A Praia Dourada de Keela-Wee
Nas partes que ficam a noroeste da selva, perto da região montanhosa, existe uma chapada que se
eleva a cerca de cento e cinquenta metros acima do nivel da mata. Tem diversas milhas de comprimento e
largura e atualmente está tão cheia de árvores como a selva embaixo. Este denso folhame cobre e em
grande parte esconde vastas ruínas que é testemunho evidente de uma civilização que em outros tempos
floresceu nessa região. Em épocas remotas essas ruínas eram palácios magníficos, templos e jardins da
capital do antigo reino negro de Niápura. Os poderosos príncipes das montanhas eram vassalos feudais
dos imperadores negros de Niápura, cuja soberania se estendia também amplamente sobre os habitantes
que viviam no meio da selva ocidental, inclusive a parte denominada Floresta Negra. Este reino atingiu
seu máximo esplendor na última metade do século dezessete, quando era governado pelo poderoso
imperador Joonkar. Dizem que o seu palácio, seus jardins e fontes bem como a elegância e esplendor da
corte rivalizavam com Versalhes. Caravanas e mais caravanas carregando as riquezas do continente
afluíam para Niápura. O imperador mantinha um forte exército. Suntuosos acontecimentos festivos
realizados na corte mostravam a beleza das senhoras e a riqueza de suas joias e vestidos. Bales e
concertos musicais dirigidos por maestros mandados vir da Europa divertiam estas reuniões e centenas
de cozinheiros preparavam os banquetes, que duravam uma semana, com coisas saborosas vindas dos
quatro cantos da terra.
O imperador Joonkar era um jovem possante, um grande benfeitor, um governante sábio, um
desportista e caçador de fama e solteirão. Durante alguns anos conseguira resistir aos esforços dos
casamenteiros da corte, preferindo usufruir da liberdade de que gozava entre as encantadoras senhoras da
corte. Mas finalmente, para tranquilidade de todos os maridos, uma noiva estava a caminho de Niápura.
Era uma jovem princesa de nome Sheeba, de cabelos extraordinariamente lindos, oriunda do distante
estado montanhas de Adzabadar. Anteriormente Joonkar a vira somente uma vez, por ocasião de uma
conferência de chefes de estado, e apaixonara-se loucamente por ela. Assim ficou decidido que a
desposaria, razão porque ela já estava navegando em alto mar ao encontro de Joonkar.
Na entrada do seu reino que chegava até ao mar havia uma enseada secreta que durante gerações
servira de praia pessoal dos imperadores. Sentinelas do rei montavam guarda constantemente e todos os
que ousassem penetrar nela estavam sujeitos a serem castigados com a morte. A razão para esta medida
de segurança residia no fato de que, em virtude de uma singular acomodação geológica, as areias desta
maravilhosa praia eram cinquenta por cento de puro ouro em pó. Daí a razão porque lhe deram o nome de
Praia Dourada.
Enquanto aguardava a chegada de sua futura consorte, Joonkar se ocupava com negócios de estado:
pólo — em que era um aficcionado de mão cheia — e caça. Deixava a corte horrorizada com as caçadas
que realizava, pois Joonkar era um homem possante que preferia caçar a pé com balista, flechas de aço e
lanças curtas. Assim é que certo dia seus batedores estavam penetrando numa determinada parte da selva
que ainda não conheciam, agitando tochas e batendo tambores a fim de forçar os animais a se dirigirem
para a banda em que o seu soberano os aguardava. Essa região não ficava muito distante da Floresta
Negra, e ainda, gozava da proteção do Fantasma que fizera dela uma reserva animal e proibira qualquer
tipo de caça, com exceção para os anões que dependiam dela para a sua alimentação. As sentinelas
levaram a notícia de que caçadores haviam penetrado na reserva e por isso o Fantasma se dirigiu para lá
a toda pressa.
Joonkar estava tendo um dia fantástico. Nunca vira tanta caça. Com suas flechas de aço abateu
antílopes, javalis, zebras, animais selvagens, gorilas e leopardos; foi uma carnificina no mais perfeito
estilo real. Nada era desperdiçado. Os animais comíveis eram abatidos e a sua carne servida nas mesas
da corte e aqueles cuja carne não servia para comer eram engordados e depois serviam como montaria.
