segunda-feira, 30 de outubro de 2017

T2 N° 420 : A LENDA DO FANTASMA

2 - MENINICE NA SELVA  

O pequeno mundo de Kit era constituído de selva ampla e espessa, em grande parte inexplorada e
desconhecida de forasteiros. A cidade mais próxima ficava a quinhentas milhas de distância. Situava-se a
mil milhas do oceano, tendo de um lado Mawitã, a capital de Bengala, e do outro lado as Montanhas
Nevoentas, a terra dos príncipes feudais montanheses. Cá e lá, selva cerrada e infestada de toda espécie
de gramívoros: hipopótamos, elefantes, rinocerontes, antílopes e de todos os tipos de felídeos
predatórios de grande porte que se alimentam deles. Nessa região moravam também pessoas, tribos
amistosas, como por exemplo os grandes Wambesis e Llongos; mas existia gente hostil e desconfiada,
como os Oogaans, de estatura menor; e em algumas áreas afastadas, canibais que eram evitados pelos
demais. Havia também os nômades Tirangis, que tinham a fama de ser caçadores de cabeças e que
sempre se deslocavam com suas cabras e ovelhas.
Bem no centro desta vasta área conhecida pelo nome de Floresta Negra viviam os pigmeus de
Bandar, esse povo envenenado e de pequena estatura. As entradas para a sua terra eram escondidas e
secretas e ninguém dos que viviam na selva, nem mesmo caçadores de cabeças e canibais, jamais se
atreveu a localizá-los. Pelo contrário, todo mundo evitava aproximar-se da Floresta Negra, esse lugar
temido e misterioso. Pois todos sabiam que na Floresta Negra se escondia um mistério ainda maior.
Alguns felizardos — ou azarados, conforme as circunstâncias — tiveram a oportunidade de ver com seus
próprios olhos a Caverna da Caveira e o Trono de Caveiras. Alguns chegaram a ver o próprio Fantasma.
E outros que tiveram a dita de voltar para suas casas continuaram falando desta sua aventura pelo resto
de seus dias. A sua proeza foi sendo contada e transmitida de geração em geração, de filhos para netos.
Mas para o garotinho Kit a Floresta Negra não era nem misteriosa nem pavorosa. Aprendeu a
engatinhar e mover-se lentamente pela Caverna da Caveira. Foi ali que ensaiou os seus primeiros passos,
sob os olhares ansiosos e atentos de sua linda mãe e do seu pai. Para o bebê que mal engatinhava, a
Caverna era uma enormidade de espaço. Suas paredes rochosas se elevavam muito acima dele,
parecendo-se com uma catedral ampla. E quando aprendeu a andar e começou a correr de cá para lá
como um filhote de cão brincalhão, foi então que encontrou lugares fascinantes que nunca terminavam.
Havia muitos aposentos feitos na rocha. Um estava apinhado de objetos que luziam feito fogo. Outro era
semiescuro, sombrio e frio. Noutro viam-se longas filas de objetos que lhe disseram que eram livros;
mais adiante, outro compartimento com nichos donde pendiam trajes iguais aos que o seu pai vestia.
Outro quarto estava cheio de coisas maravilhosas em que ele sentia vontade doida de tocar — o que
aliás, um belo dia chegou a fazer, trepando numa caixa e tocando num objeto comprido de metal
brilhante, que pendia numa parede. Era pontiagudo e furou-lhe o dedo.
Um objeto brilhante feriu-lhe a vista. Sabia do que se tratava — pois era parecido com a sua taça de
beber, embora fosse maior e mais pesado, conforme pôde constatar quando lhe caiu das mãos. Naquele
momento seu pai apareceu repentinamente no aposento e apanhou a taça, examinando-a cuidadosamente.
Em sua juventude foi a primeira vez em que Kit ouviu a voz severa do seu pai que o repreendia. A
bondosa e adorável mãe entrou no aposento e tomou em seus braços o filhinho que chorava. Raramente
ouvia palavras ásperas trocadas entre seus pais e quando isto acontecia era coisa fora do comum. — A
taça de diamante de Alexandre — disse o pai, num tom de voz irritada. — Deve tê-la quebrado. Ele não
deve entrar neste aposento. Ele é uma criança; ele não sabia — observou a mãe. O pai o perdoou, mas
somente depois de vários anos lhe permitiu que entrasse novamente naquele quarto.
Como acontece com todos, o garotinho aprendeu a falar. A aprendizagem de Kit era diferente
daquela da maioria das crianças. Ele não estranhava que cada objeto tivesse muitos nomes e que
houvesse muitos modos de identificar as coisas que começava a falar. Seus pais dominavam

