16 - A CRIPTA
Quando entrou na caverna instintivamente procurou pela bondosa mãe. Quantas vezes tinha ela
estado esperando por ele, justamente na entrada da caverna, fora do sol quente.
Com sentimentos de dor percebeu que ela não estava mais ali. Há quanto tempo estava ela morta? Há
cinco, seis anos? Tinha havido aquela carta. Saiu correndo, passou pelo quarto dos trajes e o Aposento
das Crônicas, pelo quarto maior e pelo menor que continham os tesouros com suas pedras preciosas
cintilantes, chegando ao enorme quarto de chão duro onde seu pai jazia deitado num montão de peles de
animal, tendo ao lado dois pigmeus sentados. Quando Kit entrou os dois se levantaram e saíram depressa.
Seu pai vestia apenas tangas. Tinha peito, pernas, braços, ombro e testa enfaixados em ataduras,
cobrindo mais de uma dúzia de ferimentos. Quando Kit se aproximou seus olhos estavam fechados.
— Papai — chamou Kit.
O Vigésimo abriu os olhos. Não ficou surpreso porque estava certo de que seu filho chegaria. Olhou
para o filho, sorrindo brevemente, e com uma voz suave pronunciou palavras que todos os pais dizem em
todos os tempos e idades:
— Como ficou grande, meu filho.
Kit evocou a lembrança do vigoroso corpo do seu pai naqueles dias em que nadava nas águas das
praias de Keela-Wee e Éden. E ainda os mergulhos nos pequenos lagos da selva. Agora a refrega
causada por suas lutas mortíferas era evidente. Tinha perdido peso e o movimento de sua mão era lento e
fraco. Kit sentou-se ao seu lado.
— Papai, o Sr. vai melhorar — disse ele. Seu pai sacudiu a cabeça. Sua voz era fraca e Kit teve que
se inclinar para poder ouvir melhor.
— Eu estou vivendo de teimoso. Alex predisse que meus dias estão contados. Eu disse que ele era
tolo, que estava dizendo bobagens —. Nisto riu suavemente, esforço que lhe provocou um acesso de
tosse.
— Kit, vou morrer. Fiquei vivo só para poder ver você. Não me sobra muito tempo. Está lembrado
do Juramento? Kit fez sinal que sim, apertando a mão de seu pai.
— Sim, lembro-me.
O pai começou a citar o Juramento da Caveira, fazendo pausa depois de cada frase, para que Kit a
repetisse.
"Juro que dedicarei toda a minha vida à tarefa de destruir a pirataria, a ganância, a crueldade e a
injustiça e meus filhos e os filhos de meus filhos me perpetuarão".
Repetido o juramento, o Vigésimo levantou fracamente a sua mão esquerda.
— Os anéis. Kit.
Kit hesitou.
— O Sr. está certo disto, pai? — perguntou ele. Os anéis eram o final de tudo.
— Os anéis — repetiu o pai com uma voz mais premente e apressada.
Kit retirou o anel da mão esquerda e entregou-o ao pai. Com mão trêmula, o pai colocou-o no dedo
anular da mão esquerda de Kit.
— Para que sirva de proteção a gente de bem — murmurou ele, ofegante. — A outra mão.
Já não conseguia mais levantar as suas mãos. Kit retirou o anel da mão direita. Era o anel da cabeça
da morte, que trazia uma caveira, o antigo símbolo do Fantasma que era conhecido de todos os que
habitavam a selva, dos piratas dos sete mares e dos malfeitores dos quatro pontos do mundo.
Com a ajuda de Kit o pai introduziu o anel da caveira em sua mão direita.
— Kit, o anel do Juramento. Seja-lhe fiel.
— Serei fiel a ele.
— "Você conhece o resto — a máscara — começou seu pai a falar.
Kit se inclinou, falando perto do ouvido do pai. — A máscara para disfarce — respondeu ele.
— O tesouro.
— O tesouro, que só deve ser usado para fazer o bem — respondeu o filho.
— As Crônicas.
— Serão escritas.
Kit estava repetindo as palavras que havia aprendido em criança, quando a mão do pai agarrou
depressa, desesperadamente, as do filho.