Agora é que o inesperado aconteceu. Os batedores haviam acuado uma leoa com seus filhotes e, antes
que os guardas pudessem acudir em tempo, a leoa investiu contra Joonkar. Naquele momento sua balista
estava vazia. Não houve tempo para lançar mão de uma flecha, o que certamente de nada adiantaria numa
distância tão curta. Mas ele aparou a investida com sua lança curta que não passava também de arma fútil
contra a violência do ataque da leoa. De repente percebeu Joonkar que estava enfrentando a morte e que
não havia nenhuma escapatória. Os guardas estavam presenciando a cena, petrificados. Quando o enorme
felídio já estava a uns três metros e pouco de distância do imperador, eis que uma figura estranha e
mascarada foi saindo de dentro do arvoredo em direção das costas do animal. A leoa como que rodopiou
no ar, contorcendo-se para se desfazer deste adversário que surgira de surpresa. Mas um facão atingiulhe em cheio o coração e o animal tombou morto. Exclamações e vozes de alegria elevaram-se dos
batedores e guardas, que correram em direção do monarca. Este olhou para o seu libertador. O que
estava ele vendo? Um traje colado à pele? Uma máscara! Um homenzarrão possante.
— Agradeço-lhe por ter-me salvo a vida. Mas quem é o Sr.? - perguntou o imperador negro.
— O Sr. é bem-vindo mas também está transgredindo as instruções. Fique sabendo que nesta região
não é permitido praticar a caça — disse o Fantasma, apontando para os animais mortos que havia ali
perto.
Os guardas de Joonkar avançaram um passo. Ele riu e fez sinal para que recuassem.
— Sabe o Sr. quem eu sou? — perguntou Joonkar.
— Certamente um homem importante — respondeu o homem mascarado. — O Sr. penetrou nesta
área, sem saber que se tratava de uma reserva; e por isso está perdoado. Estou certo de que não voltará a
caçar nesta região.
Conforme era de se esperar, Joonkar empertigou-se pois, embora fosse um homem sábio e generoso,
era arrogante, um chefe absoluto e filho de governantes também absolutos. Durante toda a sua vida
ninguém lhe proibira coisa alguma.
— Eu, de minha parte, perdôo a sua ignorância, pois se assim não fosse estou certo de que não se
dirigiria a mim nestes termos — retrucou ele. — Pois fique sabendo que sou o imperador Joonkar.
— Portanto não me enganei quando pensei que devia ser ele — respondeu o homem mascarado. —
Já ouvi falar a seu respeito.
Joonkar estava espantado.
— O Sr. já sabia e mesmo assim atreveu-se a me falar daquela maneira? O Sr. não se apercebeu
ainda que sou o governante desta região em que nos encontramos?
— Digo-lhe que nenhum homem governa esta selva. É uma terra de todos. A ninguém é permitido
caçar aqui, com exceção dos habitantes de Bandar, que tiram dela limitados fornecimentos para sua
alimentação — disse o homem mascarado.
A esta altura Joonkar se tornou apático e ficou lívido. — Sejam lá quem forem tanto o Sr. como os
habitantes de Bandar, fiquem sabendo que quem governa esta selva sou eu. Aqui existe caça em
abundância e pretendo voltar aqui quando bem entender — disse ele.
— Lamento muito esta sua atitude, pois já o avisei — retrucou o homem mascarado. Joonkar conteve
a sua indignação e estudou-o de alto a baixo. Quem seria ele? Convencido e arrogante que só ele! Quanto
ao homem mascarado, este não tinha medo de reis nem de imperadores. Sua própria mãe fora Natália,
Rainha da França. Este era o Sétimo Fantasma.
— Perdôo o seu atrevimento porque o Sr. me salvou a vida — disse Joonkar. — Agradeço-lhe e
deixo-o partir sem castigá-lo em consideração ao seu ato. Mas agora estamos quites. Dê o fora daqui e
cuide de sua vida, que eu quero continuar a caçar.
— Já lhe disse que o Sr. não vai mais caçar aqui — respondeu o Sétimo, num tom de voz severo.
Completamente desnorteado, Joonkar fez sinal para os seus guardas. Quando eles avançaram em direção
ao homem mascarado, uma pequena flecha se enfiou num tronco de árvore, passando a cerca de trinta
centímetros acima da cabeça de Joonkar. Todos voltaram seus olhares para as árvores. Em cada uma
delas estava um anão com arco e flecha. Foram reconhecidos imediatamente. Eram os pigmeus
envenenados!
— Estes são os habitantes de Bandar — disse o Sétimo.
