3 - MUITAS SURPRESAS E MARAVILHAS
No antigo reino do Fantasma não eram poucas as surpresas e maravilhas e nas semanas e meses
seguintes Kit iria presenciar muitas delas e ouvir falar de outras mais. Primeiramente, a própria Caverna
continha coisas de pasmar, encerradas naqueles aposentos feitos na rocha, que ele estava acostumado a
ver desde os tempos em que engatinhava em volta, arrastando-se de quatro. Lá se achava aquele aposento
cheio de cintilações como que de fogo, denominado o "quarto do tesouro menor". Aqui se encontravam
muitos baús e arcas, alguns abertos, outros fechados. Os baús abertos estavam cheios até em cima e
muitas vezes transbordavam, com pedras vermelhas, verdes, azuis e brancas, bem como com discos de
metal amarelos de todos os formatos. Disseram-lhe que estes eram de ouro. As pedras coloridas tinham
nomes: diamantes, esmeraldas, rubis, safiras, pérolas, e assim por diante. Chamavam-se também gemas
ou joias. Em algumas dessas arcas estavam guardadas taças e pratos de ouro como também centenas de
anéis com pedras coloridas incrustadas para serem colocados nos dedos; e não faltavam colares
amarelos e braceletes — ornamentos com as pedras coloridas — para serem usados nos braços, nos
tornozelos ou no pescoço.
Kit brincava e divertia-se com os montes de joias e moedas de ouro, construindo castelos, muros e
buracos, como toda criança faz na praia com a areia. Contou a Gurã tudo a respeito do ouro e das joias.
Gurã ficou pensativo por um momento e em seguida perguntou: — E para que serve tudo isso? — Kit não
sabia o que responder e assim perguntou ao pai, o qual explicou que o ouro — chamado também dinheiro
— servia para a gente comprar coisas como por exemplo alimento e roupas. Essas ideias de compras e
dinheiro tinham que ser explicadas, porque eram estranhas a Kit, pois tanto alimento como vestuário
tinham que ser usados para se poder viver na selva.
— Para que o Sr. as usa? — perguntou ele.
Seu pai explicou que raramente precisava de dinheiro e que o ouro do tesouro naquele quarto era
empregado na luta sem quartel que se movia contra o mal.
— O que é mal? — indagou Kit curioso, pois queria saber o que isto significava.
— Meu filho, espere que noutra oportunidade lhe falarei a respeito disto — respondeu seu pai, ao
mesmo tempo em que se levantava.
— E para que os braceletes, os anéis e as joias? — continuou Kit a perguntar.
— Principalmente as senhoras, há pessoas que gostam de andar com estas coisas para parecerem
mais elegantes e bonitas — respondeu o pai, fazendo menção de sair.
Kit notou que depois de algumas horas cheias de perguntas como estas seu pai costumava sair para
dar uma volta ao ar livre. — Mas, meu querido — ouviu ele por acaso sua mãe dizer ao marido certa
noite — você deve responder às perguntas da criança. Você deve ter paciência. — O quê? Paciência? —
retrucou o pai. — Ora, hoje já respondi a uma infinidade de perguntas que ele me fez. É uma chusma de
perguntas que nunca tem fim. Quando caiu num cochilo, Kit ouviu a voz da mãe que dizia: — Que mais
pode ele aprender?
O que mais? Não é que no dia seguinte ele se saiu com a pergunta:
— Papai, onde é que o Sr. conseguiu todo este ouro e pedras coloridas?
Seu pai deu um suspiro e respondeu com toda paciência:
— Quando eu tinha a sua idade tudo isto estava aqui. Todo este ouro e pedras coloridas foram sendo
acumulados durante séculos.
O Fantasma explicou a Kit, seu filho, que seus ancestrais em tempos idos haviam prestado favores a
governantes — reis, príncipes e imperadores — e que esses governantes em agradecimento os
presentearam com montões de donativos.