perfeitamente diversos idiomas e falavam nessas línguas indiferentemente, sem se aperceberem. Foi
assim que Kit cresceu, aprendendo muitas línguas. Quando atingiu a idade suficiente para se movimentar
fora da Caverna, os pigmeus passaram a ser seus companheiros constantes. Assim ele aprendeu a língua
deles bem como diversos outros dialetos da selva que eles conheciam.
O mundo fora da Caverna tinha um encanto e fascínio sem fim. Naturalmente, havia os filhos dos
pigmeus. Comia com eles, brincava com eles, corria com eles e lutava com eles. Mal acabara de dominar
a arte de andar, ensinaram-lhe o manejo do arco e da flecha, o arremesso da lança e a maneira de tocaiar
animais ferozes. Um pigmeu se tornou seu companheiro particular de todas as horas. Chamava-se Gurã e
era filho do chefe. Gurã era dez anos mais velho do que Kit e fora escolhido por seu pai para servir de
guarda-costas da criança e ensinar-lhe as habilidades e perícias dos pigmeus. Esta tarefa ocupava todo o
tempo de Gurã, como muito bem pode imaginar qualquer pessoa que um dia tenha tido a incumbência de
acompanhar os movimentos de uma criança buliçosa e agitada. Havia as coisas que em geral encantam os
garotos: objetos bem pontiagudos, matos com espinhos, líquidos fervendo, armadilhas de animais,
fogueiras, nascentes, pequenos lagos, correntes de água, banhados e pântanos, rochas e árvores altas.
Além disto tudo, as formigas de correição, tarântulas, cobras venenosas, areia movediça e outros
atrativos especiais. Kit conseguia investigar todas estas coisas, juntamente com Gurã que o acompanhava
ofegante e cansado. Gurã mantinha-se sempre a um passo atrás dele, empurrava-o para cima, puxava-o
para baixo ou desviava-o de tudo o que lhes aparecesse pela frente e que pudesse estorvar-lhes os
passos.
Depois vinham os animais. Mesmo antes que aprendesse a andar, Kit vivia cercado de animais
novos. Eram filhotes de leões e leopardos, gamos e micos. Quando dava passos curtos e incertos do lado
de fora da Caverna, os animais novos davam cambalhotas com ele: era o leãozinho Borrado, o tigrezinho
de nome Listrado e o filhote de leopardo com o apelido de o Manchado. Rolavam, corriam e caíam aos
tropeções, numa baderna de fazer gosto. Os filhotes peludos dormiam com ele. Nesta tenra idade Kit
aprendeu a cuidar dos animais e adestrou-se no treino e trato com eles, sob a tutela perita de seu pai.
Quando os dentes caninos e as patas se tornavam grandes demais para brincar com a criança, os animais
eram mandados para um lugar secreto do qual ele ouviria falar mais tarde.
Gurã ensinou-lhe como se preparam armadilhas para pegar pequenos animais peludos. Alguns eram
apanhados e guardados como animais de estimação enquanto que outros serviam de alimento. Na selva
densa a caça nunca se constituía num esporte e os animais só eram mortos com a finalidade de servirem
de alimento. Começou a cavalgar com seu pai no garanhão enorme de cor preta, chamado Trovão. Os
habitantes da selva lhe deram este nome devido ao ruído provocado pelo casco enorme de suas patas.
Inicialmente Kit cavalgava encarapitado no colo do seu pai, mas com o tempo passou a sentar-se na
frente, na lombada, segurando-se nas crinas compridas e pretas do cavalo.
Quando atingiu a idade de sete anos seu pai entregou-lhe um pequeno pônei peludo, que ele
cavalgava orgulhoso ao lado do pai. Era um espetáculo lindo de morrer, que valia a pena ser visto. O
pequeno Kit montado em seu poneizinho chegava praticamente à altura do abdome de Trovão. Quase
todas as manhãs, quando seu pai estava em casa e não ocupado em alguma missão misteriosa, davam
voltas a cavalo, antes que o dia esquentasse. Kit adorava essa vida que levava: os atalhos e picadas da
selva, a sombra das árvores altas e copadas, o chilrear dos pássaros e o guinchar dos macacos nas
ramagens. Pelo barulho que provocavam com seus movimentos, seu pai identificava os animais sem vê-
los. Quando cavalgavam lentamente pelos caminhos, seu pai ia dizendo o nome das árvores, das macegas,
dos frutos e das bagas; dizia-lhe quais podiam ser comidas e quais não e mostrava-lhe as que tinham
poderes curativos. Essas lições eram repetidas diariamente e aos poucos se gravaram na pequena cabeça
de Kit para nunca mais serem esquecidas.
Havia sempre coisas novas a aprender, mas era uma verdadeira distração. Seu pai era um exímio
nadador e frequentemente paravam ao lado de um lago calmo. Enquanto Trovão e o pônei pastavam, Kit