Joonkar relanceou um olhar para os guardas que estavam em volta. Estavam evidentemente
estupefatos e paralisados à vista dos pigmeus, cujo único arranhão de uma de suas flechas significava
morte certa e instantânea. Mas ele não tinha nenhuma intenção de dar o braço a torcer a este homem
mascarado.
— Que atrevimento é este? Não permito que me humilhem desta maneira. Vamos resolver esta
situação, de homem para homem. O Sr. tem uma faca. Puxe-a — ordenou o imperador. Os guardas
olharam atentos para o seu soberano.
— Não tenho nenhum desejo de matá-lo — respondeu o mascarado.
— O Sr. não terá nenhuma chance — gritou Joonkar, que espumava de raiva. — Puxe da sua faca
enquanto ainda pode!
Joonkar não estava arrotando coragem sem justa razão, pois era tão grande quanto o homem
mascarado e um exímio esgrimista de espada e faca. Mas o Sétimo não sacou de sua faca. Permaneceu
com suas mãos nas ancas, dizendo calmamente.
— Joonkar, não seja tolo. Vá para casa e fique aguardando a sua noiva.
Acontece que o homem mascarado estava a par de tudo o que se passava com ele. Enraivecido, o
imperador correu furiosamente em direção dele, com a faca em riste. As mãos do mascarado se
movimentaram tão rapidamente que para os observadores aturdidos pareciam como que um corisco. A
faca de Joonkar voou pelos ares e ele prostrou-se de joelhos diante do calmo homem mascarado.
— Já lhe disse que vá para casa — disse ele.
Furioso por ver-se humilhado na presença de seus homens, Joonkar voou em cima dele. — Agora
estrangulo-o com minhas mãos — gritou ele — Ou então o Sr. terá que me matar! Joonkar era um homem
forte, treinado por peritos em todas as artes de combate corpo a corpo. Até agora jamais havia sido
derrotado. Um punho de ferro agarrou-lhe a mandíbula real e em seguida uma rápida torcedura
arremessou-o ao chão e ato contínuo o homem mascarado estava escanchado em cima dele, com as mãos
apertando-lhe a garganta. Os guardas começavam a movimentar-se para diante. Um pigmeu feriu com
força o arco, produzindo um ruído penetrante. Eles pararam. — Joonkar, será que sou obrigado a fazê-lo
raciocinar? — perguntou o Sétimo, na maior calma deste mundo. Joonkar se estrebuchava todo. E os
dedos de ferro iam apertando, forçando um nervo do pescoço. Ficou inconsciente. Somente depois de
algum tempo é que abriu de novo os olhos. Estava sentado, encostado a uma árvore. E o homem
mascarado, de braços cruzados, observava-o. — Não queria machucá-lo. O que fiz foi simplesmente
obrigá-lo a dormir — disse ele. Joonkar ofegava profundamente.
— O Sr. bem que poderia ter-me matado, conforme eu teria feito consigo — disse ele.
— Eu não mato ninguém, a não ser em defesa da própria vida. Mas não havia necessidade disto, —
disse o Sétimo.
Joonkar levantou-se, conseguindo com dificuldade firmar-se em pé. — Não importa quem o Sr. é,
mas o fato é que se trata de um homem bom. Quem agiu mal fui eu. O Sr. pode me perdoar?
O mascarado estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe: — Joonkar, teria muito gosto em ser seu amigo. — O
imperador sorriu e apertou-lhe a mão. E tanto os guardas como os anões se regozijaram a valer.
Com isto se tornaram amigos. De vez em quando o Sétimo era um visitante secreto da grande corte.
Adorava jantar com Joonkar e demorava-se conversando com ele em sua sala de j'antar particular,
enquanto o imperador aguardava a chegada de sua noiva. Mas acontece que ela já estava atrasada
demais. Um mensageiro todo desarrumado chegou com a surpreendente explicação. O navio da noiva fora
capturado por piratas bárbaros e Sheeba estava sendo mantida prisioneira para futuro resgate. O Sétimo
ficou apavorado com a notícia. Sua própria mãe passara pela mesma prova.
O imperador enfureceu-se. Ordenou que suas tropas se pusessem de prontidão e a esquadra se pôs
ao mar. À distância de uma milha da terra estava ancorada a frota dos piratas bárbaros. Do mastro
principal da nave capitânea pendia uma gaiola grande feita de ferro. Dentro dela havia uma senhora
linda, a princesa. Por baixo da gaiola fora amarrado um barril.
