segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 438 : A LENDA DO FANTASMA

15 - O REGRESSO DO NATIVO  

Naquela noite, quando deixaram a praça de esportes, um táxi estava esperando por Kit e Gurã. Kit
estava resolvido a não deixar nenhum vestígio de sua partida. Gurã entrou no táxi que havia alugado
enquanto Kit ficou esperando escondido na escuridão. Por não saber falar inglês, Gurã deu ao chofer
instruções escritas para que o levasse até o aeroporto. Quando o táxi se pôs em movimento, Kit saiu
depressa da sombra e pendurou-se na roda de reserva que estava atrás do carro, sem ser visto. Ao se
aproximarem do aeroporto Kit se soltou, aproveitando a marcha lenta do carro e foi juntar-se a Gurã no
campo. Já era tarde e os poucos funcionários nem ligavam para o pequeno avião fretado que estava na
pista. Com o auxílio de óculos para sol e um gorro puxado bem em cima da face, Kit conservava o rosto
escondido do piloto.
Chegaram ao aeroporto metropolitano somente com alguns minutos de antecedência, mas ficaram
sabendo que a partida do avião transoceânico havia sofrido um atraso. A esta hora o grande terminal esta
em grande parte deserto, havendo somente um punhado de pessoas sonolentas sentadas nos bancos. Kit
manteve-se afastado de Gurã, porque o anão chamaria a atenção dos presentes. Quando ia passeando pela
sala de espera, um artigo num balcão de novidades despertou a atenção de Kit. Bigodes falsos para
crianças. Comprou-o, entrou no banheiro dos homens e colocou-o em si mesmo.
Agora, com os óculos de sol, gorro e os bigodes não havia quem o reconhecesse.
Não demorou muito que lá estavam eles no ar, voando rumo a Bengala. O avião ia somente com meia
lotação. Embora seu rosto pudesse ser reconhecido na maioria das ruas americanas, para estes viajantes
de Bengala não passava ele de um estranho e por isso não precisaria dos bigodes. Mas, por medida de
precaução ficou com eles. Podia ser que a bordo houvesse alguém que conhecesse a sua fisionomia. A
discrição e anonimato em que Kit se embuçara tão depressa era fruto de seu treinamento na meninice.
Sem que ninguém lho dissesse, ele agiu da maneira esperada. Esperada por quem? Pela linhagem dos
Fantasmas, do Primeiro ao Vigésimo. E que será que aconteceu ao Vigésimo?
Enquanto tiravam uns cochilos e tomavam as refeições a bordo do avião, atravessando o oceano,
Gurã contou o que se passou com seu pai. Bandidos atacaram a escola missionária do padre Morra em
plena selva. O jovem sacerdote, alguns auxiliares de mais idade e cinquenta jovens nativas não tinham
armas para se defender. Os celerados atacaram a escola, pilharam os mantimentos e o pequeno dinheiro
que havia e começaram a infernizar as moças, quando o Vigésimo chegou. Sinais de tambores haviam
transmitido a ele a notícia desta incursão. Ele investiu contra os velhacos como um anjo vingador,
comentou mais tarde o padre Morra, e completamente sozinho deu cabo de meia dúzia deles. Os outros
seis bandidos se embrenharam na mata, num salve-se-quem-puder. Mas nessa luta furiosa, o Vigésimo foi
gravemente ferido. Padre Morra cuidou dos ferimentos mas ele se recusou a permanecer na escola. Disse
que tinha que voltar e não houve quem o convencesse do contrário. Diante do, espanto e admiração do
sacerdote, montou o seu garanhão preto, sucessor de Trovão, e desapareceu. Padre Morra disse que
nunca conseguiu saber como é que pôde montar a cavalo, ficar em cima dele e andar, pois seus
ferimentos eram graves. Mas enquanto um Fantasma pode se movimentar, ele tem que voltar à Floresta
Negra ou então ser carregado para lá.
Ao chegar à Floresta Negra, o Vigésimo caiu do cavalo, desmaiando fatalmente. O pai de Gurã, o
velho chefe, sabia que seu grande amigo estava gravemente ferido e que havia perigo de morte. Perdera
muito sangue com os ferimentos e o estado dele estava além das possibilidades da assistência que os
pigmeus podiam prestar. Deitaram-no no leito de peles de animal que havia na Caverna da Caveira. O
pai de Gurã lembrou o Dr. Axel, pois ele próprio havia sido um dos guerreiros que tinham ido buscar o
Dr. Axel e o haviam levado à Floresta Negra para assistir ao nascimento de Kit. Agora o Dr. Axel tinha