— Quando um imperador ou rei oferece um baú cheio de ouro, seria atitude muito deselegante
recusá-lo — disse ele ao filho que o ouvia atentamente. No dia seguinte Kit passou adiante para Gurã
esta lição que servia como exemplo, informando-o solenemente que, toda vez em que um imperador ou
rei lhe der uma arca cheia de ouro ou joias, ele a deve aceitar, porque seria uma demonstração de
indelicadeza recusá-la.
Gurã prometeu que sempre se lembraria disto.
Perto deste compartimento havia outro a que seu pai chamava de o quarto "principal" do tesouro. Ele
se lembrava deste compartimento com certos remorsos e escrúpulos, pois era aquele em que deixara cair
a taça brilhante. Agora ficara ele sabendo que se tratava de uma taça para beber, feita de diamante
inteiriço. Fora feita para um imperador chamado Alexandre que alguns chamavam de "Magno"; isto foi o
que seu pai lhe disse.
— Era ele grande (magno)? — perguntou Kit.
— Ele conquistou, meu filho, a maior parte do mundo — respondeu seu pai.
— A maior parte do mundo! Como ele era grande! — exclamou Kit cheio de contentamento.
— Mas isto depende de quem escreve a história — observou o pai. — Ele invadiu outros países,
como a Pérsia, ateou fogo nas suas cidades, matou seus reis e guerreiros, levou para o cativeiro suas
mulheres e filhos e roubou todos os seus tesouros. Acha que isto é ser importante?
— Claro que para os persas, não — respondeu Kit, sacudindo a cabeça.
— Exato, meu filho; tudo depende de quem escreve a história — respondeu seu pai, concordando
com o filho.
— E agora tome este chicote — continuou o pai. Era um chicote antigo feito de couro com estrelas
de metal nas pontas das correias. — Este pertenceu a um homem que se chamava Átila, o Huno. Ele viveu
há muitos anos e seu nome chegou até nós com a reputação de um indivíduo mau, malvado, um bárbaro e
destruidor. Você sabe o que Átila fez? Pois bem, ele invadiu outros países, levou para o cativeiro suas
esposas e filhos e saqueou todo o seu tesouro. Com quem se parece ele? — Ele se parece com Alexandre
Magno! — gritou logo Kit.
— Dario, rei da Pérsia, não ficava atrás dele em malvadeza — continuou o pai, repisando o assunto.
— Alexandre Magno, Dario da Pérsia, Átila dos hunos, César de Roma, Haníbal de Cartago e Napoleão
da França: todos eles eram senhores de grupos que conduziam suas hordas de desordeiros para pilhar e
matar.
Foi assim que naquele dia terminou a lição sobre história. Anos mais tarde, quando Kit estudou
história na escola, chegou â conclusão que seu pai tinha opiniões fora do comum a respeito de história
bem como praticamente a respeito de tudo o mais. Mas acontece que ele era, na ocasião, um homem fora
do comum.
No quarto principal do tesouro havia outras coisas raras; na realidade esse quarto era um verdadeiro
museu em miniatura. Uma víbora morta flutuava dentro de uma redoma antiga de cor verde. — Isto que
está vendo aqui, meu filho, é a cobra que mordeu Cleópatra — explicou o pai, aproveitando a
oportunidade para contar-lhe a história dessa famosa rainha do Egito. Na parede pendiam duas espadas
enormes, protegidas por vidro. Apanhou-as com todo cuidado e apresentou-as ao filho para que as
tocasse com suas próprias mãos. Acontece que eram muito pesadas e assim ele não aguentaria segurá-las.
— Esta espada foi do rei Artur; chama-se Excalibur. Esta outra tem o nome de Durandal e pertenceu a
Rolando. Na época desses homens todo mundo acreditava que eram espadas mágicas e é possível que
fossem. — Contou então a Kit os comoventes feitos e façanhas dos heróis, do rei Artur da Inglaterra e de
Rolando da França. Perto da espada Durandal pendia também um chifre de marfim, a cometa de Rolando,
na qual ele fez soar o sopro que o levou à morte.