Um emissário dos piratas, que sorria afetadamente, veio em terra. Fez umas mesuras de deboche
diante do imperador enfurecido, que estava sentado num cavalo enorme de cor branca.
— Quero um milhão de libras em ouro por sua entrega sã e salva — disse ele. — Ela está bem
guardada — embora algo desconfortável — sem nenhum ferimento, conforme õ Sr. Pode ver com seus
óculos — disse ele.
Joonkar pulou de um salto de sua montaria e esbravejou contra o emissário dos piratas: — Acabo
estrangulando-o com minhas próprias mãos e mergulhando cada um de vocês, corja de piratas, em óleo
fervendo.
— Excelência — gritou o emissário, já não mais fazendo trejeitos diante de Joonkar, mas
procurando desviar-se de sua ira — observe o barril que está debaixo da gaiola. As mãos de Joonkar
haviam agarrado a garganta dele, que caíra de joelhos.
— É pólvora! — deixou ele escoar a voz, a muito custo. — Eles estão observando. Se eu morrer,
eles o fazem explodir. Joonkar deixou cair a mão até o chão e estudou a gaiola com seu telescópio. Lá
estava o barril com um estopim comprido ligado a ele.
— Se ensaiar alguma tentativa para salvá-la, eles acendem o estopim — observou o emissário,
recobrando a compostura.
— E quais as suas condições de resgate?
— Dois milhões de libras, em dinheiro. — Mas o Sr. disse um milhão.
— Acontece que o preço subiu. Cada hora que esperamos o preço sobe um milhão.
— Estão tome lá, e salve-a! — gritou Joonkar.
— Mas há mais — disse o emissário. — Esta baía é um porto excelente. Nós precisamos de um
porto aqui. O Sr. terá que nos ceder esta região e esta costa.
Joonkar estremeceu dos pés à cabeça, prestes a explodir. O Sétimo, que estivera prestando atenção
de dentro do matagal, surgiu repentinamente.
— Sua Excelência exige uma hora para tomar uma decisão — observou ele.
— É mais um milhão? — perguntou o emissário, olhando curiosamente para o homem mascarado.
O homem mascarado fez um sinal afirmativo com a cabeça, ordenando-lhe: — Volte para o seu
navio e leve esta informação.
O emissário fez uma reverência zombeteira a Joonkar e voltou à lancha onde remadores aguardavam
por ele, retornando depois ao navio que estava mais afastado.
— Que posso eu fazer? — perguntou Joonkar, sentado numa tora de madeira e com a cabeça entre as
mãos.
— O Sr. não pode aceitar as condições impostas por eles. Onde se viu uma cidade de piratas nestas
regiões? — observou o Sétimo.
— Mas que será feito de Sheeba?
Olharam em direção ao navio onde Sheeba permanecia prisioneira. O sol já se havia posto e a bordo
as luzes já estavam sendo acesas. Perto da gaiola via-se uma luz brilhante de uma grande lamparina.
— Ela está tão perto. Meu exército está aqui... sem nada poder fazer — lamentou-se Joonkar. Atrás
deles, filas e mais filas de cavaleiros, de soldados da infantaria com mosquetes, de artilheiros com seus
carrinhos de munições, todos aguardando ordens e no entanto todos de mãos amarradas diante desta
situação embaraçosa.
— Minha mãe quase foi morta por piratas. Meus antepassados sempre lutaram contra piratas, sendo
que alguns deles encontraram a morte nas mãos dos piratas. Eu vou resgatar Sheeba para o Sr. — disse o
mascarado.
— É muito arriscado — observou Joonkar. — Se o Sr. falhar.
— Não vou falhar. Não há outra alternativa — disse este Fantasma, o da sétima geração de sua
linhagem. — Tenho que ir. Temos menos do que uma hora disponível.
Jogou-se na água e, protegido pela escuridão da noite, nadou calmamente em direção ao navio. Num
instante já não podia mais ser visto da margem da terra, de onde Joonkar e seus ajudantes observavam
ansiosamente. Eles conseguiam, sim, ver a silhueta escura do velho navio sucata, as lanternas e a gaiola
bem no alto iluminada por uma lâmpada que estava bem perto. Joonkar ajoelhou-se na areia da praia
juntamente com seus ajudantes, suplicando piedosamente ao seu deus que ajudasse.
