segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 432 : A LENDA DO FANTASMA

9 - O NOVO LAR  


Os Carruthers possuíam uma residência enorme, pintada de branco, com estufa, cercada de verdes
gramados, plantações de flores, árvores altas e um cercado de estacas também brancas. Ficava numa rua
calma e sombreada onde havia outras casas bem semelhantes. Os Carruthers não eram gente rica, mas se
podia dizer que eram "bem remediados". Frequentavam a mais fina sociedade de Clarksville, Missouri,
uma cidade com seus 50.000 habitantes espalhados nas margens do largo e preguiçoso rio Mississippi,
de águas barrentas.
Kit alojou-se num quarto amplo e arejado do segundo andar. Para Gurã os Carruthers destinaram um
cubículo no andar térreo, bem perto da lareira. Kit fez pé firme, dizendo que Gurã devia ficar com ele em
seu quarto do segundo andar, o que aborreceu o rio Efraim. Para não criar caso e chegar a um
entendimento, o ponto de vista de Bessie prevaleceu e Gurã se mudou para o quarto de Kit. Era um custo
tremendo para os Carruthers se acomodarem com este sobrinho fora do comum. Quanto a Gurã — podia
constituir uma raridade em qualquer cidade ou aldeia de Bengala — mas no casarão branco e com estufa
dos Carruthers não passava de um fenômeno: um anão selvagem vindo da Floresta Negra, um entendido
em preparar e usar venenos mortíferos, que só falava a sua língua nativa, que para as pessoas de
Clarksville soava que nem grunhidos de porco e tossidelas engasgadas.
Gurã tinha pouca prática na conversa e se sentia muito acanhado para tentar, embora tivesse
aprendido a ler e escrever juntamente com Kit na Floresta Negra durante aquelas aulas dadas pela boa
mãe. Depois surgiu o problema das camas. Colocaram uma cama de lona no quarto de Kit e todas as
manhãs tia Bessie ficava surpresa e contente porque sempre encontrava as camas feitas e arrumadinhas,
quando entrava no quarto depois que Kit saía para a escola. Passados alguns dias ficou maravilhada ao
constatar que eles não usavam as camas, mas punham outros lençóis no chão e dormiam neles.
— Mas, pelo amor de Deus, por que no chão? — perguntou ela.
Kit explicou que Gurã estava acostumado a dormir numa esteira de palha no chão e que ele, Kit, na
Caverna da Caveira só dormia no chão duro, deitado numa pele de animal. Ele sempre fizera isto e
achava muito moles e sem conforto as camas com colchões. Tio Efraim encarou esta atitude como uma
ofensa. — Dormir no chão! — exclamou ele. — São uns animais. Deviam ir dormir na estrebaria. —
Acontece que quase tudo o que Kit fazia era motivo para deixar Efraim irritado. Quanto a Gurã, nem
queria ouvir falar "desse selvagem" e tampouco tê-lo à mesa de jantar com eles. Diante disto também Kit
se recusou a jantar com tio Efraim e titia Bessie e passou a comer na cozinha junto com Gurã.
Para todos na casa dos Carruthers se criara um ambiente difícil e Kit começou a se perguntar se
realmente teria sido uma medida sábia a do seu pai em querer mandá-lo para junto dos tios. Sabia que os
Carruthers eram gente boa, mas a sua maneira de viver era tão diferente daquela que se levava na
Floresta Negra. Quem sabe, pensava ele com esperança, se as coisas não vão melhorar.
Tia Bessie havia comprado um guarda-roupa modesto em Nova Iorque para Kit e Gurã,
acompanhada do tio Efraim que resmungava e protestava toda vez em que se comprasse alguma coisa,
alegando que o preço era "alto demais". Tio Efraim era seguro em assuntos de dinheiro. Alguns o
chamavam de sovina. Mas Kit continuava achando as roupas da cidade sem conforto e o máximo que
tolerava eram bermudas e uma camiseta de verão, sem mangas, ao passo que Gurã andava com seu terno.
Haviam chegado a Clarksville em fins da estação de verão, em tempos de pegar o novo turno
escolar. Embora todos soubessem dos novatos que haviam chegado, os Carruthers não os haviam
apresentado nem levado a certos lugares como a igreja ou o clube social da cidade. Isto era devido à
insistência de Kit, que queria a todo custo que Gurã o acompanhasse em toda parte; mas acontece que
ninguém da cor de Gurã jamais havia entrado nem na igreja nem no clube social. Desta maneira Kit não

pôde gozar das bênçãos da igreja nem dos prazeres do clube, ao menos por enquanto. Apesar de sua
aparente calma, Kit era nervoso e intempestivo. Tudo o que via era novo para ele, que tinha somente doze
anos de idade. Gurã tinha sido seu companheiro desde a idade em que ainda engatinhava pelo chão.
Sentia uma sensação de estar protegido quando na companhia deste homem pequeno e acanhado, que
neste mundo estranho se achava completamente perdido. Os Carruthers haviam matriculado Kit numa
escola particular para crianças que havia na localidade, chamada Academia Clark. As aulas eram dadas
de dia, e Kit assistiria as aulas e depois voltaria para casa para tomar as refeições e dormir; isto todos os
dias. Nos primeiros dias Gurã foi junto com Kit até examinarem bem o lugar, mas depois os dois
concordaram que seria melhor para Gurã se esperasse em casa.
A Academia Clark abrangia os anos do curso primário e secundário. Foi submetido a uma série de
testes para determinar seu grau de conhecimentos e foi colocado entre outros garotos de sua idade.
Graças aos ensinamentos de sua mãe, estava muito bem preparado nas matérias da escola. Seus
conhecimentos de línguas deixavam maravilhados professores e estudantes.
Havia também alguns outros conhecimentos que deixavam todos maravilhados. Haja vista história.
Durante a sua primeira semana de aula de história da turma do décimo sétimo grau, ministrada pelo Sr.
Hackley, técnico de futebol da Academia, o assunto de Alexandre Magno veio à tona.
— Quem pode dizer alguma coisa a respeito de Alexandre? — perguntou ele.
Um garoto inteligente que usava óculos levantou a mão.
— Excelência, ele conquistou o mundo inteiro. E chegou a chorar quando viu que não havia mais
mundos para conquistar.
— Correto. Mais alguém — perguntou o Sr. Hackley. Na Academia Clark os alunos eram obrigados
a se dirigir a todos os professores como o tratamento de "Excelência". Lembrando-se das aulas de
história que recebera na Caverna da Caveira, Kit levantou a mão. Todos os colegas olharam curiosos
para o novato. Era a primeira vez que abria a boca para dizer alguma coisa.
— Alexandre não era Grande. Era um bandoleiro que conduziu os seus arruaceiros para matar e
saquear povos mais fracos.
O Sr. Hackley e os garotos olharam espantados. Os alunos imediatamente olharam para o Sr.
Hackley que sorria, mostrando os dentes arreganhados.
— Mas que interpretação maravilhosa! Onde é que você aprendeu isto? — perguntou ele. — Mas
não se esqueça do tratamento de "Excelência".
— Quem me disse foi meu pai.
— Excelência — corrigiu o Sr. Hackley.
— Excelência — repetiu Kit.
O Sr. Hackley acabou rindo, no que foi acompanhado pelos alunos.
— E que mais lhe ensinou seu pai? — perguntou Hackley.
— Ele ensinou... —
— Excelência — corrigiu o Sr. Hackley. — Excelência, ele disse que Alexandre Magno era o
mesmo que Átila o Huno, só que depende de quem escreve a história.
— Átila o Huno — ribombeou o Sr. Hackley com prazer. — Oh, isto é fantástico. E onde é que seu
pai aprendeu todos estes fatos originais?
A esta altura todos os garotos da aula estavam sorrindo galhofeiramente e mal contendo risadinhas
pilhéricas. Parecia até aquela vez em que estivera no mato com alguns garotos pigmeus, quando por
engano apanhou um punhado de folhas para a sua mãe, que venenosas causaram uma grave erupção da
pele. Kit ficou corado e encarou os rostos sarcásticos.
— Ele disse isso porque sabe o que é certo, e ele não mente — retrucou firmemente.
— Não se esqueça do tratamento de "Excelência" — observou o Sr. Hackley.
— Excelência — corrigiu-se Kit.