E havia mais coisas, como um festão dourado com louros que repousara na cabeça de César; uma
peruca de senhora, de cor preta e encacheada, que havia sido usada por um ator que fizera o papel
feminino de Julieta, na primeira apresentação do Romeu e Julieta. Noutra oportunidade iria ouvir mais
coisas a respeito dessa peruca. Dentro de um outro estojo de vidro estava guardado um instrumento
musical feito de osso, ou seja a lira de um antigo poeta que foi cego e que se chamava Homero. E quantas
coisas mais havia para se ver.
— Isto tudo pertence a nós? — perguntou Kit, cheio de admiração.
Seu pai respondeu, então.
— Estas coisas chegaram até nós através dos séculos, entregues por muitas pessoas, para serem
guardadas. Em consequência de guerras, incêndios, inundações, erupções vulcânicas, ladrões e vândalos,
muitos destes tesouros de ouro se perderam para sempre. Nós somos os guardiães destas coisas que
pertencem a todos.
Num outro aposento havia filas e mais fuás de indumentárias iguais às que seu pai vestia, todas
dependuradas atrás de portas móveis. — Estas aqui eram vestidas por meu pai e essas ali pelo pai dele;
estas aqui por seu pai, e assim por diante. — Kit não se admirava nem estranhava que todos esses
homens de tempos antigos vestissem roupas coladas ao corpo, capuzes e máscaras como seu pai usava.
Com exceção dos pigmeus que usavam tangas como ele, Kit nunca tinha visto outro homem a não ser seu
pai. Por isso imaginou que todos os outros homens deviam vestir-se deste jeito.
Num outro aposento viam-se estantes com livros enormes e pesados. Quando voltava de uma de suas
missões misteriosas, muitas vezes seu pai passava tempo escrevendo num desses livros. Seu pai lhe
explicou que esses livros continham as crônicas do Fantasma, acrescentando que ele era ainda muito
jovem para inteirar-se a respeito deles, mas que em breve ficaria sabendo de tudo. Kit não era curioso e
por isso não fez nenhuma objeção à observação do pai. Kit sabia que os livros ensinam a soletrar,
ensinam gramática e fazer contas. Burraldo! Nem podia sonhar com a empolgação e as aventuras mágicas
que esses volumes empoeirados continham. , Do lado de fora da Caverna havia surpresas ainda maiores.
Montando seu pequeno pônei sem nenhum arreio, completamente em puro pelo, galopava ele pelas trilhas
da selva em companhia de seu pai que cavalgava seu possante garanhão preto chamado Trovão. Nessas
andanças era ele levado até alguns lugares secretos, A primeira visita que fizeram foi ao Bosque dos
Murmúrios onde passaram uma noite dormindo no chão. Tinha este nome porque o vento que soprava
entre as árvores provocava um som peculiar. Tinha-se até a impressão que cochichava a palavra
Fantasma, Fantasma. Outros tinham percebido a característica daquele som e por isso passaram a chamar
o local de o Bosque do Fantasma. Os habitantes da selva evitavam esse lugar porque o sussurro
misterioso do vento esfuziando pelas árvores metia medo neles e corria o boato de que o mesmo era
assombrado.
Não muito longe do Bosque dos Murmúrios ficava o oceano e uma enseada que servia de
esconderijo. Era a Praia Dourada de Keela-Wee, que muitos dizem ser o lugar mais lindo que existe no
mundo. Atrás da praia havia um cenário de fundo formado por selva espessa e montanhas distantes. Na
frente surgiam as águas amplas, rolantes, verdes e cor de safira do mar, com alcantilados recifes de coral
que impediam que mesmo pequenos navios ou barcos a remo se aproximassem desta praia secreta. A
própria configuração da praia era singular e extraordinária. Esta Praia Dourada de Keela-Wee tinha a cor
de ouro porque a metade da areia era na realidade puro pó de ouro. No centro da praia fora construída
uma pequena cabana feita de jade verde entalhada. O pai explicou que tanto a praia dourada como a
cabana de jade era produto de um donativo feito a um Fantasma do século dezessete pelo imperador
negro chamado Joonkar. Dessa época para cá todos os Fantasmas costumavam passar a sua noite de luade-mel nesta cabana de jade construída no meio da Praia Dourada. Mas eles não eram os únicos.