— Kit, quantas vezes sua mãe sentia saudades de você — queria revê-lo mais uma vez — agora tem
que esperar — agora.
Debatia-se para dizer alguma coisa mais. Seu corpo tremia com o esforço que fazia e seu cochicho
rouquenho e áspero era tão suave que Kit mal podia entender.
— Kit, terá dias felizes — e dias maus.
Com os ouvidos colados aos lábios do pai, Kit esperava que o pai falasse mais alguma coisa, mas
nenhuma palavra se desprendeu de sua boca. Um suspiro profundo, e sua mão desfaleceu. A respiração
parou. Acabava de morrer.
Kit abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Gurã havia dito, "ele disse que iria esperá-lo. Ele o
desejava".
E ele estava com a razão. Esta era a tempera deste admirável homem. Por força de algo de
misterioso que havia nele, conseguira manter a morte esperando o tempo suficiente para tornar a ver seu
filho.
Kit permaneceu sentado, por algum tempo, meditando, perto do corpo do seu pai, iluminado pela luz
cintilante das tochas colocadas nas paredes nuas. Pois, conforme lembrou pelos treinos dos seus
primeiros anos, sabia o que era preciso fazer. Apanhou o corpo do seu pai e carregou-o para aquele
aposento mofado e frio chamado a Cripta. Teve que executar esta tarefa sozinho, porque assim
determinava a tradição dos seus antepassados. No aposento estavam enfileirados os ataúdes, desde o
Fantasma Primeiro até o Dezenove. Perto do último estava a tabuleta sem data, o lugar do Vigésimo.
Perto dali, no chão, havia uma caixa de pedra com velhas ferramentas. Com as ferramentas retirou a
tabuleta sem data. Atrás desta tabuleta, se via um ataúde de metal. Quando foi que seu pai o conseguira.
Cada Fantasma tinha a mórbida tarefa de preparar seu próprio caixão mortuário. Kit retirou o ataúde e
com cuidado colocou o pai dentro dele. Curvou-se para dentro do ataúde, beijando a face ainda quente do
defunto. A lembrança deste paciente e generoso pai inundou de lágrimas os olhos do filho.
— Adeus, papai — murmurou ele.
Recolocou a cobertura de metal e lentamente pôs o capacete em seu nicho na parede. Então, a
próxima tarefa. Entre os instrumentos de ferro havia um martelo e um cinzel. Isto também era uma sua
tarefa, já que ninguém a não ser o Fantasma ou sua família podia entrar na Cripta. Depois de marcar
números sobre a tabuleta com um creiom também encontrado na caixa de pedra, começou a cinzelar lenta
e cuidadosamente, em cima o Vigésimo, os anos de seu nascimento e morte. Isto posto martelou a tabuleta
no devido lugar. Após ter varrido o solo e recolocado os instrumentos nos lugares, exaustivamente
examinou seu trabalho. Agora, a antiga linha estendia-se do Primeiro ao Vigésimo. Vinte gerações de
homens valentes e altruístas, que tinham dedicado suas vidas à luta contra o mal e à promoção do bem,
agora que conhecia o mundo lá de fora e tinha estudado o passado, compreendeu que esta linhagem dos
Fantasmas era única e sem paralelo em qualquer parte e em qualquer etapa da história da humanidade.
Sua tristeza foi substituída pelo orgulho à medida que olhava para as abóbodas. — Minha família, pensou
— sou um deles.
Olhou de novo para a placa recentemente cinzelada que cobria a cripta de seu pai. Nas cercanias
dela estava outra placa destituída de data, esta seria a sua um dia. O Vigésimo primeiro. Estranho
pensamento. Mas não o perturbava. Para a juventude, tanto como para os soldados a caminho da batalha,
a morte é sempre para os outros.
Feito isto, saiu da cripta e dirigiu-se ao quarto dos trajes. Ali, sobre um banco de pedra, havia um
traje esperando por ele, máscara, capuz, cintos, coldre, armas. Há quanto tempo estava isto tudo
esperando por ele? Ao vestir aquelas roupas e acessórios teve vontade de sorrir. Enquanto estava na
América, os seus pais sempre lhe escreviam, pedindo que lhes dissesse que altura tinha e quanto pesava e
assim eles puderam acompanhar de longe o crescimento do seu filho ausente. O traje assentou muito bem.