Os alunos ficaram aguardando mais comentários de gozação da parte do Sr. Hackley. Mas ele era um
senhor distinto que não gostava de atormentar seus alunos e percebeu que o novo garoto estava que não se
aguentava de raiva. Explicou que existem muitas versões para a história e que alguns poderiam concordar
com as opiniões do pai de Kit, mas que na sua aula ele procuraria ensinar a versão mais ortodoxa.
Durante todo este tempo Kit permaneceu em pé. Alguma coisa estava bulindo com suas ideias.
— Sr. Hackley... — começou ele.
— Excelência — corrigiu de novo Hackley.
— Queria saber se o Sr. é cavaleiro. É por isso que todos o chamam de "Excelência"?
— Um cavaleiro? — perguntou o Sr. Hackley.
— Como os Cavaleiros da Távola Redonda?
A algazarra formada com as risadas foi interrompida pelo toque da sineta, dando por encerrada a
aula. Os alunos saíram velozes da sala, ainda rindo. Cavaleiros da Távola Redonda! O assunto se
espalhou pela Academia e durante algum tempo todo mundo fazia piada com essa novidade, tanto na
faculdade como entre os demais estudantes. Esse garoto novo era mesmo uma parada.
Kit não era o primeiro estudante estrangeiro a se matricular na Academia Clark. Já houvera alguns
outros vindos do México, do Canadá e da América do Sul e casualmente até um garoto dos confins da
Europa. Mas a fama sobre os seus conhecimentos e comportamento fez época. Onde ficava Bengala? E
aquela figurinha de Gurã contribuía para despertar o interesse em torno do garoto. Kit era mais alto e
mais forte do que a maioria dos garotos da sua turma, mas, seja como for, era um garoto e tinha que
passar por todas as provas e testes do período escolar. Esta escola tinha também seu rufião, um rapagão
alto e desajeitado que pertencia a uma turma superior e que se comprazia em fazer valentias com rapazes
mais jovens. Chamava-se Jackson. Era goleiro do time de futebol, atleta e halterofilista. No primeiro dia
em que Gurã ficou em casa, Jackson já começou a bulir e perseguir Kit. Encurralou-o no canto do pátio e
zombou na cara dele.
— Está com medo de vir à aula sozinho, com toda esta sua beleza de fedelho, sem aquele seu
guarda-costas negro, hein!? — gracejou Jackson.
Os garotos fizeram roda, esperando que Kit enfrentasse a parada, um ritual por que muitos haviam
passado com Jackson.
— Ele não é um negro nem guarda-costas; ele é homem de verdade — respondeu Kit calmamente.
Kit havia intuído perfeitamente na ameaça que lhe estava sendo feita. Jackson lhe fazia lembrar o
comissário chefe no navio.
— E quem é você, seu fedelho duma figa, que vem lá dos confins do Congo? — continuou Jackson,
usando uns termos injuriosos que para Kit não significavam nada.
— O Sr. está querendo briga? — perguntou Kit.
Jackson era um pouquinho maior do que Kit e devia pesar uns quinze quilos mais do que ele. Ele
gritou, usando o inglês escolar e formal de Kit.
— Se quero briga? Como posso eu querer brigar com covarde de meia tigela das matas do Congo?
— falou Jackson em alta voz, para que a multidão em volta pudesse ouvir. — Por acaso isto o provoca?
— continuou ele, empurrando Kit com tamanha força que foi cair de costas de encontro ao muro. Kit se
parecia com um animal acuado. Olhou em volta para os presentes. Alguns estavam sorrindo com escárneo
nos lábios e outros se mostravam simpáticos. Jackson se parecia com uma hiena.
— Ou então é isto que o provoca? — continuou Jackson, empurrando novamente e fazendo-o cair de
joelhos.
Kit se ergueu feito um tigre. Desferiu com toda violência um soco no estômago de Jackson,
dobrando-o. Mais um soco imediato no maxilar obrigou Jackson a se endireitar, quando Kit lhe incestou
outro murro que o deixou caído no chão. Estrebuchando-se, Jackson se debatia aos pés de Kit. Mas Kit o
derreava de socos feito um vespão enfurecido que aferroa, prostrando-o com um vigoroso golpe de

caratê seguido de um seguro soco na cara. O grupo de garotos pôs-se de pé, todos embasbacados e
chocados com a ferocidade do ataque. Este tipo de luta não se conhecia na escola. O maxilar de Jackson
estava inchado e sangrava pelo nariz. A esta altura chorava e pedia arrego, mas Kit não tinha ainda
terminado a lição.
Agarrou o rapagão choraminguento com a duas mãos e levantou-o acima de sua própria cabeça.
Segurando-o no alto, andou a pequena distância até à cerca de estacas de ferro á altura de dois metros e
com todo cuidado pendurou Jackson pelo colarinho do casaco, de maneira que ficou com os pés
balançando sem tocar no chão. Em seguida se encaminhou ligeiramente agachado para a turma que o
observava, com os punhos cerrados e olhos meios fechados. A turma ficou hesitante. Alguns começaram
a rir, mas pararam logo. Nenhum deles gostava de Jackson. Mas todos da turma eram rapazes de fina
educação e a violência do ataque de Kit metera medo neles. Alguns ainda retiraram Jackson da cerca e o
levaram para a enfermaria.
O diretor da escola tivera oportunidade de presenciar a cena duma janela do seu gabinete. As
fanfarronices e rufianices de Jackson eram muito conhecidas. O diretor foi ter à enfermaria para se
certificar se os ferimentos do rapaz não eram graves. Havia o caso do maxilar inchado. Levaria algum
tempo para sarar.
Quanto a Kit, tornou-se um verdadeiro herói para a sua turma do décimo sétimo grau, muitos dos
quais foram vítimas das rufianices de Jackson. Os rapazes das classes superiores ouviram falar deste
novo garoto fenomenal, que tirou a barda de valentão de Jackson, erguendo-o depois em cima de sua
cabeça como uma pena e pendurando-o na cerca! Mas esta adoração ao herói e toda admiração por ele só
era à distância. O novo garoto era muito esquisito, diferente de todos. Para estes alunos de classe média
da cidade ele parecia perigoso, como um animal selvagem de uma selva exótica, que só pode ser
admirado quando bem seguro atrás das grades de uma jaula. Kit sentia-se acanhado neste novo mundo e
os garotos interpretaram mal esta sua atitude, julgando que era uma criatura insociável e que não queria
nada com amizades. Durante a hora do almoço ele fazia de contas que estava lendo um livro, enquanto ia
comendo. E na hora do recreio no pátio da escola, ficava sentado num canto e dava a entender que estava
lendo, enquanto os outros brincavam, riam e conversavam. Estava solitário e enquanto os seus colegas
brincavam de pega-pega e gritavam por ele, o garoto sonhava com a Floresta Negra.
Kit foi chamado à Diretoria da escola para uma ligeira conversa a respeito de brigas. O diretor se
mostrou simpático, mas firme em suas atitudes.
— Eu me comportei de acordo. Eu não procurei matá-lo — disse Kit.
O diretor olhou para Kit por um instante. As palavras do rapaz eram honestas e sinceras.
— E é só o que lhe tinha a recomendar — disse o diretor, e Kit voltou para a classe. O diretor ficou
por um tempo olhando pela janela e perguntando-se: que tipo de rapaz é este?
Nas semanas seguintes não conseguiu arrancar muita coisa mais do garoto. O garoto era quieto e
estudava com afinco as suas matérias. Pouco falava a seu respeito e nunca respondia as perguntas que lhe
faziam sobre sua terra natal. Recusou os insistentes convites dos técnicos de atletismo que com lisonjas e
agrados queriam que se inscrevesse nos times de futebol da escola e nunca se demorava nos bate-papos
que se formavam depois das aulas nem participava dos grupos de alunos na sorveteria que ficava ali
perto. Sempre se dirigia imediatamente para casa, onde Gurã o aguardava pacientemente, sentado no chão
do seu quarto como uma estátua de Buda.
Em Clarksville havia um pequeno jardim zoológico e foi com gritos de alegria e júbilo que Kit e
Gurã o descobriram. Era um dos poucos lugares da cidade que eles adoravam, pois o zoo tinha alguns
animais da selva de sua terra natal: dois leões, um leopardo, uma pantera negra, chimpanzés, duas zebras
e macacos. Felizes da vida cumprimentavam os animais como se fossem velhos amigos e quase trepavam
nas j aulas para abraçá-los. Como não podia deixar de ser, os guardas sempre lhes gritavam, pedindo que
se mantivessem afastados das grades da jaula. Mas esta medida de prudência não era necessária, pois