O homem mascarado nadou até à proa do navio donde pendia uma corrente da âncora, mantendo o
barco preso. Dentro do navio, grande movimentação. O emissário havia levado a mensagem e os piratas
estavam felizes da vida. Não havia dúvidas de que haviam ganho a parada. Joonkar não podia recusar
este imenso resgate por sua bem-amada. Já estavam fazendo partilha do ouro que iriam receber e
planejando o seu novo porto. Piratas bem sucedidos são sempre piratas desregrados. Quando o
mascarado subiu pela corrente da âncora, a metade de tripulação já estava de porre total. Mas acontece
que haviam postado sentinelas em todos os cantos. E lá em cima, bem no alto do mastro principal havia
um pirata com uma tocha acesa na mão, pronto para acender o estopim do barril de pólvora, caso
houvesse necessidade. Segurando-se às amuradas do navio, o homem mascarado conseguia vagamente
avistar Sheeba na gaiola. Sabedora dos termos do resgate e do barril de pólvora que havia debaixo da
gaiola, a pobre garota tremia de medo. Ela olhava para baixo para o homem com a tocha na mão, que lhe
ficava bem perto. Ele também tremia de medo, estava nervoso. Se as coisas ficassem pretas, então dos
males o menor, e ele teria que acender o estopim e descer correndo ou então voar pelos ares juntamente
com ela.
O homem mascarado esperou. Estava vendo o emissário no tombadilho do navio juntamente com um
senhor gordo que devia ser o chefe dos piratas. Olhavam para um relógio. — Faltam quinze minutos —
ouviu-os dizer. — Se tivermos que acender o estopim, vai explodir o mastro? — perguntou um. — Não,
exatamente a gaiola — respondeu o outro.
Agora já restavam apenas cinco minutos. A grande maioria dos homens estava no lado do navio que
dava para a terra, espreitando qualquer sinal de movimento. —, Agora eles terão que enviar uma lancha
— comentou alguém.
De acordo com combinação previamente feita, neste exato momento se fez atividade em terra. Luzes
foram acesas e uma pequena lancha com algumas tochas acesas foi vista sendo empurrada para dentro da
água. — Vejam que estão vindo para satisfazer às nossas condições — gritou o emissário. Os piratas
fizeram uma algazarra de tanto regozijo e neste momento o Sétimo subiu sorrateiramente ao convés. Deu
com uma sentinela que estava de costas para o homem mascarado e um certeiro golpe de caratê
nocauteou-o sem que se percebesse o menor ruído. O homem mascarado correu célere para o pequeno
espaço e alcançou o mastro principal onde um pirata montava guarda. O pirata se virou, surpreendido e
alarmado com o forte murro que recebera e que o fez tombar violentamente no convés com o pescoço
quebrado ("O Fantasma é violento com valentões" — velho ditado da selva). E num instante, ei-lo
subindo o mastro principal. O homem que estava lá em cima observando o movimento em terra só
percebeu a silhueta escura quando se viu frente a frente com ela. Ao mesmo tempo os homens embaixo
olharam para cima. Surgiu um tremendo alvoroço, num instante. Se uma lancha esta vindo da terra com as
condições de aceite, quem era este que ali estava?
Nesse momento o homem mascarado arrebatou a tocha, vibrou um murro tão violento no que a estava
segurando de modo que se esborrachou no chão. Toda esta ação de desenvolveu em questão de rápidos
segundos, com o homem mascarado pisando por cima dele e alcançando a gaiola, segurando a tocha com
uma mão. Ao avistar o homem mascarado pela luz da tocha, Sheeba olhou com as vistas esbugalhadas e
completamente apavorada. Soltou um grito tão forte que pôde ser ouvido em terra, na noite calma e negra.
E em terra Joonkar correspondeu a ele, contorcendo-se de agonia. A gaiola estava trancada com uma
fechadura grosseira. O homem mascarado quebrou-a com uma torção que lhe deu enquanto ia acalmando
a garota que berrava, com as palavras: "Venho da parte de Joonker. Sou seu amigo. Venha". Quando lhe
agarrou o braço, acendeu o estopim do barril. Em seguida jogou a tocha ardente numa pilha que havia
notado no convés. A esta altura os piratas estavam em plena movimentação. Começaram a disparar seus
mosquetes e pistolas em direção ao mastro. Em terra Joonkar e seu exército observavam ansiosamente
para as luzes emitidas pelas armas, de fogo, perguntando-se o que estaria acontecendo. Se
permanecessem por mais alguns momentos o homem mascarado e Sheeba certamente não sobreviveriam à
fuzilaria, mas não se detiveram lá. Segurando-a presa à cintura, lançou-se bem alto e com toda força no
ar, indo cair nas águas escuras, protegido pelo negrume da noite. Mal haviam assomado à tona da água,
quando se deu uma enorme explosão acima deles. O barril e a gaiola haviam voado pelos ares, com uma
explosão. Em terra o exército de Joonkar recuou diante do barulho da explosão e Joonkar enterrou o rosto
em suas mãos.