As grandes e amistosas tribos dos Wambesis e dos Llongos moravam na selva que ficava perto.
Todas as primaveras celebravam casamentos em massa nas areias da Praia Dourada. Foi justamente para
ver uma dessas cerimônias que o pai levou Kit nesta primeira visita. Quando eles chegaram, a cerimônia
do casamento coletivo estava sendo realizada. Kit assistiu ao ato cheio de admiração. Este povo e esta
gente eram os primeiros que ele via fora da Floresta Negra. Havia na praia cerca de duzentos casais. As
encantadoras noivas trajavam sarongues de cores alegres e levavam flores em seus cabelos pretos e
compridos. Os jovens noivos vestiam tangas e traziam também amarrados de flores.
Quando Kit e seu pai chegaram cavalgando à praia, os casais estavam justamente ajoelhados frente a
dois sacerdotes com paramentos vermelhos brilhantes e drapejavam estandartes amarelos enquanto iam
celebrando os ritos do matrimônio. Todos se voltaram para ver o homem com a criança. Ao perceberem
que era seu amigo Fantasma, todos sorriram de contentamento. A cerimônia prosseguiu. Terminados os
ritos do casamento, os casais saíram de mãos dadas e pularam dentro do mar, rindo e gritando, para em
seguida voltarem à praia e se rolarem juntos na areia. Quando se levantaram estavam todos da cor de
ouro devido à areia dourada que grudara em sua pele.
Depois deste banho de mar e areia todos os casais, de mãos dadas, passaram pela pequena cabana
de jade e com isto estava completa a cerimônia de casamento. Feito isto, os casais desapareceram na
floresta. A areia dourada em seus corpos simbolizava seu casamento recente e assim evitavam lavá-la,
mantendo-a num período de tempo mais longo possível. Assim é que passados dias se podia ainda ver
casais dourados andando felizes da vida pela floresta, rindo, cantando e brincando.
Depois que todos haviam deixado a praia, Kit e seu pai entraram na cabana de jade. Estava
complicadamente esculpida e a luz do sol se coava dentro dela através de minúsculas aberturas,
formando complicados desenhos de luz e sombra no chão de jade. Essa pequena cabana se parecia com
uma enorme gema oca. — No dia de nosso casamento, sua mãe e eu passamos a noite aqui — disse o pai
a Kit — da mesma maneira como fizeram meus pais com suas esposas antes de mim. Um dia você se
casará e trará sua esposa a este lugar. — Kit olhou para ele com os olhos arregalados.
— Papai, com quem vou me casar? — perguntou o menino, ao que seu pai não pôde evitar uma
risada.
— Não se preocupe, que um dia você encontrará a sua eleita; ou talvez ela acabe encontrando você.
— Ele não podia imaginar quão proféticas eram estas suas palavras.
Kit deu uma corrida pela praia dourado e jogou-se dentro das águas do mar. Era um bom nadador,
mas toda a sua experiência se limitava a exercícios de nado feitos em águas tranquilas de lagoas da selva
e de correntes velozes. As águas salgadas e cálidas do mar eram para ele uma surpresa e uma novidade.
Pôs-se a brincar nas águas claras e calmas, mergulhando até o fundo de areia para depois nadar através
das ondas que se arrebentavam nos grandes recifes de coral, onde as águas do mar se quebravam com um
bramido, formando um aguaceiro de espuma. Permaneceu por uns instantes em cima do coral agudo e
depois nadou de volta para a praia, indo rolar na areia dourada conforme haviam feito os noivos do\
casório recente. Agora, todo coberto de ouro, correu rindo em direção ao casebre de jade onde seu pai o
observava sorrindo. — Agora estou casado — gritou ele.