tanto Kit como Gurã conheciam seus animais melhor do que os próprios guardas. Mas não se podia exigir
que os guardas soubessem desse detalhe. Os dois garotos estavam encantados com animais que ainda não
conheciam, como o urso pardo. Haviam-lhe dito que este animal enorme era uma parada dura para o
maior felídeo que pudesse haver na selva. Mostraram-se admirados com o tamanho das garras e dos
dentes e quando o animal se ergueu em suas pernas traseiras, foi um momento de contentamento para eles.
Também os lobos montanheses eram novos para eles. Embora nas regiões afastadas de Bengala houvesse
lobos, nenhum dos dois jamais tinha visto um desses animais. Kit ficou surpreso ao ver aqueles olhos
azuis e pálidos e toda aquela massa de animal. — São bichos selvagens impossíveis de domar —
informou um guarda. Impossível? pensou Kit. Lembrando-se do treinamento de animais na Ilha de Éden,
Kit teve dúvidas da afirmação do guarda. — Algum dia gostaria de tentar domá-lo — comentou ele com
Gurã. Ficaram horas a fio observando a pantera negra de pele lisa e macia. Como todos os de sua
espécie, era um animal inquieto e suspeito, que rondava constantemente em sua jaula, tocaiando e
espreitando todas as pessoas que passassem por perto, com seus olhos amarelos cintilantes.
— Olhem para aqueles olhos. Cruzes! — comentou o guarda.
— É um animal matador. Gosta de ver sangue. Nunca lhe virem as costas. — Os garotos sabiam que
ele estava certo com respeito a este animal felídeo e seria um grande azar se um dia o guarda se
esquecesse do seu próprio aviso.
Mas Clarksville tinha mais coisas que encantavam Kit e Gurã, como por exemplo o rio Mississippi.
Na cidade de Clarksville atingia uma largura de mais de uma milha. Os garotos ficavam horas e horas nas
margens entre os salgueiros e bambus observando as chatas e barcaças compridas que passavam em lento
movimento. Um dos primeiros livros que Kit leu na residência dos Carruthers foi Huckleberry Finn, de
Mark Twain. Gurã conhecia inglês e por isso os dois podiam ler juntos com grande contentamento as
aventuras que há séculos foram vividas por Huck e Tom Sawyer. Imediatamente planejaram construir
uma jangada e navegar rio abaixo, conforme Huck havia feito. Nunca chegaram a concretizar o plano, mas
passavam horas na margem do rio. De vez em quando arriscavam um nado proibido — proibido pela tia
Bessie — entrando no meio do canal. Uma ou duas vezes chegaram a ir até onde as chatas subiam e
desciam o rio, em suas viagens de carga fretada. Nuzinhos em pelo subiram a bordo para verificar o
carregamento de carvão, produtos químicos, cereais, fertilizantes o engradados, até que um homem
furibundo lhes gritou e alguém se pôs a correr atrás deles. Rindo-se da aventura, mergulharam nas águas
lamacentas do rio e acenaram para o homem irado. Várias vezes, depois do meio dia, sentavam-se numa
margem relvada do rio para secarem o corpo depois de um nado, enquanto Kit ia lendo altos trechos de
outro livro de Twain, intitulado A Vida no Mississippi. A vida que se levava às margens do Mississippi
naqueles bons tempos enchia os garotos de admiração e encantamento e horas a fio ficavam esperando
para ver se ainda conseguiam ver uma daquelas barcaças com a roda de pá. Mas nunca conseguiram ver
uma sequer. A tia Bessie explicou-lhes que os tempos das barcaças que navegavam pelo rio já haviam
passado e que quase todas já tinham desaparecido, com exceção de algumas lanchas que havia perto das
grandes cidades, as quais serviam para fazer excursões.
Não resta dúvida que tanto o zoo como o rio eram motivos de distração, mas Kit se sentia
desambientado em Clarksville. Tia Bessie era amável e gentil, mas tio Efraim continuava inamistoso e
ríspido, sempre com suas observações picantes a respeito da formação e educação de Kit. Com o
decorrer das semanas, eles haviam contado alguma coisa a respeito da Floresta Negra e da Caverna da
Caveira. Bessie ficou chocada ao saber que a sua irmã realmente vivia numa caverna, cercada por
criaturas selvagens como Gurã. Chocada e decepcionada, com a visão do seu cunhado qual rico
agricultor desvanecendo-se. E que tipo de homem era ele? Kit se recusou a falar-lhes a respeito do seu
pai. Como podiam eles compreender o que significava o Espírito-Que-Anda, o Vigésimo Fantasma?
Efraim estava mais do que decepcionado. Andava furioso com o selvagem, sentado no chão lá em
cima, e com esse estranho sobrinho que se dirigia a ele somente em monossílabos. O pai de Jackson —

que era o banqueiro local — tivera uma troca de palavras com ele a respeito da célebre briga, o que
tornou piores as relações entre os dois. Porém, mais do que isto Efraim se queixava dos gastos do seu
pensionista.
— Academia particular, roupas, alimento, não somente para ele mas também para aquele selvagem
negro. Será que a sua admirável irmã da caverna acha que tenho obrigação de aguentar com todas estas
despesas?
Kit não chegou a escutar esta conversa, mas as maneiras ríspidas do tio para com ele não deixavam
nenhuma dúvida. O ambiente na escola não era melhor. Desde o dia da briga com Jackson os colegas
mantinham distância, ainda temerosos deste garoto estranho, de modo que não conseguira formar
amizades especiais. Também Gurã estava impaciente e desejava muito voltar, embora tivesse prometido
que ficaria no mínimo um mês. Certa noite Kit resolveu definitivamente fugir.
— Mas fugir para onde? — queria Gurã saber.
— Para a Floresta Negra — respondeu Kit.
Gurã ponderou sobre a longa viagem por mar. Como é que eles poderiam voltar? Da mesma maneira
como vieram — foi a resposta pronta de Kit. E não havia porventura lanchas?
— Seu pai e sua mãe certamente não vão gostar disto — observou Gurã.
— Estou certo de que vão aprovar a minha decisão, quando souberem quem é esse meu tio Efraim.
Gurã compreendeu tudo. Embora não tivesse tido a mínima conversa com ele, no entanto
compreendeu quem era Efraim. Mesmo assim tentou convencer Kit a permanecer. As instruções que
recebera no Trono da Caveira foram no sentido de trazerem Kit a esta casa e sabia perfeitamente que o
Vigésimo não iria aprovar a atitude do filho em querer fugir. Cientificou Kit a respeito disto tudo.
— Seu pai muitas vezes dizia: quando a vida conspirar para derrotá-lo, não fuja nem se dobre, mas
lute para vencer. — Kit concordou. Já ouvira o mesmo conselho dos mesmos lábios, mas não estava ali
para servir de boneco para ninguém. Tio Efraim e tia Bessie eram mais do que ele podia aguentar e
estava decidido a dar o fora. Vendo que não podia demover o garoto da decisão tomada — e nisto
reconhecia a tempera e vontade de ferro do seu pai — Gurã concordou em acompanhá-lo. Não tinha outra
alternativa. Do contrário, Kit iria embora sozinho.
Foram-se embora naquela mesma noite. Só levaram a maleta felpuda de Kit, o pequeno embrulho de
Gurã amarrado em couro, contendo as suas armas, sal e fósforos. Saíram de mansinho pela janela do
segundo andar e pularam em silêncio no gramado, enquanto Bessie e Efraim dormiam. Kit deixou um
bilhete com poucas palavras:
"Querida tia Bessie.
Muito obrigado por sua gentileza. Tenho que voltar para casa. Adeus.
Kit"
Na manhã seguinte encontraram o bilhete em cima do travesseiro de Kit. Bessie ficou tremendamente
nervosa e até Efraim ficou alarmado. Kit morava a seis mil milhas de distância, em viagem de mar. O
garoto tinha apenas doze anos. Era uma loucura. Comunicaram o fato à polícia, que passou a dar buscas.
As barreiras foram avisadas e todos os carros eram revistados; expediram notificações aos
aeroportos e estações da estrada de ferro, com instruções. Possuíam uma foto de Kit e Gurã quando
chegaram de viagem, tirada no cais. Durante alguns dias os jornais e estações de rádio e televisão
transmitiram a notícia, mas Kit e Gurã haviam desaparecido.
Perto de Clarksville havia um grande trecho coberto de mata e eles imediatamente se embrenharam
nela. Os policiais vasculharam a floresta com cães caçadores. Empoleirados nas copas das árvores, Kit e
Gurã se divertiam observando embaixo os cães farejando. Depois desciam e tornavam a atravessar rios
para esconder seus rastros. Sabiam perfeitamente como despistar os descobridores de rastros. Bastava