No convés os piratas estavam por demais alvoroçados para se preocuparem com o homem e a
mulher na'água. A tocha, arremessada em direção ao convés, foi cair — não por mero acaso — num
montão de munições e caixas de pólvora. A apenas trinta segundos da primeira explosão, ouviu-se outra e
em seguida mais uma dez vezes maior, que explodiu o navio, partindo-o em dois. As chamas lambiam
todo o convés. Piratas sobreviventes saltavam para dentro do mar. Em terra, Joonkar e seus soldados
observavam a conflagração, aturdidos de horror. Sheeba estava lá hem como o novo amigo, o homem
mascarado. Ouviam-se gritos e urros lancinantes dos muitos nadadores que vagavam pelas águas, os
quais haviam conseguido escapar do navio em chamas. Com as lágrimas banhando-lhe as faces, Joonkar
ordenou em altos brados: — Agarrem-nos todos. Com a água subindo até a meio-joelho, os soldados
penetraram no mar. Mas os primeiros a chegar não eram piratas. Completamente molhado e exausto o
homem mascarado se dirigiu para a terra, carregando Sheeba em seus braços Os homens olharam
atentamente para eles, como se fossem aparições de almas penadas do outro mundo.
— Joonkar, ela não está ferida — disse o Sétimo ao imperador que acorria esbaforido para o seu
lado. — Apenas desmaiada.
— E eles depois se casaram? — perguntou o jovem Kit, encantado com esta narrativa.
— Sim, casaram-se. E foi um casamento daqueles. E adivinha quem foi o padrinho dos noivos?
— Claro que só podia ser aquele Sétimo Fantasma! — exclamou Kit.
— Exatamente ele. E passaram a sua lua-de-mel na cabana de jade que Joonkar havia mandado
construir na Praia Dourada para a sua noiva. Mas, meu filho Kit, a história teve um fim triste.
Kit arregalou os olhos.
— Um ano depois a linda Imperatriz Sheeba faleceu em consequência de um parto. Joonkar desistiu
dos seus jogos e caçadas e viveu isolado durante mais um ano. Nunca mais se casou de novo. E também
não voltou mais a visitar a cabana de jade, porque não aguentava as saudades da esposa, se para lá fosse.
Mandou chamar o seu antepassado e disse-lhe: — O Sr. salvou a minha vida duas vezes. Faço doação ao
Sr. e aos seus sucessores, com direito pleno e irrevogável, da Praia Dourada de Keela-Wee e da cabana
de jade. Oxalá o Sr. encontre a felicidade e as alegrias que nela vivi.
— Mas que história triste — comentou o jovem Kit.
— E foi assim mesmo que terminou — observou seu pai.
Kit adorava estas histórias dos seus antepassados que estavam registradas nas Crônicas, porque
todos estes homens mascarados com seus trajes idênticos combinavam perfeitamente em ser, afinal de
contas, seu pai. Em sua mente, o Primeiro que começou a linhagem genealógica, o Sexto que se casou
com a rainha Natália, o Sétimo que se tornou amigo do imperador negro Joonkar e todos os demais que
formavam o número interminável de homens bravos e intrépidos eram seu pai. Mas começou a perceber
que seu pai — que com tanto empenho e riqueza de detalhes propagava estes relatos dos seus
antepassados, sem o menor constrangimento — raramente falava de suas próprias façanhas. Contudo Kit
relembrava aquelas infindáveis missões secretas, algumas das quais tinham desfechos quase trágicos
quando voltava derrotado e ferido. O que estivera ele fazendo todas aquelas vezes? Quando, pressionado
por perguntas insistentes, se resolvia falar a respeito de suas proezas, ele sempre as contava como se
tivessem sido a coisa mais banal deste mundo, sem nenhuma importância quando comparadas aos feitos
gloriosos dos seus antepassados. Os forasteiros relatavam os seus grandes feitos, mas Kit se lembrava de
ouvi-lo falar somente a propósito da luta sem quartel travada contra os piratas do rio; até mesmo este
combate contra os piratas fazia como se tivesse sido uma campanha de somenos importância, embora
tivesse retornado dele quase morto. E no entanto, mais uma vez os forasteiros relataram toda a história de
sua tremenda vitória.