Em tempos idos o Bosque dos Murmúrios fora assombrado. A Praia Dourada era linda. Mas a
emoção maior estava ainda por chegar: O Jardim de Éden do Fantasma.
Durante um dia e uma noite cavalgaram eles pela selva, bordejando o oceano. Chegaram a uma
margem elevada de um rio largo que corria da selva em direção ao oceano. No meio do rio havia uma
ilha verde jante, com espesso arvoredo e uma praia branca. Além da ilha bramiam as ondas de
arrebentação do oceano. Kit e seu pai treparam numa árvore enorme que havia na margem do rio. Em si
parecia até uma brincadeira. Viu que perto da copa da árvore havia duas cordas que desciam bem de
cima do rio até uma árvore alta que se erguia na praia da ilha. Uma das cordas caía obliquamente da
árvore em que estavam; a outra corda subia em sentido contrário. De acordo com instruções que
recebera, agarrou-se com firmeza no pescoço de seu pai. Amarraram uma corda curta em volta dele,
firmando-o com segurança ao peito do seu pai. "Não deve de jeito nenhum cair dentro do rio, porque está
infestado de piranhas", foi o que lhe recomendaram. Mais tarde ficou sabendo que este peixe chamado
piranha é perigoso. Seu pai agarrou-se a uma pesada argola de ferro que pendia da corda. — É agora! —
gritou ele. E, suspensos pela argola, deslizaram lentamente pela corda e assim atravessaram o rio. Kit
olhava para baixo, observando as águas marrons e verdes lá no fundo, as quais pareciam tão convidativas
e pacíficas. Mas, o que escondiam elas debaixo de sua superfície? Nada mais do que piranhas!
Alcançaram a outra margem do rio. Foi uma proeza, para Kit, das mais extraordinárias e excitantes que
jamais vira ou imaginara em seus poucos anos de vida.
Quando desceram da árvore, na praia da ilha havia alguns animais esperando por eles. Kit se pôs a
olhar atentamente.
Não conseguia acreditar no que seus olhos viam. Ali estavam uma girafa, uma zebra e um antílope.
Não faltava nem o leão, nem o leopardo e muito menos o tigre. Não é que todos estavam esperando em
pé, pacificamente, numa convivência harmoniosa! Kit sabia o que eram os leões e os leopardos. Estava
lembrado do enorme felídio que seu pai fora obrigado a matar na aldeia dos Wambesis. Olhou para seu
pai, tomado de súbito medo. Estava ainda amarrado ao seu peito. — Não tenha medo. São todos nossos
amigos — disse-lhe o pai, sorrindo. Desceu até à areia e desamarrou o filho. Ato contínuo os animais se
acercaram deles e começaram a esfregar o focinho no corpo de Kit e seu pai, grunhindo uns e relinchando
outros. O grande felídeo ronronava. O leão e o tigre, numa competição amigável, esfregavam-se nas
pernas do seu pai, com suas costas, arqueadas e ronronando continuamente, conforme fazem gigantescos
gatos caseiros. O tigre pesava aproximadamente trezentos e sessenta quilos e o leão não devia ter menos
peso áo que ele. O pai fez tudo para aguentar o peso dos animais. O leopardo mostrava-se todo faceiro
com Kit que logo perdeu o medo e rolou pela areia com o felídeo aveludado que ronronava.