vê-los na selva, quando os felídeos os espreitavam.
Dentro da floresta os dois se sentiam completamente à vontade, como se estivessem em casa. Não
era o mesmo que a sua selva, mas em todos os casos encontraram nozes, cerejas e algumas raízes para
comer. Na beira da floresta encontraram também alguns galinheiros e de noite fizeram algumas incursões
para abiscoitar algum galináceo distraído. Não resta dúvida que não estava correto, que era fora da lei,
mas nenhum dos dois sabia o que era essa história de fora da lei. Na floresta depararam com rastros de
coelhos. Puseram armadilhas por onde passavam e dentro de pouco estavam eles assando um coelho na
fogueira. Sentiam-se felizes da vida e já se haviam desfeito dos sapatos, da roupa e das alpargatas,
andando somente de tangas. Os planos para chegar à Floresta Negra eram vagos. Devia ficar mais ou
menos naquela direção, nas bandas onde o sol nasce.
Seus planos eram vagos e os progressos lentos, porque Gurã havia premeditado tudo neste sentido.
Não queria que Kit se afastasse muito da cidade de Clarksville. Valendo-se do sol e das estrelas como
seus guias, Gurã ficou seguindo-os num círculo gigantesco, retornando depois de alguns dias a um
pequeno lago que ficava na entrada da floresta. Kit suspeitou das intenções de Gurã e por isso o encarou
seriamente, observando:
— Nós já estivemos aqui antes.
— É mesmo? — perguntou Gurã com uma cara de inocente.
— Gurã, você sabe multo bem que nós estivemos — respondeu Kit com raiva. — Você está fazendo
isto de propósito?
— Por que havia eu de fazer isto de propósito?
— Muito simples: para evitar que eu volte para casa.
— Kit, não devo mentir. É por isso mesmo.
— E nós estivemos andando durante dias num verdadeiro círculo.
— Isto também é verdade.
— Pois bem, não vamos mais andar num círculo. Vamos em direção do sol nascente, para o lado do
oriente, onde fica a Floresta Negra.
— Mas seu pai vai ficar furioso.
— E minha mãe, no entanto, ficará muito contente.
— Sim, no começo vai ficar contente, mas depois não há de gostar do que você fez.
— Gurã, se você não quer me acompanhar, vou sozinho daqui em diante, e você pode ficar aqui.
— E por que haveria eu de ficar neste país esquisito sem você?
— Então vamos, e não quero mais conversa fiada nem trapalhadas.
Haviam nadado e brincado no lago e agora estavam deitados numa margem cheia de grama, secandose ao sol.
— Kit, eu vou com você. Talvez tenha chegado o momento de eu lhe falar a respeito da corrente.
Kit não entendeu o que estava querendo dizer com isto.
— Que corrente?
— A corrente do seu pai que está dependurada ao lado do Trono da Caveira.
Agora Kit se lembrou das perguntas que havia feito sobre o comprimento daquela corrente e da
desculpa esfarrapada que recebeu dos pais que se recusaram a falar a respeito dela.
O que foi mesmo que sua mãe lhe havia dito? "Seu pai a colocou ali para lembrá-lo de alguma coisa
quando perdesse a calma". E ela havia também acrescentado: "Essa corrente foi muito importante para
nós".
E naquela oportunidade seu pai havia também dito: "Acredito que seja de utilidade para você ouvir
a respeito um pouco mais tarde". Lembrou-se de tudo aquilo com toda clareza, porque a conversa se deu
justamente no momento em que foi informado que teria que partir para a América.
— Gurã, conte-me a história, para em seguida nos pormos a caminho do oriente, sem mais demora

— pediu Kit, deitado de costas na margem relvada e mastigando raízes brancas de capim.
— O fato se deu antes que você nascesse, quando eu era criança — começou Gurã. — Mas ouvi a
história muitas vezes, contada pelo Contador de Histórias e uma vez dos lábios do seu próprio pai.
— Então, vamos, conte depressa — insistiu Kit, impaciente porque queria seguir caminho. E assim o
prudente anãozinho Gurã começou a história.
A história começa num navio de longo percurso, quando se achava em alto mar, tendo a bordo a mãe
de Kit que atravessava o oceano para ir casar-se com seu pai. Era uma jovem loura e muito linda e
quando passeava pelo convés ou entrava no salão de jantar todos os olhares se voltavam para ela. Todos
os senhores não comprometidos do navio, a partir do comandante, admiravam a beleza dessa encantadora
jovem.
As demais senhoras se mordiam de ciumeira. Ela em nada contribuía voluntariamente para acirrar
toda esta atenção, pois a única coisa que a coitada da jovem queria era que a deixassem sozinha, envolta
em seus pensamentos de saudades do seu noivo maravilhoso, o homem mascarado que estava esperando
por ela nas vizinhanças de Mawitã.
Mas no navio havia um homem que de modo particular não despregava o olho de cima dela. Era um
cavalheiro de indiscutível importância, que viajava incognitamente e acompanhado de uma dúzia de
criados. Estava alojado no camarote mais luxuoso do navio e prodigalizava-se em grandes somas de
dinheiro que distribuía aos componentes da orquestra do navio, aos garções, empregados de bordo e aos
copeiros do bar. Corria o boato que era um príncipe de algum país longínquo e realmente o boato
correspondia com a verdade. Era um senhor alto, moreno, de rosto parecido com um falcão e olhos frios
que nem de cobra. Ao menos esta era a impressão quo dava à garota, pois aqueles olhos frios não saíam
de cima dela. Depois de alguns dias de viagem em alto mar, o círculo de cavaleiros em torno dela
começou a rarear. Correu de boca em boca que os criados do misterioso senhor se haviam introduzido
entre os passageiros e a tripulação, advertindo-os que deviam deixar aquela senhorita totalmente sozinha.
Espalhou-se também o boato de que numa ocasião em que um passageiro — um sueco corpulento e louro
— se recusara a atender àquele pedido estranho, o mesmo levou uma surra, fazendo baixar à enfermaria
do navio. A história nunca pôde ser confirmada, porque durante todo o resto da viagem não se conseguiu
ver dito passageiro. Conforme se constatou mais tarde, nunca estivera internado na enfermaria tampouco
andou ele metido em qualquer parte do navio, pelo que o mistério nunca chegou a ser esclarecido. Não
nos esqueçamos de que o oceano é um lugar imenso e que raramente revela semelhantes segredos.
Desta maneira a encantadora senhorita conseguiu ter um pouco de paz, pelo que se mostrou muito
grata. Mas esta tranquilidade não durou muito tempo. O círculo de admiradores foi substituído pelo
misterioso homem de olhos de serpente. Ela recusou o convite que lhe fizera para sentar-se à sua mesa de
jantar, mas nem por isso se deu ele por vencido. Ele a seguia insistentemente toda vez em que saía do
camarote, cortejando-a pelo convés, quando subia e descia das escadas, nos salões, nos bares do navio e
nas salas de jogos, a ponto de ela se sentir completamente cansada e aborrecida, resolvendo ficar
trancada em seu camarote. A bem da verdade devemos dizer que suas propostas eram as mais cavalheiras
deste mundo. Acontece que se apaixonara loucamente por essa beleza loura. Certa noite não se conteve
mais e procurou-a em seu camarote. Seu rosto de falcão tremia todo quando ele pediu para se casar com
ela. Ela pediu que ficasse no corredor e conversou com ele pela porta que estava entreaberta. Informou-o
categoricamente que tinha namorado e que estava prestes a casar-se e assim por diante, solicitando
encarecidamente que a deixasse sozinha e a esquecesse. Sentiu-se ofendido e enfureceu-se. Começou a
gritar contra ela em altas vozes, de modo que os outros passageiros abriram as portas para ver o que
estava se passando. Não contente com isto, passou a berrar e vociferar contra ela, batendo violentamente
na porta do seu camarote que a esta altura estava fechada. Surgiu um empregado do navio que pediu que
se afastasse. Empurrou o homem, derrubando-o. O empregado voltou com o comandante e mais alguns
marinheiros robustos. O homem enfurecido enfrentou-os como um tigre acuado. Vendo finalmente que