seu Hospital da Selva, que ficava a um dia de viagem. Gurã e mais alguns pigmeus foram enviados a ele.
Quando os pigmeus chegaram o Dr. Axel já imaginou que alguma coisa de grave devia estar se passando,
pois já tinha vinte e dois anos de vivência na selva e conhecia os costumes e tradições que reinavam
nestas bandas. Assim é que, passada uma geração, voltou à Floresta Negra. Mais uma vez foram-lhe
vendados os olhos quando teve que atravessar a cachoeira. Mas desta vez não estava com medo.
Havia visto seu grande amigo mascarado uma ou duas vezes durante esses anos. Tinha havido outros
ferimentos que precisaram de tratamento e uma vez o hospital teve que se valer da proteção do Fantasma,
conforme lhe havia sido prometida, caso dela necessitasse. Mas desta vez ficou desanimado quando viu
seu amigo. Empregou todo tipo de remédio que julgou apto e fez o que pôde. Conseguiu fazê-lo voltar à
consciência, mas teve que lhe dizer a verdade nua e crua: não viveria mais do que alguns dias apenas.
Mas quanto a isto estava equivocado, pois o Vigésimo não pretendia de modo algum morrer sem ver seu
filho. Gurâ, que era o único pigmeu que conhecia terras estrangeiras — o que o tornou célebre entre os
seus —> foi imediatamente enviado. Foi assim que naquela noite ele apareceu debaixo da janela de Kit
na Universidade de Harrison.
De semblante sombrio e tristonho, Kit ouviu a história. Se o Dr. Axel não estava enganado, a esta
altura seu pai já devia estar morto. Ao pensar nesta possibilidade Gurã abanou a cabeça. — Ele disse
que esperaria até que você chegasse. Sei que vai esperar — disse o anãozinho com ar sério. Nunca
voltara atrás em sua palavra e não seria agora que iria faltar com a mesma. Embora entristecido por esta
viagem, Kit se sentia emocionado pela confiança que seu pai inspirava nesse povo e assim a antiga
admiração do garotinho pelo pai voltou à tona com intensidade.
Durante esta viagem a reserva entre Kit e Gurã dissipou-se em parte. Kit lhe falou das peripécias
que tivera na América e fez muitas perguntas sobre seus amigos na Floresta Negra e assim os dois
passaram a viagem rindo e brincando como nos velhos tempos. Isto porque, apesar da seriedade da
missão que estava sendo executada, a vida continua e a juventude é um manancial de fortaleza e
esperança. A reserva entre os dois desaparecera apenas em parte, não completamente, porquanto os dois
tinham ficado mais maduros e Kit percebeu que Gurã o vinha_encarando de outro modo. Debaixo de toda
aquela camaradagem, nos modos de Gurã se escondia um novo tipo de distância respeitosa, uma nova
deferência que Kit ainda não conseguira entender.
Quando chegaram ao aeroporto de Mawitã, a pacata capital portuária de Bengala, a viagem começou
a tornar-se real para Kit. O ar, as montanhas distantes, os sons e cheiro, os rostos negros sorrindo, os
acentos melodiosos, os trajes vistosos, tudo isto era como que uma volta a um velho sonho. Esta sensação
se intensificaria cada passo que desse rumo à Floresta Negra.
Ao deixarem ao aeroporto tomaram uma carruagem que os levou até à entrada da selva. Mal tinham
andado uma pequena distância, quando deram com um grupo de guerreiros Wambesis, dez ao todo, que
lhes tinham vindo ao encontro. Olharam curiosos para Kit, perguntando-se quem era. Haviam recebido
ordens para escoltarem o estranho que chegaria em companhia de Gurã, príncipe de Bandar. É provável
que alguns deles tenham estado com os mil guerreiros valentes que o tinham levado para a cidade, há dez
anos. Se assim fosse, certamente ninguém iria reconhecer aquele garotinho neste jovem bronzeado que
parecia um gigante.
Logo que se viram bem no coração da selva, tanto Kit como Gurã começaram a desfazer-se das suas
roupas de cima. Gurã mandou tudo às favas: sapatos, meias, casaco, calças, camisa! De suas calças Kit
fez umas tangas, enquanto que Gurã tinha as suas próprias. E foram andando no seu passo cadenciado,
acompanhando os Wambesis. Em pouco tempo os anos de Clarksville e Harrison já estavam dormindo o
sono de paz. Um guerreiro entregou a Kit uma lança. Kit parou e logo arremessoua contra uma árvore que
estava longe, indo enterrar-se uns quatro centímetros no tronco da mesma, vibrando com o impacto.
Peritos lanceiros que eram, os guerreiros aplaudiram o estranho. Logo nos próximos dias ficaram
sabendo que ele não era nenhum novato nessa selva. Ele caçava junto com eles para providenciar