Kit perguntou a Gurã a respeito desta batalha. Gurã simplesmente respondeu: — Como todos os
homens valentes, seu pai é modesto. Ele não se preocupa em falar de seus próprios feitos.
— Mas todos os antepassados eram homens valentes e falavam de seus feitos — respondeu Kit,
ainda com a mente fresca das histórias que havia lido nas Crônicas.
— Eles escreveram a respeito de seus feitos nos livros —, respondeu Gurã. — Agora eles já não
falam mais; por isso não sabemos se eles alardeavam seus feitos, mas, visto que seu pai tem um
comportamento igual ao deles, é de se duvidar que propagassem pessoalmente suas façanhas.
Com esta explicação Kit se deu por satisfeito.
— Quando ele fala a respeito dos outros eu gostaria que me contasse alguma coisa sobre uma de
suas missões. Aposto como as suas são tão espetaculares como as dos outros — continuou ele com toda
fidelidade filial.
— Pergunte a ele como foi que ele encontrou a sua mãe pela primeira vez — sugeriu Gurã.
— E você sabe como foi?
— O Velho Moze há muito tempo me contou como é que foi — respondeu Gurã. — Ele não se cansa
de contar a história e como gosta disto.
— Então, me conte como foi — pediu Kit.
— Ora, pergunte a seu pai. Deixe que ele conte — respondeu Gurã.
Kit resolveu que naquela noite, na hora do jantar, iria perguntar a seu pai. Como costumavam fazer
quando não chovia, naquela noite jantaram ao ar livre, em frente ao Trono das Caveiras. Em dias de
chuva as refeições eram feitas dentro da Caverna da Caveira. Neste dia se comemorava um feito
especial, a morte de um porco selvagem. O próprio Kit havia abatido este animal perigoso alguns dias
atrás, com uma flecha dos pigmeus. Estava caçando em companhia de Gurã e de seus amigos, quando
foram surpreendidos pelo animal que investiu contra ele.
— Ele podia ter sido morto — disse a sua mãe horrorizada, agarrando-se a ele quando ouviu o que
lhe contavam.
— Mas o fato é que não foi morto — respondeu o pai orgulhosamente.
— Em homenagem a Kit por ter proporcionado este esplêndido jantar — disse o pai, brindando com
sua taça de madeira. Sucos de frutas ou águas límpidas das nascentes eram as únicas bebidas servidas na
Floresta Negra. Sentados ao lado da fogueira, Gurã e os outros pigmeus estalavam os dedos, provocando
um som forte em sinal de aprovação. Kit notou que o Velho Moze estava sentado perto de Gurã. Não
costumava fazer isto. O Contador de Histórias raramente saía de sua caverna na floresta. Quando seu pai
trinehou a suculenta carne de porco, Kit achou que era chegado o momento oportuno.
— Papai, gostaria que o Sr. me contasse uma história — disse ele.
— Que história? — perguntou o pai, que estava ocupado em sua tarefa. Kit sentia prazer em ouvi-lo
contar sem cessar as suas favoritas.
— Mas eu queria uma história nova.
— Hum — observou seu pai, imaginando o que poderia ser. — Talvez a história do seu tataravô,
sultão de Pukmar.
— Não. Quero que o Sr. me conte a sua própria história. Quero saber como foi que o Sr. encontrou
mamãe.
Isto deixou o pai surpreso, que olhou para a linda mãe sentada perto da luz bruxuleante da fogueira.
— Você lhe falou alguma coisa a respeito disto?
— Eu não — respondeu a mãe sorrindo. Olhou para Gurã que estava atrás da fogueira.
— Gurã? Foi você que lhe falou?
— Eu só lhe disse que perguntasse ao Sr. a respeito da história. Não disse nada a ele — respondeu
Gurã, sorrindo com os dentes à mostra.
— Talvez noutra ocasião eu lhe fale — disse o Vigésimo.
— Papai, por favor, conte agora — suplicou Kit.
— Oh, conte-lhe como se deu — pediu a linda mãe. — Foi uma coisa maravilhosa.