Frequentemente cismava acerca deste traje particular. Não parecia talhado para a selva. Seu pai
explicara. O Primeiro havia criado o traje para fixar a imagem que gerasse superstição de um certo
espírito de vingança em que o povo da selva o da costa acreditava naquela época. O medo que sua
aparição criava o ajudava em sua batalha contra o barbarismo violento e a selvageria de seu tempo. Seu
filho e aqueles que se seguissem continuariam usando a mesma roupa e a lenda da imortalidade iniciada e
segundo a qual sempre o mesmo homem se manteria. Aquele também era uma grande ajuda na luta
encarniçada contra o mal.
Com a luz da tocha acesa se olhou no espelho que fora de sua mãe. Seu aspecto quase .o chocou e
surpreendeu ao mesmo tempo. Olhando de perto, ele parecia-se exatamente como seu pai. Apanhou as
duas armas que haviam pertencido a seu pai. Estavam bem lustradas. Que armas mortíferas!
Tão logo tivesse que usá-las, o que imaginaria? Um pensamento fugaz atravessou sua mente. Aqueles
bandidos que haviam atacado a escola de missionários do padre Morra — a batalha que causara a morte
de seu pai — seis haviam sido apanhados, mas seis haviam escapado penetrando na selva. Deviam ser
encontrados e levados à justiça. Colocou os revólveres nos coldres e então sacou rapidamente, tal como
havia praticado tantas vezes. Sabia que sua vida poderia depender da rapidez daquele movimento.
Recolocando as armas no lugar, Kit dirigiu-se ao quarto das Crônicas, que estava iluminado por tochas.
Um volume grande e novo estava colocado no pódio perto das estantes com os volumes contendo todas as
façanhas de vinte Fantasmas. Abriu o volume novo. As páginas estavam em branco. Havia uma pena de
asa de galinha e um pequeno recipiente de tinta feita de cerejas silvestres. Escreveu a data no cabeçalho
da página e começou a registrar a sua primeira crônica:
"17 de junho: Hoje meu pai faleceu em consequência de ferimentos recebidos nas mãos dos
bandidos que atacaram o hospital missionário do padre Morra. Matou ou feriu seis. Outros seis fugiram.
É minha firme determinação capturar esses seis quanto antes possível e tudo fazer para que sejam
punidos de acordo com a lei".
Caminhou lentamente através das salas do tesouro. A sala menor do tesouro estava repleta com joias
e ouro. Como o tio Efraim adoraria ver isto! Em seguida a sala maior do tesouro apresentava-se com seus
objetos antigos que não tinham preço. Pegou a pesada taça reluzente de Alexandre, talhada num único e
gigantesco diamante. Sorriu, lembrando-se de como a tinha deixado cair e da zanga de seu pai; e também
da descrição de Alexandre dada por seu pai. "Alguns o chamam Grande." Tinha estado naquela sala mil
vezes, mas agora tudo parecia diferente. A responsabilidade por tudo aquilo, cabia-lhe agora.
Kit sabia que os pigmeus de Bandar estavam esperando por ele no lado de fora. Atravessou de volta
a vasta caverna, parando mais uma vez na Cripta. Permaneceu em silêncio. Por um rápido momento teve
a estranha impressão de que um punhado de faces mascaradas e sorridentes estavam olhando para ele lá
de cima daquelas paredes e teto. Parecia-lhe que deles emanava um sussurro que ecoava e reboava no
quarto de rocha.
"Seja bem-vindo. Confiamos em você".
Sentiu um calafrio pelo corpo. Os rostos haviam desaparecido. A imaginação é uma coisa realmente
estranha. Mas ele olhou orgulhosamente para a fileira de ataúdes, desde o Primeiro até o Vigésimo.
— Eu farei o melhor — disse ele.
E com isto Kit saiu lentamente da caverna onde cem tochas ardiam, encaminhando-se para o lugar
onde os pigmeus de Bandar o aguardavam.
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