aprendeu a nadar na superfície da água como também a movimentar-se debaixo dela. Foi assim que
aprendeu a dar mergulhos, primeiramente lançando-se das rampas e depois de alturas maiores. Com seu
pai aprendeu o rapazinho a arte de defesa pessoal pelo boxe, luta corpo a corpo e pelo caratê, praticando
estas artes com Gurã e os seus outros amigos pigmeus. No começo, para Gurã e os seus amigos pigmeus
Kit não representava nenhum adversário, mas com a prática constante e exercícios cresceu forte e rijo e
logo conseguiu defender-se. Seu pai era um caçador de mão cheia que conhecia todas as habilidades e
macetes dos habitantes da selva e alguns mais que eles ainda não tinham dominado. Com seu pai praticou
o arremesso do arco e da flecha, o lançamento da lança, destrezas estas que os pigmeus inicialmente lhe
haviam ensinado.
Tempos depois, num descampado afastado, adestrou-se no uso das armas de fogo, habilidade da qual
a sua vida iria depender centenas de vezes no futuro. Começou com o exercício do tiro ao alvo, valendose de pistolas e rifles de calibre pequeno, passando com o tempo para armas maiores. Seu pai estava
encantado com a competência que o filho revelava. Dentro de poucos anos chegou a superar seu próprio
pai, no que esse homenzarrão via motivo de grande contentamento para si. Mas em nenhuma oportunidade
utilizaram eles animais ou aves para servirem de mira em seus ensaios de tiro ao alvo. Enquanto ia
aprendendo como usar as armas com precisão mortal, pai e mãe incutiam nele a noção da
incomparabilidade e da excelência de todos os seres viventes. Os animais só eram mortos quando se
tratava de defesa própria ou para servirem de alimento. Na selva os caçadores dependiam de suas armas
e habilidades para sobreviver e não para diletantismo esportivo. O jovem Kit estava profundamente
imbuído desta atitude e fazia dela sua norma de vida. Outro comportamento que ele aprendeu foi com
respeito ao combate com outros seres humanos, com armas ou à mão livre. Com exceção de jogos que se
disputavam por ocasião de festividades que de vez em quando se celebravam ou de jogos infantis que se
promoviam — o código que prevalecia na selva no tocante à luta com um homem era um assunto sério.
Seja com a faca ou a socos, lutava-se em defesa da própria vida. Encaradas dentro dos ditames do
código severo da selva, tais lutas eram lutas de morte. Somente depois de muitos anos aprendeu Kit a
lutar boxe ou corpo a corpo por mero prazer ou exercício.
Havia contudo mais coisas a aprender além das habilidades da selva. Precisava aprender a ler,
escrever e as operações de aritmética. A Kit quem ensinou estas estranhas artes — desconhecidas dos
seus companheiros pigmeus — foi sua linda mãe. Sentado aos pés dela na Caverna da Caveira ou do lado
de fora nos assuntos do Trono da Caveira, ele escrevia pacientemente o alfabeto e as tábuas de
multiplicar e queimava as pestanas com suas cartilhas de leitura elementar. Estes livros apresentavam um
mundo estranho de casas, bicicletas, automóveis e os garotinhos e garotinhas vestindo roupas esquisitas.
Kit nunca vira uma casa nem um par de calçados e a única roupa que vestia era uma tanga igual à de
Gurã. A mãe explicava-lhe cuidadosamente o que significavam aqueles desenhos, o que eram os trens, os
aviões, as cidades com seus arranha-céus e os policiais. Mas tudo não passava de palavras, que para o
garotinho nada significavam.
Seus amigos pigmeus estavam discordantes e intrigados com essas lições misteriosas, que a seu ver
não tinham nenhuma utilidade e só serviam para tomar o tempo de Kit e interromper as suas brincadeiras.
Mas Gurã observava com curiosidade e Kit insistia para que também ele assistisse a essas lições. No
começo Gurã não quis participar, o que deixou Kit muito triste, chegando a recusar a olhar para os livros
e tabuadas a menos que Gurã estudasse com ele. Gurã juntou-se então a ele e foram aprendendo as lições
sentados aos pés de sua linda mãe, enfronhando-se nos mistérios dos pequenos livros. Numa história
genealógica que remontava à idade da pedra, Gurã tornou-se o primeiro pigmeu que aprendeu a ler e
escrever as contas de aritmética. Isto teve um efeito profundo nele e anos depois, quando se tornou o
governante de Bandar, contratou professores e fundou um sistema escolar e educacional entre essa
população de homens pequenos e ferozes.
 

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