nada podia fazer, concordou em sair. Mas, quando ia saindo, gritou na porta do camarote para que a
jovem lá dentro ouvisse, dizendo-lhe que ainda iria ver do que ele era capaz. Desse dia em diante o
próprio comandante acompanhava sempre a jovem quando saía do camarote para tomar as refeições,
fazendo o mesmo quando já estava pronta para retornar. Aliás, foi uma medida desnecessária, porque o
senhor enfurecido ficou enfiado no seu camarote durante todo o resto da viagem, não aparecendo mais
para ninguém.
O navio chegou a Mawitã, porto marítimo de Bengala, alta noite e os passageiros tiveram permissão
de dormir a bordo até o dia seguinte. Ela desembarcou escoltada por todos os oficiais do navio, mas a
medida de precaução era desnecessária. O homem misterioso com seus criados havia deixado o navio
durante a noite. Havia uma escolta esperando por ela, consistindo de dois homens da Patrulha da Selva
que haviam recebido instruções para ir ao encontro dessa senhora e levá-la até uma encruzilhada onde
começava a picada principal que levava ao interior da selva. Pelo que se sabia, chamava-se a trilha do
Fantasma, mas não eram muitos os que sabiam qual a razão dessa denominação.
O futuro pai de Kit — o Vigésimo — estava aguardando a sua jovem senhora naquele ponto. Estava
impaciente e ansioso, pois já fazia um ano que não via mais sua amada. Na Floresta Negra, frenéticos
preparativos para o casamento. Todos os chefes e líderes da selva haviam sido convidados e eram
esperados para assistir ao enlace. Durante semanas os tambores rufaram continuamente, espalhando a
notícia: O Fantasma vai casar-se. Em todas as aldeias das tribos haveria festejos que durariam a semana
inteira para aqueles que não poderiam assistir pessoalmente ao casório. Montado em seu Trovão e
postado no cume de uma colina de onde se avistava toda a baía, o Fantasma viu quando o navio ancorou
ao largo. Agora estava esperando no lugar previamente combinado para o encontro e à medida em que as
horas passavam ia ficando mais impaciente. E sua impaciência deu lugar ao desânimo. Quem sabe se ela
não teria mudado de ideia e desistido de vir? A não ser isto, qual outra hipótese poderia ser aventada?
Finalmente a noite caiu. Ficara esperando desde a madrugada. Incrivelmente abatido e desanimado,
preparou-se para voltar à Floresta Negra. Subiu a cavalo até o topo da colina e constatou que o enorme
transatlântico tinha zarpado. Teria ela prosseguido viagem no navio ou não teria vindo?
Mas acontece que na selva as noticias correm mais ligeiro que o vento e ainda não tinha andado
muito quando ouviu os tambores bater. Tinha havido uma emboscada na entrada da selva. Dois homens
da Patrulha da Selva haviam sido gravemente feridos e a senhora que estava com eles fora sequestrada.
Ninguém sabia quem tinha sido o autor do atentado.
Seu desânimo se transformou em fúria incontida. Voltou a toda disparada até a rodovia principal e
trepou no primeiro poste telefônico que encontrou. Já passava da meia-noite. Com o equipamento
especial que sempre trazia consigo, cortou a linha e interferiu nela, conseguindo contacto com o posto da
patrulha, onde acordou o coronel, um jovem oficial de nome Weeks. Weeks se assustou com a voz
enfurecida e profunda do seu comandante desconhecido. Contou-lhe tudo o que sabia a respeito da cilada,
adiantando-lhe que ambos os patrulheiros estavam em condições muito graves. Um deles conseguiu
apenas dizer que os atacantes eram forasteiros de um lugar estrangeiro, que seus rostos estavam vedados
com cachecóis e que haviam praticado o ataque com cimitarras. Pelo que sabiam, a senhora não havia
sofrido nenhum ferimento. Não havia nenhum vestígio dos atacantes, nem a mínima pista.
O Fantasma estava fora de si, temeroso pela sorte da inditosa jovem. Montado em seu Trovão, andou
por todos os recantos, parando em todas as cabanas, perguntando a todos os fazendeiros e pastores se
tinham visto algum sinal ou pista dos sequestradores. Mas ninguém tinha visto coisa alguma. Era como se
a terra os tivesse engolido a todos. Acabado pelos tormentos e angústias, voltou à Floresta Negra. Toda a
selva sabia do trágico acontecimento. Os preparativos do casamento foram cancelados. Na Floresta
Negra os anões observavam desconsolados o seu grande amigo quando ele ficava dia após dia triste e
pensativo dentro da caverna. Não havia quem conseguisse consolá-lo. O que é que se podia dizer a um
homem nesta depressão? Onde estava ela?