— Pois bem, a coisa foi muito simples. Sua mãe e o pai dela estavam perdidos na selva. Ele era um
explorador. Um explorador de primeiras águas! Nem sabia distinguir o norte ao sul — riu-se ele com
satisfação.
— Meu pai era um erudito, um cientista — observou sua mãe, tomando a defesa do pai.
— Claro! E que famoso explorador. Um arqueólogo — observou ele, passando-lhe um pedaço de
carne num prato de madeira. — Kit, arqueólogo é um homem que vive escavando nas ruínas de cidades
antigas. Ele estava procurando localizar a cidade perdida de Fênix, que se dizia ter-se enterrado nesta
selva. Mas a verdade é que ele nunca a encontrou. Ouvi falar dela já no país dos Oogaãs.
— Papai, e o que o Sr. fez? — perguntou Kit impaciente.
— Uma coisa muito simples, meu filho — respondeu ele, passando-lhe um pedaço de carne. —
Encontrei-os e ensinei-Ihes o caminho que deviam seguir para sair. E eles voltaram para casa. Passou-se
mais um ano sem que eu visse sua mãe — acrescentou ele, olhando por algum motivo para a corrente que
pendia num canto do Trono da Caveira.
— Foi só assim? — perguntou Kit.
— Foi só assim — respondeu o pai, começando a comer.
— Oh! Foi muito mais do que isto. Conte ao menino — disse a mãe rindo.
— Tivemos que resolver uma pequena questão com uma tribo local que vivia nas árvores, mas era
assunto de somenos importância.
— Que vivia nas árvores? Como os macacos? — perguntou Kit.
— Mais ou menos parecido com isto — murmurou o Vigésimo, que a esta altura estava ocupado com
seu pedaço de carne.
— E o que houve então? — insistiu Kit. Kit olhou desesperançado para Gurã.
— Não houve nada mais além disto.
— Então isto não é história nenhuma! — respondeu Kit.
— Está bem. Não há muito mais coisa a dizer a respeito disto, — observou o pai, quando viu sua
mãe sacudir a cabeça, como que perdendo a esperança.
Uma voz tênue se fez ouvir, saindo das sombras. Era o Velho Moze, o Contador de Histórias. Da
mesma maneira que os povos primitivos que não tinham escrita e não conservavam nenhum relato escrito,
os pigmeus mantinham oralmente a tradição dos feitos da sua história. Havia mais do que um Contador de
Histórias. Esses homens eram ao mesmo tempo os livros, as bibliotecas, os registros e as histórias da
tribo, visto que eles transmitiam os contos de geração em geração. De todos os Contadores, o Velho
Moze era o mais idoso e o que mais sabia. Em sua mente havia milhares de histórias organizadas
sistematicamente e em todas as oportunidades, fossem grandes ou pequenas, sempre narrava uma
adequada. Ninguém sabia quantos anos tinha e o próprio Velho Moze desconhecia a sua idade. Seu rosto
e corpo pareciam ter sido talhados caprichosamente de mogno luzente. Seus cabelos e barba refletiam um
brilho branco deslumbrante ao revérbero do clarão da fogueira, quando se adiantava, recurvado em seu
corpo já enrugado e ancião.
— Mas existe muita coisa mais a contar, ô Espírito-Que-Anda — observou o Velho Moze. — Então
não contei eu a grande aventura a meu povo, e quantas vezes que fiz isto?! Por que não devo eu contá-la
agora a este filho, que é fruto do ventre de sua esposa, este orgulho da Caverna da Caveira, o herdeiro da
grande tradição, o futuro Guardião da Paz?
Kit e Gurã se entreolharam, sorrindo alegremente. Como eles gostavam de ouvir o Velho Moze falar.
Ele falava de maneira tão estranha.
— Não acho que seja necessário ouvir tudo agora, meu bom Velho Moze — respondeu o pai,
prestando toda atenção ao seu bocado de carne no prato.
— Talvez seja melhor numa outra ocasião.
— Não! — gritou Kit. — Quero agora mesmo!
— Sim. Agora — disse sua mãe, esboçando um sorriso. — Por favor, Velho Moze, conte-nos toda a
história.
O velho senhor inclinou-se para ela, numa reverência cortês como as que um palaciano faz, e toda a
sua ossatura velha chiou como uma dobradiça enferrujada que range. Sentou-se num tronco de árvore que
havia perto do fogo e, bebendo água da nascente numa taça de madeira, começou a contar a história
naquela sua maneira de melopéia em som estridente.
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