5 - OS SEGREDOS
Quando Kit ia se aproximando dos doze anos, uma mudança extraordinária e inesperada iria efetuarse em sua vida. Começou também uma nova fase de sua educação, pois foi sendo introduzido nos
segredos, tradições e responsabilidades do Fantasma. Durante quatro séculos cada geração tinha passado
por semelhante escolarização mais ou menos nesta mesma idade. Com a idade de onze anos e já mais
para os doze, Kit tinha uma compleição alta e era descomunalmente forte para a sua idade. Tinha herdado
o físico de seu pai e seus músculos jovens estavam ficando polpudos, prometendo um poderoso
desenvolvimento no futuro.
Agora Kit era levado a visitar a cripta tranquila e mofada na Caverna da Caveira. Dezenove
gerações dos seus antepassados estavam enterrados ali, conforme podia ler nas tabuletas com as
inscrições. Somente a ordem de gerações tinha suas datas. Era assim:
O Primeiro 1516-1566; O Segundo 1555-1609; e assim por diante. Dezenove tabuletas gravadas e
colocadas no frontispício de ataúdes enfileirados em galerias na parede. Além disso havia diversas
tabuletas sem nenhuma data, somente com os dizeres O Vigésimo e O Vigésimo Primeiro. O pai explicou
que a primeira tabuleta indicava o local onde ele mesmo seria sepultado, enquanto que a última seria a de
Kit. Kit achou graça e riu. Pensar em morte não é assunto que interessa a um garoto que está em vias de
completar doze anos de idade. — Mandei gravar as palavras Para o Vigésimo Primeiro no dia em que
você nasceu — explicou-lhe o pai. — Quando nascer o seu primogênito você também deverá fazer o
mesmo, gravando uma tabuleta igual. — Kit não pôde conter um riso.
Para Kit a cripta se tornou mais do que meros números e datas. Seu pai retirava os grossos volumes
das Crônicas e, sentados diante das galerias, liam os feitos e façanhas dos antepassados registradas com
suas próprias palavras. Desta maneira cada um deles se tornava bem nítido e claro embora escondido
atrás de sua máscara e capuz que os mantinham em anonimato. Kit já ouvira muitas das narrativas, como
as do Sexto que se casara com a rainha Natália, do Sétimo que salvou a vida do imperador Joonkar, e de
outros mais. Cada Fantasma tinha suas características individuais, completamente diferentes dos outros.
Por exemplo, o Terceiro tinha tentado abandonar a carreira de Fantasma para se dedicar ao palco,
quando em sua juventude. Este terceiro Fantasma em potencial — enviado à Inglaterra para ser educado
por monges — fugira da escola para se juntar a uma companhia teatral no Globe Theatre que estava sob a
direção do popular teatrólogo, ator e diretor William Shakespeare. Naqueles tempos todos os papéis
femininos eram desempenhados por rapazes e o Terceiro em potencial teve a honra de fazer o papel de
Julieta na primeira apresentação de "Romeu e Julieta". A peruca preta que estava no quarto principal dos
tesouros foi a que ele realmente usou e que fora colocada em sua cabeça pelo autor. (Dizem que seu pai,
O Segundo, assistira seu filho fazer o papel de moça e quase teve um ataque de coração). Mas quando
chegou a época devida, o ator não conseguiu resistir ao chamado e apelo da Caverna da Caveira e
retornou ã Floresta Negra para se tornar O Terceiro.
— O Sr. quer dizer que ele quase não se tornou o Fantasma? — perguntou Kit.
— Sim, a geração de fantasmas quase se extinguiu, exatamente depois que mal havia começado —
respondeu seu pai.
— Barbaridade, por pouco que tudo ia água abaixo — disse Kit.
— Sim, por pouco mesmo — concordou o pai.
— Se ele tivesse persistido em ser ator, o que teria acontecido com todos eles? — perguntou ele,
acenando com sua mãozinha para as galerias.
— Só Deus sabe — respondeu o pai.
— Mas alguém deve saber — insistiu Kit. — Onde é que o Sr. e todos nós estaríamos então?
— Kit, ninguém sabe, saiu-se seu pai, encerrando a conversa.
Pela primeira vez Kit percebeu que a vida encerrava mistérios e que por certas razões havia
perguntas que ficavam sem resposta.
Muitas indumentárias destes antepassados eram guardadas em armários hermeticamente fechados.
Kit examinava-as, enfiando seu dedo nos rasgos feitos por facas e balas, sendo que alguns deles tinham
sido fatais. Pelas próprias palavras com que consignavam seus feitos nas Crônicas e pelos trajes que de
verdade haviam usado Kit percebeu que se sentia apaixonado por eles e admirava-os. Isto porque todos
eles eram homens bons, treinados desde a sua infância a se devotarem ao bem dos seus companheiros da
raça humana.
Certo dia Kit estava examinando os trajes, quando teve sua atenção voltada para um deles. Era igual
aos demais, porém muito menor. Os homens Fantasmas eram de estatura grande e tinham a tendência de
casar-se com mulheres altas, embora uma ocasional beldade de porte pequeno tivesse encontrado o
caminho da Caverna da Caveira. Chegara a haver até um Fantasma pequeno, o Décimo Terceiro, que era
de altura mediana mas parrudo e possante como um touro. Para compensar a sua altura, casara-se com
uma senhora que era uns vinte centímetros mais alta do que ele e para os seus descendentes era conhecido
pelo nome carinhoso de O Pigmeu. Em sua grande maioria eram homens altos como o pai de Kit.
A quem teria pertencido este traje? Era menor do que aquele do Pigmeu — e Kit tinha visto aquele
do Pigmeu — e tinha um formato diferente. Em algumas partes era mais estreito e mais largo em outras.
Quando perguntou a seu pai como é que se explicava isto, este se riu.
— Aquele traje pertenceu à tia da minha tia. Ela seria a sua tataratia — disse ele a Kit.
A esta altura a mãe de Kit parou na entrada, sobraçando uma trouxa de roupa para lavar, que estava
num balaio.
— A genealogia de sua família me deixa zonza — observou ela.
— Quer saber de uma coisa? Também a mim me deixa tonto — acrescentou o pai.
— E este traje? — perguntou Kit impaciente. — Ela o vestiu? — Seu pai fez sinal afirmativo. —
Então era um Fantasma mulher? Isto é possível? — perguntou a mãe.
— Durante um breve espaço de tempo ela fez o papel de Fantasma... foi um caso excepcional —
disse o Vigésimo.
— Então me conte a respeito desse Fantasma-mulher — pediu Kit entusiasmado.
— Espere que eu vá pendurar a roupa na corda, para aproveitar o sol. Eu também quero ouvir a
história — pediu a mãe, saindo depressa.
Quando sua mãe voltou foram todos para o Compartimento das Crônicas. Seu pai apanhou um
volume da estante e folheou-o. — Só para refrescar minha memória — disse ele, começando a narrativa.
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