Kit passeou ao longo da praia em companhia do pai, com os animais que andavam às pressas e
corriam em torno deles, externando claramente a alegria por terem voltado. No lado da ilha que dava
para o oceano as águas eram tranquilas como as de um pequeno lago. A um quarto de milha mais adiante
as ondas arrebentavam de encontro a íngremes recifes de coral que serviam de proteção a esta lagoa. A
própria lagoa fervilhava de peixes de todos os tamanhos, alguns medindo um metro e meio ou dois de
comprimento. Enquanto estavam observando os peixes, viram uma canoa comprida que se aproximava,
com vários nativos remando. Entraram na lagoa e despejaram peixes vivos, retirando-os de vasilhames
enormes. Outros peixes vivos de tamanho maior, amarrados em redes e puxados debaixo da água pela
canoa, eram soltos na lagoa. Os grandes felídeos pularam dentro da água, movimentando-se de um lado
para outro para caçar os peixes. Imediatamente saíam da água, carregando sua presa nas mandíbulas. O
Fantasma acenou para os pescadores, os quais retribuíam enquanto se afastavam remando. — São os
Moris — explicou ele. — São os melhores pescadores de todos os habitantes da selva. Eles mantêm esta
lagoa suprida de peixes vivos que servem de alimento para os felídeos. Ensinei-lhes a comer peixes e a
pegarem-nos eles mesmos. Esta a razão por que podem conviver com os gramívoros sem causar-lhes
nenhum mal.
A Kit tudo parecia bastante normal e natural, conforme seu pai ia explicando. Presenciou como um
tigre esquartejava um peixe do tamanho do próprio Kit. Um antílope mordiscava delicadamente na grama
que ficava a uns passos de distância das enormes mandíbulas do tigre. A girafa passava por cima do leão,
que estava também ocupado em devorar a sua presa, para apanhar as folhas de um galho que havia no
alto. Um elefante saiu dum matagal e barriu em sinal de boas vindas e depois ajoelhou-se, quando o
Fantasma golpeou seu tronco. — Eu trouxe para cá todos estes animais quando eram pequenos — filhotes
e gamos novos — e ensinei-os a viver juntos. Kit, você está lembrado de Borrado e do Listrado? — Kit
olhou atentamente para o leão e o tigre. Tinha uma vaga lembrança de ter rolado pelo chão, em frente à
caverna, com os pequenos filhotes. Portanto, este era o lugar aonde eram enviados quando já eram
crescidos demais para brincar com ele! — Listrado, Borrado! — gritou ele, correndo em disparada em
direção deles. Os felídeos levantaram suas cabeças enormes, vendo-se os molhos brilhando. Seu pai
segurou-o pelo braço. — Nunca se aproxime deles quando estão comendo. Devem ser tratados dom
cuidado.
Quando não estavam comendo eram tão dóceis e brincalhões como na época de filhotes. Mas seu pai
tinha todo o cuidado para que a brincadeira não se tornasse muito ruidosa. Tanto Listrado como Borrado
permaneciam em pé pacientemente enquanto Kit subia neles e abraçava-os pelo pescoço. O pai montou o
Listrado e sentou Kit em frente dele. — Que tal a gente dar uma corrida? — Kit fez sinal que sim, todo
alegre, e lá se foram eles para um passeio a trote largo pela praia, montados no lombo do grande tigre,
com o Borrado e o Manchado trotando ao lado, procurando acompanhá-los no passo. Os felídeos não
eram seus únicos companheiros. O Orelhas Drapejantes, o elefante, ajoelhou-se obedientemente quando
Kit lhe ordenou: "Abaixe-se, Orelhas Drapejantes". E o garoto excursionou pela pequena ilha, trepado no
lombo largo do animal. Até mesmo Esquia, a mansa girafa, permaneceu ali perto, numa atitude paciente e
tolerante, enquanto Kit se divertia subindo numa árvore e depois resvalando pelo pescoço listrado. Kit
correu pela grama alta atrás dos antílopes, cavalgando a zebra brincalhona.
Seu pai ensinou-lhe como se pescam peixes vivos com as mãos na lagoa. Isto exigia que se ficasse
em pé, sem se mexer, dentro da água límpida e morna à espera de um peixe que aparecesse nadando bem
por perto, em atitude de quem está à procura de alguma coisa. Kit perdeu uma grande quantidade de
peixes que lhe escorregavam das mãos, mas finalmente conseguiu agarrar um com firmeza, levando-o
todo triunfante para mostrá-lo ao pai que estava observando na areia. Acenderam um pequeno fogo na
praia e assaram o peixe, enquanto os grandes felídeos estavam deitados por perto, olhando e
pestanejando. Atrás dos felídeos estavam em pé os antílopes e outros gramívoros com chifres, inclusive
as zebras e girafas. No fundo, o elefante Orelhas Drapejantes, que de vez em quando apanhava um
punhado de grama com sua tromba e enfiava-a pela sua boca vermelha adentro. Via-se que todos os
animais estavam admirados com o fogo crepitante, mas nenhum deles se aproximou muito. Anteriormente
o pai de Kit já havia cozinhado neste local e eles aprenderam a evitar os grossos novelos de labaredas
que se formavam.