alimentos e apanhava raízes comíveis e cerejas. E para sua admiração, ele falava fluentemente a língua
deles. A meio caminho da viagem, mais uma escolta de Llongos que os aguardavam. Os Wambesis se
despediram, levando boas recordações deste amigo do Fantasma. Kit conversava amigavelmente com os
Llongos em seu próprio dialeto, granjeando assim imediatamente a sua amizade. Ninguém suspeitava de
sua verdadeira identidade. Isto porque para os Llongos, os Wambesis e para todos os habitantes da selva,
o Fantasma era o Espírito-Que-Anda, o Homem-Que-Não-Pode-Morrer. Daí a conclusão lógica para eles
de que o Fantasma não podia ter nem filho nem herdeiros. Dentre todos os habitantes da selva, os únicos
que sabiam da verdade eram os pigmeus de Bandar.
A esta altura da viagem a selva estava se tornando mais cerrada, mais misteriosa e densa. Os
Llongos começaram a ficar nervosos. Encontravam-se além de suas fronteiras, na terra de ninguém, um
lugar de caçadores de cabeças e canibais. O pequeno Gurã descobriu na densa mata picadas e aberturas
que ninguém tinha visto. Os Llongos pararam. Tinham ido longe demais. Se alguém atilasse os ouvidos,
poderia ouvir o bramido das águas de uma cachoeira. Indubitalvelmente estavam em terra proibida. E
para confirmar a suspeita, um pigmeu se ergueu de dentro da mata, de flecha pronta no arco. Mais outro
apareceu numa árvore, com flecha incestada contra eles. Em seguida mais outro, e mais outro. Gurã
levantou seus braços em sinal de saudação. Mas as flechas continuaram prontas nos arcos. Kit agradeceu
os serviços prestados pelos Llongos, quando iam se retirando. Foi só virarem as costas que começaram a
sair correndo. Os Llongos eram valentes, mas as armas envenenadas dos pigmeus eram muito famosas e
conhecidas. Uma simples picada era morte certa — pelo menos era o que se dizia — e ninguém desejava
tirar a dúvida. Dentro de momentos, já tinham sumido.
Os anões começaram a encarar Kit com curiosidade. Ninguém conseguia ver nele o garotinho que os
havia deixado há tanto tempo. Gurã explicou-lhes então tudo, nos modos e jeitos característicos de sua
língua. Kit os saudou na maneira deles. Então saíram da mata, desceram das árvores e abraçaram-no
como o amigo que há tanto tempo andava perdido por este mundo afora. Alguns deles haviam sido
meninos junto com ele.
Mas todo este regozijo na saudação estava impregnado de tristeza.
— Meu pai está ainda vivo? — perguntou-lhes Kit.
— Sim, está ainda vivo — responderam eles, mas num tom de voz que não denotava nenhuma
alegria. Nisto Kit se pôs a acelerar o passo em direção à cachoeira, tomado de ansiedade e maus
pressentimentos. Outros anões saíram do mato para cumprimentá-lo. Mais adiante estava a cachoeira
ruidosa e espumante, a entrada secreta para a Floresta Negra. Cercado pelos pigmeus, Kit atravessou
correndo a torrente. Ficou ensopado com as frias águas da montanha, que lhe lavaram a poeira de dias de
viagem e lhe incutiram mais forças no corpo cansado.
Quando saiu da cachoeira, deu com todos os habitantes da aldeia esperando por ele. Os homens e
mulheres nanicos e as crianças estavam em pé, em silêncio, observando-o. Então aquele enorme varão
bronzeado era o pequeno Kit!? Alguns sorriam furtivamente, mas este não era um regresso feliz.
A respiração de Kit se acelerou. Lá estava a Trono da Caveira e também a Caverna como os tinha
visto centenas de vezes em seus sonhos e devaneios. O velho chefe, pai de Gurã, adiantou-se. — Seja
bem-vindo, Kit — disse ele com solene dignidade. — Voltou em boa hora. Seu pai o está aguardando.
Nisto Kit correu em desabalada para dentro da caverna.
  

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