos o admiravam e depositavam inteira confiança nele. O fato de a maioria
acreditar que tinha quatrocentos anos de idade e que era imortal só contribuía para incutir um senso de
segurança. Ele sempre estivera presente entre aquele povo e nunca deixaria de atuar com sua presença no
meio deles.
A Patrulha da Selva fazia parte do esquema de manutenção dessa paz. A patrulha tinha jurisdição
sobre as fronteiras da selva e a região neutra entre as pequenas nações ao longo de uma faixa territorial
de mil milhas. Era constituída de um corpo de elite. Milhares de jovens de todas as raças vinham de
todas as partes do mundo para se inscrever todos os anos. Anualmente só eram incorporados dez novos
candidatos, os quais eram previamente submetidos a rigorosas provas. Entre os homens da corporação
reinava um espírito de grande ufania. Vangloriavam-se, dizendo que um patrulheiro podia dar conta de
dez criminosos. A patrulha era organizada com uma completa série de comandos, desde o pracinha até o
coronel. Acima disto, havia mistério em torno dela. Quanto ao comandante, ninguém na patrulha inclusive
o próprio coronel, sabia quem era ele. Suas ordens eram transmitidas misteriosamente. Havia quem desse
palpite de que o comandante não deveria ser um homem só e sim muitos. A única e exclusiva coisa que
todo mundo sabia é que a patrulha já tinha duzentos anos _de existência e que sempre fora assim.
Ninguém mais tinha lembrança de suas origens verdadeiras. Ninguém sabia que o Sexto Fantasma havia
formado a primeira patrulha com Barba Vermelha e seu bando de piratas. No entanto os Fantasmas,
enquanto na observância e orientação da patrulha, sempre se haviam escondido debaixo do anonimato.
Kit estava maravilhado por saber que seu pai fora o comandante incógnito e que um dia esta seria sua
função entre todos os outros. Empolgava-se com tudo isto ao mesmo tempo que algo apavorado e
temeroso do que ele próprio poderia vir a ser. Mas sacudiu de si esses pensamentos. Faltava ainda muito
até lá. Era apenas um garoto de onze para doze anos.
Seu pai explicou-lhe a razão do nome de "Espírito-Que-Anda”, conforme às vezes o chamavam. Em
eras longínquas, começou a formar-se a crença de que o Fantasma era o Homem-Que-Não-Podia-Morrer.
Isto aconteceu porque em todas as gerações os Fantasmas pareciam iguais em seus trajes e acreditava-se
piamente que eram sempre o mesmo homem. Muitas vezes espalhava-se a notícia de que o Fantasma
havia sido ferido mortalmente ou que havia morrido. No entanto meses ou anos após, o mesmo homem
aparecia ileso, jovem e vigoroso. Diante disto a lenda foi aumentado e tomando vulto.
Em seguida veio a história dos reis. Kit sempre notara os anéis pesados que seu pai trazia nas mãos.
São anéis curiosos; um deles traz a insígnia de uma caveira, a cabeça da morte. Levava-o na mão direita.
Quando o Fantasma desfecha um vigoroso soco com a mão direita no maxilar de um malfeitor, o anel
deixa um sinal no maxilar atingido. E esse sinal não pode ser removido. O anel da mão esquerda ("mais

perto do coração") simboliza a proteção do Fantasma. Só em casos muito raros é concedido este sinal:
por exemplo a uma pessoa que tenha salvo a vida do Fantasma ou em casos especiais como para a
construção do hospital do Dr. Axel na selva.
Estes anéis têm sido herdados de pai para filho. Algum dia Kit haveria de herdá-los. Disseram-lhe
também que o Fantasma andava sempre escondido debaixo de uma máscara e que ninguém pode ver o
rosto dele, com exceção de sua esposa e filhos. Em consequência desta tradição rigorosa, formou-se
outra lenda: "aquele que olhar para o rosto do Fantasma terá morte horrível". O Fantasma não fez nada
para desfazer esta lenda. Ajuda a formar o mistério em torno dele e é de valia em seu trabalho, incutindo
medo em seus adversários. De vez que o Fantasma trabalha sozinho, Kit começou a imaginá-lo qual
figura misteriosa que se mexe na escuridão, empenhado em imensas façanhas de combate aos que
praticam o mal e o crime. Para ser eficaz, para sobreviver e vencer, o Fantasma precisava ser dotado de
força tremenda, de dedicação e de todo tipo de ajuda que a lenda pudesse atribuir-lhe. Por estas razões,
até a presente data Kit vinha sendo introduzido nestes conhecimentos com todo cuidado, já em sua idade.
Com onze para doze anos era um perito em todo tipo de autodefesa e manuseio de armas. O exercício e
treinamento desde o dia em que pôde andar o desenvolveram fisicamente muito além daquilo que se pode
esperar de uma criatura da sua idade.
Kit já conhecia a Praia Dourada, o Bosque dos Murmúrios e a Ilha de Éden. Tinha conhecimento dos
esconderijos do Fantasma que existiam alhures; sabia das ruínas do castelo no Velho Mundo bem como
da meseta de superfície plana chamada A Mesa de Walker existente no Deserto do Novo Mundo.
Foi desta maneira que Kit foi introduzido nos segredos, tradições e deveres que um dia iria herdar.
Tantos segredos e tantas coisas para aprender e recordar. Sua jovem cabecinha chegava até a doer. Mas
havia uma coisa que não lhe haviam dito o que era: A corrente que pendia no Trono da Caveira. Media
mais ou menos um metro de comprimento, com anéis de ferro pesados e pendia de um canto na parte do
fundo do trono, atrás de uma caveira de pedra. Não estava presa, mas simplesmente pendia e um dia Kit
tentou tirá-la. Gurã deteve-o e disse-lhe taxativamente que a deixasse lá sozinha.
— Por quê? — perguntou Kit.
— Porque seu pai quer que ela fique ali sozinha — respondeu Gurã.
— Mas por quê?
— Pergunte a seu pai. — E você sabe, Gurã?
— Sim, eu sei.
— E por que não quer me dizer?
— Pergunte a seu pai.
— E na realidade Kit perguntou a seu pai, durante o jantar daquele dia, sentados no chão perto do
Trono da Caveira.
— Papai, por que aquela corrente está pendurada ali?
— Porque eu a coloquei ali — respondeu seu pai.
— Por que o Sr. a colocou ali? E por que Gurã não quer me contar?
O Vigésimo olhou para a sua esposa e sorriram.
— Seu pai colocou-a ali para lembrar-lhe alguma coisa quando perde a calma — disse a linda mãe.
Ela se levantou e dirigiu-se para o seu marido, beijando-o e sentando-se perto dele.
— Kit, aquela corrente tinha um significado muito importante para nós — falou ela a Kit com voz
suave.
— Do que é que ela lembra e por que Gurã ou outra pessoa que saiba não quer me informar o que
significa? — perguntou Kit, intrigado com o mistério.
— Porque pode lhe ser valioso que você fique sabendo da verdade mais tarde. Talvez Gurã tenha
alguma oportunidade de te contar na América — disse seu pai, relanceando um olhar em direção à boa
mãe, que de repente abriu os olhos de espanto e ansiedade.

Kit esqueceu a corrente.
— O quê? América? — perguntou ele. — Eu? A mãe aproximou-se dele e segurou-o.
— Sim, meu filho.
Foi assim que, ao seu aproximar a data de aniversário de seus doze anos, foi informado da grande
mudança que a sua vida iria experimentar. Dentro em breve deixaria a Floresta Negra e a selva a
caminho da América a fim de lá ser educado!
  

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