Certa manhã seu pai pescou um peixe na lagoa e levou-o à margem do rio que havia na ilha. Ali, sob
as vistas de Kit e dos animais, jogou-o nas águas do rio. O peixão de água salgada mal havia atingido a
superfície das águas, quando se levantou uma enorme espuma ao redor dele. Pequenas formas saltaram
em cima dele, aparentemente em fúria. A água borborejou de sangue vermelho, para logo em seguida tudo
voltar ao normal e ficar claro. As pequenas criaturas — peixes com barbatanas compridas — saíram
correndo e o enorme peixe de água salgada não passava agora de um simples esqueleto, conforme se via
quando desceu ao fundo raso cheio de areia, Kit olhava atentamente, surpreso com a violência do ataque.
— São piranhas — disse seu pai. — O rio está cheíssimo delas. Esta a razão porque nenhum animal
do outro lado se atreve passar para este. E estes animais aprenderam a manter distância do rio. — Bem
que Kit notara que todos os animais haviam recuado quando perceberam o barulho provocado pelo
ataque. Uns emitiam lufadas de ar e outros grunhiam. Viu também que nenhum deles se aproximava
demais da beira da água. — No futuro você voltará muitas vezes a este lugar. Nunca se esqueça das
piranhas — falou-lhe o pai. E realmente ele nunca se esqueceu.
Passaram dois dias e duas noites nesta ilha encantada. Durante o dia o pai passava horas a fio
ensinando aos animais diversas palavras e comandos através de sinais. Kit se deliciava ao ver como os
animais correspondiam, como se sentavam, se deitavam, corriam, apanhavam as coisas, ficavam em pé, e
mais uma série de outras coisas. O que ele estava presenciando era um experimentado treinador de
animais em plena atividade, que não usava nenhuma palavra áspera, mas somente doçura, paciência e que
recompensava com ração quando uma lição era bem aprendida. Kit desconhecia que gerações de
fantasmas haviam desenvolvido suas técnicas próprias para lidar com animais de todos os tipos e que
haviam transmitido seus conhecimentos à geração seguinte. Estas eram as lições que Kit estava
recebendo neste momento, e outras viriam. Nunca iria se esquecer delas.
À noite dormiam na praia, em enxergas feitas de grama, tendo por teto o firmamento cheio de
estrelas cintilantes. Kit começou a aprender o nome de algumas das estrelas, a distinguir entre planetas e
astros, aprendendo alguma coisa a respeito de sua natureza. Ficou conhecendo algumas das constelações
mais importantes, como órion o Caçador, as Sete Irmãs das Plêiades, a Ursa Maior e a Ursa Menor e
outras. Aprendeu como se localiza a Estrela Polar. Ficou também sabendo que as estrelas cadentes são
meteoros que possuem um tamanho que não vai além daqueles de seixos, ou então que são meteoritos do
tamanho de uma casa!
Já estava na hora de ir embora. Kit protestou, agarrando-se desconsolado à crina de Borrado. —
Mamãe está esperando por nós lá em casa e vai ficar preocupada conosco — disse-lhe o pai. Quase em
lágrimas, Kit se despediu de todos os animais, abraçando um por um: Borrado, Listrado, Manchado,
Orelhas Drapej antes, Esguia e todos os demais. Em seguida, com todos os animais fazendo como que um
círculo em volta da grande árvore, a criança e seu pai subiram até às cordas. Mais uma vez agarrou-se
ele ao pescoço do pai e colou-se ao peito dele. Dando um último olhar para os animais que estavam
embaixo, todos espreitando para cima, o pai agarrou a argola que estava na corda de retorno e
atravessaram rapidamente o rio de águas verdes e douradas. Quando olhou para baixo, Kit percebeu o
perigo e violência que estavam escondidos debaixo daquelas águas aparentemente calmas.