As Montanhas Nevoentas ficam situadas ao lado do nascente da selva. Aqui se estende o domínio
dos príncipes da montanha, uma rica aristocracia feudal que data do século quinze. Em plena era
moderna, eles viviam como senhores absolutos em seus pequenos reinos, com o poder de vida e de morte
sobre seus súditos. Eles eram a própria lei para si e normalmente se casavam dentro de sua própria casta.
Só esporadicamente iam buscar sua esposa em outras partes, no desagradável mundo lá fora. Um que
tentou fazer isto foi o príncipe Hakon.
Hakon era o senhor mais rico e mais tirânico que havia nas montanhas, aquele mesmo com cara de
falcão e olhos de serpente. Foi Hakon quem se apaixonou à primeira vista pela jovem e linda loura do
navio, que a perseguira e que jurara que nunca a perderia de vista. Seus homens prepararam uma
emboscada aos patrulheiros e a sequestraram, levando-a num avião que estava esperando. A despeito de
seu apego a costumes feudais, Hakon apreciava os modernos confortos.
A jovem foi levada à presença dele, na fresca aragem do seu palácio nas montanhas. Só então lhe
removeram a venda de seda que lhe tapava os olhos. A pobre garota ficou apavorada com a cilada e
subsequente vôo brusco. Seu coração quase entrou em pane quando viu Hakon.
— Não mandei que a trouxessem até aqui para lhe fazer mal e sim para honrá-la, fazendo-a minha
princesa — disse ele. Sua voz era cálida, mas seu tato era frio como seus olhos pálidos, quando pegou na
mão dela. Ela afastou a mão com raiva e ameaçou-o com a lei. Esta ameaça divertiu Hakon, que nesta
terra a lei era ele mesmo.
"Vou lhe dar tempo para que se acostume com este lugar e comigo também", disse ele confiante,
como se isto resolvesse o caso. Ela havia sido sequestrada por vários guardas, que gritavam e brigavam
entre si numa maneira que não ficava bem para uma senhora, pois ela não era mulher de chorar ou
desmaiar. Como uma princesa dos livros de contos, foi trancafiada numa torre alta. Quando amanhecia, o
sol se levantava por sobre as montanhas e ela via a selva distante, onde sabia que seu bem-amado a
esperava.
Todos os dias Hakon ia vê-la e todos os dias ela o recusava, dizendo-lhe sempre que amava outro
homem. Depois de certo tempo esta situação o deixou aborrecido e ele passou a dizer que ela estava
mentindo, pois não devia haver nenhum outro homem a quem ela amasse depois que tivesse visto Hakon
ao menos uma única vez. Apesar dos apuros em que se achava, ela fez galhofa com tudo aquilo que
Hakon lhe dizia, o que contribuiu para enfurecer ainda mais o arrogante príncipe das montanhas. Pediu
que lhe dissesse quem era o tal do príncipe dos seus sonhos e ela acabou dizendo, com orgulho e muito
feliz... O nome que ela citou foi meramente... Fantasma.
Esta revelação obrigou Hakon a pensar mais. Conforme também todos os senhores das montanhas,
durante toda a sua vida tinha ouvido falar do Fantasma, mas presumira que não devia ser um homem de
carne e osso e sim mera superstição dos habitantes das selvas. Era possível existir uma pessoa assim?
Iria procurar descobrir. Estava ansioso por descobrir a verdade. Se semelhante pessoa realmente existia,
então a mandaria vir ao seu palácio para tratar com ele.
Não sabia como encontrar tal homem e por isso perguntou à jovem.
— O Sr. não consegue encontrá-lo. Ele é que vai encontrá-lo — respondeu ela, contente porque tinha
novamente oportunidade de falar no nome do seu amor. Percebeu o orgumo e satisfação na voz da jovem
e estava decidido a encontrar esse homem onde quer que fosse e acabar com aquele amor. Por meio de
emissários mandou espalhar a notícia pela selva que a jovem desaparecida pela cilada estava hospedada
no seu castelo e que em breve se tornaria sua esposa. O que ele queria é que essa notícia chegasse aos
ouvidos do seu misterioso bem-amado. E foi o que aconteceu na Floresta Negra. Quando tomou
conhecimento do fato, montou célere seu Trovão, atravessou como um corisco a cachoeira e dirigiu-se
para as Montanhas Nevoentas rumo ao palácio do Príncipe Hakon. E quem estava lá; sua noiva!
(Aqui Gurã parou. — Quer que conte mais ou quer continuar a viagem? — perguntou ele
astuciamente. — Não! — gritou Kit... — E quando é que vem a corrente? Espere, que ela vem já —

respondeu Gurã.)
O Vigésimo conhecia Hakon só por ouvir falar dele, e todos diziam que era um tirano despótico e
cruel. A notícia que recebera deixara-o enfurecido e fora de si. Hóspede daquele castelo... prestes a
casar-se? Será que ela estava lá por sua livre e espontânea vontade? Ter-se-ia ela apaixonado por seu
raptor? Ou teria a emboscada sido previamente combinada pelos dois quando estavam ainda no navio?
Pensou até nisso, porque ouvira falar que Hakon viajara naquele mesmo navio. Todas estas perguntas lhe
infernizavam as ideias enquanto galopava pela picada que leva às Montanhas Nevoentas.
Quando chegou lá em cima os portões do palácio estavam abertos. Não parou, mas passou pelos
guardas montado em seu Trovão, subiu de cavalo pelas escadarias largas e entrou pelas portas enormes
que estavam abertas. Em, seguida atravessou como o relâmpago o vestíbulo, subiu a escadaria sinuosa
em direção ao salão onde Hakon esperava sentado num pequeno trono de ouro. Ficou espantado ao ver
esse homem mascarado em cima daquele garanhao preto, que se empinava nos assoalhos de tacos. O
Vigésimo empunhava a.pistola, com a qual atirou no candelabro de cristal que brilhava no alto.
— Onde está ela? — esbravejou ele. Em sua fúria, mandara tudo quanto é precaução às favas.
— Está lá em cima — respondeu Hakon apontando para o teto, ao mesmo tempo em que estalava os
dedos. A este sinal guardas postados em ambos os lados atiraram. Diversas balas atingiram o homem
mascarado que caiu do seu Trovão sobre o chão encerado.
Durante um mês foi mantido numa pequena cela enquanto se curava dos ferimentos. Os guardas
tinham tido a precaução de não o matarem e havia um médico que cuidava dele. Hakon não queria que
morresse, pois tinha outros planos em mente para esse amante mascarado da senhora.
Quando se recuperou dos ferimentos foi levado ao pátio, onde havia uma mó em que se moíam os
cereais. Dois bois presos a um varal movimentavam-se em volta da pedra em forma de círculo.
Retiraram os bois e no lugar deles atrelaram o homem mascarado. — Ande! — ordenou um guarda,
golpeando-o com um chicote. Ele permaneceu parado, olhando atentamente para a torre. Lá em cima na
janela com trancas viu-a pela primeira vez. Ela também o viu e gritou-lhe. Debateu-se para desfazer-se
das correntes, mas eles o seguraram. O guarda vibrou mais uma chicotada no Vigésipno, bem de
atravessado nos ombros. Mesmo assim se negou a puxar.
De um balcão Hakon observava.
— Não lhe dêem nenhuma comida nem água até que se resolva trabalhar — gritou ele, retirando-se
para dentro do palácio.
Pelo espaço de vários dias o homem mascarado se recusou a trabalhar, mas logo a sede e depois a
fome o forçaram a puxar a mó. Voltas e mais voltas dava ele, puxando a pedra de moinho que rangia e
chiava. A jovem observava da torre. Se suas lágrimas não podiam valer-lhe, também de nada adiantavam
a Hakon. Achou que a humilhação infligida ao seu bem-amado acabaria com sua paixão por ele. Assim
pensa todo homem de sentimentos iguais aos de Hakon. Mas esta providência só contribuiu para torná-la
ainda mais infensa a. Hakon.
Passavam-se dias e semanas e desde o raiar do sol até à noite puxava ele a pesada mó. Quando
parava, era chicoteado. De noite vários guardas o levavam, ainda acorrentado, de volta à cela, com uma
arma apontada em sua cabeça. Na cela era obrigado a dormir no chão duro. E de madrugada, novamente
de volta ao trabalho na mó. A esta altura o povo da cidade ia até o palácio para zombar do prisioneiro.
Estes habitantes das montanhas tinham ouvido histórias sobre a antiga lenda da selva que falava do
Fantasma e agora zombavam dele, jogando-lhe pedras e imundície. Tudo isto aguentava ele em silêncio.
Quanto a Hakon, ainda rejeitado e despeitado, se divertia com cada cena que presenciava.
A notícia se espalhou pelas planícies e chegou até à selva. O Fantasma era prisioneiro de Hakon e
estava trabalhando como animal de carga! Todas as tribos tomaram conhecimento, inclusive a de Bandar,
e o povo envenenado dos pigmeus resolveu ir em auxílio do seu amigo. Enquanto trabalhava na pedra de
moinho chegou aos ouvidos do Fantasma que os pigmeus estavam se mobilizando, pois um guerreiro

Wambesi afoitamente escalara estas alturas a fim de levar-lhe conforto e encorajamento, pois a ajuda já
estava a caminho. Mas o Vigésimo transmitiu pelo guerreiro um recado, ordenando taxativamente que os
anões de Bandar não fossem em seu auxílio. Sabia perfeitamente que mesmo com suas flechas
envenenadas aquele povo pequeno seria massacrado pelos soldados de Hakon, caso tentassem subir até
aquele monte. E assim foi ele continuando a trabalhar, debaixo da zombaria dos guardas e do povo que
não se cansavam de atormentá-lo; Hakon se divertia enquanto a jovem chorava.
(A esta altura da narrativa os olhos de Kit estavam marejados de lágrimas, seu rosto encolerizado e
seus punhos cerrados. E Gurã prosseguiu).
Eie continuou em seu trabalho e num determinado dia notou uma coisa que ninguém ainda tinha visto.
Toda vez em que dava aquela volta trabalhosa e lenta, puxando o varal que fazia a pedra de moinho
rodar, um anel da corrente que o mantinha preso esfregava na beira da pedra. Em toda volta que dava a
pedra raspava bem de leve no anel. Era um trabalho difícil e cansativo, pois estava ali fazendo o que
dois bois deviam fazer. Mas não esmoreceu nem respondia às zombarias que a multidão lhe lançava em
rosto. Quanto às chicotadas dos guardas, nem ligava a menor importância. Às vezes Hakon levava os
hóspedes que convidava para jantar para que vissem a besta da selva trabalhando. Os príncipes dos
picos vizinhos deleitavam-se com este entretenimento singular e fora do comum e se congratulavam com
seu anfitrião pela sua originalidade. E, embora se tivesse tornado uma besta muda, continuava ele seu
trabalho, rodando, rodando e com o anel cada vez se tornando mais fino.
Passaram-se meses e quase um ano nesse tormento infernal. A jovem na torre tinha perdido toda
noção de tempo. Várias vezes se recusara a tomar as refeições, fazendo uma greve de fome devido ao
cruel tratamento que estavam dispensando ao seu amor. A "besta muda" daqui de baixo ficou sabendo e
mandou um recado à jovem, pedindo-lhe que comesse porque tinha que conservar as forças e cuidar da
saúde. E lá continuava ele dando voltas e mais voltas em torno da mó, usando toda a sua força potente
para puxar o terrível peso.
Finalmente um belo dia as coisas aconteceram. Hakon estava. perto e tinha em sua companhia um
pequeno grupo de senhores e senhoras. Tinham acabado de chegar de uma caçada e antes de almoçar
tinham resolvido fazer uma visita à "besta da selva". Os guardas estavam a postos na parte dos fundos.
As coisas aconteceram num abrir e fechar de olhos, pois nesta altura o anel já estava quase
completamente roído. Num certo momento a "besta da selva" se pôs a movimentar mais depressa a roda,
depois se levantou, arrancando o varal comprido da corrente, vibrando em volta tanto varal como
corrente, enquanto ia se movimentando. A arma temerosa ceifou de repente uma dúzia de hóspedes que
foram caindo pelo chão como paus de boliche, entre os quais também Hakon. Mas como um corisco a
"besta" se lançou em cima dele, apertando o elegante pescoço de Hakon com suas mãos possantes. Os
olhos frios daquela serpente quase que saíam das órbitas.
— Ordene a seus homens que joguem fora suas armas. Mande trazê-la aqui em baixo imediatamente
— exigiu o homem mascarado.
Hakon grasnou a ordem. A esta altura a própria arma de Hakon estava apontada contra a sua própria
cabeça. Não conseguindo praticamente acreditar naquilo que estava vendo, a jovem foi trazida para
baixo. Sem parar para cumprimentá-la mandou que montasse num dos cavalos da turma que havia estado
caçando e que estava ao lado. Imediatamente ordenou que lhe trouxessem o Trovão. Hakon praguejava
espumando de raiva e só parou quando recebeu um vigoroso soco nos ouvidos. Ao ver seu dono, Trovão
começou a relinchar e empinar-se todo.
O Vigésimo montou o cavalo, levando consigo Hakon que foi colocado na frente da sela. A arma que
pertencia a Hakon continuava encostada à sua própria nuca e o rosto do príncipe estava lívido como um
cadáver.
— Detenham-no — guinchou ele como uma ave ferida.
— Se alguém se mexer, você será um homem morto. Está me ouvindo?

Hakon entendeu perfeitamente como também todos os demais, que presenciavam a cena.
A uma ordem do homem mascarado, um guarda lhe trouxe a corrente quebrada. Era justamente
aquele que estivera chicoteando-o impiedosamente durante meses. O homem mascarado fez a corrente
rodopiar e o guarda caiu no chão. Ato contínuo os dois cavalos dispararam e saíram a toda brida do
pátio, desceram o declive da montanha, levando consigo a jovem, o príncipe e o Fantasma da selva. A
corte estupefata e confusa olhava para o varal partido e as correntes que haviam sobrado; e seu
atordoamento cresceu ainda mais. Todos se perguntavam como é que um homem poderia quebrar aquela
corrente pesada, por mais forte que fosse. Será que aquele homem era de verdade aquela criatura imortal
sobre a qual suas babás da selva teciam cantos e louvores desde a infância?
A notícia do seu retorno correu mais rápida do que o som. O rufar dos tambores enchia todo o ar
com seus sons e a selva prorrompeu de contentamento para lhe dar as boas-vindas. Foi organizado um
casamento descomunal. Todos os chefes e líderes foram à Floresta Negra. Em todas as aldeias foram
organizados festejos para aqueles que não pudessem assistir ao enlace. Vinte chefes escoltaram o
príncipe Hakon até o quartel general da Patrulha da Selva em Mawitã. Toda riqueza, poder e influência
dos príncipes das montanhas não conseguiram reduzir a pena de prisão de trinta anos que lhe foi imposta.
Mais tarde o príncipe foi morto por um colega de prisão numa briga sórdida.
O Vigésimo nunca esqueceu a sua corrente. No dia do casamento pendurou-a ao lado do Trono da
Caveira e lá está ela até hoje.
Certo dia explicou ele: "Para mim ela representa paciência, vontade de persistir, de fazer aquilo que
me cumpre fazer apesar das dificuldades. Em época nenhuma de minha vida estivera eu em situação mais
deprimente ou mais desesperadora. Contudo a lenta erosão do anel daquela corrente me deu esperança e
vontade de prosseguir".
E nesta altura a história terminou. Kit estava deitado de ; costas, contemplando em silêncio as nuvens
bem no alto do firmamento. Em seguida Gurã tirou alguma coisa da sua bolsa.
— Seu pai me disse que, se um dia lhe contasse a história da corrente, desse isto a você.
Era um anel da corrente que estava dependurada no trono. Era o anel que havia sido raspado na roda
do moinho e que se havia quebrado. Kit pegou-o e contemplou-o durante longo tempo.
— Gurã, agora entendo porque você me contou aquela história. Você acha que eu devo permanecer e
fazer aquilo que de mim esperam, mesmo que eu deteste.
Gurã fez sinal que sim. — Mesmo que você deteste, mas nunca deve se esquecer que é a coisa que
tem que ser feita. Paciência e persistência, eis as virtudes que seu pai usou com a corrente.
Kit suspirou profundamente e disse. — Está bem. Agora volto.
O sol ia descendo no céu e já haviam tomado um bom banho de sol, há muito tempo. De repente
ouviram uma voz fina que os chamava.
— Você é o garoto que estão procurando, disse a voz.
Os dois olharam atentamente pela grama. Era uma garotinha de seus oito anos de idade, vestida de
branco, com uma fita comprida e vermelha nos cabelos compridos e pretos. Tinha os olhos cinzentos e
amplos e uma carinha de anjo. — Mamãe me disse que vocês fugiram de casa.
Os dois ajeitaram depressa suas tangas e aproximaram-se dela.
— Você está perdida? — perguntou Kit.
— Oh, não. Moro aqui perto. Eu conheço a sua tia Bessie — ceceou ela, por causa dos dentes da
frente que lhe tinham caído. — Ela está chorando porque você fugiu de casa.
— Como é que você se chama? — Diana. Diana Palmer.
— Uma cartomante talvez pudesse dizer a Kit que esta garotinha seria o amor de sua vida. Mas
acontece que por lá não havia cartomante para ler a sorte.
— Tia Bessie está chorando?
— Você está sendo mau com ela; você não devia fugir. Você devia voltar para casa, — disse a