Chegaram ao curral onde Trovão e Peludo os receberam com alegria. Tomaram de novo o caminho
da selva, passaram pela Praia Dourada de Keela-Wee, atravessaram o Bosque dos Murmúrios, deram um
ligeiro mergulho nas águas frescas de um pequeno lago que havia na selva e depois continuaram viagem.
Não demorou muito e começaram a ouvir o ruído distante das águas da cachoeira. Era sinal de que já
estavam perto de casa. De arco e flecha na mão, um pigmeu saiu silenciosamente do mato e
cumprimentou-os e em seguida outro. Haviam chegado nas proximidades da Floresta Negra. Rindo e
fazendo algazarra, outros anões guerreiros surgiram do matagal e Kit fechou os olhos e grudou-se em
Peludo quando começaram a atravessar a cachoeira em disparada. Do outro lado ouviu-se o vozerio de
uma centena de habitantes de Bandar que os aguardavam para lhes dar as boas vindas; lá estava o Trono
da Caveira e a Caverna, além da encantadora mãe que os aguardava de braços abertos.
Agitadiço e contente da vida por estar de novo em casa, a criança não se continha de vontade de
contar-lhe as aventuras que tivera. Mencionou de leve e ligeiramente o Bosque dos Murmúrios e a Praia
Dourada e começou logo a falar do Éden, porque lhe estava mais fresco na mente. Pulando e dançando,
contou-lhe que vira Listrado, Borrado, Manchado e todos os demais animais, não deixando de lado a
passagem em que estiveram apanhando peixes com as próprias mãos, sem auxílio de nada. Mas, para seu
espanto, a mãe empalideceu, quando perguntou, num tom de voz arrastada:
— Você viu Borrado, Listrado e Manchado? De que tamanho estão eles agora?
— Estão grandes assim — gritou Kit, medindo um espaço de uns três metros e meio. Ia ele
continuando a aumentar o tamanho, quando sua mãe, depois de um relance rápido e apavorado no seu
pequeno corpo, saiu correndo da Caverna. Kit ficou espantado com esta atitude da mãe, correndo atrás
dela. Ela alcançou seu pai já no Trono da Caveira.
— Você está louco em levar essa criança até Éden, com todos aqueles animais crescidos, como o
tigre, o leão e o leopardo! — gritou ela.
— Ele estava completamente fora de perigo, querida. Ele se divertiu com tudo aquilo. — respondeu
o pai calmamente.
— Divertiu-se? — gritou ela, tremendo de raiva. — Podia ter sido estraçalhado e morto.
Na parte do fundo os pigmeus aguardavam de olhos escancarados. Em um momento realmente fora
do comum dentro da Floresta Negra, pois jamais alguém havia vociferado de raiva contra o Fantasma.
Nos anos seguintes Kit iria travar conhecimento com muitas garotas e senhoras e algumas delas iriam
mostrar-se cheias de frenesi e nervosinhas por vários motivos, mas ele nunca esqueceria a atitude que seu
pai tivera nessa ocasião em que sua mãe o repreendera. Sua mãe estava tão irritada que chegara a perder
o controle de si, chegando a esmurrar, com seus punhos minguinhos, o amplo peito do homem mascarado
que ao lado dela parecia um gigante, sobrepujando-a em altura em aproximadamente uns 25 centímetros.
Agarrou-a em seus braços massudos, levantou-a do chão e levou-a para dentro da Caverna da Caveira
como se fosse uma criança.
Ele falava numa voz profunda e calma e ela de repente sossegou ao entrarem na Caverna.
— Ele estava completamente fora de perigo, querida. Ele se divertiu com tudo aquilo .
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