menina com firmeza.
Kit ficou inquieto. Não imaginava que tia Bessie gostasse tanto assim dele. Também sua mãe haveria
de chorar se um dia ele fugisse de casa.
— Sabe de uma coisa, Gurã? Ela está certa — observou Kit.
— O melhor mesmo é voltar — concordou Gurã.
— Olha como ele fala engraçado! — comentou Diana.
— Venha conosco e lá em casa nós falamos — disse Kit, tomando a menina pela mão.
E os dois regressaram de maneira tão inesperada como haviam desaparecido. Tia Bessie cobriu de
beijos Kit que estava acanhado. Até mesmo tio Efraim se sentiu aliviado, embora se mantivesse de cara
fechada e rude. É que se sentia muito Culpado pelo desaparecimento dos garotos. \ Mas, em
compensação, estava convencido de que a fuga não podia ficar sem castigo. Ordenou que lhe mandasse o
garoto até o celeiro porque queria ter uma conversa séria com ele, apesar de tia Bessie protestar em
lágrimas. Apenas de tangas, Kit chegou acompanhado de Gurã, que ia atrás. Tio Efraim estava em pé
perto da banheira, já com o pesado cinto de couro nas mãos, dobrado.
— Você por pouco que faz sua tia ter um ataque de coração! — disse ele seriamente. — Por isso tem
que ser castigado.
Ponha-se naquela mesa, curvado.
Kit permaneceu em pé, sem dizer uma palavra.
— Você me ouviu? — berrou Efraim.
— Sim, eu ouvi — respondeu Kit calmamente. — Mas o Sr. não tem direito de me bater e não vai
fazer isto, porque não permito.
Efraim espumejou de raiva com aquele desafio. Era um homem corpulento, um antigo madeireiro já
acostumado a atitudes rudes. Fez menção de avançar em cima de Kit, mas conteve-se. Ele era mais alto e
mais gordo, mas no rosto daquele garoto havia algo que lhe esfriou repentinamente o ímpeto. Atrás,
postado na penumbra estava o pequeno Gurã feito um ídolo esculpido. Sem saber porque, de repente
Efraim sentiu medo. Só queria era sair daquele lugar, o que fez a toda pressa, subindo as escadas e
resmungando sem olhar para trás.
— Espere que lhe falo outro dia — resmungou contra Kit.
— Você bateu nele? — perguntou tia Bessie com os olhos escancarados. Quando Efraim saiu do
celeiro ela estava na porta da sala e ouviu as palavras que ele dissera ao garoto.
— Não, mudei de ideia — respondeu ele.
— Como estou contente — observou Bessie cheia de felicidade.
— Foi a melhor coisa que se podia fazer.
Kit voltou à sua vida normal de antes. Em seu coração sabia que a atitude que tivera teria a
aprovação do seu pai. Na escola a situação não era totalmente a mesma. As crianças compreendem o que
significa tentar fugir. Esse colega carrancudo e fechado tinha falhado em seu plano. Eles agora se
mostravam mais amigos e simpáticos. Mas o tio Efraim continuou com sua má carranca contra o garoto.
Havia uma coisa que lhe azucrinava as ideias.
Certa noite em que estava conversando com tia Bessie, perguntou ele novamente: — Então sua irmã
me manda esse garoto, sem um tostão no bolso! Será que aquele "rico agricultor" acha que tenho a
obrigação de pagar uma escola particular para educar seu filho e ainda por cima encher a barriga dos
dois, enquanto ele fica lá enterrado na sua caverna? Eles comem como elefantes!
Casualmente Kit ouviu esta conversa e então se lembrou de uma coisa. Não é que se havia esquecido
de entregar aos tios o saquinho que o pai lhe dera! Quando estavam jantando entregou-o então aos tios,
desculpando-se e explicando:
— Meu pai não lida com dinheiro, mas me deu isto aqui para que entregasse aos Srs. para custear
meus estudos e minha alimentação e o que for preciso — disse Kit. Efraim espichou os olhos para as

joias que brilhavam, brancas, verres, vermelhas e azuis.
— Que quer que eu faça com estas joias? São de vidro? — perguntou ele desconfiado.
— Elas não se parecem com vidro — observou tia Bessie — embora hoje em dia façam imitações
tão perfeitas. Kit, são de vidro?
— Não sei — respondeu Kit.
— Efraim, onde é que você as conseguiu? — perguntou o entendido e trabalhava com pedras
preciosas e joias. O amigo gastou um tempo enorme, examinando-as com uma lente de aumento.
— Isto aí dá para custear os estudos do garoto? — perguntou Efraim, certo de que seu amigo haveria
de dar uma boa risada com aquela sua pergunta.
— Efraim, onde é que você as conseguiu? — perguntou o amigo.
— Você nem pode imaginar onde foi. Só lhe garanto que não as roubei. O que me interessa é saber
se com isso dá para custear os estudos do menino.
— Efraim — respondeu o amigo — acho que você poderia perfeitamente comprar uma pequena
escola com o valor delas.
Quando Efraim caiu em si e viu o valor que as joias tinham, ficou branco e, voltando-se para Kit,
perguntou-lhe:
— Onde foi que seu pai conseguiu isto aí?
— Ele tem um quarto cheio delas — respondeu Kit, sacudindo os ombros.
— O que foi que disse? Um quarto cheio? — perguntou Efraim bem baixinho.
De agora em diante tio Efraim passou a tratar Kit muito bem. Tornou-se um sujeito agradável e tanta
era a bajulação que chegava a levar-lhe um copo de leite na cama, antes de o garoto dormir. Até Gurã
recebia um copo de leite.
Tanto em casa como na escola a vida se tornou melhor e assim Kit se sentia mais feliz. Gurã, o
anãozinho, observava e alegrava-se porque via que assim era que devia ser. Teria oportunidade de fazer
um bom relato quando chegasse de volta à Floresta Negra. Então Gurã comunicou a Kit que o deixaria
porque o tempo já se esgotara e era preciso que fosse para casa. Kit se sentia desambientado neste país
estranho e sentia saudades de seu povo.
Antes de deixar pela última vez seu quarto do segundo andar, tentou dar a Kit um presente de
despedida, aquele objeto que ele mais estimava; as suas armas. Eram o pequeno arco, as flechas com as
pontas envenenadas e a lança curta que havia levado consigo quando saíra da Floresta Negra, tudo
embrulhado em couro. Kit ficou emocionado, mas recusou o presente. Sabia que o anãozinho precisaria
de suas armas logo que penetrasse na selva. Do mar até à Floresta Negra havia um trecho comprido a
percorrer e estaria sujeito a perigos constantes por parte de animais e possivelmente até de homens e por
isso não era bom que estivesse desarmado, ao passo que com suas armas nas mãos nenhum ser humano
ousaria aproximar-se dele. Normalmente toda criatura fugiria dele, quando o visse. Em virtude disto Kit
recusou a lembrança e Gurã compreendeu as razões e por isso não se sentiu ofendido.
Gurã foi levado ao aeroporto. A esta altura ele já tinha aprendido a vestir roupas normais, mas sua
estatura de anão continuava despertando a atenção. Visto que não falava nenhuma língua conhecida nestas
partes, levou instruções por escrito e andava sempre com uma etiqueta mostrando seu destino final.
Com um aperto de mão — coisa que eles haviam aprendido em Clarksville — Kit e Gurã se
despediram. E lá voou Gurã para a Floresta Negra. E com ele acabava o último vínculo de Kit com a
selva e o mundo de sua meninice. Agora sua nova vida seria aqui, durante longos anos.

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